Caderno de Andarilho | Apresentação

Eu quando conheci o Aristeu —
ele estava em final de árvore.
E andava por aldeias em santidade de zínias.
O ermo fazia curvas para ele.
Subiam-lhe caracóis ao manto.
O que Gogol falou sobre Akaki Akakievitch,
eu diria de Aristeu:
Um homem que desceu à sepultura sem ter
realizado um só ato excepcional.”
Inventava descobrimentos:
Que a estridência dos grilos durante o cio
aumenta 75 vezes. E peixe não tem honra.
Difícil de provar a desonra dos peixes; mesmo
com fita métrica…
Como é difícil de provar que em abril as
manhãs recebem com mais ternura os
passarinhos.
Exerci alguns anos ao lado de Aristeu a
profissão de urubuzeiro (o trabalho era
espantar os urubus dos tendais de uma
charqueada).
Com esses exercícios os nossos
desconhecimentos aumentaram bem.
As coisas sem nome apareciam melhor.
Vimos até que os cantos podem ser ouvidos em
forma de asas.

Manoel de Barros, in Meu quintal é maior do que o mundo

1519 – Cempoala

Cortez

Crepúsculo das altas chamas na costa de Veracruz. Onde naus estão ardendo e ardem os soldados rebeldes pendurados das traves de madeira da nau capitã. Enquanto abre sua bocarra o mar devorando as fogueiras, Hernán Cortez, de pé sobre a areia aperta o pomo de sua espada e descobre a cabeça.
Não só as naves e os enforcados foram a pique. Já não haverá regresso; nem mais vida que a que nascida a partir de agora, traga consigo o ouro e a glória ou o abutre da derrota. Na praia de Veracruz afundaram os sonhos dos que bem que gostariam de voltar a Cuba, para dormir a sesta colonial em redes tecidas, envolvidos em cabeleiras de mulher e fumaça de charuto: o mar conduz ao passado e à terra, ao perigo. Em lombo de cavalo irão os que puderam pagá-lo, os demais irão a pé: setecentos homens México adentro, até as serras e os vulcões e o mistério de Montezuma.
Cortez ajusta seu chapéu de plumas e dá as costas às chamas. De um galope chega ao casario indígena de Cempoala, enquanto cai a noite. Não diz nada à tropa. Logo ficarão sabendo.
Bebe vinho, sozinho em sua tenda. Talvez pense nos homens que matou sem confissão ou nas mulheres que penetrou sem boda desde seus dias de estudante em Salamanca, que tão remotos parecem, ou em seus perdidos anos de burocrata nas Antilhas, durante o tempo de espera. Talvez pense no governador Diego Velázquez, que estará tremendo de fúria em Santiago de Cuba. Com certeza sorri, ao pensar neste dormilão boboca, cujas ordens nunca mais obedecerá; ou na surpresa que espera os soldados que está escutando amaldiçoar nas rodas de dados e baralho do acampamento.
Algo disso anda em sua cabeça, ou talvez a fascinação e o pânico dos dias que estão por vir; e então ergue o olhar, a vê na porta e à contraluz a reconhece. Se chamava Malinali ou Malinche quando o cacique de Tabasco deu-a de presente a ele. Faz uma semana que se chama Marina.
Cortez lhe diz umas quantas palavras enquanto ela, imóvel, espera. Depois, sem um gesto, a moça desata os cabelos e a roupa. Um redemoinho de tecidos coloridos cai entre seus pés despidos e ele cala quando o corpo dela aparece e resplandece.
A poucos passos dali, o soldado Bernal Díaz del Castillo escreve, à luz da lua, a crônica da jornada. Usa como mesa um tambor.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

O que que eu respondo pra ele, amiga? (parte 1)

JU: GENTE. ELE me respondeu.
MARI: Respondeu o quê????
CAROL: CONTAAAAAA
RÊ: conta jáááá
JU: Então, ele perguntou se eu topo ir jantar hoje… Digo que sim?
CAROL: Ele mandou a mensagem há quanto tempo?
JU: 6 minutos.
CAROL: Então espera mais um pouco pra responder.
RÊ: Isso. Espera pelo menos dar 10.
CAROL: 12.
MARI: Manda o print.
(PRINT)
JU: Eu respondo o quê? Que topo?
MARI: Não. Ainda não. Responde perguntando outra coisa.
JU: Outra coisa o quê?
CAROL: Sei lá. Pergunta se ele sabe quanto tá o dólar.
RÊ: HAHAHAHAHA cala a boca Carol
MARI: Pergunta a que horas ele deve sair do trabalho
JU: Tá. Vou responder assim “Oie, acho que sim. Você sai do trabalho mais ou menos que horas?”, pode ser?
RÊ: Tira o “acho que sim”.
MARI: Tira o “mais ou menos”.
CAROL: Tira a calça jeans, bota o fio dentaaaaaal
JU: HAHAHAHAHA cala a boca Carol
MARI: Mano, alguém tira a Carol do grupo
JU: Então vou responder assim “Oie, a que horas você sai do trabalho?”
RÊ: “Oie” é péssimo
CAROL: Também acho.
MARI: Sim, manda só “oi”
RÊ: Ou “hello”
CAROL: Ou “e aí viado?”
JU: Obrigada Carol, ótima ideia hahaha
MARI: Manda sem o “oi” mesmo
JU: “A que horas você sai do trabalho”. Gente, não tô sendo meio grossa?
RÊ: Tá… Manda “Pode ser, mas a que horas você sai do trabalho?”
JU: Beleza. Vou mandar.
(3 MINUTOS DEPOIS)
JU: Ele respondeu que sai umas oito.
RÊ: Pergunta se pode ser oito e meia.
MARI: Pergunta se pode ser sete e meia.
CAROL: Pergunta se ele gosta de Bruno e Marrone.
JU: Pra que, gente?
RÊ: Pra não parecer tão disponível.
CAROL: Pra saber se ele vai dormir na praça pensando em você.
JU: HAHAHAHAHA cala a boca Carol
MARI: Quem convidou a Carol pro grupo?
JU: Então vou falar que tô livre umas oito e meia, ok?
RÊ: Ok. Manda.
MARI: Beleza, vai contando.
(2 MINUTOS DEPOIS)
JU: Ele disse que me pega às oito e meia. Digo que tudo bem?
MARI: Sim, diz “ok”.
RÊ: Sim, diz “beleza”.
CAROL: Sim, diz “HOJE TEEEEEEM”
JU: hahaha tá bom (não pra resposta da Carol, óbvio)
(1 MINUTO DEPOIS)
JU: Ele mandou um joinha.
MARI: Manda a carinha piscando.
RÊ: Manda a carinha do beijinho.
CAROL: Manda o brinde de cervejas.
JU: Acho que a carinha piscando fica meio “ui” demais, não?
CAROL: Manda uma berinjela.
RÊ: Manda a cara do beijinho, já falei.
JU: O beijinho com coração?
MARI: Não, sem coração.
RÊ: Também acho.
CAROL: Manda aquela carinha do capeta.
JU: Ok, vou mandar o beijinho sem o coração.
CAROL: Ninguém liga para o que eu falo.
JU: Não mesmo Carol, você só fala merda.
RÊ: Mas a gente te ama.
MARI: Mesmo que você seja retardada.
(7 HORAS DEPOIS)
JU: Gente, ele falou que tá saindo.
MARI: Você tá pronta?
JU: Tô.
MARI: Diz que precisa de mais 5 minutos.
JU: Pra quê?
MARI: Sei lá.
JU: Tá bom.
(14 MINUTOS DEPOIS)
JU: Ele disse que eu já posso descer.
CAROL: DESCEEEE DESCEEEE DESCE GLAMUROSA.
JU: Mandei “tô descendo”.
CAROL: Que resposta INCRÍVEL ju.
JU: hahahahahaha.
MARI: Arrasa lá, amiga
RÊ: Boa sorte ju <3
JU: É nóis, amo vocês.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Uma flor

