Capítulo vinte e um | A palavra abissal



A mão vermelha de Dois Amanhãs sobre o peito negro de Meio da Noite era um pouco de fogo aberto num lugar onde tudo parecia haver ardido. Os seus corpos tinham algo de profundo desencontro e ávido entendimento. Assemelhavam-se na distância. Como dois tempos distintos de uma mesma coisa. Haviam convivido por cumplicidade e afeiçoavam à lentidão, tinham nenhuma pressa, certamente incautos. A mão vermelha de Dois Amanhãs afagava aquele peito agora aflito, que entoava:
se o sagrado Honra precisar de navegar, eu precisarei de navegar.
A feminina pedia que não partisse. Caçar o inimigo depois do primeiro mar, na maior ilha distante, era memória de muito poucos abaetés, a ancestralidade ensinava a pertura das aldeias, ensinava o equilíbrio daquelas caças e pescas, sabiam de muito cultivo, faziam uma vida grande no lugar tão perfeito que habitavam. Domesticadas as sementes, tão simples dádiva abundante, as lonjuras eram sempre mais arrogantes. As ilhas dos três mares bastavam. Agigantavam ainda mais por dentro. Por dentro de cada um. E só quem não sabia a paz ponderava a ideia triste de partir. Ela assim insistia mas o negro tomava sua mão de fogo, beijava com suavidade e repetia:
se o sagrado Honra navegar, eu navego.
O feio negro, peremptório, era já um pouco longe.
Dois Amanhãs correu a Pai Todo e logo se melhorou nas palavras para merecer sua atenção, a pedir que intuísse um impedimento para que os feios partissem. Ela entoava:
sagrado Pai Todo, nosso santo, Honra decide navegar. Faz com que fique. Temo que afunde, que seja mordido por peixes com bocas de dois jacarés, dez jacarés ou vinte, vai ser caçado por todos os cuspes, todos os ferros, ele estará diante das mil feras brancas que o haverão de matar até ao último pedaço. Peço-lhe, sagrado Pai Todo, faz com que fique. Faz o feio ficar.
Eram ainda as palavras de Dois Amanhãs e já os feios se prostravam também aos pés do santo. Honra pedia:
santo, deixa-me ir. Atravesso toda a água que houver para chegar ao inimigo essencial. Mato e regresso debaixo de nossa alegria. Sagrado Pai Todo, eu montarei o tremendo animal líquido e não morrerei nem para ir nem para voltar. Deixa-me ir. Escuta na Voz Coral meu caminho e aponta minha navegação. Vamos matar esse inimigo que atormenta minha mãe e me atormenta. Por nossa dignidade. Seremos alegres, depois. Seremos para sempre alegres.
O pajé fumou sentado. Sua majestade era matutina, muito começadora, como se acabasse de chegar do sono ou de uma visão. Estava fresco, quase frio, os olhos fechando de ainda não frequentarem a luz. Ele demorava. Os feios e Dois Amanhãs ansiavam agora silentes. Mais demorasse seria certa a Voz Coral em seu ouvido e a prudência haveria de gerar em suas respostas.
Quando o santo suspirou, Honra, Meio da Noite e Dois Amanhãs abateram novamente aos seus pés e escutaram:
a guerra abaeté é uma defesa, não é um ataque. Terás de decidir se, guerreando para atacar, haverá condição de regresso e se saberás ainda maturar para a nossa alegria. Não há caminho senão esse, o da alegria.
Honra insistiu:
mas se o inimigo abeira. Está nas ilhas. Sua proximidade é ameaça, requer defesa.
Então, o santo respondeu:
tu inteiro és a máscara do branco. Um abaeté mascarado. E abeiras o animal inimigo nesse perfeito disfarce. Sabes sua língua. Poderás passar apenas para observar, ver de perto como sobrevive e para que sobrevive. Eu esperava de ti esta partida, mas nossa necessidade é com outro medo que não a raiva da vingança. Nossa cultura é sob a ameaça de uma palavra abissal. Uma ideia que preda o modo como vivemos, o nosso tempo concreto, sem mentira.
O feio perguntou:
o que preda. Que ideia é essa.
O santo respondeu:
uma mentira sobre o tempo que nos impede de viver quando somos e nos adia para quando jamais haveremos de ser. Chama-se futuro. É uma ideia para onde tudo cai, os que soam, os bichos, as matas, os mares, o mundo inteiro, até a morte e a encantaria. O futuro é a ideia branca que abre por sobre todas as palavras para as adoecer, e por sob todos os pés e todas as raízes, obrigando à pronúncia apenas depois, num depois que, por definição, não acontece.
Honra entoou:
não sinto.
O santo entoou:
és despreparado para a tarefa de abeirar o branco. Se partires, talvez não saibas como voltar. Ficarás à deriva nesse inimigo vocabular que te levará da lucidez abaeté. Estarás fora da lucidez abaeté. Angustiado como se angustia o animal branco por sucumbir ao predador que ele próprio imaginou. Honra, se partires, poderás jamais escapar da língua suja que habita agora tua boca, a toca do espírito, ficarás a entardecer no que entoarás criando apenas o sofrimento inimigo. Um sofrimento cada vez maior e sempre mais apartado da alegria. Irás para branco. Cada vez mais branco, explicado por sua língua até que ela renasça cada coisa e todas as coisas sejam sua fealdade para sempre.
O guerreiro branco respondeu:
não sinto.
O pajé entoou:
és torto.
Honra entoou:
partirei. E saberei voltar. Eu saberei.
O santo respondeu:
todos te amamos, Honra. Só seremos capazes de te amar.
Chorando, Dois Amanhãs perguntou:
e eu, que farei.
O santo respondeu:
fiarás o mais delicado colar. Como todas as amorosas, adornarás o peito do guerreiro que amas se ele houver de regressar. Depois, sofrerás o que ele obrigar e sonharás que haverá ainda alegria. Tu e toda a comunidade assim sonharão.
Pai Todo levantou e chefiou que a comunidade chorasse. A comunidade chorou.
Os feios, por obstinada guerra, eram longe. Ambos longe. A aldeia escorria de sob os seus pés.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

limites ao léu

poesia: “words set to music” (Dante via Pound), “uma viagem ao desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e medulas” (Ezra Pound), “a fala do infalável” (Goethe), “linguagem voltada para a sua própria materialidade” (Jakobson), “permanente hesitação entre som e sentido” (Paul Valéry), “fundação do ser mediante a palavra” (Heidegger), “a religião original da humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na melhor ordem” (Coleridge), “emoção relembrada na tranquilidade” (Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny), “se faz com palavras, não com ideias” (Mallarmé), “música que se faz com ideias” (Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um fingimento deveras” (Fernando Pessoa), “criticism of life” (Matthew Arnold), “palavra-coisa” (Sartre), “linguagem em estado de pureza selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to inspire” (Bob Dylan), “design de linguagem” (Décio Pignatari), “lo imposible hecho posible” (García Lorca), aquilo que se perde na tradução” (Robert Frost), “a liberdade da minha linguagem” (Paulo Leminski)…

