O que que eu respondo pra ele, amiga? (parte 2)

(Voltando do jantar)
JU: FERROU. APAIXONEI.
MARI: Ai Deus.
CAROL: Ele te levou pra comer aquela coxinha de 1kg?! Assim eu apaixono também.
RÊ: Conta TUDO juliana.
JU: Ai gente. Ele parece de mentira. Supereducado, engraçado, bonito, gentil, inteligente. Tô na merda.
CAROL: Onde vocês foram?
JU: Num restaurante italiano pequenininho, de uma velhinha fofa, ali na Vila Madalena. Eu não conhecia, uma delícia.
CAROL: Você comeu lasanha?
RÊ: Tomaram vinho?
MARI: Ele tinha reservado mesa?
CAROL: Tinha aqueles rolinhos de nutella? Tão bom aquilo.
JU: Ai chegou mensagem dele Jesus Cristo.
(PRINT: “Cheguei em casa, Ju. Mas não estava com vontade de ir embora não. Durma bem, linda. Obrigado pela companhia.”)
JU: GENTE. MUITO FOFO.
MARI: Fofo, mas meio profissa, não?
JU: Como assim?
MARI: Desses caras que sempre sabem o que falar…
RÊ: Mari, não vem estragar, deixa ela curtir, o cara parece ser legal.
MARI: Gente, a Juliana se apaixona em 15 minutos, ela é pisciana, a gente tem que segurar a onda dela haha.
JU: APAIXONO MESMOOOO. Já até pensei no vestido hahahaha.
MARI: Olha lá, tô falando.
CAROL: Ju, pode ter lasanha no seu casamento?
RÊ: HAHAHAHAHAHAHA
JU: Hahahaha pode Carol, tudo por você.
MARI: Agora sério, que que você vai responder?
CAROL: Responde que vai sonhar com a lasanha.
JU: Pensei em responder assim “Que bom :) Posso ir separando a papelada do casamento?”, pode ser?
RÊ: HAHAHAHAHA MORTA
CAROL: ASSIM QUE EU GOSTO JU, CHEGANDO JUNTO HAHAHAHA
MARI: PAREM DE INCENTIVAR ESSA IMBECIL
JU: hahahahaha calma Mari
MARI: ELA É PEIXES COM LUA EM CÂNCER E ASCENDENTE EM PEIXES, A GENTE TEM QUE AJUDAR A JULIANA
RÊ: Fato. E você é Virgem com lua em Capricórnio né Mari? Não precisa de ajuda nenhuma na neurose e no iceberg hahahaha
CAROL: Eu sou de lasanha com lua em raça negra e ascendente em jurupinga
JU: Falando sério, vou responder “Que bom! Eu também adorei… Vamos nos falando. Durma bem! Beijo”
RÊ: Hum… E se você trocasse “vamos nos falando” por “nos falamos amanhã”?
MARI: Acho que assim tá bom…
JU: Vou mandar assim mesmo.
(3 MINUTOS DEPOIS)
JU: Ele mandou a carinha piscando.
RÊ: Bonitinho.
MARI: Sim, fofo.
CAROL: Manda a noivinha.
MARI: CAROL, NÃO CAUSA
CAROL: Mariana, sossega a periquita aí, deixa a menina viveeeeer, deixa a menina ser felizzzzzz
JU: Hahahaha relaxa Mari, não vou mandar… Ainda. Hahahaha.
MARI: Desisto de vocês todas.
RÊ: Haha. A gente te ama, mesmo que você seja noia, Mari.
CAROL: Marianeura linda
JU: Mandei a carinha do beijinho com coração
(2 MINUTOS DEPOIS)
JU: Gente. O Guilherme precisava saber que eu tô saindo com esse cara gato lindo gracinha delícia meu futuro marido, né?
MARI: Era bom mesmo…
RÊ: Gente, Guilherme é passado.
CAROL: Por favooooor, para o carro na frente do prédio daquele demônio e dá uns beijo no paquera novo!!
MARI: hahaha ai senhor
CAROL: Eu fico com meu carro atrás com o Safadão no último volume EU NÃO TÔ NADA BEM, VI MINHA EX BEIJANDO OUTRO DENTRO DO CAAAARRROOOOO
JU: hahahahahaha QUEROOOO
MARI: Primeira boa ideia da Carol em 2017 hahahahahaha
CAROL: A CULPA É SUAAAA SE EU TÔ AQUI DEITADO NO MEIO DA RUUUUUAAAAA ME DEIXA AQUI SOFRENDO EU NÃO QUERO AJUUUDAAAAAAA
RÊ: Hahahahahaha tá bom vai #choraguizão
(FOTO FEIA, MUITO FEIA, DO GUIZÃO)
JU: Pensando bem, nem preciso que ele saiba de nada. É passado mesmo.
RÊ: Boa, amiga, vai ser feliz :)
MARI: Justo, melhor assim.
CAROL: Ok. Mas eu vou tocar o Safadão na porta dele mesmo assim.
JU: Hahahaha tá bom
MARI: Vamos trabalhar mulherada?
RÊ: Bora. Tenho uma edição para fechar à tarde…
JU: E eu vou entrar em cirurgia já já.
MARI: E eu tenho uma turma de sexto ano me esperando para dar aula sobre Império Romano… E uma tese de doutorado me aguardando à noite.
CAROL: E eu entro em audiência daqui a meia hora.
JU: Eu nunca vou me acostumar com o fato de a Carol ser juíza.
RÊ: Primeiro lugar do concurso.
MARI: Só erraram no psicotécnico hahahaha
JU: Hahahaha te amo Carol. Amo vcs tudo.
RÊ: Eu também, orgulhinhos.
CAROL: Também amo vocês, jurisdicionadas.
MARI: Eu também. Beijocas.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Noturno

