Pressa & contemplação

Li há tempos que num desses exóticos países do Oriente... O adjetivo “exótico” explica que a coisa se passou em fins do século passado. Pois aconteceu que no referido país um engenheiro inglês queria convencer o respectivo xá, ou qualquer título que tivesse, que, em nome do progresso, era urgente a construção de uma estrada de ferro. E findou assim seu arrazoado:
A estrada de ferro fará com que, em vez de trinta dias a lombo de camelo, a viagem da capital à fronteira seja apenas de um dia.
Mas — objetou o soberano — o que é que vamos fazer dos 29 dias que sobram?
É o único exemplo que conheço da propalada sabedoria oriental. O que tem feito o Oriente, de Pedro, o Grande, a Mao Tse-tung, é macaquear o Ocidente, na indumentária, nos costumes, nos processos políticos, contribuindo assim, como colaboracionistas, para o imperialismo ocidental.

Mário Quintana, in Caderno H

Para quem ama

Para quem ama a reputação, o seu próprio bem é a atividade de outro homem. Para quem ama o prazer, são as suas próprias sensações. Para quem é inteligente, os seus próprios atos.

Marco Aurélio, in Meditações

Capítulo 25 | Na Tijuca

Ui! lá me ia a pena a escorregar para o enfático. Sejamos simples, como era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras semanas depois da morte de minha mãe.
No sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda, alguns livros, roupa, charutos, um moleque, – o Prudêncio do capitulo 11, – e fui meter-me numa velha casa de nossa propriedade. Meu pai forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não podia nem queria obedecer-lhe.
Sabina desejava que eu fosse morar com ela algum tempo – duas semanas, ao menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força. Era um bom rapaz este Cotrim; passara de estróina a circunspecto. Agora comerciava em gêneros de estiva, labutava de manhã até à noite, com ardor, com perseverança. De noite, sentado à janela, a encaracolar as suíças, não pensava em outra coisa. Amava a mulher e um filho, que então tinha, e que lhe morreu alguns anos depois. Diziam que era avaro.
Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil. - “Que bom que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!” – Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco, um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos, e o espírito ainda mais cabisbaixo do que a figura, - ou jururu, como dizemos das galinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensação única, uma coisa a que poderia chamar volúpia do aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão, leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo.
Às vezes caçava, outras dormia, outras lia, - lia muito, – outras enfim não fazia nada; deixava-me atoar de ideia em ideia, de imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta. E as horas iam pingando uma a uma, o sol caía, as sombras da noite velavam a montanha e a cidade.
Ninguém me visitava; recomendei expressamente que me deixassem só. Um dia, dois dias, três dias, uma semana inteira passada assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca fora e restituir-me ao bulício. Com efeito, ao cabo de sete dias, estava farto da solidão; a dor aplacara; o espírito já se não contentava com o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do céu.
Reagia a mocidade, era preciso viver. Meti no baú o problema da vida e da morte, os hipocondríacos do poeta, as camisas, as meditações, as gravatas, e ia fechá-lo, quando o moleque Prudêncio me disse que uma pessoa do meu conhecimento se mudara na véspera para uma casa roxa, situada a duzentos passos da nossa.
Quem?
Nhonhô talvez não se lembre mais de Dona Eusébia...
Lembra-me... E ela?
Ela e a filha. Vieram ontem de manhã.
Ocorreu-me logo o episódio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os acontecimentos tinham-me dado razão. Na verdade, fora impossível evitar as relações Intimas do Vilaça com a irmã do sargento-mor; antes mesmo do meu embarque, já se boquejava misteriosamente no nascimento de uma menina. Meu tio João mandou-me dizer depois que o Vilaça, ao morrer, deixara um bom legado a Dona Eusébia, coisa que deu muito que falar em todo o bairro. O próprio tio João, guloso de escândalos, não tratou de outro assunto na carta, aliás de muitas folhas. Tinham-me dado razão os acontecimentos. Ainda porém que ma não dessem, 1814 lá ia longe, e, com ele, a travessura, e o Vilaça, e o beijo da moita; finalmente, nenhumas relações estreitas existiam entre mim e ela. Fiz comigo essa reflexão e acabei de fechar o baú.
Nhonhô não vai visitar sinhá Dona Eusébia? perguntou-me o Prudêncio. Foi ela quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.
Lembrei-me que a vira, entre outras senhoras, por ocasião da morte e do enterro; ignorava porém que ela houvesse prestado a minha mãe esse derradeiro obséquio. A ponderação do moleque era razoável; eu devia-lhe uma visita; determinei fazê-la imediatamente, e descer.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

O antropófago

Oswald de Andrade construiu toda uma filosofia da vida, e uma teoria sociológica, para justificar o exercício de sua tendência ao sarcasmo. Apelidou isso de antropofagia, e viu no homem um ser devorador por excelência, tanto mais justificado, histórica e psicologicamente, quanto mais deglute o seu semelhante. No dia em que o ser humano deixa de comer o próximo, a civilização entra em decadência, e se instalam, com o patriarcado, o messianismo e os valores burgueses em geral. Oswald era contra a escravidão, porque esta importa em explorar o adversário, que deve ser comido, e não posto a ferros. Os devorados não contam, mas os devoradores implantarão a cultura da liberdade, de que já surgem os primeiros indícios.
No subsolo dessa doutrina, havia apenas o gosto de Oswald pela sátira, que é a manducação simbólica. De resto, gosto bem curioso, pois coincidia com a capacidade de admiração, que o escritor aplicava a esse ou àquele confrade, mas alternadamente, em intervalos de impulso destrutivo, de uma incoerência por assim dizer cronometrada, que era uma das atrações de seu espírito.
Viajando-se mais longe ainda em sua personalidade, o ser corrosivo cede lugar, imprevistamente… a quem? a um menino sentimental, que queria ser mimado apesar de suas inconsequências, e que adorava o gesto de carinho. Tive ocasião de surpreendê-lo (ou de surpreender-me) numa noite de abandono e confidência, em que pude verificar como geralmente a sua agressividade era forma de defesa, compensação pelo agravo recebido, ou que supunha tal. A grande queixa de Oswald com relação a seus companheiros de aventura literária era que o omitiam sempre. E porque o omitissem, passava à ofensiva mais rude. Às vezes, atacava antes da omissão, como se a previsse. Pelo menos se persuadia de que não era injusto. Dessem-lhe carinho, e o homem cheio de alfinetes e ácidos se aveludava. E quando encontrou carinho, ou foi bastante lúcido para identificá-lo depois de outros que havia encontrado e não soubera decifrar, instalou-se numa felicidade burguesa e monogâmica, que negava toda a laboriosa construção antropofágica, levantada em quase trinta anos de orgulho intelectual, isto é, de autojustificação.
Uma linha de coerência se esboça através dos zigue-zagues de sua vida. Ora espiritualista ora marxista, criando um dia o Pau-Brasil, e logo buscando universalizá-lo em antropofagia, primitivo e civilizado a um tempo, como observou Manuel Bandeira, solapando o edifício burguês sem renunciar à habitação em seus andares mais altos, Oswald manteve sempre intata sua personalidade, de sorte a provocar, ainda em seus últimos dias, a irritação ou a mágoa que inspirara quando fauve modernista de 1922. Os rapazes que vinham para a literatura com a preocupação excessiva de purezas ou aristocracias verbais (no fundo, variantes tardias de parnasianismo) pretendiam ignorá-lo ou negar-lhe a força, mas uma fisgada mais hábil desse sexagenário (que se dizia sex-appealgenário) lhes doía na pele, e talvez mais fundo; e como é preferível hoje em dia viver com todo mundo, principalmente com os marimbondos, acabavam se aproximando dele, e procurando conquistá-lo.
O marimbondo enternecia-se (pelo menos provisoriamente), e nada mais divertido que as listas sucessivas de talentos jovens, que Oswald, vingador contumaz, costumava estabelecer para indicar onde se depositavam suas esperanças de uma cultura antropofágica brasileira.
Não houve, no modernismo, personagem mais viva do que ele. Manteve até o fim, quando outros “heróis” do movimento se haviam acomodado ou haviam evoluído, uma atitude tipicamente modernista, não isenta de sabor, sobretudo notável porque implicava o culto à indisciplina e ao desrespeito, que infelizmente não caracteriza os moços de hoje. Tinha algo de Jarry, inventor do Ubu Roi e do Surmâle. E seu Serafim Ponte Grande é uma dessas criações que a gente não esquece, pela violência rabelaisiana de sátira, a destruir um mundo de atitudes e ideias que merece realmente ser espandongado.
Vamos sentir falta de Oswald, e também saudade.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

