Névoa

کره اسبی سفید،
از مه میآید
و ناپدید میشود
در مه.

Um potro branco
vem da névoa
e se esvai
na névoa.

Abbas Kiarostami, in Nuvens de algodão

Capítulo 77 | Entrevista

Virgília entrou risonha e sossegada. Os tempos tinham levado os sustos e vexames. Que doce que era vê-la chegar, nos primeiros dias, envergonhada e trêmula! Ia de sege, velado o rosto, envolvido numa espécie de mantéu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe. Da primeira vez deixou-se cair no canapé, ofegante, escarlate, com os olhos no chão; e, palavra! em nenhuma outra ocasião a achei tão bela, talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.
Agora, porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as entrevistas entravam no período cronométrico.
A intensidade de amor era a mesma; a diferença é que a chama perdera o tresloucado dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios, tranquilo e constante, como nos casamentos.
Estou muito zangada com você, disse ela sentando-se.
Porquê?
Porque não foi lá ontem, como me tinha dito. O Damião perguntou muitas vezes se você não iria, ao menos, tomar chá. Por que é que não foi?
Com efeito, eu havia faltado à palavra que dera, e a culpa era toda de Virgília. Questão de ciúmes. Essa mulher esplêndida sabia que o era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na antevéspera, em casa da baronesa, valsara duas vezes com o mesmo peralta depois de lhe escutar as cortesanices, ao canto de uma janela. Estava tão alegre! tão derramada! tão cheia de si! Quando descobriu, entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e ameaçadora, não teve nenhum sobressalto, nem ficou subitamente séria; mas deitou ao mar o peralta e as cortesanices.
Veio depois a mim, tomou-me o braço, e levou-me até outra sala, menos povoada, onde se me queixou de cansaço, e disse muitas outras coisas, com o ar pueril que costumava ter, em certas ocasiões, e eu ouvi-a quase sem responder nada.
Agora mesmo, custava-me responder alguma coisa, mas enfim contei-lhe o motivo da minha ausência... Não, eternas estrelas, nunca vi olhos mais pasmados. A boca semiaberta, as sobrancelhas arqueadas, uma estupefação visível, tangível, que se não podia negar, tal foi a primeira réplica de Virgília; abanou a cabeça com um sorriso de piedade e ternura, que inteiramente me confundiu.
Ora você!
E foi tirar o chapéu, lépida, jovial, como a menina que torna do colégio; depois veio a mim, que estava sentado, deu-me pancadinhas na testa, com um só dedo, a repetir: - Isto, isto; – e eu não tive remédio senão rir também, e tudo acabou em galhofa. Era claro que me enganara.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

