quinta-feira, 31 de agosto de 2023
Pressa & contemplação
Li
há tempos que num desses exóticos países do Oriente... O adjetivo
“exótico” explica que a coisa se passou em fins do século
passado. Pois aconteceu que no referido país um engenheiro inglês
queria convencer o respectivo xá, ou qualquer título que tivesse,
que, em nome do progresso, era urgente a construção de uma estrada
de ferro. E findou assim seu arrazoado:
A
estrada de ferro fará com que, em vez de trinta dias a lombo de
camelo, a viagem da capital à fronteira seja apenas de um dia.
— Mas
— objetou o soberano — o que é que vamos fazer dos 29 dias que
sobram?
É
o único exemplo que conheço da propalada sabedoria oriental. O que
tem feito o Oriente, de Pedro, o Grande, a Mao Tse-tung, é macaquear
o Ocidente, na indumentária, nos costumes, nos processos políticos,
contribuindo assim, como colaboracionistas, para o imperialismo
ocidental.
Mário Quintana, in Caderno H
Para quem ama
Para quem ama a reputação, o seu próprio bem é a atividade de outro homem. Para quem ama o prazer, são as suas próprias sensações. Para quem é inteligente, os seus próprios atos.
Marco Aurélio, in Meditações
Capítulo 25 | Na Tijuca
Ui!
lá me ia a pena a escorregar para o enfático. Sejamos simples, como
era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras semanas
depois da morte de minha mãe.
No
sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda,
alguns livros, roupa, charutos, um moleque, – o Prudêncio do
capitulo 11, – e fui meter-me numa velha casa de nossa propriedade.
Meu pai forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não
podia nem queria obedecer-lhe.
Sabina
desejava que eu fosse morar com ela algum tempo – duas semanas, ao
menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força. Era um
bom rapaz este Cotrim; passara de estróina a circunspecto. Agora
comerciava em gêneros de estiva, labutava de manhã até à noite,
com ardor, com perseverança. De noite, sentado à janela, a
encaracolar as suíças, não pensava em outra coisa. Amava a mulher
e um filho, que então tinha, e que lhe morreu alguns anos depois.
Diziam que era avaro.
Renunciei
tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou
a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e
mórbida, de um cheiro inebriante e sutil. - “Que bom que é estar
triste e não dizer coisa nenhuma!” – Quando esta palavra de
Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco,
um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um
tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos, e o espírito
ainda mais cabisbaixo do que a figura, - ou jururu, como dizemos das
galinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma
sensação única, uma coisa a que poderia chamar volúpia do
aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão,
leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes
concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e
daquele tempo.
Às
vezes caçava, outras dormia, outras lia, - lia muito, – outras
enfim não fazia nada; deixava-me atoar de ideia em ideia, de
imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta. E
as horas iam pingando uma a uma, o sol caía, as sombras da noite
velavam a montanha e a cidade.
Ninguém
me visitava; recomendei expressamente que me deixassem só. Um dia,
dois dias, três dias, uma semana inteira passada assim, sem dizer
palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca fora e restituir-me
ao bulício. Com efeito, ao cabo de sete dias, estava farto da
solidão; a dor aplacara; o espírito já se não contentava com o
uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do céu.
Reagia
a mocidade, era preciso viver. Meti no baú o problema da vida e da
morte, os hipocondríacos do poeta, as camisas, as meditações, as
gravatas, e ia fechá-lo, quando o moleque Prudêncio me disse que
uma pessoa do meu conhecimento se mudara na véspera para uma casa
roxa, situada a duzentos passos da nossa.
– Quem?
– Nhonhô
talvez não se lembre mais de Dona Eusébia...
– Lembra-me...
E ela?
– Ela
e a filha. Vieram ontem de manhã.
Ocorreu-me
logo o episódio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os
acontecimentos tinham-me dado razão. Na verdade, fora impossível
evitar as relações Intimas do Vilaça com a irmã do sargento-mor;
antes mesmo do meu embarque, já se boquejava misteriosamente no
nascimento de uma menina. Meu tio João mandou-me dizer depois que o
Vilaça, ao morrer, deixara um bom legado a Dona Eusébia, coisa que
deu muito que falar em todo o bairro. O próprio tio João, guloso de
escândalos, não tratou de outro assunto na carta, aliás de muitas
folhas. Tinham-me dado razão os acontecimentos. Ainda porém que ma
não dessem, 1814 lá ia longe, e, com ele, a travessura, e o Vilaça,
e o beijo da moita; finalmente, nenhumas relações estreitas
existiam entre mim e ela. Fiz comigo essa reflexão e acabei de
fechar o baú.
– Nhonhô
não vai visitar sinhá Dona Eusébia? perguntou-me o Prudêncio. Foi
ela quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.
Lembrei-me
que a vira, entre outras senhoras, por ocasião da morte e do
enterro; ignorava porém que ela houvesse prestado a minha mãe esse
derradeiro obséquio. A ponderação do moleque era razoável; eu
devia-lhe uma visita; determinei fazê-la imediatamente, e descer.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
quarta-feira, 30 de agosto de 2023
O antropófago
Oswald
de Andrade construiu toda uma filosofia da vida, e uma teoria
sociológica, para justificar o exercício de sua tendência ao
sarcasmo. Apelidou isso de antropofagia, e viu no homem um ser
devorador por excelência, tanto mais justificado, histórica e
psicologicamente, quanto mais deglute o seu semelhante. No dia em que
o ser humano deixa de comer o próximo, a civilização entra em
decadência, e se instalam, com o patriarcado, o messianismo e os
valores burgueses em geral. Oswald era contra a escravidão, porque
esta importa em explorar o adversário, que deve ser comido, e não
posto a ferros. Os devorados não contam, mas os devoradores
implantarão a cultura da liberdade, de que já surgem os primeiros
indícios.
No
subsolo dessa doutrina, havia apenas o gosto de Oswald pela sátira,
que é a manducação simbólica. De resto, gosto bem curioso, pois
coincidia com a capacidade de admiração, que o escritor aplicava a
esse ou àquele confrade, mas alternadamente, em intervalos de
impulso destrutivo, de uma incoerência por assim dizer cronometrada,
que era uma das atrações de seu espírito.
Viajando-se
mais longe ainda em sua personalidade, o ser corrosivo cede lugar,
imprevistamente… a quem? a um menino sentimental, que queria ser
mimado apesar de suas inconsequências, e que adorava o gesto de
carinho. Tive ocasião de surpreendê-lo (ou de surpreender-me) numa
noite de abandono e confidência, em que pude verificar como
geralmente a sua agressividade era forma de defesa, compensação
pelo agravo recebido, ou que supunha tal. A grande queixa de Oswald
com relação a seus companheiros de aventura literária era que o
omitiam sempre. E porque o omitissem, passava à ofensiva mais rude.
Às vezes, atacava antes da omissão, como se a previsse. Pelo menos
se persuadia de que não era injusto. Dessem-lhe carinho, e o homem
cheio de alfinetes e ácidos se aveludava. E quando encontrou
carinho, ou foi bastante lúcido para identificá-lo depois de outros
que havia encontrado e não soubera decifrar, instalou-se numa
felicidade burguesa e monogâmica, que negava toda a laboriosa
construção antropofágica, levantada em quase trinta anos de
orgulho intelectual, isto é, de autojustificação.