Brota uma flor
no interior da floresta.
Bela e jamais vista.

花が芽吹く
森の中ではありません。
美しくて見たことのないもの。

Elilson José Batista, in O Sol dá têmpera à espada-de-são-jorge

Granny Smith


Antes da língua e do verbo, antes de ouvir na rádio a Amália a cantar canções tristes e de a minha mãe me dizer que aquilo que ouvia se chamava fado. Bem antes de ler num livro de história o nome de Diogo Cão e a sua chegada à foz do rio Zaire. Antes das mil formas de cozinhar o bacalhau descritas num velho livro de receitas portuguesas na casa da minha avó. A ideia de Portugal surgiu-me desavisada. Festejávamos o regresso de um familiar de umas férias passadas em Lisboa. A sala encheu-se de histórias; fotografias de uma praça onde as pombas sem medo vinham comer na palma das mãos mostravam-se ao som do rasgar de papel de embrulho, por entre um cheiro novo, doce e frutado que invadia o ar. Nunca mais me esqueci do cheiro das maçãs de casca verde e azeda tão saborosas, tão distantes das que nos chegavam da Huíla. E as prendas… As prendas eram de cortar o fôlego. Na minha casa as crianças nunca se prenderam aos brinquedos; por isso, qualquer livro de banda desenhada me deixava nas nuvens. Mas aquela dúzia de livros Disney e Marvel fizeram de mim simplesmente o kandengue mais feliz de Benguela. De mim e de todos os miúdos lá da rua, porque esses objetos de culto pop não ficavam muito tempo na posse dos seus proprietários. Corriam o bairro todo até voltarem; muitos nunca voltavam. Raros e desejados, esses livros só eram possíveis de obter via Portugal. E foi por essa via que começou a ganhar forma em mim a ideia de Portugal, o lugar-donde-vinham-os-livros-de-BD-e-que-cheirava-a-maçãs-Granny-Smith.
Hoje, sempre que viajo por Portugal, inconscientemente procuro aquele lugar. E este fim de semana não foi exceção. As festividades carnavalescas levaram-nos até ao norte do país, à cidade berço. Amanhecemos em Guimarães e com o dia todo para domingar. Para não nos sentirmos deslocados, evitámos o registo turista e decidimos fazer o que supostamente um nato da terra faria. Uma chuva miudinha insistia em não parar, talvez por isso metade da cidade hibernava, sem que isso ofuscasse a sua beleza. A busca de um restaurante levou-nos até Vizela, onde encontrámos um que merecidamente nos fez dedicar três horas do nosso tempo e apetite. A tarde corria acelerada para o seu fim e restavam-nos poucas escolhas de entretenimento. Talvez por isso fomos naturalmente conduzidos para o interior de um shopping center. Não fizemos grandes juízos, aceitámos o fato e deambulámos por ali de montra em montra. Escolhemos um filme, Call Girl, comprámos pipocas e coca-colas e entrámos na sala que se encontrava com o maior número de pessoas. Talvez fosse por causa do efeito da protagonista Soraia Chaves, mas penso que não poderíamos ter escolhido um melhor filme para aquele fim de tarde. Ao sairmos do cinema com um sorriso estampado no rosto, sem aquela culpa que às vezes nos pesa quando seguimos determinada tendência popular, lembrei-me da satisfação que sentia depois de ler um livro de BD, quase como se saboreasse aquele lugar-donde-vinha-a-banda-desenhada; só não cheirava às maçãs.

Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas

Ar de superioridade

A ociosidade dos espetáculos; as peças no palco; os rebanhos de ovelhas; manadas; exercícios com lanças; o osso arremessado para os cães e o pão para os peixes; a função das formigas; o carregamento das cargas; as corridas dos ratos amedrontados; as marionetes puxadas pelas cordas.
Em meio a tais coisas, deve demonstrar bom humor e não um ar de superioridade. Entrementes, deve compreender que o valor de cada homem equivale ao das coisas com as quais se ocupa.

Marco Aurélio, in Meditações

Sujeito indireto

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.
para que apenas me veja
pena que seja leda
quem quer você que me leia.

Este poema já foi musicado duas vezes. Uma por Moraes Moreira, outra por Itamar Assumpção. Que tal você?

Paulo Leminski, in Toda Poesia

Fullgás | Marina Lima e Antonio Cícero, 1984



O Brasil fervia em 1984, assolado por uma crise econômica sem precedentes, mas empolgado com a perspectiva do fim da ditadura. A campanha das Diretas Já arrebatava o país unindo políticos, artistas e intelectuais no mesmo palco e arrastando multidões às praças. Havia muita esperança no ar com o sonhado fim da ditadura e o exercício da plena liberdade criativa, em que o civismo se misturava ao romantismo, como em “Fullgás”.
Esse também foi um ano de vigorosa produção musical. Do já comentado hino sarcástico das Diretas “Inútil” a canções políticas agressivas como “Podres poderes”, de Caetano Veloso, passando por belas baladas românticas como “Fogueira”, de Angela Ro Ro, e “Me chama”, de Lobão. Abraçando esses extremos estava outro sucesso que permaneceu, “Fullgás”, da carioca Marina Lima e seu irmão, o poeta e filósofo Antonio Cícero. É um rock leve e elegante, com tempero jazzístico, que integra o sabor brasileiro ao pop internacional, funde o político ao amoroso e expressa o momento de esperança do Brasil. Seu verso de encerramento fez história, unindo o sentimento coletivo e o individual: “Você me abre seus braços / e a gente faz um país.”
Com o neologismo “Fullgás”, Marina e Cícero integram os sentidos de “a todo vapor” e da fugacidade do tempo e dos sentimentos. A canção deu nome e foi o grande sucesso do quinto disco da cantora e compositora, estabelecendo-a como autora de grande personalidade e estilo, como voz das mulheres de sua geração. Após cinco anos de carreira, o pop melodioso, o fraseado musical fluente e elegante, as letras sonoras e elaboradas de Antonio Cícero e uma atmosfera sensual criada pelos arranjos sofisticados e pela voz quente de Marina conquistavam o grande público.