A carga do O-fune-sama


[...]
Os barcos permaneceram ao redor do navio por algum tempo antes de começar a transportar o que parecia ser a carga do navio para a praia. Essa atividade se tornou mais intensa à medida que os barquinhos faziam o percurso entre a praia e o navio.
As velas sem vida foram removidas e o mastro cortado e lançado na água. Um dos barcos se dirigiu para o ponto onde o mastro flutuava e o rebocou para a praia. A carga foi empilhada na praia e parecia realmente ser composta de fardos de arroz.
Sentindo fome, Isaku comeu alguns dos feijões que tinha trazido.
É uma carga e tanto — disse Gonsuke, a voz trêmula enquanto olhava para baixo.
Isso é mais do que outros O-fune-sama do passado? — perguntou Isaku.
Houve alguns navios bem grandes, mas esse volume de carga não é comum. Há muita coisa ali na praia, e ainda não tiraram tudo do navio.
Os olhos de Gonsuke brilhavam de excitação. Sem dúvida, ele sabia o que estava falando, já que exercia a função de vigia toda vez que O-fune-sama aparecia. Isaku sentiu o excitamento crescer dentro de si ao pensar na excepcional quantidade de carga.
O que você acha que tem a bordo? — perguntou ele.
Bem, antes de mais nada, deve haver arroz, e talvez mercadorias como feijão, tecidos, louça, tabaco, papel para escrever, óleo e açúcar. Uma vez houve um barco que carregava vinte caixas de vinho — disse ele, mostrando os dentes lascados ao sorrir.
Por volta da hora do pôr-do-sol, finalmente pareceu a Isaku que a carga do navio fora toda removida. A atividade na baía começou a diminuir, a maioria dos barcos foi empurrada para a areia, e os habitantes da aldeia começaram a carregar os volumes da praia para a casa do chefe.
A neve nas montanhas que se erguiam atrás da aldeia ficaram tingidas de púrpura antes de dar lugar à noite. Lá embaixo na praia a luz do fogo subitamente piscou, e a aldeia mergulhou na escuridão.
Isaku ajudou Gonsuke a cavar na neve profunda que se acumulara por trás de uma pedra enorme, forrando o interior com folhas secas e grama. Depois eles cruzaram varetas por cima do buraco e colocaram casca de árvore por cima, então entraram no buraco e deitaram um de costas para o outro.
Apesar da temperatura fria, o ar dentro do buraco foi ficando cada vez mais quente. Gonsuke começou a roncar.
Isaku ficou ali deitado no escuro, os olhos bem abertos. Sem dúvida o chefe da aldeia faria com que os presentes de O-fune-sama fossem distribuídos igualmente entre todas as famílias, de acordo com o número de pessoas em cada uma. Como a maior parte da carga com certeza consistia em arroz, Isaku ficou imensamente feliz com a ideia de saborear tal delícia. Seu irmão e irmã menores nunca tinham experimentado arroz, e ele mal podia esperar o momento de servir a eles sopa de arroz. Podia imaginar como o delicioso gosto adocicado da sopa branca os deixaria surpresos.
Gonsuke devia estar certo quanto ao teor da carga, e naturalmente isso queria dizer que cada família poderia esperar receber uma quantidade generosa de alimento e outras coisas. Sem quantidade excedente de saury para vender, e com a fraca pesca de polvos no outono, que permitira que comprassem apenas uns poucos grãos, a chegada de O-fune-sama era a salvação da aldeia, e significava o fim do medo da fome. Se usado de forma adequada, o presente duraria por dois ou até três anos. Não haveria necessidade de mais pais de família se venderem como servos, e todos poderiam viver em paz e em segurança por um bom tempo. Tami ficaria com a família, e Takichi continuaria a passar seus dias como pescador e pai de seu filho.
Isaku colocou a mão no peito. A chegada de O-fune-sama devia-se à intervenção divina, e Isaku queria oferecer uma oração de gratidão, do fundo do coração.
O som das ondas quebrando ao pé do promontório parecia reverberar até o centro da terra. Antes que se desse conta, ele já estava dormindo.
Isaku acordou sendo sacudido pelo ombro.
Gonsuke se levantou e afastou os galhos e casca de árvore que cobriam o buraco. Isaku sentiu o ar frio entrar. Ainda havia estrelas no céu, mas estavam perdendo o brilho.
Isaku rastejou para fora do buraco. Gonsuke estava assoprando para reavivar as brasas do fogo, e em pouco tempo mais galhos estavam queimando.
Isaku se aqueceu ao fogo enquanto olhava para o mar. O dia nascia, o mar estava calmo. Lá embaixo, na baía, o trabalho já havia começado; ele via o que deviam ser tochas instaladas nos barcos que se moviam na água, assim como no navio naufragado.
Gonsuke cozinhou dois saury salgados no fogo, entregando um para Isaku. A gordura pingava do peixe quente, e ele o comeu com os feijões, o que neutralizou o sabor salgado do saury, produzindo um gosto incrivelmente bom.
O dia raiou, e o mar foi envolto na claridade da manhã. Borrifos de água subiam uns atrás dos outros no costado do navio enquanto pranchas de madeira e toras eram lançadas na água.
Parece que eles estão desmontando O-fune-sama — disse Isaku, forçando os olhos para ver o que estava acontecendo.
É porque o barco é feito de madeira boa. Pode ser usada para qualquer coisa. Há pregos e dobradiças ali também. E todas as panelas e jarros da cozinha, sem falar nas facas, baldes e cuias de arroz. Às vezes eles têm até armários ou baús — disse Gonsuke, entusiasmado.
Agora Isaku compreendia por que os mais velhos tinham se preocupado em pegar serras, machados e enxadas. O navio estava sendo desmontado e a madeira era lançada na água.
Os barcos rebocavam a madeira para a praia, onde era empilhada na areia. Dali seria carregada para a floresta atrás da aldeia.
Isaku e Gonsuke olharam para o mar; não havia sinal de barcos. Ao leste podiam ver agora grupos de aves marinhas circulando no ar como flocos de neve, e os reflexos de um cardume de peixes subindo à superfície logo abaixo deles. Não se via nenhuma fumaça do outro lado da baía tampouco, na Ponta da Maré.
Dois barcos pequenos começaram a se mover, afastando-se do navio e seguindo na direção do promontório onde Isaku e Gonsuke se encontravam.
Eles estão levando os corpos para longe — explicou Gonsuke.
Isaku prestou atenção. Podia ver claramente um volume coberto com esteiras de palha no fundo dos barcos. Finalmente, os barcos sumiram de vista, um depois do outro, lá embaixo ao pé do cabo.
O tumulto ao redor do navio continuava, e logo o barco perdeu seu aspecto original. O trabalho prosseguia depressa, e parte da popa, onde ficava o leme quebrado, já tinha desaparecido. Isaku viu um barco carregando as velas.
Logo depois da Hora do Cavalo, a única parte que restava nas pedras era o fundo do casco. Havia pessoas em pé no recife trabalhando no navio com velocidade impressionante.
Quando a madeira do que pareciam ser beliches foi rebocada, tudo que restou flutuando na água foram pedaços da quilha. Quando estes foram rebocados para a praia, os últimos destroços do navio desapareceram da baía rochosa, deixando nada além de um mar plácido.
Alguma vez você viu um barco vindo para cá quando estava de vigia? — perguntou Isaku, aos poucos perdendo o interesse na atividade lá embaixo.
Sim, eu vi. Dois em um mesmo dia — disse Gonsuke, olhando para o mar.
Um fio de fumaça ergueu-se no ar.
É o sinal de que eles terminaram. É para nós também — disse Gonsuke, jogando neve no fogo. — Vamos descer e dar uma olhada no que eles conseguiram. Parecia ser um casco de bom tamanho — acrescentou ele, balançando o machado que foi equilibrado no ombro.
Isaku seguiu Gonsuke pela floresta, contornando as árvores enquanto se esforçava para acompanhar os passos rápidos do outro. Animado, ele sentia como se estivesse flutuando no ar. Sem dúvida sua mãe e Isokichi tinham trabalhado o dia todo junto com os outros da aldeia.
Ele queria tomar parte na animação da vila o mais depressa possível. Quando chegaram à trilha na montanha, Gonsuke, com o machado no ombro, apressou o passo, começando a correr, com Isaku logo atrás, impaciente para ver os presentes que O-fune-sama havia trazido.
Saindo do meio das árvores, eles avistaram a praia lá embaixo, à direita. Esperavam ver as pessoas dançando e comemorando, mas em vez disso todos estavam imóveis perto da água. Surpreso, Isaku parou de correr por um segundo, mas, como Gonsuke continuou em frente encosta abaixo, ele o seguiu.
Gonsuke deixou a trilha e entrou na praia. Ofegante, Isaku caminhou até onde todos se encontravam.
Os habitantes da aldeia estavam reunidos ao redor do chefe, as palmas unidas, olhando para o mar. Isaku finalmente compreendeu que estavam oferecendo preces em agradecimento pelos presentes que o mar trouxera. Quando o chefe da aldeia terminou a oração, o velho parado ao lado dele virou-se para os outros e com a voz animada disse:
Muito bem. Seu trabalho deixou o chefe feliz. Agora vão para casa e passem o resto do dia orando para seus ancestrais. O presente de O-fune-sama será avaliado amanhã.
O chefe deixou o local perto da água, seguido pelos outros, sem que ninguém dissesse uma palavra, mas o brilho em seus olhos e o largo sorriso diziam tudo. Empurrado por Gonsuke, Isaku deu um passo, parando diante do velho. O velho ficou satisfeito quando Gonsuke disse que não tinha havido sinal algum de navios se aproximando.
Isaku se curvou reverentemente e caminhou para casa. Quando afastou a esteira de palha pendurada à porta para entrar em casa, a mãe virou-se para ele sem parar de orar diante do ihai, a placa ancestral de sua família. Ela parecia completamente diferente, o rosto corado de felicidade, os cantos da boca virados para cima de um modo que Isaku nunca tinha visto antes.
Ele entrou, juntou as palmas diante da placa ancestral e sentou-se junto do fogo. Sentindo outra onda de felicidade, conteve-se para não pular e dançar pela sala.
O sol tinha começado a se pôr e a temperatura caía. A mãe começou a aquecer o jarro de água com as sementes de trigo-mouro, então pegou um pouco de saury salgado e colocou junto do fogo. Obviamente a refeição seria muito mais generosa que de costume.
O que havia em O-fune-sama? — perguntou Isaku à mãe.
Arroz, muito arroz — disse ela pausadamente, para aumentar o efeito.
E o que mais?
Havia algodão e também óleo de semente de coza. Cera, chá, vinho e molho de soja, vinagre e tapetes. Mas o arroz... Este O-fune-sama era um navio de arroz — disse a mãe, animada.
Que grande dia é este, pensou Isaku. Era uma alegria ver sua mãe tão falante, e ele sentia que a alegria dela estava contagiando não apenas a ele mas também seu irmão e a irmã; eles estavam sentados, sorrindo, ao seu lado. Quando as sementes de trigo começaram a boiar na água, a mãe acrescentou legumes e algas. A sala ficou escura e os rostos deles tinham reflexos vermelhos por causa das chamas. A fumaça começou a subir dos saury colocados no fogo. A mãe encheu as cuias uma a uma, serviu Isaku primeiro, depois o irmão e então a irmã, antes de se servir.
Isaku mordiscou um saury e tomou um gole da sopa de legumes. No dia seguinte o arroz seria distribuído, e ele se sentia nas nuvens com a ideia de ver a expressão do irmão e da irmã quando experimentassem sopa de arroz pela primeira vez.
Só mais um ano e um pouquinho agora — sussurrou a mãe quando pegou sua cuia.
Isaku olhou para ela, imaginando o que ela queria dizer, mas logo percebeu pelo brilho em seus olhos que ela estava pensando em seu pai. Ele tinha partido para um contrato de servidão de três anos, que terminaria mais ou menos na época em que a neve derretesse no ano seguinte ao próximo. Parte dos presentes de O-fune-sama sem dúvida ainda existiria, o que tiraria um peso da consciência de seu pai. Se os encontrasse passando fome, o pai poderia considerar a ideia de se vender como servo mais uma vez; mas agora tal medo estava afastado.
[…]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