Paulo Leminski, in Toda Poesia

O erro dos inteligentes

Mas é que o erro das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos que provam.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

As rãs | Parte II


4.

Minha filha completou nove dias no primeiro dia do ano do Cachorro. Segundo o costume camponês, esta é uma comemoração importante, que reúne todos os parentes e amigos. Na véspera, chamei Cinco Sentidos e Yuan Bochecha para me ajudar a pegar emprestado mesas e cadeiras, bules de chá, louças e talheres. Contei por alto uns cinquenta convidados, homens e mulheres. Colocaríamos duas mesas nos dois cômodos laterais para receber os homens; e uma mesinha sobre o kang da minha mãe para as mulheres. Planejei um cardápio com oito entradas frias, oito pratos quentes e, para finalizar, uma sopa. Yuan Bochecha leu minha lista e deu risada: “Meu irmão, isto aqui não vai funcionar. Seus convidados são camponeses, um bando de sacos sem fundo. Essas comidinhas só vão dar para encher os buracos dos dentes deles. Na minha opinião, não precisa dessa variedade toda, basta servir um pedação de carne e um copo grande de aguardente, isso é que é bom num banquete para gente da roça. Com o cardápio refinado que você preparou, cada um vai dar uma mordida e acabou, e aí? Aí sim você vai passar vergonha”. Reconheci que ele tinha razão. Mandei Cinco Sentidos à feira buscar vinte e cinco quilos de carne de porco, metade magra, metade gorda. E dez frangos assados, daqueles frangos caipiras, grandes e gordos. Eu fui procurar Wang Huan para encomendar dele vinte quilos de tofu. Mandei Yuan Bochecha comprar dez acelgas, cinco quilos de macarrão de feijão, vinte libras de aguardente. A família de Wang Renmei mandou duzentos ovos. O pai dela, meu sogro, veio ver o que eu tinha preparado e disse, contente: “Muito bem, meu genro! Sua família sempre foi mão-fechada, até virou motivo de troça, mas dessa vez você deve mudar essa tradição, botar mais fartura na mesa, fazer os convidados saírem daqui carregando a barriga com as mãos, quem dá festa grande precisa mostrar que tem uma alma grande!”.
Quase metade dos convidados já estava em minha casa quando percebi que tinha esquecido os cigarros. Sem pensar duas vezes, mandei Cinco Sentidos ir comprar na cooperativa. Chen Nariz e Wang Vesícula chegaram com a filha. Cinco Sentidos apontou para o presente que Chen trazia na mão e disse, alegre: “Não vai precisar comprar”.
Chen Nariz tinha enriquecido nos últimos anos, sua renda anual já passava dos dez mil iuanes. Primeiro foi a Shenzhen, comprou uma grande quantidade de relógios digitais para vender a esses jovens que gostam de moda. Depois foi a Jinan, conseguiu uns cigarros a preço de atacado com um conhecido de uma fábrica de tabaco e mandou a mulher vender na feira.
Eu a vi trabalhando lá na feira. Levava pendurada no pescoço uma peça engenhosa, que fechada era uma caixa e, aberta, virava um mostruário de cigarros. Vestia um casaco de algodão azul e branco, feito sob medida. Carregava nas costas um bebê gordo, embrulhado numa manta de algodão que só deixava entrever os olhos e o nariz. Qualquer um, conhecendo-a ou não, lançaria a ela um olhar atencioso. Os locais sabiam que se tratava da esposa de Chen Nariz, o negociante de cigarros, e que o bebê gorducho era seu. Os forasteiros pensavam: “Pobre menina, vende cigarros enquanto carrega a irmãzinha nas costas”. E, movidos pela compaixão, compravam dos seus produtos.
Chen Nariz vestia uma rígida jaqueta de couro de porco e usava por baixo uma malha de fios grossos e gola alta. Tinha o rosto corado e o queixo azulado pelo barbear, o nariz grande, os olhos fundos e de um azul-cinzento, o cabelo crespo.
Cinco Sentidos anunciou: “Chegou o magnata!”.
Que magnata que nada”, disse Chen, “sou um mero sacoleiro!”
Yuan Bochecha disse: “Seu chinês é muito bom, továrich!”.
Chen Nariz levantou o embrulho de papel que tinha na mão e disse: “Hoje vim aqui para bajular sem dó”.
É cigarro? Os convidados já estavam pedindo”, disse Yuan Bochecha.
Chen jogou o embrulho para Yuan, que o pegou, abriu e tirou quatro pacotes de cigarros da marca Daji.
Os negócios vão bem mesmo, até anda mão-aberta”, disse Yuan.
Mas que boca você tem, Yuan!”, disse Wang Vesícula com sua voz fininha. “É capaz de fazer até defunto dançar discoteca.”
Ei, cunhada, me perdoe a indelicadeza”, disse Yuan, “mas por que não fez Chen Nariz carregar você no colo hoje?”
Vou arrebentar essa sua boca!”, disse Wang Vesícula enfurecida, agitando a mãozinha.
Mamãe, quero colinho…” Chen Orelha saiu de trás de Wang Vesícula e veio para a frente, choramingando. Já estava quase do tamanho da mãe.
Chen Orelha!”, eu disse, me abaixando para pegá-la. “Deixa o titio te carregar no colo.”
Chen Orelha começou a chorar. Chen Nariz pegou a filha, deu-lhe umas palmadinhas no bumbum e disse: “Orelhinha, pare de chorar, não era você que queria vir visitar o tio soldado?”.
Orelhinha estendeu os braços para a mãe.
Ela ainda estranha os desconhecidos”, disse Chen Nariz, entregando a criança para a mãe. “Ainda agorinha estava no maior berreiro porque queria ver o tio soldado.”
Nesse momento, Wang Renmei bateu na treliça da janela e gritou: “Wang Vesícula! Ande logo, venha cá!”.
Wang Vesícula carregava a filha como um cachorrinho com um brinquedo grande na boca. Tinha algo de cômico, mas também de imponente. Suas perninhas se moviam rápido, como uma personagem de desenho animado durante a fuga.
Sua menina é bonita demais!”, eu disse. “Parece uma boneca!”
É da estirpe soviética, como não sairia bonita?”, disse Yuan Bochecha, piscando o olho. “Nariz, você não tem dó mesmo, dizem que não deixa sua mulher descansar nem uma noite.”
Cale a boca!”, exclamou Chen.
Use com mais cuidado!”, continuou Yuan. “Ainda vai precisar dela para te dar outro filho!”
Chen deu um pontapé em Yuan e disse: “Não mandei você calar a boca?!”.
Tudo bem, tudo bem, vou ficar quieto”, Yuan sorriu, “mas invejo vocês, de verdade, casados há tantos anos e ainda todo dia estão se agarrando, se beijando, se mordiscando, bem se vê que o casamento livre é mesmo muito diferente do arranjado.”
Toda família tem seus problemas”, disse Chen, “você não sabe do que está falando!”
Dei uns tapinhas na barriga ligeiramente saliente de Chen Nariz e disse: “A barriga de general já está aparecendo”.
A vida está melhor!”, ele disse. “Nem em sonho eu imaginava que um dia viveria tão bem.”
Devemos isso ao presidente Hua”, falou Yuan.
Acho que devemos agradecer ao presidente Mao”, disse Chen, “se aquele velho não fizesse o favor de morrer, tudo estaria como antes.”