Quando as pessoas adormecem é que as coisas acordam, no silêncio da paz recuperada.
O relógio de parede pode agora tricotar descansadamente os seus segundos, sem que ninguém venha meter o nariz no seu trabalho, ora achando-o muito rápido, ora arrastado demais.
Enquanto, na mesmíssima página do Dicionário Biográfico, lá na estante do escritório, os retratos de Napoleão e de Nabucodonosor olham-se atravessado, com grande indignação do imperador, visto que o outro ignora tudo, mas tudo mesmo, a seu respeito...
Isto porque essa gente arquivada só lê o próprio verbete.

Mário Quintana, in Caderno H

Nuvens de Pássaros Brancos | V


Passados uns quinze dias da reunião de chá no pavilhão do Templo Engakuji, a filha da Sra. Ota foi visitar Kikuji em casa.
Mandou que a fizessem passar para a sala e, tentando calmar as batidas de seu coração, ele próprio foi abrir o armário de gêneros e pôs alguns frios no prato. Viera sozinha ou sua mãe a aguardava na porta, não se atrevendo a entrar? Kikuji não conseguia adivinhar.
Quando veio enfim para a sala, a moça se ergueu da cadeira para a reverência. Ele notou o lábio inferior um pouco saliente de sua boca fechada, enquanto ela baixava a cabeça.
Perdoe-me por tê-la feito esperar — disse. E passou por trás dela para ir abrir a porta envidraçada que dava para o jardim. As peônias brancas, no vaso, exalavam um perfume delicado. A jovem avançou os ombros redondos, pendendo ligeiramente para a frente quando ele se acercou.
Permite?... — e Kikuji sentou numa cadeira sem esperar.
Uma sensação de serenidade inexplicavelmente o invadiu, ao ver quanto ela se parecia com a mãe.
Tomei a liberdade de vir à sua casa sem prevenir — começou ela de olhos baixos.
É um grande prazer, não se preocupe. Teve dificuldade em achar o caminho?
Não.
Kikuji de repente lembrou que ela costumava vir até a porta, acompanhando seu pai nos bombardeios, como lhe contara a Sra. Ota no jardim do Templo Engakuji.
Quase lhe diz, mas se retém no último instante. E a observa à vontade, pois ela continua com os olhos baixos.
Sente-se submergir de novo por uma onda morna, lembrando a doçura da Sra. Ota. Não pode se negar a pensar ainda uma vez no total e raro abandono do seu abraço. Abandona-se também, profundamente retranquilizado e quase esquecendo de se manter na defensiva ante a filha. Sua prudente reserva tinha desaparecido, embora não tivesse ainda podido ver o olhar da moça e mergulhar o seu nos olhos obstinadamente descidos.
Tomei a liberdade de vir...
Fez uma pausa, levantou a cabeça e o fitou no rosto.
Tomei a liberdade... Trata-se de minha mãe: queria lhe pedir um favor.
Kikuji prendeu o fôlego.
Desejaria que a perdoasse.
Perdoasse? O que está dizendo?
Mas ao exprimir o seu assombro, compreendera na hora que a mãe contara tudo.
Se há alguém que deve pedir perdão, sou eu — declarou.
E eu ficaria contente que lhe perdoasse também tudo o que sucedeu com seu pai — prosseguiu ela.
Mas também aí o perdão devia ser dado antes a meu pai. Minha mãe já deixou este mundo, sabe... Ninguém mais poderia ter agora seja o que for a perdoar à senhora sua mãe.
Seu pai morreu tão cedo! Sempre me pergunto se não foi por causa das preocupações que minha mãe lhe causou. E também sua mãe, com maior razão. É o que eu já disse à minha mãe!
Você tem escrúpulos exagerados e é injusta em relação a ela.
Ah, por que não morreu ela primeiro, antes de seus pais!
A moça estava à beira de desmaiar, tanto o penoso diálogo lhe feria o pudor.
Compreendendo que não falava, em suma, senão das relações dela com a mãe, Kikuji se deu conta de como a coisa devia feri-la e ultrajar seus sentimentos, humilhando-a a fundo.
Por favor, perdoe minha mãe! — repetiu, parecendo, para dizê-lo, apelar às últimas forças.
Não é um perdão, mas a homenagem do meu reconhecimento e profundo respeito o que devo à sua mãe — precisou Kikuji com firmeza.