O amanhã | João Sérgio e Didi, 1978


Na época em que este arrebatador samba-enredo foi apresentado na avenida, no carnaval de 1978, pela União da Ilha do Governador, o gênero já vivia sob o ataque de críticos, que reclamavam da descaracterização, do ritmo acelerado e da vulgaridade dos refrões levanta-povo.
O amanhã”, porém, mostrou que o samba-enredo tinha mudado, mas atingia um de seus pontos mais altos. Não só nos desfiles e muito além daquele carnaval. Puxado na avenida por Aroldo Melodia e também gravado por Elizeth Cardoso, estourou no Brasil inteiro quatro anos depois. Regravado por Simone no álbum Delírio e delícias, ganhou as rádios, virando um dos maiores sucessos da cantora baiana.
Fundada em 1953, a União da Ilha ascendeu ao grupo especial em 1975 e passou a competir com as tradicionais Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano. Seu ponto forte eram os enredos inusitados e os sambas empolgantes, criados por um advogado e procurador federal, Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, que se escondia sob o pseudônimo de Didi por pressão da família tradicional, contrária ao seu envolvimento com o mundo do samba. Gustavo chegou a abrir mão da autoria de alguns sambas, que foram atribuídos a outros compositores, como “O amanhã”, assinado apenas pelo parceiro João Sérgio.
Mas, como contam os escritores Luiz Antonio Simas e Alberto Mussa, sobrinho do compositor, no livro Samba de enredo: história e arte (2010), “O amanhã” é um dos clássicos de Didi, incluindo a riqueza melódica e a cadência das palavras que marcavam seu estilo.
Até morrer, em 1987, aos 52 anos, de cirrose, o sambista-advogado venceu 24 disputas em escolas, sendo 16 na União da Ilha, quatro no Salgueiro e quatro no Bloco do Boi da Freguesia. Em 1991 foi homenageado pela União da Ilha com o enredo De bar em bar, Didi um poeta.
Além de “O amanhã”, Didi é autor de outro grande sucesso que prosseguiu muito além da avenida, “É hoje” (parceria com Mestrinho), popularizada por Caetano Veloso e Fernanda Abreu, um clássico que poderia se alternar com “O amanhã” nesta lista.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Fúria nas trevas o vento

Fúria nas trevas o vento
Num grande som de alongar
Não há no meu pensamento
Senão não poder parar

Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.

Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.

Fernando Pessoa, in Poesia

Aprender a Ver

Aprender a ver — habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados. Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não reagir imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem obstáculos, que isolam. Aprender a ver, tal como eu o entendo, é já quase o que o modo afilosófico de falar denomina vontade forte: o essencial nisto é, precisamente, o poder não “querer”, o poder diferir a decisão. Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade descansa na incapacidade de opor resistência a um estímulo — tem que se reagir, seguem-se todos os impulsos. Em muitos casos esse ter que é já doença, decadência, sintoma de esgotamento, — quase tudo o que a rudeza afilosófica designa com o nome de “vício” é apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir. — Uma aplicação prática do ter-aprendido-a-ver: enquanto discente em geral, chegar-se-á a ser lento, desconfiado, teimoso. Ao estranho, ao novo de qualquer espécie deixar-se-o-á aproximar-se com uma tranquilidade hostil, — afasta-se dele a mão. O ter abertas todas as portas, o servil abrir a boca perante todo o fato pequeno, o estar sempre disposto a meter-se, a lançar-se de um salto para dentro de outros homens e outras coisas, em suma, a famosa “objetividade” moderna é mau gosto, é algo não-aristocrático par excellence.

Friedrich Nietzsche, in Crepúsculo dos Ídolos

O meio e os meios

Não me espantam esses escritores que são, evidentemente, o genuíno produto do meio. Mas os que são um produto contra o meio. Exemplo? Um Edgar Allan Poe. E, entre nós, Machado de Assis.
Quanto ao velho Machado, direis que o seu temário, a sua vivência, que o seu meio, em suma, nada podia ser mais brasileiro.
O seu meio, sim; mas os seus meios, não. O próprio estilo dele (delícia minha) decerto que se afigurava, aos frondosos escritores da época, um verdadeiro antiestilo. Cruzes! Seria ele o Anticristo?
E fico a imaginar o que teria dito, então, o Coelho Netto para o Graça Aranha:
Não há de ser nada, meu velho, não há de ser nada... A nossa salvação é o Ruy Barbosa.

Mário Quintana, in Caderno H

As rãs | 5.