Nessa altura, mais convidados tinham chegado e escutavam nossa conversa em pé no pátio. Até os que já tinham sido acomodados nas salas laterais, ouvindo a animação do lado de fora, saíram para conversar.
Meu primo Jin Xiu, filho de um tio materno, se esgueirou até o lado de Chen Nariz: “Tio Chen, o senhor é nosso ídolo lá na aldeia”, ele disse, olhando para cima.
Chen tirou um maço de cigarros, jogou um para o meu primo, acendeu outro para si, enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e perguntou, cheio de bossa: “Mas então me conte, o que andam falando de mim?”.
Dizem que só tinha dez iuanes no bolso quando embarcou no avião para Shenzhen.” Meu primo deu uma coçadinha no pescoço e continuou: “Dizem que ficou junto de uma comitiva soviética, bem espalhafatosa, e as aeromoças, crentes que você também era daquele grupo, ficavam abaixando a cabeça sem parar diante de você, cheias de formalidade, e você só falava ‘khorocho, khorocho’… Dizem que quando chegou a Shenzhen, hospedou-se no mesmo hotel de luxo da comitiva soviética, comeu e bebeu do bom e do melhor por três dias, ganhou de brinde um monte de presentes, que depois foi vender na rua, comprou um relógio digital de vinte iuanes, voltou e vendeu, levantou capital, e assim, comprando aqui, vendendo ali, acabou ficando rico”.
Conte mais, continue inventando!”, disse Chen, apalpando o narigão.
Dizem”, continuou meu primo, “que estava batendo perna na rua em Jinan quando encontrou um velho chorando. Chegou e perguntou a ele: ‘Por que está chorando, senhor?’, e o velho falou que tinha saído para dar uma volta e se perdeu. Você o ajudou a voltar para casa. O filho dele era chefe da divisão de fornecimento e vendas de uma fábrica de cigarros e, vendo que você é uma pessoa de bom coração, adotou-o como irmão. É por isso que você consegue comprar cigarros a preço de atacado.”
Chen Nariz soltou uma risada sonora e disse: “Irmãozinho, está escrevendo um romance? Vou te dizer a verdade, já andei algumas vezes de avião, mas sempre paguei do meu bolso. E realmente conheço gente na fábrica de cigarros de Jinan, mas me vendem por um preço não muito abaixo do mercado, ganho só três centavos por caixa”.
De qualquer maneira, o senhor é poderoso”, meu primo disse com toda a sinceridade. “Meu pai me mandou tratá-lo como meu mestre.”
Poderoso mesmo é este aqui”, disse Chen Nariz apontando para Yuan Bochecha. “Ele entende de astronomia e geografia, sabe tudo o que se passou há quinhentos anos, e metade do que ainda vai se passar daqui a quinhentos anos. É ele que você deve tomar por mestre.”
O tio Yuan também é fenomenal”, disse meu primo, “ele olha a sorte na feira de Xiazhuang, tem o apelido de Semideus. A galinha velha da minha tia um dia desapareceu, o tio Yuan contou nos dedos e disse: ‘Na beira d’água anda o pato, a galinha vai para o mato, vão achá-la num ninho de palha’. E foi assim mesmo que a encontramos.”
Mas ele não sabe só olhar a sorte”, disse Chen. “Sabe muito mais coisas. Qualquer coisa que ele te ensinar, qualquer uma, já vai poder te sustentar para o resto da vida.”
Uma reverência para o mestre!”, disse Cinco Sentidos.
Não mereço tanto elogio. Esses conhecimentos nunca me farão subir na vida, só bastam para ganhar meu pão modestamente. Você deve aprender com seu primo, que foi ser militar, virou oficial, ou então entrar para a universidade, estudar. Só assim você poderá seguir um caminho promissor e ser alguém na vida.” Yuan Bochecha apontava para si mesmo, e depois para Chen Nariz: “Até mesmo ele, o que ele faz não é cem por cento correto. Só fazemos isso porque não temos outros recursos, você ainda é novo, não deve seguir nosso exemplo”.
Mas isso que vocês fazem é que é ter capacidade”, teimou meu primo, “entrar para o Exército, passar no vestibular na verdade não são prova de capacidade.”
Está bem, irmãozinho”, disse Chen, “você tem opinião formada, muito bem, futuramente vamos trabalhar juntos.”
E Wang Fígado, por que não aparece?”, perguntei a Cinco Sentidos.
Aquele lá com certeza foi montar guarda no posto de saúde”, respondeu ele.
Nosso amigo anda mesmo obcecado”, disse Chen Nariz, “nem três cavalos dão conta de arrastá-lo para outra direção.”
A casa deles não está bem posicionada”, disse Yuan fazendo ar de mistério, “a localização da porta principal não é boa, a localização do banheiro também não. Faz mais de dez anos que falei para o pai dele mudar imediatamente a posição da porta e tirar o banheiro de onde está, do contrário alguém ali ia enlouquecer! Mas o velho achou que eu estava rogando praga e pegou o chicote para me botar para fora.” “E no que deu? A previsão se cumpriu?” “Sempre que pode, aquele velho corre para o posto de saúde, apoiado na bengala, todo encurvado, vai lá chutar cachorro morto, bancar o valentão, se isso não é doença mental, então é o quê? Wang Fígado saiu-se ainda melhor, um camponês autêntico, mas com cabeça de pequeno-burguês, perdeu o siso por causa daquela moça de cara cheia de espinhas, a Leoazinha, basicamente isso também é doença mental.”
Eu disse aos convidados: “Está bem, pessoal, não vamos ficar ouvindo as bobagens de Yuan Bochecha, vamos sentar, vamos sentar!”.
O feng shui da sede da nossa comuna também não é bom”, prosseguiu Yuan. “Desde sempre a porta principal de um yamen fica voltada para o sul, mas na nossa comuna a porta principal dá para o norte, bem na direção do abatedouro, o dia inteiro tem facas se banhando em sangue, carnes sendo retalhadas, a atmosfera de carnificina é muito pesada. Quando fui dizer isso lá na sede, falaram que eu estou envolvido com superstições feudais, por pouco não me prenderam. E viram o que aconteceu? O velho secretário Qin Shan está com um lado do corpo paralisado, o irmão mais novo dele é um biruta de marca maior. Qiu, o secretário novo, foi com mais de uma dúzia de pessoas fazer uma inspeção no Sul, sofreram um acidente de trânsito e, entre mortos e feridos, praticamente não sobrou ninguém para contar a história. Feng shui é coisa séria, não adianta você bancar o durão, por mais durão que seja, não será mais que o imperador, não é? E até o imperador devia estar atento ao feng shui…”
Vamos sentar!”, eu disse enquanto dava um tapinha em Yuan. “Mestre, o feng shui é importante, mas comer e beber também são muito importantes.”
Se não mudarem a posição da porta principal da sede da comuna, alguém ainda vai enlouquecer ali, ainda vai acontecer algo muito ruim”, disse Yuan. “Quem não acredita em mim que espere para ver!”