1515 – Amberes | Utopia

As aventuras do Novo Mundo fazem ferver as tabernas deste porto flamengo. Uma noite de verão, frente ao cais, Thomas Morus conhece ou inventa Rafael Hithloday, marinheiro das naves de Américo Vespúcio, que diz que descobriu a ilha da Utopia em alguma costa da América.
Conta o navegante que em Utopia não existe o dinheiro nem a propriedade privada. Ali se fomenta o desprezo pelo ouro e pelo consumo supérfluo e ninguém se veste com ostentação. Cada um entrega aos armazéns públicos o fruto de seu trabalho e livremente apanha o que necessita. Se planeja a economia. Não existe egoísmo, que é filho do temor, nem se conhece a fome. O povo escolhe o príncipe e pelo povo ele pode ser deposto; também elege os sacerdotes. Os habitantes de Utopia abominam as guerras e suas honras, embora defendam ferozmente suas fronteiras. Professam uma religião que não ofende a razão e que rejeita as mortificações inúteis e as conversões forçadas. As leis permitem o divórcio mas castigam severamente as traições conjugais, e obrigam a trabalhar seis horas por dia. Divide-se o trabalho e o descanso; divide-se a mesa. A comunidade se encarrega das crianças enquanto seus pais estão ocupados. Os doentes recebem tratamento privilegiado; a eutanásia evita as longas agonias doloridas. Os jardins e as hortas ocupam o maior espaço e em todas as partes soa a música.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Cartas na Rua | DOIS

7

Então comecei a chegar em casa infeliz.
Qual é o problema, Hank?
Eu tinha de beber toda noite.
É o gerente, o Freddy. Ele começou a assobiar uma música. Ele a assobia quando eu chego de manhã e não para nunca, e continua a assobiá-la até a hora de eu ir para casa à noite. Há duas semanas está nessa!
Qual é o nome da música?
Around the World in Eighty Days. Nunca gostei dessa música.
Bem, arranje outro emprego.
Farei isso.
Mas continue trabalhando lá até arranjar outro. Precisamos provar para eles que...
Tudo bem. Tudo bem!

8

Certa tarde, encontrei um velho bêbado na rua. Eu o conhecia dos tempos de Betty quando fazíamos as rondas dos bares. Ele me disse que agora era um atendente nos Correios e que não havia nada como aquele emprego.
Era uma das mentiras mais gordas do século. Tenho procurado esse cara há anos, mas temo que outra pessoa o tenha alcançado primeiro.
De modo que lá estava eu fazendo mais uma vez o exame para o serviço civil. A diferença é que desta vez, no formulário, marquei “atendente” e não “carteiro”.
Ao receber a notificação de que deveria me apresentar para as cerimônias de admissão, Freddy havia parado de assobiar Around the World in Eighty Days, mas eu estava ansioso para pegar aquele empreguinho frouxo que o “Tio Sam” me oferecia.
Eu disse a Freddy:
Tenho um pequeno negócio para resolver e pode ser que leve uma hora, uma hora e meia no almoço.
Beleza, Hank.
Mal sabia eu como seria longo aquele almoço.

9

Formávamos um bando de gente por lá. Uns 150 ou 200. Havia uma porção de papéis tediosos a preencher. Depois disso, ficamos todos de pé de frente para a bandeira. O sujeito encarregado do juramento era o mesmo da vez anterior.
Após o juramento, o cara nos disse:
Muito bem, agora vocês têm um bom emprego. Não se metam em confusão e terão segurança para o resto de suas vidas.
Segurança? Isso é algo que você pode conseguir na cadeia. Três metros quadrados, nada de aluguel a pagar, nenhum bem de consumo, imposto de renda, criança para sustentar. Nenhuma taxa de licenciamento de carro. Nenhuma multa. Nenhuma detenção por dirigir bêbado. Nenhuma perda nas corridas de cavalo. Assistência médica gratuita. Camaradagem com aquelas pessoas com os mesmos interesses. Igreja. Enterro grátis.
Aproximadamente doze anos mais tarde, desses 150 ou 200, restariam apenas dois de nós. Assim como alguns caras não podem ser motoristas de táxi, cafetões ou traficantes, a maioria dos caras, e das garotas também, não podia ser atendente dos Correios. E eu não os culpo. Com o passar dos anos, vi como entravam continuamente em esquadrões de 150 ou 200 e só dois, três ou quatro restavam de cada grupo — apenas o suficiente para substituir aqueles que se aposentavam.

10

O guia nos levou para conhecer o prédio todo. Havia tantos de nós que tiveram que nos separar em grupos. Pegávamos o elevador por turmas. Nos mostraram a cafeteria dos funcionários, o porão, todas aquelas cretinices.
Deus Todo-Poderoso, pensei, queria que esse cara se apressasse só um pouco. Meu horário de almoço já acabou há duas horas.
Então o guia entregou um cartão-ponto a cada um de nós. E nos mostrou onde ficava o relógio.
Agora prestem atenção. É assim que vocês devem bater o ponto.
Ele nos mostrou como fazer. Depois disse:
Vamos, é a vez de vocês.
Doze horas e meia mais tarde nós o bateríamos de novo. Foi uma senhora cerimônia de iniciação.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

Adiamento

Não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte.
Morrer, por exemplo, é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois.