Minha tia havia chegado fazia tempo à idade de se casar. Mas ela ganhava seu próprio salário, ocupava função pública, comia grão comercial* e tinha uma origem familiar tão gloriosa que nenhum rapaz da aldeia nem sequer ousava pensar na possibilidade de pedir sua mão. Aos cinco anos, eu já ouvia com frequência minha tia-avó e minha avó conversarem sobre o casamento da minha tia. Minha tia-avó dizia, aflita: “‘Tia’,** veja só, Coração já está com vinte e dois anos. As outras moças dessa idade estão todas casadas, com dois filhos, mas Coração não recebeu sequer um pedido de casamento até agora. Como pode ser isso?”. E minha avó dizia: “Cunhada, para que tanta pressa? Uma moça como ela ainda vai se casar com um nobre, quem sabe, e virar imperatriz! Aí você vai ser sogra do imperador e entramos todos para a casa imperial, com certeza alguma benesse há de sobrar para nós!”. Minha tia-avó dizia: “Bobagem! Faz tempo que a revolução derrubou o imperador, vivemos na República Popular, quem manda agora é o presidente!”. Minha avó dizia: “Se é o presidente que manda, então vamos casar Coração com o presidente!”. Minha tia-avó dizia, furiosa: “Mas você, hein, está de corpo presente numa nova era e a cabeça ficou no passado, no tempo antes da Libertação”. Minha avó retrucava: “Não sou como você, passei a vida inteira nesta aldeia, você foi à Zona Liberada, foi a Pingdu”. Minha tia-avó dizia: “Nem me fale de Pingdu, falar desse lugar me dá arrepios! Fui sequestrada por aqueles demônios japoneses, o que passei lá foi um pesadelo e não um recreio!”. As duas cunhadas falavam e falavam até começarem a brigar. Minha tia-avó saía furiosa, como se nunca mais fosse voltar. No dia seguinte, estava ali de novo. Quando via as duas conversarem sobre esse assunto, minha mãe tinha de esconder o riso.
Lembro-me daquele fim de tarde em que a vaca lá de casa pariu um bezerro. Não sei se foi a vaca que imitou minha mãe, ou se foi o bezerro que seguiu meu exemplo: pôs primeiro uma perna para fora e ficou entalado. A vaca mugia desesperada, parecia sofrer terrivelmente. Preocupadíssimos, meu avô e meu pai esfregavam as mãos, batiam os pés, andavam em círculos sem saber o que fazer. A vaca é a menina dos olhos dos camponeses, ainda mais se pertence à coletividade e foi confiada aos nossos cuidados. Se morresse, aí sim estaríamos em apuros. Minha mãe chamou minha irmã num canto e disse a ela: “Filha, parece que sua tia já está de volta”. Minha irmã saiu correndo antes mesmo que ela terminasse a frase. Meu pai lançou à minha mãe um olhar atravessado: “Você não tinha nada que se meter nisso! Ela trabalha com gente!”. E minha mãe respondeu: “Gente ou bicho, a lógica é a mesma!”.
Minha tia e minha irmã chegaram juntas.
Assim que entrou pela porta, a tia explodiu: “Vocês querem me matar de cansaço? Já ando ocupada demais com gente e vocês ainda me chamam para cuidar de vaca!”.
Irmãzinha”, sorriu minha mãe, “quem mandou você ser da família? Quem mais podíamos procurar? Não dizem que você é um bodisatva de carne e osso? Pois um bodisatva ajuda todos os seres a atravessar o oceano da existência, socorre tudo que é ser vivo, a vaca pode ser um animal, mas também é um ser vivo, vai lhe negar socorro quando estiver à beira da morte?”
Cunhada”, disse minha tia, “ainda bem que você não sabe ler, se soubesse ler mais que duas cestas de palavras, quem é que poderia com você nesta aldeia?”
Mesmo que eu soubesse oito cestas de palavras, nem chegaria aos seus pés, irmãzinha”, respondeu minha mãe.
Minha tia ainda estava de cara amarrada, mas era evidente que a raiva tinha passado. Já estava escuro, minha mãe acendeu as lamparinas da casa, aumentou os pavios e levou tudo para o estábulo.
Assim que viu minha tia, a vaca dobrou as duas pernas dianteiras e ajoelhou-se. Vendo o animal nessa posição, minha tia desatou a chorar.
Todos nós choramos com ela.
Minha tia examinou a vaca e disse, misturando gozação e piedade: “Mais um que quer nascer pela perna”.
Mandou que a gente fosse para o pátio, receava que ficássemos muito impressionados com a cena. Ouvíamos a tia dar ordens em voz alta e imaginávamos nossos pais sob o seu comando, ajudando a vaca a parir. Era o dia 15 do calendário lunar, quando a lua assoma pelo sudeste e derrama no mundo um brilho imaculado. “Pronto, nasceu!”, gritou a tia.
Entramos empolgados no moinho, que servia de estábulo, e vimos ao lado da vaca um bezerrinho coberto de um líquido viscoso. “Que bom, é uma bezerrinha!”, disse meu pai, animado.
Minha tia se zangou: “Que estranho, quando a mulher tem uma menina os homens torcem o nariz, mas quando a vaca tem uma bezerra, ficam rindo de orelha a orelha”.
Meu pai falou: “Mas a bezerrinha quando crescer vai dar cria”.
E a gente? A menina quando cresce não vai ter filhos?”, questionou minha tia.
Mas aí é diferente”, disse meu pai.
Diferente como?”, ela perguntou.
Percebendo que minha tia se exaltava, meu pai encerrou a conversa por aí.
A vaca virou a cabeça e começou a lamber o líquido viscoso da bezerrinha. Sua língua parecia conter algum remédio milagroso, distribuía vigor por onde passava. Assistíamos à cena profundamente emocionados. Olhei minha tia pelo canto do olho, ela estava com a boca entreaberta e os olhos cheios de ternura, como se fosse ela que estivesse sendo lambida pela vaca, ou como se ela mesma lambesse a cria. Depois de ter sido quase toda lambida pela mãe, a bezerrinha se levantou, trêmula.
Fomos buscar bacia, água, sabão e toalha para minha tia lavar as mãos.
Sentada diante do fogão, minha avó atiçava o fogo com um fole. Minha mãe, em pé na frente do kang, abria a massa de macarrão.
Minha tia terminou de lavar as mãos e disse: “Estou morta de fome. Hoje vou jantar aqui na sua casa”.
Aqui é sua casa também, não é?”, respondeu minha mãe.
Pois é”, emendou a avó, “até parece que não comemos da mesma panela por tantos anos.”
Nisso, minha tia-avó gritou do outro lado do muro chamando a tia para comer. Minha tia gritou de volta: “Não posso trabalhar para eles de graça, vou comer aqui”. Minha tia-avó preveniu: “Sua tia vive na penúria, se você comer uma tigela de macarrão aí, ela vai se lembrar disso para o resto da vida”. Minha avó correu para o muro com o pau de atiçar fogo na mão: “Se está com tanta vontade, venha comer conosco. Se não quiser, volte para o seu canto”. Minha tia-avó desdenhou: “Não como dessa sua comida nem morta”.
Quando o macarrão ficou pronto, minha mãe serviu uma tigela bem cheia e mandou minha irmã levar para minha tia-avó. Só muitos anos depois fiquei sabendo que minha irmã, na pressa, tropeçou e caiu como um cachorro que despenca na merda, derrubou todo o macarrão e ainda quebrou a tigela. Para livrar a sobrinha-neta do puxão de orelha, minha tia-avó pegou uma tigela de sua cozinha, deu à minha irmã e mandou-a de volta para casa.