Uma
linha de coerência se esboça através dos zigue-zagues de sua vida.
Ora espiritualista ora marxista, criando um dia o Pau-Brasil, e logo
buscando universalizá-lo em antropofagia, primitivo e civilizado a
um tempo, como observou Manuel Bandeira, solapando o edifício
burguês sem renunciar à habitação em seus andares mais altos,
Oswald manteve sempre intata sua personalidade, de sorte a provocar,
ainda em seus últimos dias, a irritação ou a mágoa que inspirara
quando fauve modernista de 1922. Os rapazes que vinham para a
literatura com a preocupação excessiva de purezas ou aristocracias
verbais (no fundo, variantes tardias de parnasianismo) pretendiam
ignorá-lo ou negar-lhe a força, mas uma fisgada mais hábil desse
sexagenário (que se dizia sex-appealgenário) lhes doía na
pele, e talvez mais fundo; e como é preferível hoje em dia viver
com todo mundo, principalmente com os marimbondos, acabavam se
aproximando dele, e procurando conquistá-lo.
O
marimbondo enternecia-se (pelo menos provisoriamente), e nada mais
divertido que as listas sucessivas de talentos jovens, que Oswald,
vingador contumaz, costumava estabelecer para indicar onde se
depositavam suas esperanças de uma cultura antropofágica
brasileira.
Não
houve, no modernismo, personagem mais viva do que ele. Manteve até o
fim, quando outros “heróis” do movimento se haviam acomodado ou
haviam evoluído, uma atitude tipicamente modernista, não isenta de
sabor, sobretudo notável porque implicava o culto à indisciplina e
ao desrespeito, que infelizmente não caracteriza os moços de hoje.
Tinha algo de Jarry, inventor do Ubu Roi e do Surmâle.
E seu Serafim Ponte Grande é uma dessas criações que a
gente não esquece, pela violência rabelaisiana de sátira, a
destruir um mundo de atitudes e ideias que merece realmente ser
espandongado.
Vamos
sentir falta de Oswald, e também saudade.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
1515 – Amberes | Utopia
As
aventuras do Novo Mundo fazem ferver as tabernas deste porto
flamengo. Uma noite de verão, frente ao cais, Thomas Morus conhece
ou inventa Rafael Hithloday, marinheiro das naves de Américo
Vespúcio, que diz que descobriu a ilha da Utopia em alguma costa da
América.
Conta
o navegante que em Utopia não existe o dinheiro nem a propriedade
privada. Ali se fomenta o desprezo pelo ouro e pelo consumo supérfluo
e ninguém se veste com ostentação. Cada um entrega aos armazéns
públicos o fruto de seu trabalho e livremente apanha o que
necessita. Se planeja a economia. Não existe egoísmo, que é filho
do temor, nem se conhece a fome. O povo escolhe o príncipe e pelo
povo ele pode ser deposto; também elege os sacerdotes. Os habitantes
de Utopia abominam as guerras e suas honras, embora defendam
ferozmente suas fronteiras. Professam uma religião que não ofende a
razão e que rejeita as mortificações inúteis e as conversões
forçadas. As leis permitem o divórcio mas castigam severamente as
traições conjugais, e obrigam a trabalhar seis horas por dia.
Divide-se o trabalho e o descanso; divide-se a mesa. A comunidade se
encarrega das crianças enquanto seus pais estão ocupados. Os
doentes recebem tratamento privilegiado; a eutanásia evita as longas
agonias doloridas. Os jardins e as hortas ocupam o maior espaço e em
todas as partes soa a música.
Eduardo Galeano, in Os Nascimentos
Cartas na Rua | DOIS
7
Então
comecei a chegar em casa infeliz.
— Qual
é o problema, Hank?
Eu
tinha de beber toda noite.
— É
o gerente, o Freddy. Ele começou a assobiar uma música. Ele a
assobia quando eu chego de manhã e não para nunca, e continua a
assobiá-la até a hora de eu ir para casa à noite. Há duas semanas
está nessa!
— Qual
é o nome da música?
— Around
the World in Eighty Days. Nunca gostei dessa música.
— Bem,
arranje outro emprego.
— Farei
isso.
— Mas
continue trabalhando lá até arranjar outro. Precisamos provar para
eles que...
— Tudo
bem. Tudo bem!
8
Certa
tarde, encontrei um velho bêbado na rua. Eu o conhecia dos tempos de
Betty quando fazíamos as rondas dos bares. Ele me disse que agora
era um atendente nos Correios e que não havia nada como aquele
emprego.
Era
uma das mentiras mais gordas do século. Tenho procurado esse cara há
anos, mas temo que outra pessoa o tenha alcançado primeiro.
De
modo que lá estava eu fazendo mais uma vez o exame para o serviço
civil. A diferença é que desta vez, no formulário, marquei
“atendente” e não “carteiro”.
Ao
receber a notificação de que deveria me apresentar para as
cerimônias de admissão, Freddy havia parado de assobiar Around the
World in Eighty Days, mas eu estava ansioso para pegar aquele
empreguinho frouxo que o “Tio Sam” me oferecia.
Eu
disse a Freddy:
— Tenho
um pequeno negócio para resolver e pode ser que leve uma hora, uma
hora e meia no almoço.
— Beleza,
Hank.
Mal
sabia eu como seria longo aquele almoço.
9
Formávamos
um bando de gente por lá. Uns 150 ou 200. Havia uma porção de
papéis tediosos a preencher. Depois disso, ficamos todos de pé de
frente para a bandeira. O sujeito encarregado do juramento era o
mesmo da vez anterior.
Após
o juramento, o cara nos disse:
— Muito
bem, agora vocês têm um bom emprego. Não se metam em confusão e
terão segurança para o resto de suas vidas.
Segurança?
Isso é algo que você pode conseguir na cadeia. Três metros
quadrados, nada de aluguel a pagar, nenhum bem de consumo, imposto de
renda, criança para sustentar. Nenhuma taxa de licenciamento de
carro. Nenhuma multa. Nenhuma detenção por dirigir bêbado. Nenhuma
perda nas corridas de cavalo. Assistência médica gratuita.
Camaradagem com aquelas pessoas com os mesmos interesses. Igreja.
Enterro grátis.
Aproximadamente
doze anos mais tarde, desses 150 ou 200, restariam apenas dois de
nós. Assim como alguns caras não podem ser motoristas de táxi,
cafetões ou traficantes, a maioria dos caras, e das garotas também,
não podia ser atendente dos Correios. E eu não os culpo. Com o
passar dos anos, vi como entravam continuamente em esquadrões de 150
ou 200 e só dois, três ou quatro restavam de cada grupo — apenas
o suficiente para substituir aqueles que se aposentavam.
10
O
guia nos levou para conhecer o prédio todo. Havia tantos de nós que
tiveram que nos separar em grupos. Pegávamos o elevador por turmas.
Nos mostraram a cafeteria dos funcionários, o porão, todas aquelas
cretinices.