Millôr Fernandes, in Millôr definitivo: Uma antologia de a Bíblia do Caos

O que é arte? | Capítulo XIV

The Mother of God with the Infant Christ (c. 1880-1890), Viktor Vasnetsov

Eu sei que a maioria das pessoas consideradas inteligentes, e que são de fato inteligentes — capazes de compreender os mais difíceis raciocínios científicos, matemáticos e filosóficos —, muito raramente é capaz de entender uma verdade simples e óbvia, se ela for de natureza tal que exija que essas pessoas admitam que um julgamento que formaram sobre alguma coisa, às vezes com grande esforço — um julgamento do qual têm orgulho, que ensinaram a outros e com base no qual organizaram toda a sua vida —, possa estar errado. Portanto, tenho poucas esperanças de que os argumentos que estou apresentando sobre a perversão da arte e do gosto em nossa sociedade venham a ser aceitos ou mesmo seriamente discutidos. Contudo, vou apresentá-los, já que esse estudo me deu a convicção de que quase tudo que é considerado arte, a boa e total arte de nossa sociedade, não é verdadeira nem boa, nem é o total dela e nem mesmo é arte, em absoluto, mas somente uma falsificação. Essa afirmação, eu sei, é muito estranha e parece paradoxal. Porém, se reconhecemos uma vez como verdadeiro que a arte é uma atividade humana por meio da qual algumas pessoas transmitem seus sentimentos a outras, e não é a servidão da beleza, a manifestação de uma ideia, e assim por diante, tal declaração tem que ser aceita. Se for verdade que a arte é uma atividade por meio da qual um homem, tendo vivenciado um sentimento, transmite-o conscientemente a outros, devemos inevitavelmente admitir que de tudo aquilo que, entre nós, é chamado de arte das classes superiores — todos esses romances, contos, dramas, comédias, pinturas, esculturas, sinfonias, óperas, operetas, balés etc., que passam por obras de arte — haverá no máximo um em 100 mil que tenha se originado de um sentimento experimentado pelo seu autor; o restante são obras fabricadas, falsificações artísticas nas quais o empréstimo, a imitação, o efeito e o desvio substituem o contágio pelo sentimento. Pode-se provar que a proporção entre verdadeiras obras de arte e essas falsificações é de um para centenas de milhares, ou até menor, com o seguinte cálculo. Eu li em algum lugar que existem 30 mil pintores-artistas só em Paris. Deve haver o mesmo número na Inglaterra, o mesmo na Alemanha, o mesmo na Rússia, na Itália e em alguns países menores combinados. De forma que deve haver, ao todo, cerca de 120 mil pintores na Europa e a mesma quantidade de músicos e a mesma quantidade de escritores-artistas. Se essas 300 mil pessoas produzirem pelo menos três obras de arte por ano (e muitas produzem dez ou mais), a cada ano será produzido um milhão de obras de arte. Quantas houve nos últimos dez anos, e quantas em todo o período desde que a arte das classes superiores se separou da arte popular? Milhões, obviamente. E, no entanto, quem, entre os maiores conhecedores de arte, recebeu de fato uma impressão de todos esses supostos trabalhos artísticos, ou pelo menos veio a saber de sua existência? Sem falar no povo, que não tem sequer ideia dessas obras, a classe alta não deve conhecer nem mesmo um milésimo de todas elas e não se lembra daquelas que conhece. Todos esses objetos aparecem à guisa de arte, não produzem nenhuma impressão sobre ninguém, exceto às vezes uma impressão de divertimento para uma turba ociosa de ricos, e desaparecem sem traço. Replica-se a isso, normalmente, que se não fosse esse gigantesco número de tentativas malsucedidas, não haveria verdadeiras obras de arte. Mas esse raciocínio é o mesmo que se um padeiro, em resposta à reclamação de que seu pão não estava bom, dissesse que, se não fosse por uma centena de pães ruins, não haveria nenhum bem assado. É verdade que onde há ouro há também muita areia; mas isso não pode de modo algum servir de pretexto para dizer uma porção de coisas tolas com o propósito de dizer alguma coisa inteligente.
Estamos cercados de obras que são consideradas artísticas. Milhares de poemas líricos, milhares de poemas, de romances, de peças teatrais, de quadros, de composições musicais aparecem um após outro. Todos os poemas descrevem o amor, ou a natureza, ou o estado de espírito do autor, e todos observam métrica e rima. Todos os dramas e comédias são esplendidamente projetados e interpretados por atores excelentemente treinados. Todos os romances se dividem em capítulos, que descrevem o amor e contêm cenas comoventes, expondo os detalhes verdadeiros da vida. Todas as sinfonias contêm seu allegro, andante, scherzo e finale, e todas consistem em modulações e acordes e são tocadas por músicos treinados com muito refinamento. Todos os quadros, em suas molduras douradas, retratam vividamente pessoas e todos os acessórios. Mas entre essas obras de variadas espécies de arte existe uma em 100 mil que não é simplesmente um pouco melhor do que as outras, mas difere de todo o resto tal como um diamante difere de vidro. Essa única não pode ser comprada por nenhum valor, de tão preciosa que é; as outras não só não têm valor, como são até negativas, porque enganam e pervertem o gosto. E o pior é que, para um homem com senso de compreensão da arte pervertido ou atrofiado, elas são exatamente iguais.
A dificuldade de reconhecer trabalhos artísticos em nossa sociedade é aumentada também pelo fato de que, nas falsas obras, o valor superficial não só não é pior, como frequentemente é melhor do que nas obras verdadeiras. Muitas vezes a falsificação nos atinge mais do que a obra verdadeira e seu conteúdo é mais interessante. Como discriminar? Como encontrar essa única obra, que não difere na superfície de modo algum das centenas de milhares feitas deliberadamente para parecer com a verdadeira à perfeição?
Para um homem de gosto não pervertido — um trabalhador, não um morador da cidade — isso é tão fácil quanto para um animal de faro não degradado encontrar, entre milhares de pistas na floresta ou no campo, aquela de que ele precisa. Um animal encontrará sem erro o que ele necessita; assim também um homem, se suas qualidades naturais não estiverem pervertidas, escolherá sem erro, no meio de milhares de objetos, a verdadeira obra de arte de que precisa, que o contagia com o sentimento experimentado pelo artista. Mas isso não é assim para aqueles cujo gosto foi arruinado pela educação e pela própria vida. O sentido de percepção artística está atrofiado nessas pessoas, e ao avaliar trabalhos artísticos elas precisam ser guiadas pelo raciocínio e pelo exame, e isso às vezes as confunde, de forma que grande parte de nossa sociedade é totalmente incapaz de distinguir uma obra de arte da mais grosseira falsificação. Elas gastam longas horas em concertos e teatros, ouvindo as obras dos novos compositores, e consideram seu dever ler os romances novos dos famosos romancistas e ver os quadros que mostram ou algo incompreensível ou sempre as mesmas coisas de novo — coisas que veem muito melhor na realidade; e, acima de tudo, consideram uma obrigação admirar tudo isso, fazendo de conta que são todas obras de arte, e passam pelas verdadeiras obras de arte não somente sem lhes prestar atenção, mas até mesmo com desprezo, simplesmente porque elas não são contadas como arte em seu círculo.
Um dia desses eu voltava para casa, de uma caminhada, deprimido. Quando me aproximava de casa, ouvi o canto de um grande círculo de mulheres camponesas. Elas estavam saudando e homenageando minha filha, que se casara e tinha vindo para uma visita. Essa cantoria, com brados e batidas sobre os alfanjes, expressava um sentimento tão explícito de regozijo, alegria e energia que sem perceber fiquei contagiado por ele e me aproximei de casa mais alegre, entrando bem animado e contente. Descobri que todos da casa, que tinham ouvido esse canto, também estavam animados. Naquela mesma noite, um músico excelente, famoso por sua interpretação de peças clássicas, especialmente de Beethoven, veio nos visitar e tocou a sonata “Opus 101”, de Beethoven.
Acho necessário observar, para aqueles que queiram justificar minha opinião sobre essa sonata dizendo que nada entendo dela, que sou muito suscetível à música e entendo tudo o que os outros entendem nessa sonata, assim como em outras obras do último período de Beethoven, e da mesma maneira que eles. Por muito tempo me preparei para admirar essas improvisações sem forma que constituem as obras do último período de Beethoven, mas no momento em que comecei a tratar o assunto da arte com seriedade e comparei a impressão que elas me deixam com a impressão musical agradável, clara e forte produzida, por exemplo, pelas melodias de Bach (suas árias), Haydn, Mozart, Chopin — que não são deturpadas por complicações e adornos — ou as do próprio Beethoven em seu primeiro período e, acima de tudo, com as impressões recebidas das canções folclóricas italianas, norueguesas e russas, das czardas húngaras e outras assim tão simples, claras e fortes, aquela certa animação vaga e quase mórbida tirada das obras do último período de Beethoven, e que eu invocava artificialmente em mim mesmo, foi imediatamente destruída.