Nelson Motta, 101 canções que tocaram o Brasil 

No sertão, até enterro simples é festa


[…]
Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renúvem, e não achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo ― pedação, tábua suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras! Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma môita, um pé de parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu lado. Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu roçava longe dele em meus pensamentos. ― Riobaldo, não se matou a Ana Duzuza... Nada de reprovável não se fez... ― falou. E eu não respondendo. Agora, o que era que aquilo me importava ― de malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas lajes ― o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arêjo. Gritavam contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo vivo dágua. O melhor de tudo é a água. No escaldado... Saio daqui com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília ― eu jurei, do propôsto de meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava mais de ninguém! só gostava de mim, de mim! Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente desexistir é um certo decreto ― por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê. Ah, e os poços não se achavam... Alguém já tinha declarado de morto. O Miquím, um rapaz sério sincero, que muito valia em guerreio, esbarrou e se riu: ― Será que não é sorte? Depois, se sofreu o grito de um, adiante: ― Estou cego!... Mais aquele, o do pior ― caíu total, virado tôrto; embaraçando os passos das montadas. De repente, um rosnou, reclamou baixo. Outro também. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas as caras. Credo como algum ― até as orêlhas dele estavam cinzentas. E outro: todo empretecido, e sangrava das capelas e papos-dos-olhos. MedeiroVaz a nada não atendia? Ouvi minhas veias. Aí, a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de Diadorim ― aquelas peças doeram na minha mão ― tive que fiquei um instante no inclinado. ― Daqui, deste mesmo de lugar, mais não vou! Só desarrastado vencido... ― mas falei. Diadorim pareceu em pedra, cão que olha. Contanto me mirou a firme, com aquela beleza que nada mudava. ― Pois vamos retornar, Riobaldo... Que vejo que nada campou viável... Tal tempo! ― truquei, mais forte, rouco como um guariba. Foi aí que o cavalo de Diadorim afundou aberto, espalhado no chão, e se agoniou. Eu apeei do meu. MedeiroVaz estava ali, num aspeito repartido. Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo o resultado. ― Nós temos de voltar, chefe? ― Diadorim solicitou. Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente sofreasse. Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro querer, a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então ― por primeira vez ― abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi. Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas era mesmo o final de se voltar, Deus me disse. E ― o senhor mais saiba ― de supêto já eu estava remoçado, são, disposto! Todos influídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorim apalpou meu braço. Vi! os olhos dele marejados. Mor que depois eu soube ― que, a ideia de se atravessar o Liso do Sussuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado.
Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos. Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome ― caça não achávamos ― até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto ― juro ao senhor ― enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando! era criaturo de Deus, que nú por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse! ― Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos... Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. ― Aí, então, é a fome? ― uns xingavam. Mas outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua de lá, um mandiocal sobrado. ― Arre que não! ― ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepêgo esquisito, e enganava o estômago. Melhor engulir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dôres, pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros. Mas pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. ― Quem quiser bulir com ela, que me venha! ― Diadorim garantiu. ― Que só venha! ― eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-burití, sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros ― esse tem cachoeiras que cantam, e é d água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: ― É verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra velha remelêja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as flores do capitão-da-sala ― todas vermelhas e alaranjadas, rebrilhando estremecidas, de reflexo. ― E o cavalheiro-da-sala... ― Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça. ― Em minha terra, o nome dessa ― ele disse ― é dona-joana... Mas o leite dela é venenoso…
Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfregada. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota ― quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada! comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia.Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança ― o senhor sabe ― não se tira das coisas feitas ou perfeitas! ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de virtude. Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. Olhe! Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos.
Talmente, também, se carecia de tomar repouso e aguardo. Por meios e modos, sortimos arranjados animais de montada, arranchamos dias numa fazenda hospitaleira na Vereda do Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo e o Acarí, em toda a parte a gente era recebida a bem.
Tardou foi para se ter sinal dos bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era que todos os moradores pertenciam do nosso lado. MedeiroVaz não maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força, nem consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes. Mas os hermógenes e os cardões roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça em qualquer povoal atôa, renitiam feito peste. Na ocasião, o Hermógenes beirava a Bahia de lá, se soube, e eram um mundo enorme de má gente. E o Ricardão? Estivesse, esperasse. Dando meias andadas, nós chegamos num ponto-verdadeiro, num Burití-do-Zé. Dono de lá, Sebastião Vieira, tinha curral e casa. E guardava munição da gente: mais de dez mil tiros de bala.
Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão Melo Franco ― esses não davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era um pensamento: a gente mamparreasse de com eles não guerrear, não se esperdiçar ― porque as nossas armas guardavam um destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em vereda, como os buritís ensinam, a gente varava para após. Se passava o Piratinga, que é fundo, se passava: ou no Vau da Mata ou no Vau da Boiada; ou então, pegando mais por baixo, o São Domingos, no Vau do José Pedro. Se não, subíamos beira desse, até às nascentes, no São Dominguinhos. A ser o importante, que se tinha de estudar, era avançar depressa nas boas passagens nas divisas, quando militar vinha cismado empurrando. E preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som ― um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um homem se enforcou. Por aí, extremando, se chegava até no Jalapão ― quem conhece aquilo? ― tabuleiro chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah, quem oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada ― homens, mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a imagem da igreja ― tendo até bandinha-de-música, como vieram com todos, parecendo nação de maracatú! Iam para os diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo! ...nos rios... Uns tocavam jumentos de almocreve, outros carregavam suas coisas ― sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol. O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequêio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila da Pedra-de-Amolar. Lá venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro simples é festa.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Nosso amigo landucci