Deus
Todo-Poderoso, pensei, queria que esse cara se apressasse só um
pouco. Meu horário de almoço já acabou há duas horas.
Então
o guia entregou um cartão-ponto a cada um de nós. E nos mostrou
onde ficava o relógio.
— Agora
prestem atenção. É assim que vocês devem bater o ponto.
Ele
nos mostrou como fazer. Depois disse:
— Vamos,
é a vez de vocês.
Doze
horas e meia mais tarde nós o bateríamos de novo. Foi uma senhora
cerimônia de iniciação.
Charles Bukowski, in Cartas na Rua
Adiamento
♦ Não
há problema tão grande que não caiba no dia seguinte.
♦ Morrer,
por exemplo, é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois.
Millôr Fernandes, in Millôr definitivo: Uma antologia de a Bíblia do Caos
O que é arte? | Capítulo XIV
The Mother of God with the Infant Christ (c. 1880-1890), Viktor Vasnetsov
Eu
sei que a maioria das pessoas consideradas inteligentes, e que são
de fato inteligentes — capazes de compreender os mais difíceis
raciocínios científicos, matemáticos e filosóficos —, muito
raramente é capaz de entender uma verdade simples e óbvia, se ela
for de natureza tal que exija que essas pessoas admitam que um
julgamento que formaram sobre alguma coisa, às vezes com grande
esforço — um julgamento do qual têm orgulho, que ensinaram a
outros e com base no qual organizaram toda a sua vida —, possa
estar errado. Portanto, tenho poucas esperanças de que os argumentos
que estou apresentando sobre a perversão da arte e do gosto em nossa
sociedade venham a ser aceitos ou mesmo seriamente discutidos.
Contudo, vou apresentá-los, já que esse estudo me deu a convicção
de que quase tudo que é considerado arte, a boa e total arte de
nossa sociedade, não é verdadeira nem boa, nem é o total dela e
nem mesmo é arte, em absoluto, mas somente uma falsificação. Essa
afirmação, eu sei, é muito estranha e parece paradoxal. Porém, se
reconhecemos uma vez como verdadeiro que a arte é uma atividade
humana por meio da qual algumas pessoas transmitem seus sentimentos a
outras, e não é a servidão da beleza, a manifestação de uma
ideia, e assim por diante, tal declaração tem que ser aceita. Se
for verdade que a arte é uma atividade por meio da qual um homem,
tendo vivenciado um sentimento, transmite-o conscientemente a outros,
devemos inevitavelmente admitir que de tudo aquilo que, entre nós, é
chamado de arte das classes superiores — todos esses romances,
contos, dramas, comédias, pinturas, esculturas, sinfonias, óperas,
operetas, balés etc., que passam por obras de arte — haverá no
máximo um em 100 mil que tenha se originado de um sentimento
experimentado pelo seu autor; o restante são obras fabricadas,
falsificações artísticas nas quais o empréstimo, a imitação, o
efeito e o desvio substituem o contágio pelo sentimento. Pode-se
provar que a proporção entre verdadeiras obras de arte e essas
falsificações é de um para centenas de milhares, ou até menor,
com o seguinte cálculo. Eu li em algum lugar que existem 30 mil
pintores-artistas só em Paris. Deve haver o mesmo número na
Inglaterra, o mesmo na Alemanha, o mesmo na Rússia, na Itália e em
alguns países menores combinados. De forma que deve haver, ao todo,
cerca de 120 mil pintores na Europa e a mesma quantidade de músicos
e a mesma quantidade de escritores-artistas. Se essas 300 mil pessoas
produzirem pelo menos três obras de arte por ano (e muitas produzem
dez ou mais), a cada ano será produzido um milhão de obras de arte.
Quantas houve nos últimos dez anos, e quantas em todo o período
desde que a arte das classes superiores se separou da arte popular?
Milhões, obviamente. E, no entanto, quem, entre os maiores
conhecedores de arte, recebeu de fato uma impressão de todos esses
supostos trabalhos artísticos, ou pelo menos veio a saber de sua
existência? Sem falar no povo, que não tem sequer ideia dessas
obras, a classe alta não deve conhecer nem mesmo um milésimo de
todas elas e não se lembra daquelas que conhece. Todos esses objetos
aparecem à guisa de arte, não produzem nenhuma impressão sobre
ninguém, exceto às vezes uma impressão de divertimento para uma
turba ociosa de ricos, e desaparecem sem traço. Replica-se a isso,
normalmente, que se não fosse esse gigantesco número de tentativas
malsucedidas, não haveria verdadeiras obras de arte. Mas esse
raciocínio é o mesmo que se um padeiro, em resposta à reclamação
de que seu pão não estava bom, dissesse que, se não fosse por uma
centena de pães ruins, não haveria nenhum bem assado. É verdade
que onde há ouro há também muita areia; mas isso não pode de modo
algum servir de pretexto para dizer uma porção de coisas tolas com
o propósito de dizer alguma coisa inteligente.
Estamos
cercados de obras que são consideradas artísticas. Milhares de
poemas líricos, milhares de poemas, de romances, de peças teatrais,
de quadros, de composições musicais aparecem um após outro. Todos
os poemas descrevem o amor, ou a natureza, ou o estado de espírito
do autor, e todos observam métrica e rima. Todos os dramas e
comédias são esplendidamente projetados e interpretados por atores
excelentemente treinados. Todos os romances se dividem em capítulos,
que descrevem o amor e contêm cenas comoventes, expondo os detalhes
verdadeiros da vida. Todas as sinfonias contêm seu allegro,
andante, scherzo e finale, e todas consistem em modulações e
acordes e são tocadas por músicos treinados com muito refinamento.
Todos os quadros, em suas molduras douradas, retratam vividamente
pessoas e todos os acessórios. Mas entre essas obras de variadas
espécies de arte existe uma em 100 mil que não é simplesmente um
pouco melhor do que as outras, mas difere de todo o resto tal como um
diamante difere de vidro. Essa única não pode ser comprada por
nenhum valor, de tão preciosa que é; as outras não só não têm
valor, como são até negativas, porque enganam e pervertem o gosto.
E o pior é que, para um homem com senso de compreensão da arte
pervertido ou atrofiado, elas são exatamente iguais.
A
dificuldade de reconhecer trabalhos artísticos em nossa sociedade é
aumentada também pelo fato de que, nas falsas obras, o valor
superficial não só não é pior, como frequentemente é melhor do
que nas obras verdadeiras. Muitas vezes a falsificação nos atinge
mais do que a obra verdadeira e seu conteúdo é mais interessante.
Como discriminar? Como encontrar essa única obra, que não difere na
superfície de modo algum das centenas de milhares feitas
deliberadamente para parecer com a verdadeira à perfeição?