Quando a apresentação terminou, todos os presentes, embora fosse óbvio que estivessem todos entediados, elogiaram ansiosamente a obra profunda de Beethoven como se fosse uma obrigação, não esquecendo de mencionar que não haviam entendido esse período tardio antes, mas agora viam que ele era o melhor. Porém, quando comparei a impressão causada pelo canto das camponesas, que fora vivenciada por todos os presentes, com a impressão daquela sonata, os amantes de Beethoven apenas sorriram com desdém, considerando desnecessário replicar a uma conversa tão estranha.
E, no entanto, a canção das mulheres era arte verdadeira, que transmitia um sentimento preciso e forte, enquanto a sonata 101 de Beethoven era apenas uma tentativa malsucedida de arte, que não continha nenhum sentimento definido e, portanto, não contagiava ninguém com coisa alguma.
Para o meu trabalho sobre a arte, passei este inverno lendo, com diligência e grande esforço, os famosos romances e contos de Zola, Bourget, Huysmans e Kipling, que são elogiados em toda a Europa. E, nesse meio-tempo, deparei-me em uma revista infantil com uma história de um escritor totalmente desconhecido sobre os preparativos de Páscoa pela família de uma pobre viúva. O enredo é o seguinte: a mãe, tendo obtido com dificuldade um pouco de farinha branca, colocou-a sobre a mesa para ser sovada e foi em busca de fermento, pedindo às crianças que não saíssem de casa e tomassem conta da farinha. A mãe saiu e os filhos do vizinho vieram correndo até a janela, gritando para as crianças da casa que saíssem para brincar. As crianças, esquecendo a ordem da mãe, correm para fora e começam a brincar. Ela volta para casa com o fermento e encontra uma galinha em cima da mesa, atirando para o chão de terra o que ainda havia de farinha, para que seus pintinhos a catassem.
Desesperada, dá uma bronca nos filhos. As crianças choram. A mãe fica com pena deles, mas já não há farinha branca, e então, para alegrar as crianças, decide fazer um kulich de farinha de centeio peneirada, glaçá-lo com clara de ovo e colocar ovos em torno. “Pão de centeio eu adoro, sou franco; ele é o avô do pão branco”, recita a mãe para os filhos, a fim de consolá-los por não terem um kulich feito de farinha branca. E as crianças num instante vão do desespero a um feliz enlevo; cada uma repete o provérbio e espera o kulich com a maior alegria.
E o que tem isso? A leitura dos romances e contos de Zola, Bourget, Huysmans, Kipling e outros, com os assuntos mais provocantes, não me tocou nem por um momento. Antes, eu me sentia irritado com os autores o tempo inteiro, tal como você fica irritado com alguém que o considera tão ingênuo que nem ao menos esconde o método pelo qual quer apanhar você. Desde as primeiras linhas, vê a intenção por trás do texto e todos os detalhes se tornam supérfluos — você fica entediado. Acima de tudo, sabe que o autor nunca teve sentimento algum, exceto o desejo de escrever um conto ou um romance. E, portanto, não resulta disso nenhuma impressão artística. Porém, eu não conseguia me desprender da história do autor desconhecido, que falava das crianças e dos pintinhos, porque fiquei imediatamente contagiado pelo sentimento que ele obviamente tinha vivenciado e transmitido.
Na Rússia, temos o pintor Vasnetsov. Ele pintou os ícones da catedral de Kiev. Todos o louvam como fundador de algum tipo de arte cristã de gênero sofisticado. Ele trabalhou nesses ícones durante décadas e recebeu dezenas de milhares de rublos. Todos esses ícones são más imitações de imitações de imitações e não contêm um traço de sentimento. E o mesmo Vasnetsov desenhou uma ilustração para o conto de Turguênev “A codorniz” (que fala sobre um pai que matou uma codorniz na presença de seu filho e então se arrependeu disso), retratando o menino dormindo, com o lábio superior saliente, e, acima dele, como num sonho, a codorniz. E essa ilustração é uma verdadeira obra de arte.
Na academia inglesa, duas pinturas aparecem lado a lado. Uma é de J.C. Delmas e retrata a tentação de santo Antônio. Ele está de joelhos, rezando. Atrás dele está uma mulher nua e alguns animais. Pode-se ver que o artista gostou muitíssimo da mulher nua, mas não deu a menor atenção a Antônio, e que a tentação não só não o amedronta (ao artista), como é, ao contrário, muito agradável a ele. E, portanto, se existe arte nesse quadro, é muito ruim e falsa. No mesmo catálogo há, ao lado desse, um pequeno quadro de Langley,[99] mostrando um garoto mendigo que aparentemente foi convidado a entrar por uma mulher que se compadece dele. O menino, enfiando os pés nus pateticamente sob o banco, está comendo; a mulher o está olhando, provavelmente perguntando-se se ele quer mais; e uma menina de seus sete anos, com a cabeça apoiada na mão, está observando com atenção e seriedade, sem tirar os olhos do menino faminto, obviamente percebendo pela primeira vez o que é a pobreza, o que é a desigualdade entre as pessoas, e, pela primeira vez, fazendo-se a pergunta: por que ela tem tudo, enquanto esse garoto está descalço e com fome? Ela sente ao mesmo tempo pena e alegria. E ela ama o garoto e o bem... Sente-se que o artista amava essa garota e o que ela amava. E esse quadro de um pintor que, acredito, é pouco conhecido é uma bela e verdadeira obra de arte.
Lembro-me de ter visto o desempenho de Rossi em Hamlet,[100] peça em que a tragédia em si e o ator que faz o papel principal são considerados pelos nossos críticos a última palavra em arte dramática. E no entanto experimentei, durante todo o tempo da apresentação, tanto pelo conteúdo da peça quanto pelo desempenho, aquele sofrimento especial causado por falsos simulacros de obras artísticas. Li também, recentemente, uma descrição do teatro de um povo selvagem, os voguls. Uma das pessoas que estavam presentes descreve a seguinte apresentação: um vogul alto e um baixo, ambos vestidos com pele de rena, representam uma rena e seu filhote. Um terceiro representa um caçador com um arco e calçados de andar na neve. Um quarto imita o canto de um passarinho, avisando a rena do perigo. O drama consiste na perseguição que o caçador faz à rena e ao filhote, seguindo-lhes os rastros. Os animais correm para fora da cena e voltam correndo. A apresentação se dá em uma pequena tenda circular. O caçador chega cada vez mais perto de sua presa. O filhote está exausto e se gruda à mãe, que para a fim de descansar. O caçador os alcança e faz pontaria. Nesse momento, o passarinho pia, avisando a rena do perigo; os animais fogem. Novamente a perseguição, novamente o caçador se aproxima, alcança-os e lança a sua flecha. A flecha atinge o filhote. Incapaz de correr, o filhote se encosta na mãe, e esta lambe seu ferimento.
O caçador coloca outra seta no arco. Os espectadores, segundo a descrição do narrador, estão imóveis como pedras; podem-se ouvir fundos suspiros e até mesmo choro. E eu sinto, somente por essa descrição, que essa é uma verdadeira obra de arte.
O que estou dizendo será tomado como um paradoxo louco, com o qual alguém só pode se espantar, mas não posso deixar de dizer o que penso: a saber, que as pessoas do nosso círculo, algumas das quais escrevem versos, contos, romances, sinfonias, óperas e sonatas, pintam vários tipos de quadro e fazem esculturas, enquanto outras ouvem e olham essas coisas e outras, ainda, avaliam e criticam isso tudo, discutem, denunciam, triunfam, erigem monumentos umas às outras, e assim fizeram no curso de várias gerações; que todas essas pessoas — artistas, público e críticos —, com pouquíssimas exceções, nunca experimentaram — salvo na infância e na juventude, antes que ouvissem qualquer explicação sobre arte — aquele sentimento singelo, conhecido do homem mais simples e mesmo das crianças, de ser contagiado pelos sentimentos de outrem, algo que faz com que nos alegremos com a alegria do outro, soframos com seu sofrimento e misturemos nossa alma à dele, e que constitui a essência da arte; e que portanto essas pessoas não conseguem distinguir a arte verdadeira das falsificações e sempre confundem o que há de pior e mais falso com arte genuína, sem notar a genuína porque as falsificações são sempre mais chamativas, enquanto a arte verdadeira é modesta.