Minha tia é muito conversadeira, sempre adoramos ouvi-la. Terminada a refeição, sentou-se na beirada do kang com as costas apoiadas na parede e começou a desfiar seu repertório. Ela cruzou o batente de muitas casas, viu todo tipo de gente, ouviu muitas histórias. Quando contava um caso, não economizava nas cores fortes. Isso deixava sua narrativa tão envolvente quanto a de um contador profissional. No início dos anos 1980, assistíamos ao programa da contadora de histórias Liu Lanfang na televisão e minha mãe comentou: “Não é igualzinha a sua tia? Se ela não fosse médica, daria uma boa contadora de histórias!”.
A conversa daquela noite, mais uma vez, começou com o choque de inteligência e coragem entre minha tia e o comandante Sugitani em Pingdu. “Eu tinha sete anos naquele tempo”, disse ela, me lançando um olhar, “era mais ou menos do tamanho de Corre Corre quando fui levada para Pingdu com sua tia-avó e sua bisavó. Ao chegar lá, fomos trancadas num quarto escuro. A porta era guardada por dois enormes cães-lobos acostumados a comer carne humana. Quando viram a criança que eu era, lamberam os beiços. Sua tia-avó e sua bisavó choraram a noite toda, mas eu não chorei, encostei a cabeça e dormi até clarear o dia. Ficamos não sei quantos dias e quantas noites trancadas naquele quarto escuro, até que nos levaram para um pequeno pátio isolado onde crescia um pé de lilás. Ah, que perfume! Até fiquei tonta. Uma autoridade local chegou de túnica e chapéu para dizer que o comandante Sugitani queria oferecer um banquete para a gente. Sua bisavó e sua tia-avó só sabiam chorar, não se atreviam a sair do lugar. Aquele senhor então me disse: ‘Mocinha, tente convencer sua avó e sua mãe, diga a elas para não ter medo. O comandante Sugitani não tem intenção de fazer mal a vocês, ele só quer ficar amigo do dr. Wan Seis Vísceras’. Eu disse: ‘Vó, mãe, parem de chorar, de que adianta chorar? O choro vai fazer a gente criar asas? Vai derrubar a Grande Muralha?’. O cavalheiro disse, batendo palmas: ‘Falou muito bem, a mocinha é muito esperta, quando crescer será uma pessoa extraordinária’. Assim eu convenci as duas a parar de chorar. Acompanhando o cavalheiro, subimos numa charrete puxada por um burro preto e demos não sei quantas voltas. Entramos numa mansão com um portão imponente, duas sentinelas guardavam a entrada, à esquerda um pele-amarela,*** à direita, um soldado japonês. A mansão era muito comprida; passado o portão, atravessamos um pátio atrás do outro, parecia que nunca chegaríamos até o final. Por fim, entramos num pavilhão que tinha portas, janelas e divisórias finamente entalhadas, e poltronas feitas de sândalo. O comandante Sugitani, de quimono, segurava um leque dobrável, que abanava com elegância. Só de olhar já dava para saber que era uma pessoa educada. Disse algumas formalidades e nos convidou a tomar nossos lugares à mesa, uma mesa redonda, enorme, forrada com as melhores iguarias. Sua bisavó e sua tia-avó nem tinham coragem de tocar nos pauzinhos, mas eu não fiz cerimônia, fui logo devorando tudo o que aquele cachorro oferecia! Como os pauzinhos atrapalhavam, simplesmente comecei a usar a ‘colher anatômica’, pegava grandes bocados de comida com a mão e enfiava na boca. Sugitani segurava um cálice de bebida e assistia a tudo sorrindo. Satisfeita, limpei as mãos na toalha da mesa e senti o sono chegar. Ouvi a pergunta de Sugitani: ‘Senhorita, não seria ótimo se seu pai pudesse se juntar a nós?’. Arregalei os olhos: ‘Não seria, não’. Sugitani perguntou: ‘Por quê?’. Eu disse: ‘Meu pai é da Oitava Rota, você é japonês, a Oitava Rota luta contra os japoneses, não tem medo de que o meu pai lute com você quando chegar aqui?’.”
Minha tia levantou a manga da camisa para ver as horas. Naquela época, havia menos de dez relógios de pulso em toda Gaomi, e um deles era da minha tia. “Uau!”, exclamou meu irmão mais velho, a única pessoa lá de casa que já tinha visto um relógio de pulso. Ele frequentava o liceu número 1 do distrito e seu professor de russo, que havia estudado na União Soviética, usava um relógio de pulso. Quando terminou seu “uau”, meu irmão gritou: “Um relógio!”. Minha irmã e eu gritamos juntos: “Um relógio!”.
Minha tia fez cara de contrariada e puxou a manga de volta: “É só um relógio, para que tanto alvoroço?”. Seu deliberado pouco-caso só serviu para atiçar nossa curiosidade. Primeiro foi meu irmão mais velho que disse, sondando o terreno: “Tia, até hoje só vi um relógio de longe, o do professor Ji… a senhora me deixa dar uma olhada?”. Nós fizemos coro ao meu irmão: “Tia, tia, deixa a gente ver!”.
Minha tia disse, sorrindo: “Que bando de moleques, o que é que tem para ver num relógio velho?”. Mesmo assim, ela tirou o relógio e entregou-o a meu irmão mais velho.
Minha mãe, ao lado, advertiu em voz alta: “Cuidado com isso!”.
Meu irmão pegou o relógio com todo o cuidado, pousou-o na palma da mão para olhar e, em seguida, levou-o ao ouvido para escutar. Terminado o exame, passou o relógio para minha irmã, que olhou e passou para meu outro irmão. Ele deu uma olhada e nem teve tempo de encostar no ouvido porque o mais velho tomou o relógio dele e devolveu a minha tia. Senti uma pontinha de frustração e chorei.
A mãe ralhou comigo.
Minha tia disse: “Corre Corre, quando crescer, você irá longe, ainda vai se importar de não ter relógio para usar?”.
E alguém como ele vai usar relógio? Qualquer hora dessas eu vou desenhar um com tinta no pulso dele”, disse meu irmão.
Não se pode julgar alguém pela aparência, assim como não se pode medir o mar com uma caneca. Não é por ser feio que Corre Corre não terá chance de ser alguém na vida quando crescer”, disse minha tia.
Se até ele pode ser alguém na vida, então aquele porco no chiqueiro também pode virar tigre!”, disse minha irmã.
Tia, em que país foi fabricado? Qual é a marca?”, perguntou meu irmão.
É um Enicar feito na Suíça”, ela respondeu.
Uau!”, exclamou meu irmão mais velho, seguido pelo outro irmão e pela irmã.
Eu esbravejei, furioso: “Seus metidos!”.
Irmãzinha, quanto custa isso?”, minha mãe perguntou.
Não sei, ganhei de presente”, respondeu a tia.
Que amigo tem coragem de dar um presente tão caro?”, e observando a tia, minha mãe continuou: “Será que é o futuro tio deles, hein?”.
Já é quase meia-noite”, disse minha tia se levantando, “hora de dormir.”
Graças ao céu e à terra! A irmãzinha finalmente vai desencalhar!”, exclamou minha mãe.
Não vá sair por aí dando com a língua nos dentes, ainda não riscamos nem o primeiro traço do oito.**** Minha tia virou-se para nós e advertiu: “E eu esfolo vivo quem sair por aí falando bobagem, ouviram bem?”.
Na manhã seguinte, meu irmão mais velho, talvez com peso na consciência por não ter me deixado ver o relógio da tia, pegou uma caneta e desenhou um relógio no meu pulso. Ficou bem realista, lindo mesmo. E eu era todo zelo e desvelo por aquele “relógio”, cuidava para não o molhar ao lavar as mãos e, se chovia, escondia o braço. Quando a cor esmaecia, pedia emprestada a caneta do meu irmão para reforçar os traços. Assim o “relógio” durou uns três meses no meu pulso.