Para
um homem de gosto não pervertido — um trabalhador, não um morador
da cidade — isso é tão fácil quanto para um animal de faro não
degradado encontrar, entre milhares de pistas na floresta ou no
campo, aquela de que ele precisa. Um animal encontrará sem erro o
que ele necessita; assim também um homem, se suas qualidades
naturais não estiverem pervertidas, escolherá sem erro, no meio de
milhares de objetos, a verdadeira obra de arte de que precisa, que o
contagia com o sentimento experimentado pelo artista. Mas isso não é
assim para aqueles cujo gosto foi arruinado pela educação e pela
própria vida. O sentido de percepção artística está atrofiado
nessas pessoas, e ao avaliar trabalhos artísticos elas precisam ser
guiadas pelo raciocínio e pelo exame, e isso às vezes as confunde,
de forma que grande parte de nossa sociedade é totalmente incapaz de
distinguir uma obra de arte da mais grosseira falsificação. Elas
gastam longas horas em concertos e teatros, ouvindo as obras dos
novos compositores, e consideram seu dever ler os romances novos dos
famosos romancistas e ver os quadros que mostram ou algo
incompreensível ou sempre as mesmas coisas de novo — coisas que
veem muito melhor na realidade; e, acima de tudo, consideram uma
obrigação admirar tudo isso, fazendo de conta que são todas obras
de arte, e passam pelas verdadeiras obras de arte não somente sem
lhes prestar atenção, mas até mesmo com desprezo, simplesmente
porque elas não são contadas como arte em seu círculo.
Um
dia desses eu voltava para casa, de uma caminhada, deprimido. Quando
me aproximava de casa, ouvi o canto de um grande círculo de mulheres
camponesas. Elas estavam saudando e homenageando minha filha, que se
casara e tinha vindo para uma visita. Essa cantoria, com brados e
batidas sobre os alfanjes, expressava um sentimento tão explícito
de regozijo, alegria e energia que sem perceber fiquei contagiado por
ele e me aproximei de casa mais alegre, entrando bem animado e
contente. Descobri que todos da casa, que tinham ouvido esse canto,
também estavam animados. Naquela mesma noite, um músico excelente,
famoso por sua interpretação de peças clássicas, especialmente de
Beethoven, veio nos visitar e tocou a sonata “Opus 101”, de
Beethoven.
Acho
necessário observar, para aqueles que queiram justificar minha
opinião sobre essa sonata dizendo que nada entendo dela, que sou
muito suscetível à música e entendo tudo o que os outros entendem
nessa sonata, assim como em outras obras do último período de
Beethoven, e da mesma maneira que eles. Por muito tempo me preparei
para admirar essas improvisações sem forma que constituem as obras
do último período de Beethoven, mas no momento em que comecei a
tratar o assunto da arte com seriedade e comparei a impressão que
elas me deixam com a impressão musical agradável, clara e forte
produzida, por exemplo, pelas melodias de Bach (suas árias), Haydn,
Mozart, Chopin — que não são deturpadas por complicações e
adornos — ou as do próprio Beethoven em seu primeiro período e,
acima de tudo, com as impressões recebidas das canções folclóricas
italianas, norueguesas e russas, das czardas húngaras e
outras assim tão simples, claras e fortes, aquela certa animação
vaga e quase mórbida tirada das obras do último período de
Beethoven, e que eu invocava artificialmente em mim mesmo, foi
imediatamente destruída.
Quando
a apresentação terminou, todos os presentes, embora fosse óbvio
que estivessem todos entediados, elogiaram ansiosamente a obra
profunda de Beethoven como se fosse uma obrigação, não esquecendo
de mencionar que não haviam entendido esse período tardio antes,
mas agora viam que ele era o melhor. Porém, quando comparei a
impressão causada pelo canto das camponesas, que fora vivenciada por
todos os presentes, com a impressão daquela sonata, os amantes de
Beethoven apenas sorriram com desdém, considerando desnecessário
replicar a uma conversa tão estranha.
E,
no entanto, a canção das mulheres era arte verdadeira, que
transmitia um sentimento preciso e forte, enquanto a sonata 101 de
Beethoven era apenas uma tentativa malsucedida de arte, que não
continha nenhum sentimento definido e, portanto, não contagiava
ninguém com coisa alguma.
Para
o meu trabalho sobre a arte, passei este inverno lendo, com
diligência e grande esforço, os famosos romances e contos de Zola,
Bourget, Huysmans e Kipling, que são elogiados em toda a Europa. E,
nesse meio-tempo, deparei-me em uma revista infantil com uma história
de um escritor totalmente desconhecido sobre os preparativos de
Páscoa pela família de uma pobre viúva. O enredo é o seguinte: a
mãe, tendo obtido com dificuldade um pouco de farinha branca,
colocou-a sobre a mesa para ser sovada e foi em busca de fermento,
pedindo às crianças que não saíssem de casa e tomassem conta da
farinha. A mãe saiu e os filhos do vizinho vieram correndo até a
janela, gritando para as crianças da casa que saíssem para brincar.
As crianças, esquecendo a ordem da mãe, correm para fora e começam
a brincar. Ela volta para casa com o fermento e encontra uma galinha
em cima da mesa, atirando para o chão de terra o que ainda havia de
farinha, para que seus pintinhos a catassem.
Desesperada,
dá uma bronca nos filhos. As crianças choram. A mãe fica com pena
deles, mas já não há farinha branca, e então, para alegrar as
crianças, decide fazer um kulich de farinha de centeio
peneirada, glaçá-lo com clara de ovo e colocar ovos em torno. “Pão
de centeio eu adoro, sou franco; ele é o avô do pão branco”,
recita a mãe para os filhos, a fim de consolá-los por não terem um
kulich feito de farinha branca. E as crianças num instante
vão do desespero a um feliz enlevo; cada uma repete o provérbio e
espera o kulich com a maior alegria.
E
o que tem isso? A leitura dos romances e contos de Zola, Bourget,
Huysmans, Kipling e outros, com os assuntos mais provocantes, não me
tocou nem por um momento. Antes, eu me sentia irritado com os autores
o tempo inteiro, tal como você fica irritado com alguém que o
considera tão ingênuo que nem ao menos esconde o método pelo qual
quer apanhar você. Desde as primeiras linhas, vê a intenção por
trás do texto e todos os detalhes se tornam supérfluos — você
fica entediado. Acima de tudo, sabe que o autor nunca teve sentimento
algum, exceto o desejo de escrever um conto ou um romance. E,
portanto, não resulta disso nenhuma impressão artística. Porém,
eu não conseguia me desprender da história do autor desconhecido,
que falava das crianças e dos pintinhos, porque fiquei imediatamente
contagiado pelo sentimento que ele obviamente tinha vivenciado e
transmitido.
Na
Rússia, temos o pintor Vasnetsov. Ele pintou os ícones da catedral
de Kiev. Todos o louvam como fundador de algum tipo de arte cristã
de gênero sofisticado. Ele trabalhou nesses ícones durante décadas
e recebeu dezenas de milhares de rublos. Todos esses ícones são más
imitações de imitações de imitações e não contêm um traço de
sentimento. E o mesmo Vasnetsov desenhou uma ilustração para o
conto de Turguênev “A codorniz” (que fala sobre um pai que matou
uma codorniz na presença de seu filho e então se arrependeu disso),
retratando o menino dormindo, com o lábio superior saliente, e,
acima dele, como num sonho, a codorniz. E essa ilustração é uma
verdadeira obra de arte.
Na
academia inglesa, duas pinturas aparecem lado a lado. Uma é de J.C.