Ela é que é a culpada, com todas as suas fraquezas. E eu queria que não se importasse mais com ela de forma alguma. Suplico-lhe, deixe de se ocupar de minha mãe!
Falou rápido, com uma voz entrecortada e trêmula. Kikuji entendia agora o que desejava dizer pedindo aquele perdão: deixe minha mãe em paz, não volte a vê-la, era o que ela queria significar.
Não procure nem mesmo lhe telefonar mais — acrescentou.
A despeito do rubor flamejante que lhe invadira a face, ela ergueu a cabeça como para desafiar o próprio arisco pudor e olhou direto nos olhos de Kikuji. Mas seus grandes olhos estavam úmidos de lágrimas e seu olhar, sem o mínimo traço de animosidade, tinha qualquer coisa de suplicante, algo de um apelo desesperado.
Entendo — disse ele enfim. — Peço desculpas.
Eu suplico. E me atrevo a contar com você... Essas últimas palavras enrubesceram ainda mais a infeliz jovem, e Kikuji viu-se esbrasear até sua nuca longa e branca. Seria para acentuar a beleza do seu longo pescoço delicado que usava aquele pequeno broche branco na gola do casaco?
Minha mãe concordou, pelo telefone, com o encontro que você marcou — pôs-se a explicar um pouco menos crispada. — Fazia absoluta questão de ir e fui eu que a impedi. Me agarrei nela com toda a força quando quis sair. Foi por isso que esperou em vão.
Kikuji tinha, com efeito, chamado a Sra. Ota pelo telefone três dias depois do primeiro encontro. O tom dela não deixava qualquer dúvida sobre sua alegria, mas afinal não veio ao café onde a esperava. E desde aquela conversa pelo telefone, nada mais soubera a seu respeito.
Depois tive muita pena dela, mas, no momento, julguei-a tão odiosa que me opus tenazmente, fora de mim ao ponto de não saber mais onde estava!
Fumiko — me disse ela, — telefona tu mesma e diz a ele que não irei. Peço-te, telefona!” Fui ao aparelho, mas fiquei com o fone na mão, incapaz de falar. Com o rosto banhado de lágrimas, minha mãe não tirava os olhos do aparelho: era você que ela via, Sr. Mitani, não o telefone. É assim, minha mãe.
Ficaram um longo momento sem dizer nada. Por fim, Kikuji rompeu o comprido silêncio:
Após a sessão de chá — perguntou, — por que foi na frente quando sua mãe ficava a me esperar?
Porque queria que você soubesse como ela é, na realidade, um pouco má.
Má, ela? De fato, é demasiado boa!
A moça desceu os olhos e Kikuji observou de novo o seu rosto: o nariz miúdo e de forma tão perfeita, a boca com o lábio inferior um nada proeminente. A doçura desses traços lhe lembrava os da mãe.
Desde há muito sabia que a senhora sua mãe tinha uma filha — retomou Kikuji. — Não raro almejei falar de meu pai com ela.
Ela inclinou a cabeça em sinal de aquiescência.
Foi uma ideia que eu também tive.
Se não tivesse ocorrido nada entre a mãe dela e eu, pensou Kikuji, agora eu poderia lhe falar livremente de meu pai. Mas, pensando — era tão estranho assim? —, foi justamente graças ao que lhe ocorrera com a Sra. Ota, que pudera de todo o coração lhe perdoar a ligação com o pai e compreender tão bem a alma dos dois. As coisas são complexas.
Kikuji fazia em silêncio essas reflexões quando a moça, decerto julgando que prolongara indevidamente a visita, ergueu-se com precipitação. Ele saiu com ela para acompanhá-la.
Espero que possamos falar um dia juntos de meu pai — disse Kikuji. — E também que me fale de sua mãe. É uma pessoa tão digna de admiração!
Sem dúvida era bastante egoísta o que dizia, mas representava exatamente o que pensava.
Sim... Mas você não vai se casar logo?
Eu?
Você. Soube por minha mãe. Com a Srta. Yukiko Inamura.
Absolutamente. Não há nada a esse respeito. A rua descia em declive logo após a porta do
jardim, fazendo a meia altura uma curva de onde, a gente se virando, não via mais que a parte de cima das árvores do jardim de Kikuji. Andando, ele divisava em mente a moça do sembazuru, que a visitante há pouco lhe lembrara. Ao chegarem na curva, ela se deteve e se despediu.
Kikuji tornou a subir em direção à casa, enquanto ela se afastava, descendo sempre.