Mo Yan, in As rãs

Aconselho-o a se conformar

Você viajou, veio de longe para conversar comigo. Queria que eu o ajudasse a colocar ordem no seu albergue. O corpo é um albergue, você sabe. Nele moram muitos pensionistas com a mesma cara. Lição que aprendi de um demônio que, respondendo a uma pergunta de Jesus sobre o seu nome, respondeu que era Legião, porque eram muitos. O caso mais famoso é o de Fernando Pessoa, nome de batismo de um corpo em que muitas pessoas diferentes moraram, algumas ao mesmo tempo, outras sucessivamente, cada uma pensando e escrevendo de um jeito. Sobre o assunto aconselho você e todos os leitores a verem o filme Quero ser John Malcovitch.
Você me contou sobre alguns dos seus pensionistas. Primeiro, o palhaço. Não por acidente, mas por vocação e profissão, com nariz vermelho e tudo o mais, que divertia as crianças. Eis aí um personagem que precisa viver sempre. O riso é, talvez, o remédio mais poderoso para nos ajudar a conviver com a tristeza. O riso do palhaço é sempre um raio de luz na escuridão. Nietzsche se dizia palhaço. Palhaço e poeta. As duas vocações se complementam.
Outro foi um vendedor de cachorro-quente. Para ganhar a vida. Diferente. Você se divertia com os seus cachorros e estava sempre inventando novas raças.
Agora é um professor universitário com a terrível responsabilidade de escrever artigos científicos e se comportar devidamente. Advirto-o de que palhaços e professores universitários não convivem bem. Você sabe disso por experiência própria. Palhaços são leves, flutuam; professores universitários são graves, afundam. É proibido fazer humor em teses de mestrado e doutorado.
E há, por fim, o mais terrível de todos os personagens: o apaixonado. A paixão é uma perturbação da tranquilidade da alma. Abelardo, professor universitário, se deu muito mal, permitindo-se ficar apaixonado pela Heloísa. Foi a sua desgraça. A estória dos seus amores está contada no filme Em nome de Deus. Ele mesmo, Abelardo, rigoroso professor de filosofia, confessou que, tomado pela paixão, deixou de preparar suas aulas e passou a dedicar-se à poesia. Como você sabe, poesia não dá respeitabilidade acadêmica.
Tudo seria simples se cada um dos personagens tivesse morado no seu corpo numa temporada de curta duração, partindo depois para destino ignorado. Não é esse o seu caso. Na realidade, suspeito que haja muitos outros, sobre que você não falou. Falarei sobre um deles, no final. Acontece que todos eles continuam a morar no seu albergue, numa orgia que não lhe dá sossego.
Quero dizer-lhe duas coisas. Pelo que ouvi, não me parece que qualquer um deles tenha disposição para mudar de casa. Isso é ruim, porque você nunca terá paz. Seria tão melhor se você fosse 100% cientista, que só pensasse em pesquisa e artigos! Você teria uma única direção – e mesmo as suas possíveis paixões seriam submetidas ao critério acadêmico. Você se casaria com uma cientista, trabalhariam os dois nos domingos em suas pesquisas, e nenhum reclamaria do outro. Nenhum estaria querendo ir ao cinema enquanto o outro está no computador tentando terminar um artigo. Mas esse não é o caso. Seria muito chato.
Não sendo esse o caso, aconselho-o a se conformar. Ofereço-lhe, como consolo, um aforismo de Nietzsche: “O preço da fertilidade é ser rico em oposições internas. A gente permanece jovem somente enquanto a alma não se espreguiça e deseja a paz.” Você está cheio de oposições internas. Se essas oposições lhe tiram a paz, você deve saber que são elas que o fazem interessante. É delas que surgem os pensamentos mais bonitos.
Não sei por que você não continua a ser palhaço e a alegrar as crianças. E por que não fazer isso na universidade? Você tem vergonha? Roupa de palhaço não combina com beca acadêmica?
Quanto às suas habilidades de fazedor de cachorro-quente, acho melhor cuidar delas com cuidado, em particular. Nunca se sabe o que o futuro nos reserva. Sei de professores que passaram a ganhar a vida fazendo suco e vendendo pão.
E vi que seu personagem cientista está a serviço de um personagem artista. Você é um cientista de lagos. Para a ciência, lagos são laboratórios. Muito se pode aprender do seu estudo. Mas você, além disso, ama os lagos pela sua beleza. Você cuida dos lagos pela tranquilidade que eles comunicam. Você tem alma de jardineiro.
Aceite a orgia dos pensionistas com alegria. São poucos os que têm esse privilégio. Apareça de novo quando quiser.

Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

Contraste

Pela aparência que tinha e pela idade que dizia ter, aquela senhora podia ser a mãe de si mesma.

Millôr Fernandes, in Millôr definitivo: Uma antologia baseada em “A bíblia do caos” 

Arcos

A Silvina Ocampo

Quem canta nas ourelas do papel?
De bruços, inclinado sobre o rio
de imagens, me vejo, lento e só,
ao longe de mim mesmo: 6 letras puras,
constelação de signos, incisões.
na carne do tempo, ó escritura,
risca na água!

Vou entre verdores
enlaçados, adentro transparências,
entre ilhas avanço pelo rio,
pelo rio feliz que se desliza
e não transcorre, liso pensamento.
Me afasto de mim mesmo, me detenho
sem deter-me nessa margem, sigo
rio abaixo, entre arcos de enlaçadas
imagens, o rio pensativo.

Sigo, me espero além, vou-me ao encontro,
rio feliz que enlaça e desenlaça
um momento de sol entre dois olmos,
sobre a polida pedra se demora
e se desprende de si mesmo e segue,
rio abaixo, ao encontro de si mesmo.

Octavio Paz, in Antologia Poética

Hollywood | 30




Jon Pinchot escapara do gueto. Em seu contrato, dizia-se que lhe providenciariam um apartamento, a ser pago pela Firepower. Ele encontrara um apartamento perto do prédio da empresa. Toda noite, de sua cama, via o anúncio luminoso no alto do edifício, Firepower, cuja luz passava pela janela e batia em seu rosto enquanto dormia.
François Racine permanecia no gueto. Iniciara uma horta, onde cultivava legumes. Girava a sua roleta, cuidava da horta e dava de comer às galinhas. Era um dos homens mais estranhos que já conheci.
Não posso deixar minhas galinhas – me disse. – Morrerei nesta terra estranha com minhas galinhas, aqui no meio dos negros.
Eu ia ao hipódromo nos dias de corrida e o filme continuava sendo rodado.
O telefone tocava todo dia. Gente querendo entrevistar o escritor. Eu nunca imaginara que houvesse tantas revistas de cinema ou interessadas em cinema. Era um nojo: aquele grande interesse por um veículo incansável e consistentemente incapaz de produzir qualquer coisa. As pessoas se acostumavam tanto a ver merda que não mais percebiam que era merda.
As corridas eram outro desperdício de vida e esforço humano. As pessoas marchavam até os guichês com seu dinheiro e o trocavam por pedacinhos de papel numerado. Quase nenhum dos números valia alguma coisa. Além disso, o hipódromo e o estado tomavam 18% de cada dólar, que dividiam entre si. Os maiores idiotas iam ao cinema e às corridas. Eu era um idiota que ia às corridas. Mas me saía melhor que a maioria, porque, após décadas frequentando o hipódromo, aprendera um ou dois truquezinhos. Para mim, era um passatempo, e eu nunca perdia a cabeça com o meu dinheiro. Uma vez que se foi pobre por longo tempo, adquire-se um certo respeito pelo dinheiro. Nunca mais se quer deixar de tê-lo, de modo algum. Isso é para santos e tolos. Um dos meus sucessos na vida foi que, apesar de todas as loucuras que fiz, era perfeitamente normal: escolhi fazer essas coisas, não foram elas que me escolheram.
De qualquer modo, uma noite o telefone tocou. Era Jon Pinchot.
Não sei o que fazer... – ele disse.
Friedman tornou a cancelar o filme?
Não, não é isso... Não sei como esse cara conseguiu o número do meu telefone...
Que cara?
Acabou de me ligar.
Que foi que disse?
Disse: “SEU FILHO DA PUTA, VOCÊ MATOU MEU IRMÃO! AGORA EU VOU TE MATAR! VOU TE MATAR ESTA NOITE!”
Nossa...
Estava soluçando, parecia fora de si, parecia muito real. Talvez seja. Nesta cidade, a gente nunca sabe...
Chamou a polícia?
Chamei.
Que foi que eles disseram?
– “Chame a gente quando ele chegar aí.”
Pode vir pra cá...
Não, obrigado, está tudo bem... mas tenho certeza de que não vou conseguir dormir esta noite...
Tem arma?
Não, amanhã vou arranjar uma, mas aí talvez seja tarde demais.
Vá pra um motel...
Não, ele pode estar à espreita...
Que é que eu posso fazer?
Nada. Eu só queria te dizer e te agradecer por ter escrito o argumento.
Tudo bem.
Boa noite, Hank...
Boa noite, Jon...
Ele desligou.
Eu sabia como ele se sentia. Um cara me telefonou uma vez e disse que ia me matar porque eu trepara com a mulher dele. Me chamou pelo meu último nome e avisou que estava vindo. Não conseguiu. Deve ter morrido num acidente de trânsito.
Decidi ligar para François Racine, para ver como ele ia indo.
Falei com a secretária eletrônica dele:
NÃO FALE COMIGO, FALE COM ESTA MÁQUINA. EU NÃO QUERO FALAR. FALE COM ESTA MÁQUINA. NÃO ESTOU EM LUGAR NENHUM E VOCÊ TAMBÉM. A MORTE VEM COM MÃOZINHAS PEQUENAS PRA NOS AGARRAR. EU NÃO QUERO FALAR. FALE COM ESTA MÁQUINA.
Soou o bip.
François, seu cabeça de merda...
Oh, é você, Hank?
Ééé, baby...
Teve um incêndio... um incêndio... INCÊNDIO...
Quê?
É, eu comprei uma TV preto e branco barata... deixei ligada um tempo e saí... queria enganar eles... Fazer eles pensarem que tinha alguém em casa... Acho que enquanto estava fora a TV pegou fogo ou explodiu... Quando voltei, do carro, vi aquela fumaceira toda... O Corpo de Bombeiros não vem até aqui... Toda esta quadra podia estar em chamas, que eles não viriam... Atravessei a fumaça... Tinha chamas... Os negros estavam lá dentro... Os assassinos e os ladrões... Usavam baldes d’água e corriam para dentro e para fora apagando o fogo... Eu me sentei e fiquei olhando... Peguei uma garrafa de vinho, abri e bebi... Os negros corriam de um lado pra outro... Em breve o fogo estava apagado... Tinha brasas e muita fumaça. A gente tossia. “Sinto muito, cara”, me disse um dos negros. “A gente chegou tarde. Estava numa reunião da gangue... alguém sentiu cheiro de fumaça...” “Obrigado”, eu disse a eles. Um deles tinha um quartilho de gim, passamos a garrafa em volta, e eles foram embora...
Sinto muito, François... Nossa, não sei o que dizer... Isso aí ainda está habitável?
Estou sentado no meio da fumaça, no meio da fumaça... Parece uma neblina, uma neblina... Estou com os cabelos brancos... sou um velho, sentado no meio da fumaça... Agora sou um menino, sentado no meio da fumaça... Ouço a voz da minha mãe... Oh, não! Ela está gemendo! Está sendo FODIDA! Está sendo FODIDA por uma pessoa terrível! Preciso voltar pra França, preciso ajudar minha mãe, preciso ajudar a França!
François, você pode ficar aqui... ou então tenho certeza de que Jon tem espaço... Não é tão ruim quanto você pensa... Toda nuvem negra passa...
Não, não, às vezes tem uma nuvem negra que nunca passa. Fica lá eternamente!
Bem, isso é a morte!
Todo dia de vida é a morte! Vou voltar pra França! Vou voltar a ser ator!
François, e as galinhas? Você adora as galinhas, lembra?
Fodam-se as galinhas. Que os negros fiquem com elas! Que a carne negra e a carne branca se cruzem!
Carnes se cruzem? – perguntei.
Estou na neblina. Teve um incêndio. Um incêndio. Eu sou um velho, meu cabelo está branco. Sentado no meio da fumaça... vou desligar…
Desligou.
Tentei de novo. Só consegui o “NÃO FALE COMIGO, FALE COM ESTA MÁQUINA...”
Fiz votos que ele tivesse uma ou duas garrafas de bom vinho tinto para atravessar a noite, porque parecia que, se algum dia alguém precisara disso, era meu amigo François. A não ser que fosse meu amigo Jon. Ou eu. Abri uma.
Quer tomar um ou dois copinhos? – perguntei a Sarah.
Sem dúvida – ela respondeu. – Que foi que houve?
Contei a ela.