………………………………….
* Expressão indicativa de status social; quem “come grão comercial” pertence à parcela da população que não precisa cultivar o alimento que consome (funcionários públicos, militares, médicos). [Todas as notas são do tradutor.]
** Era comum na forma de tratamento popular se dirigir aos familiares mencionando o parentesco em relação aos próprios filhos, e não o parentesco direto. Assim, uma mulher pode chamar seu marido de “pai da criança” e sua irmã ou cunhada de “tia da criança”, ou “tia”.
*** Soldado chinês aliado dos japoneses.
**** O ideograma de “oito” em chinês se escreve com dois traços diagonais à maneira de um V invertido. Dizer que nem foi feito “o primeiro traço do oito” significa que não há nada certo, nada definido.

Mo Yan, in As rãs

Soneto 1

Dos seres ímpares ansiamos prole
Para que a flor do Belo não se extinga,
E se a rosa madura o Tempo colhe,
Fresco botão sua memória vinga.

Mas tu, que só com os olhos teus contrais,
Nutres o ardor com as próprias energias
Causando fome onde a abundância jaz,
Cruel rival, que o próprio ser crucias.

Tu, que do mundo és hoje o galardão,
Arauto da festiva Natureza,
Matas o teu prazer inda em botão

E, sovina, esperdiças na avareza.
Piedade, senão ides, tu e o fundo
Do chão, comer o que é devido ao mundo.

William Shakespeare, in Sonetos

Uma senhora

Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro — trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada — cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico. — Econômico? Então se encera mesmo.
O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera — da boa, vê lá! — chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?
Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.
Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia. Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Elcio, Élcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá ideia o que seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas precauções.
Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida — aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota...
E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo — a Folha dizia que era um gesto de Mecenas, mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé.
Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique, confessava. Chegando o carnaval, tirava a forra.
As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros. Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! gasta aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas: — No automóvel, ninguém repara, meu filho — dizia com um sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te? Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata. No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido: — Quanto temos ainda?
Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:
Duzentos e oitenta.
E os oitocentos do automóvel?
Já estão fora.
Ah! Bem... — Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e cinquenta.
O resto ficava para gastar depois do carnaval — mas entrava na verba dele — com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.
Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias — falava. Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro. O “lá dentro” de Dona Quinota era uma coisa complicada, complícadíssima, que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes. Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada.
Brincaram muito? — fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado. — Assim, assim...
Dona Quinota dizia aquele “assim-assim” de propósito. Que lhe importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah! Seu Adalberto exultava:
E isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi? As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros: — Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai! Seu Adalberto corrigiu logo: — Girassol, não, Artur; crisântemo.
Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo ou crisantemo — quer ver que eu disse besteira?
Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de casaca!...
O ano que vem — Dona Quinota falou firme — nós iremos também a pé.
O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é isto? — ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.
A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro. Torreco, torreco. Agora foi a chave — duas voltas. O pigarro do seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum brinco: Que cretinos!
Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca. Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.
Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...

Marques Rebelo, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

Susi

Pudesse eu, e fecharia todos os zoológicos do mundo. Pudesse eu, e proibiria a utilização de animais nos espectáculos de circo. Não devo ser o único a pensar assim, mas arrisco o protesto, a indignação, a ira da maioria a quem encanta ver animais atrás de grades ou em espaços onde mal podem mover-se como lhes pede a sua natureza. Isto no que toca aos zoológicos. Mais deprimentes do que esses parques, só os espectáculos de circo que conseguem a proeza de tornar ridículos os patéticos cães vestidos de saias, as focas a bater palmas com as barbatanas, os cavalos empenachados, os macacos de bicicleta, os leões saltando arcos, as mulas treinadas para perseguir figurantes vestidos de preto, os elefantes mal equilibrados em esferas de metal móveis. Que é divertido, as crianças adoram, dizem os pais, os quais, para completa educação dos seus rebentos, deveriam levá-los também às sessões de treino (ou de tortura?) suportadas até à agonia pelos pobres animais, vítimas inermes da crueldade humana. Os pais também dizem que as visitas ao zoológico são altamente instrutivas. Talvez o tivessem sido no passado, e ainda assim duvido, mas hoje, graças aos inúmeros documentários sobre a vida animal que as televisões passam a toda a hora, se é educação que se pretende, ela aí está à espera.
Perguntar-se-á a que propósito vem isto, e eu respondo já. No zoológico de Barcelona há uma elefanta solitária que está morrendo de pena e das enfermidades, principalmente infecções intestinais, que mais cedo ou mais tarde atacam os animais privados de liberdade. A pena que sofre, não é difícil imaginar, é consequência da recente morte de uma outra elefanta que com a Susi (este é o nome que puseram à triste abandonada) partilhava num mais do que reduzido espaço. O chão que ela pisa é de cimento, o pior para as sensíveis patas destes animais que talvez ainda tenham na memória a macieza do solo das savanas africanas. Eu sei que o mundo tem problemas mais graves que estar agora a preocupar-se com o bem-estar de uma elefanta, mas a boa reputação de que goza Barcelona comporta obrigações, e esta, ainda que possa parecer um exagero meu, é uma delas. Cuidar de Susi, dar-lhe um fim de vida mais digno que ver-se acantonada num espaço reduzidíssimo e ter de pisar esse chão do inferno que para ela é o cimento. A quem devo apelar? À direcção do zoológico? À Câmara? À Generalitat?