A nova casa de Lélio Landucci fica no alto de uma encosta e domina o vale de Botafogo, densamente povoado e cheio de silêncio. Amigos, muitos amigos, o conduziram até ali, numa tarde de céu mais neutro do que azul, mas tão tranquila que, sob seu arco, a ideia de casa e o sentimento de paz se fundiam numa unidade perfeita. Sim, Lélio Landucci fora realmente descansar, depois de muito andar pelas ruas do centro, onde o víamos sempre com sua pasta, suas provas de livros dos outros, sua civilizada gentileza (comment allez vous, mon cher?), seus vastos conhecimentos quase sem aplicação, sua bondade numerosa e seu discretíssimo destino de artista a quem a vida impunha tarefas rotineiras, escrupulosamente cumpridas.
Portinari, Manuel Bandeira, Dante Milano, Órris Soares, Alcides da Rocha Miranda, cada um que ali estava podia contar sua memória particular de Landucci, e recompor um traço que, somado a outros, reconstituiria a figura inteira, intelectualmente das mais aristocráticas que já passaram por aqui. Era escultor, arquiteto, crítico de arte, técnico em artes gráficas, mas era, sobretudo, um florentino de velha tradição cultural e de um bom gosto infalível, com a visão estética enriquecida pela perspectiva sociológica, adquirida em seus tempos parisienses de militante socialista. Na casa dos vinte anos, foi aviador militar e participou da Guerra Mundial de 1914 sob a bandeira da Itália, mas não se podia dizer ao certo se nele o francês era menos autêntico do que o italiano; e a impressão final que nos causava era a de um europeu, no sentido mais fino dessa palavra, que vai perdendo o sentido. Contudo ainda, tantos anos de Brasil, e mais precisamente de vida carioca, o foram marcando por sua vez, inscrevendo em sua personalidade linhas de um estilo brasileiro tão cordial que o antigo Landucci, por assim dizer, adquirira uma segunda natureza, sem nenhum dilaceramento das raízes originais, antes as mantendo fixas e vivazes. Nem seria possível, a quem teve o privilégio de ser conterrâneo de Dante e de Giotto, esquecer-se.

del bello ovile ov’io dormi’ agnello.

Como não há nos museus, ao que conste, esculturas de sua lavra, nem se conhecem obras consideráveis de arquitetura construídas sob sua traça, nem deixou livros a não ser o admirável estudinho sobre Portinari, além de alguns artigos esparsos de jornal (inclusive um nas edições de cinquentenário do Correio da Manhã), sua presença no meio artístico do Brasil, dentro de alguns anos, estará, talvez, esfumada. Contudo, sua passagem não foi a da sombra da asa sobre a água. Esteve entre os mais avisados julgadores das experiências artísticas, nos últimos vinte e cinco anos; era uma opinião que contava, num meio onde tão poucas sugestões úteis podem recolher os artistas plásticos para se orientarem; além dos belos livros de arte que se devem a seu senso gráfico servido por um cuidado chinês da minúcia, temos a creditar-lhe um novo tipo de edições oficiais, de sobriedade nobre e elegante, como são hoje as do Instituto Nacional do Livro. Mas, sobretudo, legou-nos uma lição cotidiana, sem a menor ênfase, de esmero e pureza. Rever provas, paginar, idealizar um frontispício, eram operações que lhe mereciam tanto apreço quanto o debate sobre os rumos da arte no mundo politizado de hoje, ou em torno das soluções urbanísticas de que o Rio carece, ou outro tema qualquer em que se comprazia sua inteligência crítica, tão segura e bem equipada.
Resta dele outro traço: foi um dos colaboradores de Landowski, no monumento ao Cristo do Corcovado, e dizem mesmo que a obra, em sua concepção geral, teria obedecido a um croqui de sua autoria. O público não sabe disso, e a estátua, que se integrou na paisagem do Rio, tem um sentido anônimo e coletivo, em cuja intimidade é grato imaginar, oculta mas generosa, a sensibilidade de Lélio Landucci.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

Capítulo 36 | A propósito de botas

Meu pai, que me não esperava, abraçou-me cheio de ternura e agradecimento. – Agora é deveras? disse ele. Posso enfim...?
Deixei-o nessa reticência, e fui descalçar as botas, que estavam apertadas. Uma vez aliviado, respirei à larga, e deitei-me a fio comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás deles, entrávamos numa relativa bem-aventurança. Então considerei que as botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro. Enquanto esta ideia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder-se no horizonte do pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçou-as o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas.
Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear a tragédia humana.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

A felicidade descendo a colina ao escurecer

Segunda história rápida sobre a felicidade descendo a colina ao escurecer – meu amor ficou longe, com seu ar de não ter dúvida, e dizia: meus pais... – não posso mais duvidar dos meus passinhos, neste sítio – você agora fala até mais baixo, delicada que eu reparo mais que os outros depois de um tempo fora – é como voltar e achar as crianças crescidas, e sentar na varanda para trocar pensamentos e memórias de um tempo que passou – mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto) ainda havia ares de mistério – agora, é agora, descendo esta colina, sem nenhum, que eu conto então do amor distante, e não imito a minha nostalgia, mas a delicadeza, a sua, assim feliz.

Ana Cristina César, in A teus pés

Intrusão

O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.

Mário Quintana, in Caderno H

As rãs | Parte II


2.