Delmas e retrata a tentação de santo Antônio. Ele está de
joelhos, rezando. Atrás dele está uma mulher nua e alguns animais.
Pode-se ver que o artista gostou muitíssimo da mulher nua, mas não
deu a menor atenção a Antônio, e que a tentação não só não o
amedronta (ao artista), como é, ao contrário, muito agradável a
ele. E, portanto, se existe arte nesse quadro, é muito ruim e falsa.
No mesmo catálogo há, ao lado desse, um pequeno quadro de
Langley,[99] mostrando um garoto mendigo que aparentemente foi
convidado a entrar por uma mulher que se compadece dele. O menino,
enfiando os pés nus pateticamente sob o banco, está comendo; a
mulher o está olhando, provavelmente perguntando-se se ele quer
mais; e uma menina de seus sete anos, com a cabeça apoiada na mão,
está observando com atenção e seriedade, sem tirar os olhos do
menino faminto, obviamente percebendo pela primeira vez o que é a
pobreza, o que é a desigualdade entre as pessoas, e, pela primeira
vez, fazendo-se a pergunta: por que ela tem tudo, enquanto esse
garoto está descalço e com fome? Ela sente ao mesmo tempo pena e
alegria. E ela ama o garoto e o bem... Sente-se que o artista amava
essa garota e o que ela amava. E esse quadro de um pintor que,
acredito, é pouco conhecido é uma bela e verdadeira obra de arte.
Lembro-me
de ter visto o desempenho de Rossi em Hamlet,[100] peça em que a
tragédia em si e o ator que faz o papel principal são considerados
pelos nossos críticos a última palavra em arte dramática. E no
entanto experimentei, durante todo o tempo da apresentação, tanto
pelo conteúdo da peça quanto pelo desempenho, aquele sofrimento
especial causado por falsos simulacros de obras artísticas. Li
também, recentemente, uma descrição do teatro de um povo selvagem,
os voguls. Uma das pessoas que estavam presentes descreve a
seguinte apresentação: um vogul alto e um baixo, ambos vestidos com
pele de rena, representam uma rena e seu filhote. Um terceiro
representa um caçador com um arco e calçados de andar na neve. Um
quarto imita o canto de um passarinho, avisando a rena do perigo. O
drama consiste na perseguição que o caçador faz à rena e ao
filhote, seguindo-lhes os rastros. Os animais correm para fora da
cena e voltam correndo. A apresentação se dá em uma pequena tenda
circular. O caçador chega cada vez mais perto de sua presa. O
filhote está exausto e se gruda à mãe, que para a fim de
descansar. O caçador os alcança e faz pontaria. Nesse momento, o
passarinho pia, avisando a rena do perigo; os animais fogem.
Novamente a perseguição, novamente o caçador se aproxima,
alcança-os e lança a sua flecha. A flecha atinge o filhote. Incapaz
de correr, o filhote se encosta na mãe, e esta lambe seu ferimento.
O
caçador coloca outra seta no arco. Os espectadores, segundo a
descrição do narrador, estão imóveis como pedras; podem-se ouvir
fundos suspiros e até mesmo choro. E eu sinto, somente por essa
descrição, que essa é uma verdadeira obra de arte.
O
que estou dizendo será tomado como um paradoxo louco, com o qual
alguém só pode se espantar, mas não posso deixar de dizer o que
penso: a saber, que as pessoas do nosso círculo, algumas das quais
escrevem versos, contos, romances, sinfonias, óperas e sonatas,
pintam vários tipos de quadro e fazem esculturas, enquanto outras
ouvem e olham essas coisas e outras, ainda, avaliam e criticam isso
tudo, discutem, denunciam, triunfam, erigem monumentos umas às
outras, e assim fizeram no curso de várias gerações; que todas
essas pessoas — artistas, público e críticos —, com
pouquíssimas exceções, nunca experimentaram — salvo na infância
e na juventude, antes que ouvissem qualquer explicação sobre arte —
aquele sentimento singelo, conhecido do homem mais simples e mesmo
das crianças, de ser contagiado pelos sentimentos de outrem, algo
que faz com que nos alegremos com a alegria do outro, soframos com
seu sofrimento e misturemos nossa alma à dele, e que constitui a
essência da arte; e que portanto essas pessoas não conseguem
distinguir a arte verdadeira das falsificações e sempre confundem o
que há de pior e mais falso com arte genuína, sem notar a genuína
porque as falsificações são sempre mais chamativas, enquanto a
arte verdadeira é modesta.
Leon Tolstói, in O que é arte?
terça-feira, 29 de agosto de 2023
Anch’io son pittore
fra
angélico
quando
pintava
uma
madona col bambino
se
ajoelhava e rezava
como
se fosse um menino
orava
diante da obra
como
se fosse pecado
pintar
aquela senhora
sem
estar ajoelhado
orava
como se a obra
fosse
de deus não do homem
podem
ficar com a realidade
esse
baixo-astral
em
que tudo entra pelo cano
eu
quero viver de verdade
eu
fico com o cinema americano
Paulo Leminski, in Toda Poesia
O que é, o que é? | Gonzaguinha, 1982
Motivos
para mágoa e revolta nunca faltaram para Gonzaguinha. Da infância e
adolescência sofridas, marcadas pelos conflitos com o pai (Luiz
Gonzaga), até começar sua carreira no período mais tenebroso da
ditadura militar, foram muitas as pedras no caminho. Mas, a partir do
fim dos anos 1970, depois de anos de guerra com a Censura e a
ditadura que lhe valeram o apelido de cantor-rancor, amadureceu, teve
filhos e reinventou-se como um eterno aprendiz, cantando que, apesar
de todas as dores, injustiças e horrores, a vida era bonita e podia
ser ainda melhor.
“A
vida da gente é um nada no mundo / É uma gota, é um tempo que nem
dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo /
É o sopro do criador numa atitude repleta de amor.”
Faixa
de abertura de seu 11o álbum solo, Caminhos do coração,
lançado em 1982, “O que é, o que é ?” sintetiza a visão de
mundo que passou a pautar o artista maduro. Na época, o Brasil vivia
os estertores da ditadura militar e o país avançava na abertura
política que levaria à eleição indireta de Tancredo Neves em
1985. Cada um seria livre para compor o que quisesse.
Por
seu estilo festivo, sua batida empolgante, sua linguagem popular, a
música foi até classificada como um paradoxal “samba-exaltação
de protesto”, por traduzir o sentimento de brasileiros que
apostavam na esperança e nas mudanças.
Tendo
seu compositor disputado pelas grandes intérpretes da MPB depois da
gravação original, “O que é, o que é?” virou clássico, com
sua mensagem de fé e esperança atravessando o tempo nas vozes de
Simone, Maria Bethânia, Beth Carvalho e Zé Ramalho.
De
bem com a vida, Gonzaguinha, infelizmente, teve fim precoce: em 1991,
aos 45 anos, morreu vítima de um acidente no carro que dirigia numa
estrada do Paraná.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
É preciso parar
Estou
com saudade de mim. Ando pouco recolhida, atendo demais ao telefone,
escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu?