Leon Tolstói, in O que é arte?

Anch’io son pittore

fra angélico
quando pintava
uma madona col bambino
se ajoelhava e rezava
como se fosse um menino
orava diante da obra
como se fosse pecado
pintar aquela senhora
sem estar ajoelhado
orava como se a obra
fosse de deus não do homem
podem ficar com a realidade
esse baixo-astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

Paulo Leminski, in Toda Poesia

O que é, o que é? | Gonzaguinha, 1982


Motivos para mágoa e revolta nunca faltaram para Gonzaguinha. Da infância e adolescência sofridas, marcadas pelos conflitos com o pai (Luiz Gonzaga), até começar sua carreira no período mais tenebroso da ditadura militar, foram muitas as pedras no caminho. Mas, a partir do fim dos anos 1970, depois de anos de guerra com a Censura e a ditadura que lhe valeram o apelido de cantor-rancor, amadureceu, teve filhos e reinventou-se como um eterno aprendiz, cantando que, apesar de todas as dores, injustiças e horrores, a vida era bonita e podia ser ainda melhor.
A vida da gente é um nada no mundo / É uma gota, é um tempo que nem dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa atitude repleta de amor.”
Faixa de abertura de seu 11o álbum solo, Caminhos do coração, lançado em 1982, “O que é, o que é ?” sintetiza a visão de mundo que passou a pautar o artista maduro. Na época, o Brasil vivia os estertores da ditadura militar e o país avançava na abertura política que levaria à eleição indireta de Tancredo Neves em 1985. Cada um seria livre para compor o que quisesse.
Por seu estilo festivo, sua batida empolgante, sua linguagem popular, a música foi até classificada como um paradoxal “samba-exaltação de protesto”, por traduzir o sentimento de brasileiros que apostavam na esperança e nas mudanças.
Tendo seu compositor disputado pelas grandes intérpretes da MPB depois da gravação original, “O que é, o que é?” virou clássico, com sua mensagem de fé e esperança atravessando o tempo nas vozes de Simone, Maria Bethânia, Beth Carvalho e Zé Ramalho.
De bem com a vida, Gonzaguinha, infelizmente, teve fim precoce: em 1991, aos 45 anos, morreu vítima de um acidente no carro que dirigia numa estrada do Paraná.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

É preciso parar

Estou com saudade de mim. Ando pouco recolhida, atendo demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu?
Preciso fazer um retiro espiritual e encontrar-me enfim – enfim, mas que medo – de mim mesma.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Seara Vermelha | 5