Yasunari Kawabata, in Nuvens de Pássaros Brancos

Pergunte ao pó

cresce a vida
cresce o tempo
cresce tudo
e vira sempre
esse momento

cresce o ponto
bem no meio
do amor seu centro
assim como
o que a gente sente
e não diz
cresce dentro.

Paulo Leminski, in Toda Poesia

Anonimato

Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.

Clarice Lispector, in Crônicas para jovens: de escrita e vida

Corrupção

Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder.
Corrompo, logo existo.
A corrupção anda tão generalizada que já tem político ofendido ao ser chamado de incorruptível.
Basta você examinar um otimista pra descobrir por baixo uma compra sem licitação, com superfaturamento.
Corrupção: quantos decretos-leis se fazem em teu nome!
Invejar os corruptos já é meia corrupção.
Lição de corrupção número 1: “Ninguém come de graça”.
Os corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todas no Brasil.

Millôr Fernandes, in Millôr definitivo: Uma antologia baseada em “A bíblia do caos” 

A velha senhora e o olho


Depois de deixar os Jimsons, meu pai viajou para o sul atravessando o campo, indo de cidade em cidade, vivendo muitas aventuras e conhecendo uma quantidade de pessoas interessantes e fantásticas. Mas essa sua viagem tinha um objetivo, um propósito, como tudo o que ele fazia. A vida lhe havia ensinado muitas lições no ano anterior, e agora ele esperava expandir ainda mais sua compreensão acerca da natureza do mundo frequentando uma faculdade. Ele ouviu falar de uma cidade chamada Auburn onde havia uma faculdade do tipo que estava procurando. Era para essa cidade que ele estava indo.
Ele chegou lá certa noite, cansado e com fome, e encontrou um quarto na casa de uma senhora que aceitava hóspedes. Ela o alimentou e lhe deu uma cama para repousar. Ele dormiu por três dias e três noites, e quando acordou sentia-se forte de novo, com o corpo e a mente em forma. Então agradeceu à senhora pela ajuda e em troca ofereceu-se para ajudá-la no que pudesse.
Bem, acontece que a senhora só tinha um olho. O outro olho, que era de vidro, ela tirava toda noite e deixava dentro de um copo com água na mesinha de cabeceira.
Poucos dias antes de meu pai chegar, um grupo de rapazes tinha invadido a casa da velha senhora e roubado seu olho, então ela disse a meu pai que ficaria grata se ele conseguisse encontrar o olho e levá-lo de volta. Meu pai prometeu que faria isso, e naquela mesma manhã saiu da casa à procura do olho.
O dia estava claro e fresco, e meu pai cheio de esperança.
A cidade de Auburn tinha esse nome em homenagem a um poema, e era, naquela época, um grande centro de aprendizagem. Jovens ansiosos em descobrir os segredos do mundo lotavam pequenas salas de aula, alertas às palavras do peripatético professor diante deles. Era onde Edward queria estar.
Por outro lado, muitos iam para lá só para fazer bagunça, e se organizavam em grandes grupos apenas com esse objetivo. Meu pai não demorou muito tempo para saber que um desses grupos tinha invadido a casa da velha senhora e roubado seu olho.
Na realidade, o olho tinha se tornado foco de alguma notoriedade e era discutido abertamente e com grande veneração por certos indivíduos com os quais Edward Bloom espertamente fez amizade.
Diziam que o olho tinha poderes mágicos.
Diziam que o olho podia ver.
Diziam que dava azar olhar diretamente para ele, pois a velha senhora reconheceria a pessoa e numa noite escura viria atrás dela e faria coisas terríveis.
O olho nunca ficava dois dias no mesmo lugar. Toda noite era entregue a um rapaz diferente como um rito de iniciação. Era dever do rapaz cuidar para que nada de mau acontecesse com o olho. O rapaz de posse do olho tinha que passar a noite inteira em claro; ele só podia vigiar o olho. Aquilo era embrulhado num pano macio e vermelho, e o pano guardado numa caixa de madeira. De manhã, era devolvido ao líder do grupo, que fazia perguntas ao rapaz, examinava o olho e depois o mandava embora.
Tudo isso Edward ficou sabendo em pouco tempo.
A fim de devolver o olho para a velha senhora, Edward percebeu que teria que se tornar um dos rapazes que ficavam de posse dele por uma noite. Era isso que tinha que fazer.
Edward expressou o desejo de se tornar um dos rapazes para um novo amigo e, após um momento de circunspecção, foi instruído a ir sozinho até um celeiro a alguns quilômetros de distância no campo naquela mesma noite.
O celeiro era escuro e estava em ruínas, e a porta rangeu sinistramente quando ele a empurrou. Havia velas acesas penduradas em ganchos de ferro presos nas paredes, e sombras dançavam nos cantos.
Seis figuras humanas estavam sentadas em semicírculo no fundo do celeiro, todas usando capuzes marrons, que pareciam ter sido feitos de pano de saco.
Numa mesinha diante deles estava o olho da velha senhora. Exposto como uma joia, sobre uma almofada de seda vermelha.
Edward aproximou-se deles sem medo.
Seja bem-vindo — disse o do meio. — Sente-se, por favor.
Mas, aconteça o que acontecer — disse outro, num tom sinistro —, não olhe para o olho!
Meu pai sentou-se no chão e esperou em silêncio. Ele não olhou para o olho.
Após alguns instantes, o do meio tornou a falar.
Por que você está aqui? — ele perguntou.