Preciso
fazer um retiro espiritual e encontrar-me enfim – enfim, mas que
medo – de mim mesma.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Seara Vermelha | 5
Talvez
em toda a fazenda fossem Zefa e a velha Jucundina as únicas pessoas
que naquele crepúsculo não pensavam na festa da noite, em casa de
Ataliba. O próprio Gregório, que vinha curvado sob o peso do saco
de milho, não podia deixar de se recordar que era o dia da festa,
pois tinha visto quando os noivos voltavam, junto com Ataliba, Joana
e mais alguns, do povoado onde haviam ido se casar. Gregório não
desejava ser visto e se escondeu na capoeira para deixá-los passar.
Cosme, que era o noivo, cego de um olho, levava os sapatos na mão,
naturalmente arrancara-os na estrada. Dava o braco a Teresa e riam os
dois, felizes, enquanto atrás ia um converseiro animado sobre a
festa:
– Bastião
é home de palavra. Diz que vinha, vem mesmo... – era Ataliba que
afirmava para um dos que iam com ele. Gregório conhecia Bastião, o
tocador de harmônica mais afamado daquelas cinco léguas. Não era a
toda festa que ele vinha. Fazia-se de rogado, dava desculpas –
doença, trabalho, cansaço – mas festa sem ele perdia metade da
animação. Enquanto o grupo passava, Gregório desejou que Bastião
estivesse presente. Alias em festa em casa de Ataliba ele ia sempre e
tocava a noite toda. Gregório desejava que Bastião estivesse
presente não porque pretendesse ir a festa, não iria. Mas gostava
de Ataliba e sabia que o velho festeiro sofreria muito com a ausência
do tocador. Afinal era rara uma festa por aquelas bandas e quando
havia uma não se comentava outra coisa muitos dias antes e muitos
dias depois.
O
bando ia longe, Gregório voltou a fazer o seu caminho, o saco as
costas, furtando-se aos olhares, evitando passar pela estrada real. E
ia pensando na festa, em Ataliba, em Cosme, em Teresa. Bonita
cabrocha. Ele mesmo, Gregório, andara de olho nela quando chegara
por ali e ela era ainda meninazinha, apenas botando os peitos mas já
de sorriso fácil e interesseiro. Porem Gregório tinha outros
projetos, não era tempo ainda de trazer mulher para casa. Era um
caboclo forte e decidido, de rosto sombrio onde as grandes
sobrancelhas fechavam-se sobre olhos pequenos. Casar só quando
tivesse terra sua, com escritura passada no cartório, e era para
consegui-la que trabalhava dia e noite, sem descanso. Enquanto
Militão, que era seu socio no plantio da roca, gastava o saldo com
as mulheres do arraial ou comprando presentes para a noiva, em
cachaça ou em festas, Gregório guardava seu dinheiro e naqueles
cinco anos já havia juntado algum. Comprar um pedaço de terra era
tudo o que desejava.
Gregório
deu um jeito nas costas, soltou o saco de milho no terreiro em frente
a casa de barro batido. Frangas se agitaram inquietas na goiabeira
onde se haviam empoleirado. Gregório espiou pela porta aberta da
casa, Militão não chegara ainda. Voltou-se então para a estrada e
assoviou. A resposta veio entre o mandiocal e ele distinguiu o vulto
de Militão que vinha andando com a foice ao ombro. Sentou-se em cima
do saco de milho e esperou. Havia no seu rosto fechado um quase
sorriso como alguém que houvesse regressado triunfante de uma luta
difícil.
Militão
era um mulato alto e sorridente, andava descansado. Colocou a foice
em pé, arrimada contra a parede da casa, acocorou-se ao lado de
Gregório e seu primeiro comentário foi sobre a festa:
– Ta
u'a animação que nunca vi igual...
Gregório
não respondeu e só então Militão reparou no saco de milho.
Admirou-se:
– Arranjou,
hein?
O
sorriso abriu-se de todo no rosto de Gregório. Ainda assim era um
sorriso pequeno que logo desapareceu:
– Não
disse... Oito mil-réis mais barato... Valeu a pena...
– Ninguém
viu?
– Me
enfiei pela capoeira, até cortei os pés nos espinhos. Não
encontrei alma vivente... E Leocádio não vai piar que ele não é
besta...
Militão
riu, boca sem dentes, escancarada:
– Oito
mil-réis... Valeu a pena... Só que se Artur desconfiar e capaz
até...
– Capaz
de que?
– De
botar a gente pra fora...
As
sombras do crepúsculo caiam sobre os dois homens, Gregório
levantou-se de cima do saco de milho, aproximou-se de Militão.
Frangas pularam da goiabeira, vieram beliscar o saco, Militão
tangeu-as com um pé:
– Sai,
dianho...
Gregório
olhou o mandiocal que se estendia além do terreiro, em derredor da
casa:
– Vou
te dizer uma coisa, Militão – agora nem um resto de sorriso em seu
rosto novamente fechado e sombrio. -- Nem a polícia me bota pra fora
daqui...
Militão
suspendeu os olhos, fitou o companheiro, viu a decisão estampada no
seu rosto. Estendeu os bracos como se aquela decisão pouco
importasse ante o fato indiscutível:
– E
só ele querer... A terra e mesmo do doutor Aureliano...
Gregório
olhava o mandiocal vicejante, sobre o qual boiavam as sombras
crepusculares:
– Mas
a mandioca e de nos dois... Quem derrubou a mata e rocou a capoeira?
Isso aqui tava mesmo abandonado.
Tangeu
as galinhas que teimavam junto ao saco de milho.
– E
em junho vai ta um milharal de dá gosto...
Bateu
com a mão sobre o saco de milho novamente, um sorriso cortou seu
rosto fechado:
– Se
Artur desconfiasse ficava se mordendo de raiva...
Eram
obrigados a comprar no armazém da fazenda. Fora Militão nas suas
andanças em busca de festa quem descobrira que poderiam comprar
milho para o plantio bem mais barato se o fizessem em mãos de
Leocádio. E quando contara a Gregório logo este se decidiu:
– Vou
comprar na mão dele. Artur que se dane...
Gregório
não era de muitas palavras mas poucos como ele para o trabalho.
Chegara ali fazia cinco anos, antes fora tropeiro numa outra fazenda.
Como aparecera sem parentes nem aderentes corriam diversas histórias
sobre seu passado, falavam em mortes, em homens assassinados a faca
num barulho, mas era tudo vago e inconsistente. Militão também
andava buscando trabalho, a seca o atirara para aquelas bandas, e os
dois haviam conseguido o arrendamento daquela capoeira onde existia
ainda um resto de mata, terreno considerado ruim pela maioria. Estava
num dos extremos da fazenda, e o coronel Inácio, quando ainda era
vivo, nunca plantara por ali. Gregório entendia de terra e quando
Artur lhe propôs arrendar-lhe aquela capoeira, ele silenciou o
protesto de Militão e aceitou de imediato. A principio trabalhavam
quatro dias da semana para a fazenda, um de graça conforme mandava o
contrato, os outros três para ter com que comprar a carne-seca, o
feijão e a farinha. No resto da semana caiam de machado e foice na
capoeira e na mata. Venderam lenha, plantaram mandioca, todos os anos
renovavam o contrato. Agora não havia em toda a fazenda plantação
mais bem cuidada e pela redondeza diziam de Gregório que “era um
boi para o trabalho”. Enquanto Militão ria e noivava a filha de
Afonso, um trabalhador assalariado, Gregório se jogava na roca sem
descanso. Para ele não existia nem festa nem dia de domingo. Nunca
comprara um par de botinas, roupa nova não possuía, ia ao arraial
uma vez na vida, mulher-dama não levava seu dinheiro. E aos que se
admiravam de tanto trabalho, Militão explicava que Gregório queria
comprar aquele pedaço de terra, aquele ou outro qualquer onde
pudesse dizer que estava em terra sua.