O dia do meu casamento amanheceu encoberto. As nuvens escuras formavam uma capa densa, os trovões ribombavam. Quando os trovões pararam, caiu um pé-d’água.
Minha mãe resmungou: “E Yuan Bochecha ainda disse que escolheu para você uma data auspiciosa, agora olhe só para este dilúvio!”.
Passava das dez da manhã quando Wang Renmei chegou a minha casa. Veio debaixo de chuva, acompanhada de duas primas. Pelas capas de chuva que usavam, até parecia que estavam indo inspecionar a barragem para prevenir inundações. Com uma lona plástica, montamos uma barraca no pátio e improvisamos um fogão ali, agachei-me para avivar as chamas com um fole e ferver água. Meu primo Cinco Sentidos provocou: “Herói de guerra, a noiva já entrou e você continua agachado aí fervendo água?”. “Então venha você fazer isso”, eu disse. “Sua mãe já me mandou soltar fogos”, respondeu ele, “e soltar fogos num dia de chuva é algo que requer técnica.” Minha mãe apareceu na porta e gritou: “Cinco Sentidos! Pare de enrolar e vá logo!”. Cinco Sentidos tirou do peito um cordão de panchões embrulhado num plástico, acendeu o pavio, dispensou o cabo e segurou uma ponta do cordão com a mão. Inclinou o corpo enquanto mantinha o guarda-chuva sobre a cabeça e deixou que estalassem. Por causa da chuva, a fumaça envolveu meu primo em vez de se dispersar. As crianças que estavam ali para assistir ao espetáculo, mais ensopadas que um frango na canja, começaram a bater as mãos e os pés, gritando: “Cinco Sentidos está com a cabeça cheia de fumaça…”. “O que esses pirralhos estão gritando agora?”, resmungou minha mãe.
Segundo o costume, a noiva deve entrar na casa do noivo sem dizer uma palavra, passar pela sala principal, ir até o quarto nupcial e sentar-se sobre o kang com as pernas de lado, é o que se chama de “entronização”. Mas Wang Renmei, assim que chegou, ficou no pátio vendo o espetáculo pirotécnico de Cinco Sentidos. Ele estava com a cara preta de fumaça, parecia ter saído de dentro de um fogão à lenha. Wang Renmei caiu na gargalhada. Suas duas primas que faziam as vezes de damas de honra discretamente puxaram a manga do seu vestido para lembrá-la do protocolo, mas ela não deu a mínima atenção. Calçava sandálias de salto, feitas de plástico, que a deixavam parecendo uma árvore, de tão alta. Cinco Sentidos a olhou de cima a baixo e disse: “Cunhada, quem quiser te beijar vai precisar de uma escada!”. “Cinco Sentidos, cale essa boca!”, ralhou minha mãe. Wang Renmei falou: “Cinco Sentidos, deixe de ser retardado! Até a Wang Vesícula beija o Chen Nariz sem precisar de escada!”. Vendo a noiva tagarelar com meu primo no pátio, as tias convidadas teciam comentários ao pé do ouvido. Pulei para fora da barraca segurando uma pá de carvão na mão. As crianças começaram a bater as mãos e os pés: “O herói apareceu! O herói apareceu!”.
Eu estava de farda nova, medalha no peito, o rosto coberto de carvão e uma pá numa das mãos, não era nem carne nem peixe. Wang Renmei se dobrava de tanto rir. No íntimo, eu estava numa completa confusão, não sabia se ria ou chorava. Essa Wan Renmei parecia não bater muito bem. Minha mãe gritou: “Leve-a para o quarto logo!”. Eu disse a ela, cheio de ironia: “Vá para o quarto nupcial por gentileza, minha senhora”. Wang Renmei respondeu: “Está muito abafado lá dentro, aqui fora está fresco”. As crianças entoaram, batendo as mãos e os pés: “Ó…Ó…Ó…”. Fui buscar um punhado de doces dentro de casa, levei até a porta de entrada e espalhei na ruazinha da frente. As crianças caíram em cima como um enxame de abelhas e ficaram disputando os doces na lama. Peguei Wang Renmei pelo pulso e a arrastei até o quarto. A porta era baixa e ela, tum!, bateu a testa. “Ai”, gritou, “mãe do céu, acho que quebrei a cabeça!” As tias convidadas se sacudiam de tanto rir.
A casa era pequena, havia tanta gente lá dentro que não dava nem para mexer a bunda. As três tiraram as capas de chuva, estavam pingando, não tinha onde pendurar, a não ser por cima da porta. O chão já estava molhado mesmo, cada pé que ali entrava trazia mais barro ou água, e se misturava, e se remexia, e o lamaçal estava formado. O quarto era pequeno, o kang não media nem dois metros de comprimento, na cabeceira estava o enxoval de Wang Renmei: quatro edredons novos, dois acolchoados, dois cobertores de lã, dois travesseiros, formavam uma pilha que quase alcançava o forro de papel do teto. Mal encostou o traseiro no kang, Wang Renmei gritou: “Ai, que kang é esse pelo amor da minha mãe? Isto é uma chapa quente!”.
Minha mãe explodiu, batia com a bengala no chão, dizendo: “E mesmo que for chapa quente, quero ver você sentar nele para queimar essa sua bunda!”.
Wang Renmei deu outra risada, e me falou em voz baixa: “Corre Corre, sua mãe é engraçada. Se eu queimar minha bunda, como é que vou dar à luz um campeão mundial?”.
Eu estava louco de raiva, mas não convinha sair do sério numa data auspiciosa, estiquei a mão e toquei a esteira do kang, de fato estava bem quente. Como iríamos receber muita gente, todas as tias possíveis tinham sido convidadas, os dois fogões da casa arderam sem parar, assaram pão de vapor, fritaram legumes, cozinharam macarrão. Em consequência, a esteira sobre o kang estava a ponto de derreter. Tirei um edredom da pilha, dobrei-o em quadrado e coloquei num canto: “Sente-se por obséquio, minha senhora”. Wang Renmei riu e disse: “Corre Corre, você é engraçado, cada vez que abre a boca fala ‘minha senhora’, por que não me chama do jeito que costumamos falar por aqui? Pode me chamar de ‘mulher’ ou de ‘Renmei’, como antes”. Eu não sabia o que dizer, estava casado com uma pateta, o que mais poderia dizer? Ela nem mesmo percebeu que eu a chamava de “minha senhora” por pura ironia, para descontar a raiva que sentia. “Pois bem, mulher, Renmei, faça o favor de sentar no kang.” Com a ajuda das duas primas, tirei seus sapatos, tirei suas meias de náilon ensopadas e a coloquei sobre o kang. Uma vez ali em cima, ela ficou de pé, a cabeça encostando no forro do teto. Nesse espaço baixo e estreito, ela parecia ainda mais alta. Aqueles dois cambitos de ave pernalta praticamente não tinham panturrilha. Os pés não eram pequenos, eram quase do tamanho dos meus. Ela ficava dando voltas descalça sobre aquele kang de menos de dois metros quadrados. Normalmente as damas de honra devem permanecer sentadas no leito com a noiva, mas Wang Renmei ocupava todo o espaço, restava às suas primas ficar uma em pé e a outra sentada na beirada do kang. Talvez para mostrar que era alta, pôs-se na ponta dos pés e tocou o teto com a cabeça. Parece ter achado graça nesse brinquedo, porque começou a saltitar na ponta dos pés, dando voltas sobre o kang, deixando a cabeça bater no teto, tum-tum. Minha mãe espichou a cabeça para dentro do quarto e disse: “Minha nora, se você quebrar esse kang, onde vai dormir esta noite?”. E ela respondeu, sorrindo: “Se o kang quebrar, a gente dorme no chão!”.
À noitinha minha tia chegou para jantar. Entrou pelo portão, gritando: “A excelentíssima senhora sua tia chegou! Como é que ninguém vem me receber?”.
Saímos correndo para recebê-la. Minha mãe disse: “Com essa chuva, pensamos que não viria”.
Segurava um guarda-chuva de papel envernizado, arregaçara as calças e andava com os pés nus, os sapatos presos no sovaco.
Essa chuva não é nada, não deixaria de vir nem que chovesse canivete!”, minha tia disse. “Meu sobrinho é um herói, como eu poderia faltar ao casamento de um herói?” Eu disse: “Tia, quem disse que sou herói? Sou militar de fogão, trabalhei na cozinha, nunca vi nem sombra do inimigo”.