Por causa do olho — Edward disse. — Eu vim buscá-lo.
O olho o chamou aqui, não foi? Você não ouviu o olho chamá-lo?
Ouvi — disse Edward. — Eu ouvi o olho me chamar.
Então pegue-o e coloque na caixa, fique com ele a noite inteira e o devolva para cá de manhã. Se algo acontecer com o olho...
O do meio parou de falar, e os outros emitiram um murmúrio desolado.
Se alguma coisa acontecer com o olho — ele repetiu —, se ele se perder, ou quebrar...
E tornou a parar, fitando meu pai através dos buracos de seu capuz.
... pegaremos um de seus olhos como compensação.
Os seis capuzes assentiram ao mesmo tempo.
Entendo — meu pai disse, ignorante até aquele momento daquela cláusula tão severa.
Até amanhã, então — ele disse.
Sim — respondeu meu pai. — Até amanhã.

Deixando o celeiro e entrando na escuridão da noite, Edward caminhou pensativo na direção das luzes de Auburn. Ele não sabia o que fazer. Será que arrancariam mesmo um de seus olhos se ele não devolvesse o olho de vidro no dia seguinte? Coisas mais estranhas já tinham acontecido. Segurando a caixa na mão direita enquanto caminhava, ele tocou os olhos com a mão esquerda, cada um deles, e imaginou como seria se um deles fosse arrancado, e se sua promessa à velha senhora devia mesmo ser honrada havendo tanto em jogo. Ele sabia que era possível que as figuras encapuzadas não tivessem intenção de arrancar um de seus olhos, no entanto, se houvesse apenas dez por cento de chance, até mesmo um por cento de que aquilo fosse acontecer, será que valia a pena? Seus olhos eram de verdade, afinal de contas, e o olho da velha senhora era apenas de vidro...
Ele passou a noite em claro ao lado do olho, fitando seu brilho azul, vendo a si mesmo lá dentro, até que o sol, ao ultrapassar a linha do horizonte, na manhã seguinte, deu-lhe a impressão de aquele ser o olho de algum deus esquecido.

O celeiro pareceu diferente à luz do dia — não tão assustador. Apenas um velho celeiro com tábuas faltando, feno saindo dos buracos como enchimento de um travesseiro. Vacas mastigando capim, um velho cavalo marrom num cercado próximo, as narinas cheias de ar. Edward hesitou na porta do celeiro, então empurrou-a, e o rangido não lhe pareceu mais tão sinistro.
Você está atrasado — alguém disse.
Edward olhou para o fundo do celeiro, mas desta vez não havia nenhuma figura encapuzada, só seis universitários, mais ou menos da idade de Edward, vestidos do mesmo jeito — mocassins, calças cáqui, camisas de algodão azul-claras.
Você está atrasado — ele repetiu, e Edward reconheceu a voz da noite anterior. Ele estava no meio, era o líder. Edward fitou-o longamente.
Desculpe-me — Edward disse. — Tinha uma pessoa que eu precisava ver.
Você está com o olho?
Sim — Edward disse. — O olho está aqui.
O homem apontou para a caixinha que Edward trazia na mão.
Então me dê — ele disse.
Edward deu a caixinha para o homem, e ele a abriu enquanto os outros se amontoavam ao redor dele para ver.
Ficaram olhando para a caixa pelo que pareceu ser um longo tempo, e então todos voltaram-se para Edward.
Não está aqui — o líder disse, quase num sussurro, com o rosto vermelho de raiva. — O olho não está aqui! — berrou.
De repente todos avançaram para Edward, mas ele ergueu a mão e disse:
Falei que o olho estava aqui. Não que estava na caixa.
Os seis rapazes pararam, temendo que o olho estivesse em algum lugar do corpo de meu pai, e que se batessem nele acabariam danificando também o olho.
Devolva-o! — o líder disse. — Você não tem o direito! O olho nos pertence.
Pertence mesmo?
Foi então que a porta do celeiro rangeu devagar, e todos se viraram para ver a velha senhora, com o olho de volta no lugar, andando na direção deles. Os seis ficaram olhando, sem compreender.
O quê? — um deles falou, virando-se para os outros. — Quem...
O olho — meu pai disse. — Eu falei que ele estava aqui.