Talvez em toda a fazenda fossem Zefa e a velha Jucundina as únicas pessoas que naquele crepúsculo não pensavam na festa da noite, em casa de Ataliba. O próprio Gregório, que vinha curvado sob o peso do saco de milho, não podia deixar de se recordar que era o dia da festa, pois tinha visto quando os noivos voltavam, junto com Ataliba, Joana e mais alguns, do povoado onde haviam ido se casar. Gregório não desejava ser visto e se escondeu na capoeira para deixá-los passar. Cosme, que era o noivo, cego de um olho, levava os sapatos na mão, naturalmente arrancara-os na estrada. Dava o braco a Teresa e riam os dois, felizes, enquanto atrás ia um converseiro animado sobre a festa:
Bastião é home de palavra. Diz que vinha, vem mesmo... – era Ataliba que afirmava para um dos que iam com ele. Gregório conhecia Bastião, o tocador de harmônica mais afamado daquelas cinco léguas. Não era a toda festa que ele vinha. Fazia-se de rogado, dava desculpas – doença, trabalho, cansaço – mas festa sem ele perdia metade da animação. Enquanto o grupo passava, Gregório desejou que Bastião estivesse presente. Alias em festa em casa de Ataliba ele ia sempre e tocava a noite toda. Gregório desejava que Bastião estivesse presente não porque pretendesse ir a festa, não iria. Mas gostava de Ataliba e sabia que o velho festeiro sofreria muito com a ausência do tocador. Afinal era rara uma festa por aquelas bandas e quando havia uma não se comentava outra coisa muitos dias antes e muitos dias depois.
O bando ia longe, Gregório voltou a fazer o seu caminho, o saco as costas, furtando-se aos olhares, evitando passar pela estrada real. E ia pensando na festa, em Ataliba, em Cosme, em Teresa. Bonita cabrocha. Ele mesmo, Gregório, andara de olho nela quando chegara por ali e ela era ainda meninazinha, apenas botando os peitos mas já de sorriso fácil e interesseiro. Porem Gregório tinha outros projetos, não era tempo ainda de trazer mulher para casa. Era um caboclo forte e decidido, de rosto sombrio onde as grandes sobrancelhas fechavam-se sobre olhos pequenos. Casar só quando tivesse terra sua, com escritura passada no cartório, e era para consegui-la que trabalhava dia e noite, sem descanso. Enquanto Militão, que era seu socio no plantio da roca, gastava o saldo com as mulheres do arraial ou comprando presentes para a noiva, em cachaça ou em festas, Gregório guardava seu dinheiro e naqueles cinco anos já havia juntado algum. Comprar um pedaço de terra era tudo o que desejava.
Gregório deu um jeito nas costas, soltou o saco de milho no terreiro em frente a casa de barro batido. Frangas se agitaram inquietas na goiabeira onde se haviam empoleirado. Gregório espiou pela porta aberta da casa, Militão não chegara ainda. Voltou-se então para a estrada e assoviou. A resposta veio entre o mandiocal e ele distinguiu o vulto de Militão que vinha andando com a foice ao ombro. Sentou-se em cima do saco de milho e esperou. Havia no seu rosto fechado um quase sorriso como alguém que houvesse regressado triunfante de uma luta difícil.
Militão era um mulato alto e sorridente, andava descansado. Colocou a foice em pé, arrimada contra a parede da casa, acocorou-se ao lado de Gregório e seu primeiro comentário foi sobre a festa:
Ta u'a animação que nunca vi igual...
Gregório não respondeu e só então Militão reparou no saco de milho. Admirou-se:
Arranjou, hein?
O sorriso abriu-se de todo no rosto de Gregório. Ainda assim era um sorriso pequeno que logo desapareceu:
Não disse... Oito mil-réis mais barato... Valeu a pena...
Ninguém viu?
Me enfiei pela capoeira, até cortei os pés nos espinhos. Não encontrei alma vivente... E Leocádio não vai piar que ele não é besta...
Militão riu, boca sem dentes, escancarada:
Oito mil-réis... Valeu a pena... Só que se Artur desconfiar e capaz até...
Capaz de que?
De botar a gente pra fora...
As sombras do crepúsculo caiam sobre os dois homens, Gregório levantou-se de cima do saco de milho, aproximou-se de Militão. Frangas pularam da goiabeira, vieram beliscar o saco, Militão tangeu-as com um pé:
Sai, dianho...
Gregório olhou o mandiocal que se estendia além do terreiro, em derredor da casa:
Vou te dizer uma coisa, Militão – agora nem um resto de sorriso em seu rosto novamente fechado e sombrio. -- Nem a polícia me bota pra fora daqui...
Militão suspendeu os olhos, fitou o companheiro, viu a decisão estampada no seu rosto. Estendeu os bracos como se aquela decisão pouco importasse ante o fato indiscutível:
E só ele querer... A terra e mesmo do doutor Aureliano...
Gregório olhava o mandiocal vicejante, sobre o qual boiavam as sombras crepusculares:
Mas a mandioca e de nos dois... Quem derrubou a mata e rocou a capoeira? Isso aqui tava mesmo abandonado.
Tangeu as galinhas que teimavam junto ao saco de milho.
E em junho vai ta um milharal de dá gosto...
Bateu com a mão sobre o saco de milho novamente, um sorriso cortou seu rosto fechado:
Se Artur desconfiasse ficava se mordendo de raiva...
Eram obrigados a comprar no armazém da fazenda. Fora Militão nas suas andanças em busca de festa quem descobrira que poderiam comprar milho para o plantio bem mais barato se o fizessem em mãos de Leocádio. E quando contara a Gregório logo este se decidiu:
Vou comprar na mão dele. Artur que se dane...