Charles Bukowski, in Hollywood

A morte de meu pai: Tomada 3




É assim que acontece. O velho dr. Bennett, nosso médico, sai do quarto de hóspedes e fecha delicadamente a porta. Extremamente idoso, o dr. Bennett sempre fez parte de nossa vida, estava presente até quando nasci, época em que foi solicitado a se aposentar em breve pelo Conselho Regional de Medicina — isso para mostrar o quanto ele é velho. O dr. Bennett agora é velho demais para quase tudo. Ele não anda, arrasta os pés, não respira, ofega. E parece incapaz de lidar com as consequências do estado terminal de seu paciente. Quando ele sai do quarto de hóspedes, onde meu pai está instalado há algumas semanas, tem uma crise de choro e fica algum tempo sem conseguir falar, chorando convulsivamente, sacudindo os ombros, tapando os olhos com as mãos enrugadas.
Finalmente, ele consegue erguer os olhos e recuperar o fôlego. Parece uma criança desamparada, e diz para mim e para a minha mãe, e nesta altura nós já estamos preparados para o pior:
Eu não... Eu não sei o que está acontecendo. Não tenho certeza. Mas ele parece muito mal. É melhor vocês irem ver.
Minha mãe olha para mim, e o que vejo nos olhos dela é um olhar de resignação, um olhar que diz que ela está preparada para o que quer que a aguarde atrás daquela porta, por mais triste ou terrível que seja. Ela está preparada. Ela pega minha mão e a aperta com força antes de se levantar e entrar no quarto. O dr. Bennett se deixa cair pesadamente na cadeira de meu pai e fica estirado lá, como se tivesse perdido completamente a energia. Por um instante acho que ele está morto. Por um instante acho que a morte chegou e resolveu levá-lo no lugar de meu pai. Mas não. A morte veio buscar meu pai. Dr. Bennett abre os olhos e olha para o vazio, e eu posso adivinhar o que ele está pensando. Edward Bloom! Quem diria! Um cidadão do mundo! Importador/exportador! Nós todos achamos que você viveria para sempre. Embora o restante de nós caia como folhas de uma árvore, sempre achamos que se havia uma pessoa capaz de suportar o inverno rigoroso e se manter vivo, essa pessoa seria você. Como se ele fosse um deus. Era assim que víamos meu pai. Embora o víssemos de manhã cedo de cuecas, e tarde da noite dormindo em frente à televisão depois que esta já tinha saído do ar, de boca aberta, a luz azul como uma mortalha cobrindo seu rosto adormecido, para nós, ele é de certa forma divino, um deus, o deus da alegria, o deus que quando fala diz: Era uma vez um homem... Ou talvez parte deus, produto de uma mulher mortal e de alguma divindade gloriosa que desceu a terra para fazer do mundo um lugar em que mais pessoas rissem, e que, inspiradas por seu riso, comprassem coisas de meu pai que tornassem a vida melhor, assim como a vida de meu pai. Dessa forma, todas as vidas se tornavam melhores. Ele é engraçado e sabe ganhar dinheiro — que poderia ser melhor do que isso? Ele ri até da morte, ri das minhas lágrimas. Eu o ouço rindo agora, quando minha mãe sai do quarto sacudindo a cabeça.
Incorrigível — ela diz. — Totalmente incorrigível.
Ela também está chorando, mas não são lágrimas de dor ou de tristeza, essas lágrimas ela já derramou. São lágrimas de frustração, de estar viva e sozinha enquanto meu pai está morrendo no quarto de hóspedes, e não está morrendo direito. Eu olho para ela e pergunto com os olhos: Devo entrar? Ela sacode os ombros como que para dizer: Você é quem sabe, entre se quiser. E parece estar quase soltando uma gargalhada, como se não bastasse estar chorando, o que faz surgir em seu rosto uma expressão desconcertante.
Dr. Bennett parece ter adormecido na cadeira de meu pai.
Eu me levanto, vou até a porta entreaberta e dou uma espiada. Meu pai está recostado numa pilha de travesseiros, imóvel e olhando para o vazio, como se estivesse no modo “Pausa”, esperando que alguém ou alguma coisa o acione. É o que a minha presença faz. Quando me vê, ele sorri.
Entre, William.
Bem, você parece estar se sentindo melhor — eu digo, sentando-me na cadeira ao lado de sua cama, na cadeira onde tenho me sentado todos os dias nestas últimas semanas. Na jornada de meu pai em direção ao final da sua vida, esta cadeira é meu posto de observação.
Estou me sentindo melhor — diz, balançando a cabeça e respirando fundo, como que para provar o que está dizendo. — Acho que estou.
Mas só hoje, neste momento do dia. Não existe mais volta para o meu pai. Para melhorar agora, seria preciso mais do que um milagre; seria preciso uma autorização expressa do próprio Zeus, assinada em três vias e enviada a todas as outras divindades que pudessem reivindicar o corpo maltratado e a alma de meu pai.