E quando a velha senhora se aproximou, eles puderam ver que estava mesmo lá, não na caixa mas de volta à cabeça da velha senhora. E, embora quisessem sair de lá, não conseguiram, e à medida que ela fitou cada um deles, cada um olhou bem no fundo do olho da velha senhora. Dizem que dentro do olho cada um deles pôde ver seu futuro. E um gritou ao ver o que estava lá, um chorou, mas outro simplesmente olhou bem no fundo, sem compreender, depois mirou fixamente meu pai, como se então o visse de uma forma diferente.
Finalmente ela terminou e todos saíram correndo do celeiro para a manhã ensolarada.
Foi assim que começou a curta estada de Edward em Auburn, e ele nunca mais foi incomodado por ninguém, pois achavam que estava sob a proteção da velha senhora e seu olho que tudo via. Ele começou a frequentar as aulas e se tornou um aluno nota dez. Tinha boa memória. Lembrava-se de tudo que lia, de tudo que via. E se lembrava do rosto do líder no celeiro naquele dia, assim como o líder se lembrava do de Edward.
Era o rosto do homem com quem minha mãe quase se casou.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

Pretende agora (posto que em vão) desenganar aos sebastianistas, que aplicavam o dito cometa à vinda do encoberto.

Estamos em noventa era esperada
De todo o Portugal, e mais conquistas,
Bom ano para tantos Bestianistas,
Melhor para iludir tanta burrada.

Vê-se uma estrela pálida, e barbada,
E deduzem agora astrologistas
A vinda de um Rei morto pelas listas,
Que não sendo dos Magos é estrelada.

Oh quem a um Bestianista pergunta,
Com que razão, ou fundamento, espera
Um Rei, que em guerra d’África acabara?

E se com Deus me dá; eu lhe dissera,
Se o quis restituir, não o matara,
E se o não quis matar, não o escondera.

Gregório de Matos, in Antologia Poética

Hollywood | 27


Não houve muita coisa durante uma semana, mais ou menos. Eu brincava com um dos gatos no tapete quando o telefone tocou. Sarah atendeu.
Sim? Oh, olá, Jon. Sim, ele está aqui. Não tem corrida nas terças. Quê? Oh, deus, que bagunça... Escuta, eu vou chamar Hank...
Eu me levantei do tapete e peguei o telefone.
Alô, Jon...
Hank, furou...
Quê?
O troço do Edleman. Eles andaram tentando vender A Dança de Jim Beam por sete milhões pelas nossas costas. O pessoal que eu contratei pra procurar secretamente outro produtor quando a gente estava na Firepower acaba de me dizer que o grupo Edleman propôs vender a eles os direitos do filme por sete milhões...
Mas eles não têm os direitos, ainda...
Disseram que tinham. Ofereceram o pacote: o argumento, os atores, o orçamento. Pediam sete milhões pelo direito de produzir o filme. Iam comprar os direitos da gente por menos, depois de fazerem o acordo em segredo...
Nossa...
Fomos novamente vítimas de outro bando de escroques. Portanto, está fora. O negócio com Edleman acabou. Agora vamos tentar arranjar outro produtor. Eu não queria chatear você com tudo isso, mas achei que era melhor te informar.
Claro. Então, em que pé estão as coisas?
Recebemos telefonemas. Oferecemos a coisa pelo telefone e eles dizem: “Ótimo, ótimo, vamos fazer”. Depois, quando veem o argumento, dizem: “Não”. Toda a cidade diz “Não”. A gente tem aqui um filme com dois grandes atores e um orçamento tão baixo que não há meio de não faturar. E a cidade toda diz “Não”. É inédito.
Não gostam do argumento – eu disse.
Não gostam.
E eu não gosto deles. Não gosto nem um pouco deles.
Bem, vamos continuar trabalhando. Tem de haver alguém em algum lugar que não tentamos ainda.
A coisa parece preta.
De algum modo, nós vamos fazer esse troço.
Eu gosto da sua fé.
Não esquenta.
Tudo bem...
Voltei ao tapete e a brincar com o gato. O bichinho gostava de correr atrás de um pedaço de barbante.
O filme voltou à estaca zero – eu disse a Sarah. – Ninguém gosta do argumento.
Você gosta?
Acho que é melhor que a maioria dos argumentos que tenho visto, mas talvez esteja errado. Sinto sobretudo por Jon.
O gato sentiu falta do cordão e enfiou uma garra nas costas de minha mão. Saiu sangue. Fui ao banheiro e molhei a ferida com água hidrogenada. Lá estava meu rosto no espelho: apenas um velho que escrevera um argumento. Merda. Saí dali.
Quando os cavalinhos corriam, eu nunca recebia más notícias, porque não estava em casa e ninguém me encontrava.