– Ainda
acaba fazendeiro... – comentavam.
E
novamente aquelas histórias incompletas circulavam e aos poucos iam
crescendo em detalhes, a fama de Gregório aumentando, novas
valentias e malvadezas incorporando-se as narrações. O próprio
Artur tinha-lhe um certo respeito e raramente discutia com ele,
tratava-o nas palmas da mão e mais de uma vez lhe oferecera o lugar
de ajudante de capataz.
Quando
Militão fizera a descoberta do preço do milho, eles debateram
longamente as vantagens e desvantagens da compra. Militão achava que
não valia a pena arriscar-se, era demasiado perigoso. Existiam leis
na fazenda que não estavam escritas mas que todos respeitavam
religiosamente e uma delas era a que obrigava colonos e trabalhadores
a comprar ali tudo o que necessitassem. Mas Gregório estava disposto
e aos poucos foi convencendo Militão. Naquela tarde, apos o almoço,
partira pelos atalhos, evitando passar ante a casa-grande,
esquivando-se dos encontros.
– Vi
o pessoal voltando do casamento...
– Cosme?
– Ele
mais Teresa e o veio Ataliba. Mas eles não me viram...
– Vai
ser um festão... Tu devia de ir...
Porém
Gregório já pensava noutra coisa:
– Em
junho vai tá um milharal vistoso...
Militão
levantou-se, arrastou o saco de milho para dentro de casa. Gregório
o acompanhou:
– Nós
precisa falar com João Pedro... Combinar pra nóis fazer a
farinha... A casa de farinha tinha sido levantada por João Pedro e
todos os colonos a utilizavam, pagando em farinha ou em dinheiro o
uso da prensa e do forno.
Militão
concordou:
– Hoje
na festa eu falo com ele... Ele vai tá com a mulher.
Três
pedras num canto formavam o fogão. Numa lata empretecida pelo fogo
havia um resto de café da manhã. Gregório enfiou um pedaço de
carne-seca num espeto, acendeu o fogo. Pela porta entreaberta entrava
a noite que cobria as plantações. As labaredas cresciam no fogão
sobre os gravetos. Iluminavam os rostos dos homens. Os primeiros
grilos saltavam lá fora e a brisa que corria trouxe para dentro de
casa um cheiro familiar de mato e terra. Militão falou:
– Faz
pirão só pra tu. Vou comer carne de porco na festa... Tu devia
vir... Acendeu o fifó, uma luz vermelha se projetou sobre as paredes
da casa:
– Vou
lavar os pés pra botar as botinas...
Andou
para os fundos da casa. A voz de Gregório o acompanhou:
– Fala
com Filinha pra ajudar na farinhada... – Filinha era a noiva de
Militão.
– Ela
e a irmã. A gente pode falar também com Marta, de seu Jeronimo.
– Gertrudes
pode vir também...
Houve
um silêncio, depois Militão veio chegando lá dos fundos, calçado
de botinas:
– Hoje
vou me acabar de tanto dançar...
Parou
diante de Gregório que virava a carne no espeto:
– Tu
não quer vim?
– Num
vou não...
– Tu
precisa de vim... Vai ter cachaça à vontade e Bastião vai tocar...
– Num
vou ir...
Os
grilos invadiam o terreiro. A carne chiava nas brasas. Militão
murmurava algo sobre a festa, ainda tentando convencer o companheiro
a acompanhá-lo. Gregório tomou de uma lata, dirigiu-se para a
porta. Ia buscar água para fazer o pirão de farinha. Mas na porta
parou, ficou espiando as plantações mal entrevistas na noite que se
completara. Voava um vaga-lume perto da goiabeira onde agora as
galinhas estavam quietas. Militão ia dizendo qualquer coisa sobre a
beleza que a festa prometia ser mas calou-se porque a voz de Gregório
atravessava o escuro da porta, ressoava dentro da casa,
amedrontadora:
– Botar
a gente pra fora... Não tem homem que me bota daqui pra fora, eu te
digo, Militão... A brisa soprou, a luz do fifó era vacilante, um
cheiro de terra enchia a casa:
– Nem
que eu me desgrace e desgrace um comigo.
Os
grilos multiplicavam-se na noite recém-chegada e na lonjura da
caatinga uns sons de harmônica cortaram o silêncio.
Jorge Amado, in Seara Vermelha
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Noites Tropicais | Rio de Janeiro, 1957
Eu
não gostava de música.
Só
as de carnaval, nas chanchadas da Atlântida. O rádio era para
futebol e programas humorísticos.
Com
13 anos, meus maiores interesses eram literários, esportivos e
sexuais. A música, pelo menos a que se ouvia no rádio e nos discos,
era insuportável para um adolescente de Copacabana no final dos anos
50. Boleros e sambas-canções falavam de encontros e desencontros
amorosos infinitamente distantes de nossas vidas de praia e cinema,
de livros e quadrinhos, de início da televisão e da ânsia de
modernização.
Para
nós, garotos de classe média de Copacabana, aqueles cantores da
Rádio Nacional e suas grandes vozes, dizendo coisas que não nos
interessavam em uma linguagem que não entendíamos, eram
abomináveis. Gostávamos mesmo era de praia e futebol, de ver Pelé
e Garrincha no Maracanã, dos folhetins de Nelson Rodrigues na Última
Hora, das gostosonas da coluna de Stanislaw Ponte Preta, das crônicas
de Antonio Maria sobre as noites cariocas, de pegar onda de peito no
Arpoador, de romances de aventura e de comédias italianas. E de
corridas de cavalos: meu grande ídolo era o jóquei Luiz Rigoni.
Apostava — e perdia — no Jockey Club e nos bookmakers até o
dinheiro que minha mãe me dava para o lanche no Colégio Santo
Inácio. Com 14 anos comecei a nadar todos os dias de manhã nos
infanto-juvenis do Fluminense e abandonei meu primeiro vício.
Mas
naquelas férias de 1958, em São Paulo, não só comecei a fumar
como ouvi num rádio de pilha Spica — a nova sensação
tecnológica, novidade absoluta recém-chegada ao Brasil — João
Gilberto cantando, “Chega de saudade”. Foi como um raio. Aquilo
era diferente de tudo que eu já tinha ouvido, fiquei chocado, sem
saber se tinha adorado ou detestado. Mas quanto mais ouvia, mais
gostava. Na volta ao Rio comprei o disco, comi a cozinheira e
abandonei a natação.