Gregório não era de muitas palavras mas poucos como ele para o trabalho. Chegara ali fazia cinco anos, antes fora tropeiro numa outra fazenda. Como aparecera sem parentes nem aderentes corriam diversas histórias sobre seu passado, falavam em mortes, em homens assassinados a faca num barulho, mas era tudo vago e inconsistente. Militão também andava buscando trabalho, a seca o atirara para aquelas bandas, e os dois haviam conseguido o arrendamento daquela capoeira onde existia ainda um resto de mata, terreno considerado ruim pela maioria. Estava num dos extremos da fazenda, e o coronel Inácio, quando ainda era vivo, nunca plantara por ali. Gregório entendia de terra e quando Artur lhe propôs arrendar-lhe aquela capoeira, ele silenciou o protesto de Militão e aceitou de imediato. A principio trabalhavam quatro dias da semana para a fazenda, um de graça conforme mandava o contrato, os outros três para ter com que comprar a carne-seca, o feijão e a farinha. No resto da semana caiam de machado e foice na capoeira e na mata. Venderam lenha, plantaram mandioca, todos os anos renovavam o contrato. Agora não havia em toda a fazenda plantação mais bem cuidada e pela redondeza diziam de Gregório que “era um boi para o trabalho”. Enquanto Militão ria e noivava a filha de Afonso, um trabalhador assalariado, Gregório se jogava na roca sem descanso. Para ele não existia nem festa nem dia de domingo. Nunca comprara um par de botinas, roupa nova não possuía, ia ao arraial uma vez na vida, mulher-dama não levava seu dinheiro. E aos que se admiravam de tanto trabalho, Militão explicava que Gregório queria comprar aquele pedaço de terra, aquele ou outro qualquer onde pudesse dizer que estava em terra sua.
Ainda acaba fazendeiro... – comentavam.
E novamente aquelas histórias incompletas circulavam e aos poucos iam crescendo em detalhes, a fama de Gregório aumentando, novas valentias e malvadezas incorporando-se as narrações. O próprio Artur tinha-lhe um certo respeito e raramente discutia com ele, tratava-o nas palmas da mão e mais de uma vez lhe oferecera o lugar de ajudante de capataz.
Quando Militão fizera a descoberta do preço do milho, eles debateram longamente as vantagens e desvantagens da compra. Militão achava que não valia a pena arriscar-se, era demasiado perigoso. Existiam leis na fazenda que não estavam escritas mas que todos respeitavam religiosamente e uma delas era a que obrigava colonos e trabalhadores a comprar ali tudo o que necessitassem. Mas Gregório estava disposto e aos poucos foi convencendo Militão. Naquela tarde, apos o almoço, partira pelos atalhos, evitando passar ante a casa-grande, esquivando-se dos encontros.
Vi o pessoal voltando do casamento...
Cosme?
Ele mais Teresa e o veio Ataliba. Mas eles não me viram...
Vai ser um festão... Tu devia de ir...
Porém Gregório já pensava noutra coisa:
Em junho vai tá um milharal vistoso...
Militão levantou-se, arrastou o saco de milho para dentro de casa. Gregório o acompanhou:
Nós precisa falar com João Pedro... Combinar pra nóis fazer a farinha... A casa de farinha tinha sido levantada por João Pedro e todos os colonos a utilizavam, pagando em farinha ou em dinheiro o uso da prensa e do forno.
Militão concordou:
Hoje na festa eu falo com ele... Ele vai tá com a mulher.
Três pedras num canto formavam o fogão. Numa lata empretecida pelo fogo havia um resto de café da manhã. Gregório enfiou um pedaço de carne-seca num espeto, acendeu o fogo. Pela porta entreaberta entrava a noite que cobria as plantações. As labaredas cresciam no fogão sobre os gravetos. Iluminavam os rostos dos homens. Os primeiros grilos saltavam lá fora e a brisa que corria trouxe para dentro de casa um cheiro familiar de mato e terra. Militão falou:
Faz pirão só pra tu. Vou comer carne de porco na festa... Tu devia vir... Acendeu o fifó, uma luz vermelha se projetou sobre as paredes da casa:
Vou lavar os pés pra botar as botinas...
Andou para os fundos da casa. A voz de Gregório o acompanhou:
Fala com Filinha pra ajudar na farinhada... – Filinha era a noiva de Militão.
Ela e a irmã. A gente pode falar também com Marta, de seu Jeronimo.
Gertrudes pode vir também...
Houve um silêncio, depois Militão veio chegando lá dos fundos, calçado de botinas:
Hoje vou me acabar de tanto dançar...
Parou diante de Gregório que virava a carne no espeto:
Tu não quer vim?
Num vou não...
Tu precisa de vim... Vai ter cachaça à vontade e Bastião vai tocar...
Num vou ir...
Os grilos invadiam o terreiro. A carne chiava nas brasas. Militão murmurava algo sobre a festa, ainda tentando convencer o companheiro a acompanhá-lo. Gregório tomou de uma lata, dirigiu-se para a porta. Ia buscar água para fazer o pirão de farinha. Mas na porta parou, ficou espiando as plantações mal entrevistas na noite que se completara. Voava um vaga-lume perto da goiabeira onde agora as galinhas estavam quietas. Militão ia dizendo qualquer coisa sobre a beleza que a festa prometia ser mas calou-se porque a voz de Gregório atravessava o escuro da porta, ressoava dentro da casa, amedrontadora:
Botar a gente pra fora... Não tem homem que me bota daqui pra fora, eu te digo, Militão... A brisa soprou, a luz do fifó era vacilante, um cheiro de terra enchia a casa:
Nem que eu me desgrace e desgrace um comigo.
Os grilos multiplicavam-se na noite recém-chegada e na lonjura da caatinga uns sons de harmônica cortaram o silêncio.