Bem, as corridas voltaram de novo, e eu ia todo dia, me saía bem, voltava, como era meu hábito, comia, via um pouco de TV com Sarah, subia para a garrafa de vinho e a máquina. Trabalhava no poema. O poema não dava muito dinheiro, mas sem dúvida era um grande parque de diversões por onde eu me debatia.
Algumas semanas depois da última chamada, recebi outra de Jon.
Está tudo uma merda de novo – ele disse. – Estamos pior do que nunca!
Quê?
Escuta, a gente encontrou um produtor, ele disse tudo bem, gostou de tudo, até do argumento. Me disse: “Tudo bem, vamos fazer. Traga os documentos, eu assino, e a gente entra direto na produção”. Marcamos uma data pra assinatura, mas antes de eu poder chegar lá ele me ligou e disse: “Não posso fazer o filme”. Aparentemente, tem aí um diretor muito conhecido que diz ter os direitos de todas as obras sobre Henry Chinaski. “Não posso fazer nada”, ele disse. “O acordo está desfeito.”
Henry Chinaski era o nome que eu usara para o personagem principal de vários dos meus romances. Eu tornara a usar o nome no argumento.
Que merda é essa? – perguntei.
Não é merda nenhuma. Você vendeu os direitos do personagem Henry Chinaski.
Isso não é verdade – eu disse. – Mas, mesmo que fosse, a gente só precisa mudar o nome.
Não, o contrato diz que ele é dono do personagem, não importa que nome você use. Pra sempre!
Não pode ser verdade...
Receio que quando você vendeu os direitos de seu romance Conferente de Embarque ao diretor Hector Blackford, vendeu também esses direitos dramáticos.
É, vendi os direitos pro cinema. Foram só dois mil dólares. Eu estava morrendo de fome. Na época me pareceu um bocado de grana. Blackford jamais fez um filme de Conferente de Embarque.
Não importa. Diz no contrato que ele é dono do personagem pra sempre.
Escuta, como você soube disso?
Bem, tem um advogado, Fletcher Jaystone. Ele estava transando com uma montadora. Acabaram a transa e o advogado viu o argumento na mesa de cabeceira. Pegou. Era A Dança de Jim Beam. Ele folheou, pôs o argumento de volta no lugar e disse: “HENRY CHINASKI! MEU CLIENTE É DONO DESSE CARA! EU MESMO FIZ O CONTRATO!”. E dali mesmo a coisa se espalhou pela cidade. A Dança de Jim Beam está morto. Agora ninguém quer tocar nele porque Blackford e seu advogado são donos de Henry Chinaski.
Isso não é verdade, Jon. Eu não venderia esses direitos perpetuamente por uns míseros dois mil paus. Isso não faria nenhum sentido.
Mas está no contrato!
Eu li o contrato antes de assinar. Não vi nada disso.
Veja a cláusula VI.
Eu não acredito.
Eu telefonei pro advogado. É um cara durão. “Nós somos donos de Henry Chinaski”, ele me disse. “Eu investi 15 mil dólares de meu próprio dinheiro na época, e era muito dinheiro então. Ainda é um bocado de dinheiro.” Eu comecei a ficar nervoso, a gritar com ele. “Espere”, ele disse. “Não fale comigo desse jeito. Não fale comigo desse jeito.” Não cheguei a parte alguma com ele. Não sei se ele quer um monte de dinheiro ou o que, mas neste momento Jim Beam está morto, mais morto do que qualquer outra coisa por aí. Está liquidado.
Jon, eu telefono pra você depois.
Olhei o contrato e procurei a cláusula VI. Em minha opinião, não conseguia ver nenhuma venda direta ou implícita dos direitos sobre o personagem. Reli várias vezes a cláusula VI mas não conseguia ver.
Liguei para Jon.
Não tem nada na cláusula VI que diga coisa alguma sobre a cessão do personagem para sempre. Que tipo de maluquice é essa? Será que todo mundo ficou maluco?