Quem trabalha na cozinha também é importante. As pessoas são ferro, a comida é aço. Se os soldados não estiverem bem alimentados”, disse a tia, “como vão conseguir romper as linhas inimigas? Rápido, sirvam-me a comida, ainda preciso voltar depois da janta, o rio está subindo, daqui a pouco encobre a ponte e eu não vou ter como passar.”
Se não conseguir voltar, passe uns dias aqui conosco”, minha mãe disse, “faz tempo que não ouvimos suas histórias, esta noite vamos poder pôr o assunto em dia.”
Não posso de jeito nenhum”, disse minha tia, “amanhã tenho reunião do Conselho Consultivo Político no distrito.”
Corre Corre, sabia que sua tia agora é alta funcionária?”, minha mãe perguntou. “Virou membro do comitê permanente do Conselho Consultivo Político!”
E isso lá é ser alta funcionária? Só me puseram ali para fazer número.”
Minha tia entrou no quarto do oeste, a parentada ali se agitou. Quem estava sentado no kang se levantou para lhe ceder lugar, espremendo-se onde podiam. “Fiquem nos seus lugares”, ela disse, “já estou de saída, só vim beliscar alguma coisa.”
Minha mãe mandou minha irmã servir alguma coisa para nossa tia, que levantou a tampa da panela e pegou um pãozinho. Como estava muito quente, jogou o pãozinho de uma mão para outra enquanto assoprava, sua boca fazia fuuu-fuuu. Partiu o pãozinho com as mãos, pegou umas pequenas porções da carne cozida, colocou entre os pedaços de pão e deu uma bela mordida. “Assim está bom”, disse ela mastigando as palavras junto com a comida, “nem precisa trazer prato, nem tigela, comer assim é que é bom, desde que entrei nessa carreira, nunca mais tive tempo de sentar para comer.”
Ainda com a boca cheia, minha tia disse: “Deixe-me ver o seu quarto nupcial”.
Como achava o kang quente demais, Wang Renmei estava sentada no parapeito da janela e lia uma revista em quadrinhos, aproveitando a luz que vinha lá de fora. Dava risadas enquanto lia.
Minha tia está aqui!”, eu disse.
Wang Renmei pulou de onde estava e segurou a mão da minha tia: “Eu queria falar com a senhora e a senhora veio!”.
O que é que queria falar comigo?”, minha tia perguntou.
Wang Renmei disse, abaixando a voz: “Dizem que a senhora tem aí um remédio para fazer nascer gêmeos”.
Minha tia fechou a cara e perguntou: “Quem te disse isso?”.
Foi Wang Vesícula.”
É conversa fiada!” Minha tia engasgou com o pãozinho, tossiu, ficou com o rosto vermelho, minha irmã trouxe meia tigelinha de água, ela bebeu, deu uns tapinhas no peito e disse com seriedade: “Esse remédio não existe, e mesmo que existisse, quem é que teria coragem de receitar?”.
Wang Vesícula contou que lá em Chenjiazhuang tem uma mulher que tomou o remédio que a senhora receitou e teve um casal de gêmeos”, disse Wang Renmei.
A tia entregou a minha irmã o meio pãozinho que tinha na mão e disse: “Que raiva! Wang Vesícula, aquela peste! Tive o maior trabalho para tirar a criança da barriga daquela bostinha e ela ainda sai espalhando boatos a meu respeito sem um pingo de consideração. A próxima vez que a encontrar, vou arrancar a língua dela”.
Tia, não se zangue”, falei enquanto chutava discretamente a canela de Wang Renmei. “Cala a boca!”, sussurrei.
Wang Renmei deu um grito exagerado: “Ai, mãe do céu, assim você me quebra a perna!”.
Minha mãe disse, irritada: “Perna de cachorro não quebra!”.
Quebra sim, sogrinha!”, respondeu Wang Renmei. “O cachorro amarelo do meu tio quebrou a perna no ‘gato de ferro’ do Xiao Lábio Superior.”
Depois de se aposentar, Xiao Lábio Superior voltou para a aldeia e especializou-se em judiar dos animais. Arranjou uma espingarda para matar aves e saía atirando a torto e a direito, atirava em tudo que voava, não deixava escapar nem a pega, que é um pássaro da sorte para a gente da aldeia. Arranjou uma rede finíssima e foi pescar por aí, não deixou escapar nem os menores peixinhos. E ainda arranjou um “gato de ferro”, uma formidável mandíbula de metal — que ele escondia pelo bosque e nas sepulturas do campo para pegar texugo e doninha. O cachorro do tio de Wang Renmei pisou por acidente no tal “gato de ferro” e quebrou a perna.
À menção do nome de Xiao Lábio Superior, o rosto da minha tia se transformou. Ela rangeu os dentes: “Esse imprestável merecia ter sido fulminado por um punhado de raios há muito tempo, mas continua por aí, na vida mansa, comendo e bebendo do bom e do melhor, tem uma saúde de touro, parece que até Deus tem medo desse infeliz!”.
Tia”, disse Wang Renmei, “Deus pode ter medo dele, mas eu não tenho, posso me vingar dele pela senhora!”
Minha tia se alegrou e riu. Quando terminou de rir, disse: “Sobrinha, me desculpe a franqueza, quando meu sobrinho me contou que iria se casar com você, fui contra, mas assim que soube que foi você que rompeu com o filho de Xiao Lábio Superior, concordei na hora. Eu disse muito bem, essa menina tem caráter! O que há de mais em entrar para a universidade? No futuro, nossos descendentes não vão apenas estudar numa universidade, vão estudar nas mais renomadas, como a Universidade de Pequim, a Tsinghua, Cambridge, Oxford. Não vão só se graduar, vão fazer mestrado e doutorado! Vão ser acadêmicos e cientistas. E, claro, ainda vão ser campeões mundiais!”.
Mas então, tia”, disse Wang Renmei, “a senhora precisa me receitar aquele remédio para ter gêmeos, vou gerar mais dois bons descendentes para a família Wan e matar Xiao Lábio Superior de raiva!”
Mas será possível?! Dizem que te falta um parafuso, será que falta mesmo? Me enrolou esse tempo todo para me fazer cair de novo na sua conversa.” Minha tia disse, muito séria: “Vocês, jovens, devem escutar o Partido, seguir o Partido, não podem ficar pensando em burlar as regras. O planejamento familiar é uma política nacional básica, é assunto da mais alta relevância. O secretário comanda e o Partido todo colabora. Mostrar o caminho, mostrar o exemplo. Reforçar a pesquisa científica. Melhorar a técnica, implementar as medidas. É preciso perseverar no movimento das massas. Um filho por casal é uma política forjada em ferro, não vai mudar nos próximos cinquenta anos. Se não controlarmos o crescimento populacional, nosso país está acabado. Corre Corre, você é membro do Partido, é um militar revolucionário, tem a obrigação de servir de exemplo aos demais”.
Tia, a senhora me dá o remédio sem ninguém ver, eu tomo e ninguém fica sabendo”, disse Wang Renmei.
Mas esta moça tem mesmo um parafuso a menos. Eu já disse e vou repetir: esse remédio não existe! E mesmo que existisse, eu não poderia dar a você! Sou membro do Partido, membro do Conselho Consultivo Político, vice-diretora do Grupo Dirigente de Planejamento Familiar, como é que eu poderia ser a primeira a infringir a lei? Posso ter sofrido algumas injustiças, mas uma coisa é certa: sou comunista de coração, isso não vai mudar nunca. Sou do Partido enquanto viver, serei do Partido depois de morrer. Para onde o Partido aponta, eu vou. Corre Corre, sua mulher é estúpida, não tem um pingo de discernimento, você deve estar consciente dessa situação e não fazer besteira. Agora me deram um novo apelido: ‘Rainha do Inferno’. Fiquei lisonjeada! Sua tia faz de tudo por aquelas que querem ter um filho conforme o planejamento familiar, queimo incenso, faço abluções. Mas quanto àquelas que engravidam fora do planejamento”, minha tia cortou o ar com a mão num movimento brusco, “ninguém me escapa!”