Ele já estaria um pouco morto, acho, se uma coisa dessas fosse possível; a metamorfose que ocorreu seria inacreditável se eu mesmo não a tivesse testemunhado. A princípio, pequenas lesões surgiram em seus braços e pernas. Elas foram tratadas, mas sem resultado efetivo. Depois pareceram sarar sozinhas — mas não do modo que gostaríamos ou esperávamos. Em vez da pele branca e macia, com longos pelos pretos brotando dela como palha de milho, sua pele ficou áspera e brilhante — quase escamosa, como uma segunda pele. Olhar para ele não é difícil até você sair do quarto e ver o retrato sobre a lareira. Foi tirado há seis ou sete anos numa praia da Califórnia, e quando você olha, pode ver — um homem. Ele não é mais um homem do jeito que era. Ele é uma outra coisa.
Não bem, na verdade — ele diz, corrigindo-se. — Eu não diria bem. E sim melhor.
Eu não sei o que deixou o dr. Bennett nervoso — eu digo. — Ele parecia muito preocupado quando saiu do quarto.
Meu pai concorda com um movimento de cabeça.
Honestamente — ele diz, num tom confidencial — acho que foram as minhas piadas.
Suas piadas?
Minhas piadas de médico. Acho que ele já as ouviu inúmeras vezes. — E meu pai começa a recitar sua ladainha de piadas velhas:
Doutor, doutor! Tenho apenas cinquenta e nove segundos de vida. Espere aí, estarei com você em um minuto.
Doutor, doutor! Fico achando que sou uma cortina. Ora essa, segura as pontas.
Doutor, doutor! Minha irmã acha que é um elevador. Diz a ela para entrar. Não posso. Ela não para neste andar.
Doutor, doutor! Eu me sinto como um cabrito. Pare de agir como criança.
Doutor, doutor! Acho que estou encolhendo. Basta você ter um pouco de paciência.
Eu sei milhares delas — ele diz orgulhosamente.
Aposto que sabe.
Conto algumas para ele toda vez que vem aqui. Mas acho que ele já cansou de ouvir. Aliás, acho que ele não tem muito senso de humor. A maioria dos médicos não tem.
Ou talvez ele queira apenas que você seja sincero — eu digo.
Sincero?
Direto — eu digo. — Que você se comporte naturalmente e diga o que está sentindo, onde está doendo.
Ah — meu pai diz. — Do tipo: “Doutor, doutor! Eu estou morrendo, por favor, me cure.” Assim?
Assim — eu digo. — Mais ou menos, mas...
Mas nós dois sabemos que não há cura para o que eu tenho — ele diz, o sorriso murchando, o corpo encolhendo, a velha fragilidade voltando. — Isso me lembra a Grande Peste de 33. Ninguém sabia o que era ou de onde tinha vindo. Um dia tudo parecia estar bem e no dia seguinte o homem mais forte de Ashland: morto. Morreu enquanto tomava o café da manhã. O rigor mortis se instalou tão depressa que seu corpo endureceu ali mesmo na mesa da cozinha, com a colher a meio caminho da boca. Depois dele, uma dúzia morreu em uma hora. Não sei por que eu era imune. Vi meus vizinhos caírem no chão como se seus corpos tivessem ficado repentinamente vazios, como se...
Papai — eu digo duas vezes, e quando ele finalmente para, seguro sua mão magra e áspera. — Chega de histórias, certo? Chega de piadas bobas.
Elas são bobas?
No bom sentido, é claro.
Obrigado.
Só por um tempinho — digo —, vamos conversar, está bem? De homem para homem, de pai para filho. Chega de histórias.
Histórias? Você acha que eu conto histórias? Você não ia acreditar nas histórias que meu pai costumava contar para mim. Você acha que eu conto histórias para você, quando eu era menino eu ouvia histórias. Ele me acordava no meio da noite para me contar uma história. Era horrível.
Mas até isso é uma história, papai. Não acredito nem um pouco.
Mas você não precisa acreditar — diz, cansado. — Você só precisa dar valor a ela. É como... uma metáfora.
Eu me esqueço. O que é uma metáfora?
Normalmente vacas e ovelhas — ele diz, estremecendo de leve ao falar.
Está vendo? Mesmo quando você fala sério não consegue deixar de brincar. É frustrante, papai. Isso me mantém à distância. É como... se você tivesse medo de mim ou algo assim.
Medo de você? — ele diz, revirando os olhos. — Estou morrendo e devo ter medo de você?
Medo de se aproximar de mim.
Ele reflete sobre isso, o meu velho, e desvia o olhar, fitando o passado.
Deve ter algo a ver com meu pai — ele diz. — Meu pai era um bêbado. Nunca contei isso a você, contei? Ele era um bêbado horrível, do pior tipo. Às vezes ficava tão bêbado que não conseguia sair para comprar bebida. Durante um tempo me mandou comprar bebida para ele, mas depois eu parei, me recusei a ir. Finalmente ele ensinou ao cachorro, Juniper, a comprar bebida. Levava um balde vazio até o bar da esquina e o fazia trazer de volta cheio de cerveja. Pagava com uma nota de um dólar enfiada na coleira do cachorro. Um dia ele viu que não tinha nenhuma nota de um dólar, então enfiou uma nota de cinco dólares na coleira.
O cachorro não voltou. Mesmo caindo de bêbado, meu pai foi até o bar e encontrou o cachorro sentado num banquinho, tomando um martíni duplo.
Meu pai ficou zangado e magoado.
“‘Você nunca fez uma coisa dessas antes’, ele disse a Juniper.
“‘Nunca tive dinheiro para isso antes’, Juniper respondeu.”