Não, mas é o que significa.
Significa o quê?
A cláusula VI.
Você tem o contrato aí, Jon?
Tenho.
Pode ler pra mim onde declara que esse cara é dono de Henry Chinaski?
Bem, infere.
Isso é LOUCURA! Eu não vejo sequer uma inferência!
Se a gente tiver de ir pro tribunal, vai levar três, quatro, cinco anos... E enquanto isso Jim Beam está morto. Ninguém vai tocar nele.
SERÁ QUE TODO MUNDO NESTA CIDADE ESTÁ TÃO AMEDRONTADO? NÃO HÁ NADA NA CLÁUSULA VI QUE DECLARE QUALQUER COISA, DA MAIS VAGA FORMA, SOBRE A VENDA DO PERSONAGEM CHINASKI A ESSA GENTE!
Você assinou um papel cedendo os direitos a Henry Chinaski para sempre – disse Jon.
Ele também estava doente. Desliguei.
Encontrei o número de Hector Blackford. Estava na lista telefônica, como sempre estivera. Eu conhecia Hector desde que ele saíra da escola de cinema na USC. Um de seus primeiros filmes fora um documentário sobre mim. Passou numa TV a cabo uma noite. Na manhã seguinte, 50 pessoas telefonaram e cancelaram as assinaturas.
Hector e eu tomamos uns bons porres juntos algumas vezes. Ele mostrara um certo interesse em filmar Conferente de Embarque, e chegara até a me entregar um argumento, mas estava tão mal feito que eu disse a ele que esquecesse. Enquanto isso, ele seguiu seu caminho e eu o meu. E ele se tornou rico e famoso, dirigindo vários grandes sucessos. Eu brincava com o poema e esqueci Conferente de Embarque.
O telefone tocou, e ele atendeu.
Hector, é Hank...
Oh, olá, Hank. Como vai indo?
Não muito bem.
Que é que há?
É sobre Jim Beam. Tem um cara aí pela cidade afirmando que você e ele são donos de Henry Chinaski. Conhece ele?
Fletcher Jaystone?
É. Ora, Hector, você sabe que eu não venderia meu rabo e minha alma por uns míseros dois mil dólares.
Fletcher diz que você vendeu.
Isso não está na cláusula VI.
Ele diz que está.
Você leu?
Li.
Está?
Não sei.
Escuta, baby, você não vai me arrancar os bagos por uma vaga fraseologia que ninguém entende, vai?
Que quer dizer?
Quero dizer que temos um filme em andamento e isso vai matar ele pra sempre. Não se lembra de todas aquelas noites em que tomamos porre juntos e tivemos todos aqueles bons papos?
É, foram belas noites.
Então converse com seu cara e diga a ele pra se mandar. A gente só quer inspirar e expirar.
Hank, eu ligo pra você depois.
Fiquei sentado junto ao telefone, esperando. Esperei quinze minutos.
Tocou.
Era Hector.
Tudo certo, Jaystone vai aliviar a barra.
Obrigado, cara, sei que você é um grande coração. Esse negócio ainda não te matou.
Jaystone vai te mandar uma liberação, imediatamente.
Sensacional! Sensacional! Hector, você é lindo!
E Hank...
Sim?
Ainda vou fazer um filme de Conferente de Embarque um dia.
Tudo certo, baby. Lembranças à tua mulher!
Lembranças a Sarah – disse Hector.

Nove décimos desse tipo de coisa são resolvidos no telefone; o outro décimo na assinatura de documentos.
Liguei para Jon.
Hector mandou o tal Jaystone dar o fora. Jaystone vai te mandar uma liberação.
Sensacional! Sensacional! Agora podemos ir em frente! Hector foi camarada, não foi?
Bem, acho que ele provou isso.
Assim que a gente receba a liberação, vou voltar ao novo produtor... A propósito, em vez de esperar o correio, por que não vou ao escritório de Jaystone e pego a liberação?
Claro, telefone pra ele e acerte.
Bem, estamos de volta ao ramo do cinema – disse Jon.
Claro. Talvez a gente deva ir almoçar no Musso’s.
Quando?
Amanhã. Uma e meia.
Até lá – disse Jon.
Até lá – respondi.

Charles Bukowski, in Hollywood