Mo Yan, in As rãs

A bela cena

Tomas, personagem de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, não conhecia a experiência da paixão. O que ele conhecia eram os prazeres do sexo. Esgotada a orgia, o seu desejo era se livrar da mulher. A ideia de acordar com uma mulher ao lado o horrorizava. O seu horror ao amor era tal que nunca permitia que uma mulher dormisse na sua cama. Encontrava sempre uma desculpa para se livrar da companheira, levando-a de volta à casa dela. Ele se parecia com o sultão de As mil e uma noites, que, depois de uma noite de prazeres carnais, quando o sol iluminava o horizonte, fazia com que a amante fosse decapitada... Era assim que Tomas agia, como um animal caçador que abandona a caça tão logo sua fome é satisfeita.
Mas com Tereza tudo foi diferente. Não que ela tivesse algum traço especial, que a distinguisse das outras. Não era mais bonita. Por que Tomas a amou e deixou que ela passasse a noite na cama dele? Por mais que a examinasse, nada encontrava nela que pudesse ser apontado como a razão do seu amor. Eles se conheciam por um tempo tão curto! Mas, sem razões e contra a sua vontade, o fato era que ele estava apaixonado por ela.
Sua aventura com Tereza havia começado exatamente onde terminavam suas aventuras com as outras mulheres. Ela acontecera do outro lado do impulso que o levava às conquistas. Conhecera Tereza acidentalmente, num bar de uma cidadezinha do interior. Dissera-lhe, quase como brincadeira, que o procurasse se fosse à capital. E lhe dera o seu endereço. Tereza chegou à capital doente, sentindo-se perdida. Não tinha para onde ir. Foi isso que a levou a procurar Tomas. E foi aí que a história de amor começou.
Ela ardia em febre. Ele não podia fazer com ela aquilo que fazia com as outras. Não podia levá-la de volta para casa, porque ela não tinha casa. Ajoelhado à sua cabeceira, “ocorrera-lhe a ideia de que ela viera para ele numa cesta sobre as águas”.
Agora, a distância, pensava sobre as razões do seu amor e fazia, sem que disso se desse conta, a insólita pergunta de Santo Agostinho: “o que é que amo quando amo Tereza?”. Tudo se tornou claro de repente. Ele ficou comovido pela fragilidade de Tereza adormecida – criança amedrontada, chegando aos seus braços com um pedido de socorro.

A mulher não resiste à voz do que chama sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz. Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona do seu cérebro.

Agora, na memória poética de Tomas, aquela cena permanecia imóvel, imperturbável, fora do tempo. Era uma parte da sua alma. Não morreria jamais.
O que é que amo quando te amo?” Tomas amava Tereza porque amava nela uma outra coisa: aquela cena que repentinamente brilhara em sua imaginação. Na cena, Tereza não era Tereza; era uma criança abandonada, levada pelas águas de um rio. E, de repente, ele deixou de ser Tomas, o caçador – tornou-se um homem forte, que tomava aquela criança nos braços. Tereza poderia deteriorar-se ou morrer. Mas a cena permaneceria inalterada, suspensa na memória poética, como objeto de amor.
Amamos a bela cena antes de amar a pessoa. Amamos a pessoa porque ela completa a bela cena. Por isso Santo Agostinho, antecedendo os versos de Fernando Pessoa, escreveu em suas Confissões: “antes que te conhecesse eu já te amava”. Somos amantes antes de nos encontrar com a mulher ou com o homem que será o objeto do nosso amor. A alma é uma coleção de belos quadros adormecidos, seus rostos envoltos pelas sombras. Sua beleza é triste e nostálgica porque, sendo moradores da alma ao lado dos sonhos, eles não existem do lado de fora. Vez por outra, entretanto, defrontamo-nos com um rosto – ou apenas uma voz, um olhar, um gesto com a mão... – que, sem razões, ilumina um dos quadros que estava no escuro. Somos então possuídos pela certeza de que esse rosto que os olhos veem é o mesmo que está no quadro que mora nas sombras da alma. O corpo estremece. A paixão está nascendo.

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

Como um furacão


A cidade estava sombria, mas viva.
Dentro do carro, o silêncio.
Não restava nada além da volta para casa.
Mais cedo, veio a cerveja, compartilhada com certeza.
Sumido, Sininho, Maguire.
Schwartz e Starkey.
Todos ganharam uma graninha, inclusive o tal do Lepra, que tinha apostado em catorze minutos redondos. Quando começou a se vangloriar, os outros meninos disseram na lata que ele deveria era se preocupar em fazer um transplante de pele, isso, sim. Henry ficou com o resto do dinheiro. Tudo isso se deu sob um céu rosa-acinzentado. O melhor grafite da cidade.
Em determinado momento, Schwartz estava contando a eles aquela sacanagem dos cuspes na linha dos duzentos metros, quando a garota, de bobeira com Starkey no estacionamento, fez a pergunta.
O que aquele garoto tem? — Essa não era a questão em questão, no entanto, logo ficaria claro qual era. — Correndo daquele jeito. Brigando daquele jeito... — continuou ela, pensando um pouco e depois bufando. — Que brincadeira ridícula é essa de vocês? Seus imbecis!
Imbecis... — repetiu Starkey. — Valeu!
Ele a abraçou como se tivesse acabado de receber um elogio.
Ei, gatinha!
Henry.
Garota e gárgula se viraram para olhar, e Henry deu um sorrisinho contido.
Não é uma brincadeira, é treino!
Ela pôs a mão no quadril, e já dá para imaginar o que a garota com a alcinha de renda caída perguntou depois. Henry fez o que pôde para satisfazer a curiosidade dela.
Certo, Clay, ajuda a gente a entender. Você treina tanto pra quê?
Só que Clay não estava prestando atenção ao ombro da garota. Estava concentrado no arranhão na bochecha que não parava de latejar, cortesia do bigode de Starkey. Com a mão boa, mexeu no bolso, resoluto, então se agachou.
É importante mencionar que o propósito dos treinos de nosso irmão era um mistério igualmente incompreensível para ele também. Clay só sabia que estava se preparando e esperando pelo dia em que compreenderia — e o dia, por acaso, era aquele. A resposta estava à espera, em casa, na cozinha.