Jorge Amado, in Seara Vermelha

Noites Tropicais | Rio de Janeiro, 1957

Eu não gostava de música.
Só as de carnaval, nas chanchadas da Atlântida. O rádio era para futebol e programas humorísticos.
Com 13 anos, meus maiores interesses eram literários, esportivos e sexuais. A música, pelo menos a que se ouvia no rádio e nos discos, era insuportável para um adolescente de Copacabana no final dos anos 50. Boleros e sambas-canções falavam de encontros e desencontros amorosos infinitamente distantes de nossas vidas de praia e cinema, de livros e quadrinhos, de início da televisão e da ânsia de modernização.
Para nós, garotos de classe média de Copacabana, aqueles cantores da Rádio Nacional e suas grandes vozes, dizendo coisas que não nos interessavam em uma linguagem que não entendíamos, eram abomináveis. Gostávamos mesmo era de praia e futebol, de ver Pelé e Garrincha no Maracanã, dos folhetins de Nelson Rodrigues na Última Hora, das gostosonas da coluna de Stanislaw Ponte Preta, das crônicas de Antonio Maria sobre as noites cariocas, de pegar onda de peito no Arpoador, de romances de aventura e de comédias italianas. E de corridas de cavalos: meu grande ídolo era o jóquei Luiz Rigoni. Apostava — e perdia — no Jockey Club e nos bookmakers até o dinheiro que minha mãe me dava para o lanche no Colégio Santo Inácio. Com 14 anos comecei a nadar todos os dias de manhã nos infanto-juvenis do Fluminense e abandonei meu primeiro vício.
Mas naquelas férias de 1958, em São Paulo, não só comecei a fumar como ouvi num rádio de pilha Spica — a nova sensação tecnológica, novidade absoluta recém-chegada ao Brasil — João Gilberto cantando, “Chega de saudade”. Foi como um raio. Aquilo era diferente de tudo que eu já tinha ouvido, fiquei chocado, sem saber se tinha adorado ou detestado. Mas quanto mais ouvia, mais gostava. Na volta ao Rio comprei o disco, comi a cozinheira e abandonei a natação.
Além de sexo e futebol, só queria saber de João Gilberto e a bossa nova, que ninguém sabia bem o que era. Minha mãe também. Ela adorava música, compunha e tocava foxes e blues no piano, e estava fascinada com João e a nova música. Com ela e meu pai fui a um show no auditório da Escola Naval, a “Operação bossa nova”, produzido e apresentado por Ronaldo Bôscoli, que vi pela primeira vez no palco, de terno e gravata, e achei charmosíssimo, explicando entre um número e outro que bossa nova era o moderno, o novo, o diferente, que era “um estado de espírito”. Foi também onde vi e ouvi pela primeira vez Nara Leão, timidíssima, cantando de uma maneira que fiquei sem saber se gostava ou não. Mas sem dúvida queria ver de novo: ela era de uma beleza estranha, tinha uma bocona, uns olhos meio caídos que lhe davam um ar de musa existencialista, um cabelo muito liso e muito escuro e uma pele muito branca, um fio de voz e um charme discretíssimo, sem dúvida ela era diferente. A cara da bossa nova.
No show, Lúcio Alves, Alayde Costa e Sylvinha Telles (que eu conhecia vagamente) e os desconhecidos Carlinhos Lyra, Oscar Castro Neves e Nara cantavam e tocavam umas músicas muito diferentes de tudo que se ouvia no rádio e na televisão, parecidas com as que João cantava. Eles se apresentavam de uma maneira mais informal e intimista, as músicas pareciam mais leves e melodiosas e as letras falavam de situações e pessoas parecidas com a vida que se levava nos apartamentos, nas praias e nas ruas de Copacabana naqueles anos bacanas.
A bossa nova era a trilha sonora que nos faltava, que nos diferenciaria dos “quadrados” e dos antigos, dos românticos e melodramáticos, dos grandiloquentes e dos primitivos, dos nacionalistas e regionalistas, dos americanos. Tínhamos uma música que imaginávamos só para nós. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria.
Em 1959, João Gilberto era um sucesso nacional, era adorado e detestado, acusado de desafinado e de afeminado, celebrado como o inventor de um novo gênero musical. Eu o ouvia apaixonadamente como o criador de uma maneira nova de cantar e tocar, com um mínimo de voz e um máximo de precisão, com harmonias e ritmos que refinavam e sofisticavam qualquer canção.
Com ele conheci a música de Tom e Vinícius, de Newton Mendonça e Carlos Lyra, de Caymmi e Ary Barroso e dos grandes mestres brasileiros, que entraram em meus ouvidos, cabeça e coração, em minha vida para sempre.
Porque antes eu não sabia nada de música, não ligava, não prestava atenção. Música não estava nos meus sonhos nem em minhas memórias. Gostava mesmo era de ler e de escrever, de ouvir e de contar histórias.

Nelson Motta, in Noites Tropicais

Bernborough


Para dias como esse, Henry tinha regras.
Primeiro, cerveja.
Segundo, tinha que ser gelada.
Por isso, deixou Tommy, Clay e Aurora no cemitério e ficou de encontrá-los mais tarde, no parque Bernborough.
(O parque Bernborough, para quem não conhece a região, é uma velha pista de atletismo. Na época, tinha uma arquibancada caindo aos pedaços e um estacionamento que mais parecia uma zona de guerra. Também foi palco dos mais famigerados treinos de Clay.)
No entanto, antes de entrar no carro, Henry sentiu necessidade de passar algumas instruções de última hora para Tommy. Aurora também estava prestando atenção.
Se eu me atrasar, fala pro pessoal esperar um pouco, entendeu?
Entendi, Henry.
E manda eles já separarem o dinheiro.
Entendi, Henry.
Essa merda de “Entendi, Henry” significa que você entendeu mesmo?
Sim.
Continua assim que eu coloco você para correr com ele. É isso que você quer?
Não, Henry, obrigado.
Isso aí, garoto esperto.
Um sorriso breve despontava de uma mente zombeteira e treinada. Deu um tapinha leve certeiro na orelha de Tommy e então agarrou Clay, dizendo:
E você... vê se me faz um favor. — Segurou o rosto do irmão. — Não deixa esses dois moleques para trás.

***

Na nuvem de poeira que o carro deixou, a cachorra olhou para Tommy.
Tommy olhou para Clay.
Clay não olhou para nenhum dos dois.
Pôs a mão no bolso e sentiu, e dentro de si havia tanto querer — queria sair dali, sair correndo de novo —, mas, com a cidade se derramando à frente deles e o cemitério atrás, ele deu dois passos e enfiou Aurora debaixo do braço.
Clay se levantou, e a cachorrinha sorria.
Os olhos dela eram como trigo e ouro.
Aurora ria para o mundo sob suas patas.

***

Eles já estavam na avenida Entreaty, no topo da grande colina que tinham acabado de subir, quando, por fim, Clay botou a cachorrinha no chão. Passaram por cima das árvores de jasmim-manga mortas no caminho para a avenida Poseidon, que era a principal sede do turfe naquela área. Um quilômetro e meio de lojas enferrujadas.
Enquanto Tommy estava doido para ir à pet shop, Clay trocaria tudo por outros lugares; pelas ruas e pelos monumentos a ela.
Lonhro, pensou ele.
A alameda de Bobby.
A praça Peter Pan e seus paralelepípedos.
Ela tinha cabelo castanho-avermelhado e olhos verdes gentis, e era aprendiz de Ennis McAndrew. Seu cavalo preferido era o El Matador. Sua corrida preferida era sempre a de Cox Plate. Seu vencedor preferido dessa corrida foi o poderoso Kingston Town, uns trinta anos antes. (As melhores coisas sempre acontecem antes de nós nascermos.)
O livro que ela lia era O marmoreiro.
Um dos três que foram importantes para tudo.

***

Fritando no calor da avenida Poseidon, os meninos e a cachorra continuaram caminhando, e logo ela se revelou: a pista de atletismo.
Foram andando e entraram por uma brecha na cerca ao lado.
Na reta, ao sol, eles aguardaram.
Em minutos, surgiu o grupo de sempre — meninos-abutres sobrevoando a carcaça do campo esportivo: as raias da pista cobertas de erva daninha, o chão vermelho todo descascado, a pista transformada em selva.

Olha lá — disse Tommy, apontando.
Chegavam mais e mais meninos, em toda a sua glória do auge da puberdade. Mesmo de longe dava para ver os sorrisos nos rostos bronzeados e contar as cicatrizes do subúrbio. Também dava para sentir: exalavam o cheiro daquele estado de eternos homens-quase-feitos.
Durante um tempo, Clay ficou na raia de fora, observando-os. Bebiam, coçavam o sovaco. Atiravam garrafas. Alguns chutavam as escaras das pistas. Até que, por fim, ele decidiu que já era hora.
Pôs a mão no ombro de Tommy e foi até a sombra da arquibancada.
A escuridão o engoliu.

Markus Zusak, in O construtor de pontes