Além
de sexo e futebol, só queria saber de João Gilberto e a bossa nova,
que ninguém sabia bem o que era. Minha mãe também. Ela adorava
música, compunha e tocava foxes e blues no piano, e estava fascinada
com João e a nova música. Com ela e meu pai fui a um show no
auditório da Escola Naval, a “Operação bossa nova”, produzido
e apresentado por Ronaldo Bôscoli, que vi pela primeira vez no
palco, de terno e gravata, e achei charmosíssimo, explicando entre
um número e outro que bossa nova era o moderno, o novo, o diferente,
que era “um estado de espírito”. Foi também onde vi e ouvi pela
primeira vez Nara Leão, timidíssima, cantando de uma maneira que
fiquei sem saber se gostava ou não. Mas sem dúvida queria ver de
novo: ela era de uma beleza estranha, tinha uma bocona, uns olhos
meio caídos que lhe davam um ar de musa existencialista, um cabelo
muito liso e muito escuro e uma pele muito branca, um fio de voz e um
charme discretíssimo, sem dúvida ela era diferente. A cara da bossa
nova.
No
show, Lúcio Alves, Alayde Costa e Sylvinha Telles (que eu conhecia
vagamente) e os desconhecidos Carlinhos Lyra, Oscar Castro Neves e
Nara cantavam e tocavam umas músicas muito diferentes de tudo que se
ouvia no rádio e na televisão, parecidas com as que João cantava.
Eles se apresentavam de uma maneira mais informal e intimista, as
músicas pareciam mais leves e melodiosas e as letras falavam de
situações e pessoas parecidas com a vida que se levava nos
apartamentos, nas praias e nas ruas de Copacabana naqueles anos
bacanas.
A
bossa nova era a trilha sonora que nos faltava, que nos diferenciaria
dos “quadrados” e dos antigos, dos românticos e melodramáticos,
dos grandiloquentes e dos primitivos, dos nacionalistas e
regionalistas, dos americanos. Tínhamos uma música que imaginávamos
só para nós. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria.
Em
1959, João Gilberto era um sucesso nacional, era adorado e
detestado, acusado de desafinado e de afeminado, celebrado como o
inventor de um novo gênero musical. Eu o ouvia apaixonadamente como
o criador de uma maneira nova de cantar e tocar, com um mínimo de
voz e um máximo de precisão, com harmonias e ritmos que refinavam e
sofisticavam qualquer canção.
Com
ele conheci a música de Tom e Vinícius, de Newton Mendonça e
Carlos Lyra, de Caymmi e Ary Barroso e dos grandes mestres
brasileiros, que entraram em meus ouvidos, cabeça e coração, em
minha vida para sempre.
Porque
antes eu não sabia nada de música, não ligava, não prestava
atenção. Música não estava nos meus sonhos nem em minhas
memórias. Gostava mesmo era de ler e de escrever, de ouvir e de
contar histórias.
Nelson Motta, in Noites Tropicais
Bernborough
Para
dias como esse, Henry tinha regras.
Primeiro,
cerveja.
Segundo,
tinha que ser gelada.
Por
isso, deixou Tommy, Clay e Aurora no cemitério e ficou de
encontrá-los mais tarde, no parque Bernborough.
(O
parque Bernborough, para quem não conhece a região, é uma velha
pista de atletismo. Na época, tinha uma arquibancada caindo aos
pedaços e um estacionamento que mais parecia uma zona de guerra.
Também foi palco dos mais famigerados treinos de Clay.)
No
entanto, antes de entrar no carro, Henry sentiu necessidade de passar
algumas instruções de última hora para Tommy. Aurora também
estava prestando atenção.
— Se
eu me atrasar, fala pro pessoal esperar um pouco, entendeu?
— Entendi,
Henry.
— E
manda eles já separarem o dinheiro.
— Entendi,
Henry.
— Essa
merda de “Entendi, Henry” significa que você entendeu mesmo?
— Sim.
— Continua
assim que eu coloco você para correr com ele. É isso que você
quer?
— Não,
Henry, obrigado.
— Isso
aí, garoto esperto.
Um
sorriso breve despontava de uma mente zombeteira e treinada. Deu um
tapinha leve certeiro na orelha de Tommy e então agarrou Clay,
dizendo:
— E
você... vê se me faz um favor. — Segurou o rosto do irmão. —
Não deixa esses dois moleques para trás.
***
Na
nuvem de poeira que o carro deixou, a cachorra olhou para Tommy.
Tommy
olhou para Clay.
Clay
não olhou para nenhum dos dois.
Pôs
a mão no bolso e sentiu, e dentro de si havia tanto querer —
queria sair dali, sair correndo de novo —, mas, com a cidade se
derramando à frente deles e o cemitério atrás, ele deu dois passos
e enfiou Aurora debaixo do braço.
Clay
se levantou, e a cachorrinha sorria.
Os
olhos dela eram como trigo e ouro.
Aurora
ria para o mundo sob suas patas.
***
Eles
já estavam na avenida Entreaty, no topo da grande colina que tinham
acabado de subir, quando, por fim, Clay botou a cachorrinha no chão.
Passaram por cima das árvores de jasmim-manga mortas no caminho para
a avenida Poseidon, que era a principal sede do turfe naquela área.
Um quilômetro e meio de lojas enferrujadas.
Enquanto
Tommy estava doido para ir à pet shop, Clay trocaria tudo por outros
lugares; pelas ruas e pelos monumentos a ela.
Lonhro,
pensou ele.
A
alameda de Bobby.
A
praça Peter Pan e seus paralelepípedos.
Ela
tinha cabelo castanho-avermelhado e olhos verdes gentis, e era
aprendiz de Ennis McAndrew. Seu cavalo preferido era o El Matador.
Sua corrida preferida era sempre a de Cox Plate. Seu vencedor
preferido dessa corrida foi o poderoso Kingston Town, uns trinta anos
antes. (As melhores coisas sempre acontecem antes de nós nascermos.)
O
livro que ela lia era O marmoreiro.
Um
dos três que foram importantes para tudo.
***
Fritando
no calor da avenida Poseidon, os meninos e a cachorra continuaram
caminhando, e logo ela se revelou: a pista de atletismo.
Foram
andando e entraram por uma brecha na cerca ao lado.
Na
reta, ao sol, eles aguardaram.
Em
minutos, surgiu o grupo de sempre — meninos-abutres sobrevoando a
carcaça do campo esportivo: as raias da pista cobertas de erva
daninha, o chão vermelho todo descascado, a pista transformada em
selva.
— Olha
lá — disse Tommy, apontando.
Chegavam
mais e mais meninos, em toda a sua glória do auge da puberdade.
Mesmo de longe dava para ver os sorrisos nos rostos bronzeados e
contar as cicatrizes do subúrbio. Também dava para sentir: exalavam
o cheiro daquele estado de eternos homens-quase-feitos.
Durante
um tempo, Clay ficou na raia de fora, observando-os. Bebiam, coçavam
o sovaco. Atiravam garrafas. Alguns chutavam as escaras das pistas.
Até que, por fim, ele decidiu que já era hora.
Pôs
a mão no ombro de Tommy e foi até a sombra da arquibancada.
A
escuridão o engoliu.
Markus Zusak, in O construtor de pontes