***

Rua Carbine e travessa Empire, e então um trecho da Poseidon.
Clay sempre gostou daquele caminho para casa.
Gostava das mariposas no alto, amontoadas nos postes de luz. Ele se perguntava se a noite as deixava agitadas ou calmas; em todo caso, conferia propósito a elas. As mariposas sabiam o que fazer.
Logo chegaram à rua Archer.
Henry: dirigindo com uma só mão, sorrindo.
Rory: pés apoiados no painel.
Tommy: meio adormecido por cima da cachorra ofegante.
Clay: sem saber que chegava a hora.
Por fim, Rory não aguentou mais... a calmaria.
Porra, Tommy, essa cachorra precisa mesmo respirar tão alto?
Três deles deram uma risada curta e seca.
Clay olhava pela janela.
Henry podia dar a impressão de ser um doido ao volante, jogando o carro na calçada de qualquer jeito, mas não, ele não era assim.
Ligou a seta em frente à casa da sra. Chilman, a vizinha.
Fez uma curva suave na entrada da nossa garagem — tão suave quanto aquele carro permitia.
Faróis desligados.
Portas abertas.
A única coisa que traiu a paz absoluta foi fechá-las, quatro tiros disparados na direção da casa.
Juntos, atravessaram o gramado.
O que tem pra comer? Algum tonto aqui sabe?
Sobras de ontem.
Imaginei.
Os pés passaram pela varanda.

***

Lá vêm eles — falei. — Melhor você se preparar pra dar o fora daqui.
Entendi.
Você não entendeu nada.
Naquele momento, eu tentava compreender por que tinha deixado o homem ficar. Poucos minutos antes, quando ele me contou a razão de ter dado as caras, minha voz ricocheteou na louça e voou até a garganta do Assassino:
Você quer o quê?!?
Talvez fosse a crença de que a história já estivesse em curso; aconteceria de qualquer jeito e, se fosse aquele o momento, paciência. Além disso, apesar do estado lastimável do Assassino, eu sentia algo mais ali. Havia um quê de resolução, e, claro, expulsá-lo teria sido um prazer e tanto — ah, agarrá-lo pelo braço! Erguê-lo. Enxotá-lo porta afora. Jesus, teria sido lindo pra cacete! Mas nos deixaria vulneráveis. O Assassino poderia voltar a agir quando eu não estivesse por perto.
Não. Melhor assim.
A melhor maneira de controlar a situação seria nos juntarmos, nós cinco, numa demonstração de força.
Não, espera aí.
Nós quatro, e um traidor.

***

Daquela vez, foi instantâneo.
Henry e Rory não tinham farejado o perigo antes, mas, ali dentro da casa na rua Archer, ele era palpável. Havia cheiro de discussão no ar, e de bituca de cigarro.
Shhh — fez Henry, esticando o braço para trás. — Cuidado.
Eles seguiram pelo corredor.
Matthew?
Aqui.
Absorta e profunda, minha voz confirmou tudo.
Por alguns instantes, os quatro se entreolharam, em alerta, confusos, pesquisando em um arquivo interno algum registro do próximo passo.
Henry de novo:
Tá tudo bem com você, Matthew?
Tudo tranquilo! Vem cá!
Eles deram de ombros, conformados.
Não havia mais razão para não entrarem, então, um a um, dirigiram-se à cozinha, onde a luz parecia um encontro entre mar e rio, o amarelo se transformando em branco.
Eu estava diante da pia, de braços cruzados. Atrás de mim estava a louça, limpa e reluzente, como uma peça rara e exótica de museu.
esquerda dos meus irmãos, à mesa, estava ele.

***

Céus, dá para ouvir daí?
O coração deles?
A cozinha virou um pequeno continente à parte, os quatro garotos se movimentando em uma terra de ninguém, em uma espécie de migração em grupo. Quando chegaram à pia, ficamos aglomerados, Aurora entre nós. É curioso como funcionam os garotos; não nos incomodamos com contato físico — ombros, cotovelos, articulações, braços —, e todos encaramos nosso agressor, que se encontrava sentado, sozinho, à mesa. Uma pilha de nervos da cabeça aos pés.
O que pensar numa hora dessas?
Cinco garotos e pensamentos embaralhados, e Aurora com os caninos à mostra.
Sim, a cachorra instintivamente o desprezava também, e foi ela quem quebrou o silêncio: rosnou e se preparou para avançar no homem.
Calmo e contundente, estendi a mão.
Aurora.
Ela parou.
O Assassino logo abriu a boca.
Nada saiu.
A luz estava branca feito aspirina.

***

A cozinha então começou a se abrir, ou pelo menos se abriu para Clay. O restante da casa ruiu, e o quintal cedeu, sucumbiu ao nada. A cidade e o subúrbio e todos os campos abandonados foram destroçados e assolados em uma onda apocalíptica, negra. Para Clay só havia aquele lugar, a cozinha, que num fim de tarde passara de zona climática a continente, e agora isto:
Um mundo de mesa-e-torradeira.
De irmãos e suor à beira da pia.
A atmosfera ainda estava opressiva, quente e granulada, como o ar antes de um furacão.
O Assassino parecia estar com a cabeça longe, como se considerasse todos esses elementos, mas logo a içou de volta. Agora, pensou ele. Preciso agir agora. Então agiu, um esforço colossal de sua parte. Levantou-se, e havia algo de aterrorizante em sua tristeza. Ele havia imaginado aquele momento inúmeras vezes, mas chegou ali oco, esvaziado. Uma casca de tudo que era. Poderia muito bem ter surgido do armário ou de debaixo da cama:
Um monstro manso e confuso.
Um pesadelo, de repente mais vívido do que nunca.

***

Mas então — de repente —, era o bastante.
Fez-se uma declaração silenciosa, e os anos de sofrimento equilibrado não seriam tolerados nem mais um segundo; a corrente rachou e por fim se quebrou. A cozinha já tinha visto de tudo aquele dia, e então todo aquele movimento cessou e se resumiu a cinco corpos o encarando. Cinco garotos estavam unidos, lado a lado, mas um deles estava sozinho, exposto — pois já não tocava irmão algum —, apreciando e detestando a situação. Ele a abraçou, lamentou por ela. Só lhe restava dar aquele passo em direção ao único buraco negro da cozinha:
Enfiou a mão no bolso mais uma vez e, quando a tirou, segurava pecinhas. O garoto as exibiu — mornas e vermelhas e plásticas —, as partes de um pregador de roupa despedaçado.
Depois disso, o que restava?
Clay o instigou, a voz brotando no silêncio, emergindo da escuridão rumo à luz:
Oi, pai.

Markus Zusak, in O construtor de pontes