E ele olha para mim, sem um pingo de arrependimento.
Você não consegue, não é? — digo, erguendo a voz, rangendo os dentes.
É claro que consigo.
Tudo bem — digo. — Então faça isso. Conte-me alguma coisa. Conte-me sobre o lugar em que você nasceu.
Ashland — ele diz, umedecendo os lábios.
Ashland. Como era lá?
Pequeno — ele diz, sua mente divagando. — Muito pequeno.
Pequeno como?
Era tão pequeno que quando você punha um barbeador elétrico na tomada, a luz da rua diminuía.
Não foi um bom começo — digo.
As pessoas lá eram tão ordinárias — ele diz — que comiam feijão para economizar em espuma de banho.
Eu te amo, papai — digo, chegando mais perto dele. — Nós merecemos mais do que isso. Mas você está dificultando as coisas. Ajude-me. Como você era em menino?
Eu era um menino gordo. Ninguém brincava comigo. Era tão gordo que só podia brincar de pegar, não de esconder. Era gordo assim — ele diz —, tão gordo que tinha que fazer duas viagens só para sair de casa. — Sem sorrir agora, porque não está tentando ser engraçado, está sendo apenas ele mesmo, algo que ele não pode deixar de ser. Debaixo de uma fachada existe outra fachada e outra e outra, e debaixo dela aquele lugar escuro e sofrido, sua vida, algo que nenhum de nós dois entende. Tudo o que consigo dizer é:
Mais uma chance. Vou dar-lhe mais uma chance e depois vou embora. Vou embora e não sei se vou voltar. Não vou mais ser seu contraponto.
E então ele diz para mim, meu pai, o mesmo pai que está morrendo ali na minha frente, embora hoje ele pareça bem para alguém no seu estado, ele diz:
Você não está sendo você mesmo hoje, filho — no seu melhor estilo Groucho, dando uma piscadela para o caso, muito remoto, de eu o levar a sério —, e isso é um grande progresso.
Mas eu o levo a sério: esse é o problema. Levanto-me para sair, mas ele me agarra pelo pulso e me segura com uma força que eu não achava que ele ainda tivesse. Eu olho para ele.
Eu sei quando vou morrer — ele diz, olhando bem dentro dos meus olhos. — Eu vi. Eu sei quando e como isso vai acontecer e não vai ser hoje, portanto não se preocupe.
Está perfeitamente sério, e acredito nele. Eu realmente acredito nele. Ele sabe. Mil pensamentos passam por minha cabeça, mas não consigo expressar nenhum deles. Nossos olhos estão grudados e eu fico extasiado. Ele sabe.
Como você... por quê...
Eu sempre soube — ele diz baixinho —, sempre tive esse poder, essa visão. Desde que era menino. Na época, eu sonhava. E acordava gritando. Na primeira noite em que isso aconteceu, meu pai veio e me perguntou o que havia de errado, e eu contei a ele. Contei que sonhara que a minha tia Stacy tinha morrido. Ele me assegurou que tia Stacy estava bem e voltei para a cama.
Mas no dia seguinte ela morreu.
Mais ou menos uma semana depois, aconteceu a mesma coisa. Outro sonho, acordei gritando. Ele veio até meu quarto e perguntou o que tinha acontecido. Eu disse a ele que tinha sonhado que o vovô tinha morrido. Mais uma vez ele me disse, talvez com uma certa trepidação na voz, que o vovô estava bem, então eu voltei a dormir.
No dia seguinte, é claro, o vovô morreu.
Passei uma semana sem sonhar. Aí tive outro sonho e papai veio e me perguntou o que eu tinha sonhado e eu contei a ele: sonhei que meu pai tinha morrido. Evidentemente, ele me assegurou que estava bem e que eu não devia pensar mais naquilo, mas percebi que o tinha deixado abalado, e o ouvi andando de um lado para o outro a noite inteira, e no dia seguinte ele estava nervoso, olhando de um lado para o outro como se algo fosse desabar na sua cabeça, e foi cedo para a cidade e ficou fora muito tempo. Quando voltou, estava com uma aparência horrível, como se tivesse esperado o dia inteiro pelo machado.
“‘Meu Deus’, ele disse para minha mãe assim que a viu. ‘Tive o pior dia da minha vida!’
“‘Você acha que você teve o pior dia’, ela diz. ‘O leiteiro caiu morto aqui na varanda hoje de manhã!’”
Bato com a porta ao sair, torcendo para ele ter um ataque cardíaco, para ele morrer logo, para acabarmos logo com isso. Afinal, eu já comecei a viver o luto.
Ei! — Eu o ouço chamar do outro lado. — Onde está o seu senso de humor? E se não o seu senso de humor, a sua piedade? Volte! — ele diz. — Dê um tempo, filho, por favor. Eu estou morrendo!

Daniel Wallace, in Peixe Grande