José Saramago, in O caderno

O que é arte? | Capítulo VI

Vênus tirando a sandália (1852), de Ivan Vitali

Mas como pôde acontecer que a mesma arte, que nos tempos antigos era ou meramente tolerada ou totalmente rejeitada, tenha vindo a ser considerada em nossos dias uma coisa invariavelmente boa, desde que proporcione prazer?
Isso aconteceu pelas razões apresentadas a seguir.
A apreciação dos méritos da arte — isto é, dos sentimentos que ela transmite — depende do entendimento que as pessoas têm do significado da vida, do que elas veem como bom ou mau. O bem e o mal da vida são determinados pelas assim chamadas religiões.
A humanidade move-se incessantemente de um entendimento mais baixo, mais parcial e menos claro da vida para um que seja mais alto, mais amplo e mais claro. E, como em todo movimento, nesse também existem líderes — aqueles que entendem o significado da vida mais claramente do que outros —, e entre estes sempre há um que, em suas palavras e em sua vida, tenha manifestado de forma mais vívida, acessível e vigorosa esse significado da vida. A manifestação, por esse homem, desse significado, juntamente com as tradições e ritos que geralmente se formam em torno da memória de tal homem, é denominado religião. As religiões são indicadores da mais alta compreensão da vida acessível em uma dada época, em uma dada sociedade, aos melhores líderes, o que é inevitável e infalivelmente compartilhado por todo o restante da sociedade. E, somente por causa disso, as religiões sempre serviram e servirão de base para a avaliação do sentimento das pessoas. Se esses sentimentos as aproximam do ideal para o qual sua religião aponta, concordam com ele e não o contradizem, eles são bons; se as afastam desse ideal, discordam dele ou o contradizem, eles são maus.
Se a religião coloca o sentido da vida na adoração de um Deus único e no cumprimento do que é considerado Sua vontade, como no judaísmo, os sentimentos transmitidos pela arte e que resultam do amor a esse Deus e à Sua lei — a poesia sagrada dos profetas, os Salmos, as histórias no livro do Gênesis — constituem arte boa e elevada. Tudo que se opõe a isso, como por exemplo transmitir o sentimento da adoração a outros deuses ou sentimentos discordantes da lei de Deus, será considerado arte ruim. Se a religião coloca o sentido da vida na felicidade terrestre, na beleza e na força, a arte que transmite o regozijo e o gozo da vida será considerada boa arte, enquanto a que transmite sentimentos de fragilidade ou depressão será arte ruim, como se pensava entre os gregos. Se o sentido da vida está no bem da nação ou em continuar o modo de vida dos ancestrais e reverenciá-los, a arte que transmite o sentimento de alegria no sacrifício do bem pessoal pelo bem da nação ou pela glorificação dos antepassados e manutenção da tradição será considerada boa arte, enquanto a arte que expressa sentimentos contrários a esses será considerada ruim, como entre os romanos e chineses. Se o sentido da vida está em libertar-se do jugo da animalidade, a arte que transmite sentimentos que elevam a alma e humilham a carne será boa, como se considera no budismo, e tudo que transmite sentimentos que acentuam as paixões do corpo será considerada arte ruim.
Sempre, em todas as épocas e em todos os grupamentos humanos, existiu essa consciência religiosa, comum a todas as pessoas de uma sociedade, sobre o que é bom e o que é mau, e é essa consciência que determina o valor dos sentimentos transmitidos pela arte. E sempre, portanto, em todas as nações, a arte que transmitia sentimentos resultantes da consciência religiosa comum ao povo da nação era considerada boa e incentivada, enquanto a que transmitia sentimentos discordantes dessa consciência era reconhecida como má e rejeitada; todo o enorme campo restante da arte pela qual o povo se comunicava entre si não era nem um pouco valorizado e era rejeitado somente quando contrariava a consciência religiosa de sua época. Assim foi em todas as nações: gregos, judeus, hindus, egípcios, chineses. Foi assim, também, quando apareceu o cristianismo.
O cristianismo dos primeiros tempos reconhecia como boas obras de arte somente as fábulas, vidas dos santos, sermões, orações e hinos que invocavam no povo o sentimento de amor por Cristo e de ser tocado por sua história, o desejo de seguir seu exemplo, a renúncia da vida terrestre, a humildade e o amor ao próximo. Todas as obras que transmitiam sentimentos de prazer pessoal eram consideradas más, e portanto o cristianismo rejeitava toda a arte plástica pagã, permitindo somente imagens plásticas simbólicas.
Assim foi entre os cristãos dos primeiros séculos, que receberam o ensinamento de Cristo, se não exatamente na sua verdadeira forma, ainda não de uma forma pervertida, pagã, tal como foi aceito mais tarde. Com a conversão de nações inteiras ao cristianismo, por decreto de um governante, como ocorreu sob Constantino, Carlos Magno e Vladimir, apareceu um cristianismo diferente, um cristianismo da Igreja, mais próximo do paganismo do que dos ensinamentos de Cristo. Esse cristianismo da Igreja, com base em sua própria doutrina, começou a avaliar de maneira bem diferente os sentimentos dos homens e as obras de arte que os transmitiam. Essa religião não apenas não reconhecia as teses básicas e essenciais do verdadeiro cristianismo — a relação direta de cada pessoa com o Pai e, a partir disso, a fraternidade e igualdade de todos os homens, que resulta na substituição de todas as formas de violência por humildade e amor —, como, ao contrário, havendo estabelecido uma hierarquia celeste similar à mitologia pagã e o seu culto, o culto de Cristo, da Mãe de Deus, dos anjos, apóstolos, santos e mártires, e não somente dessas divindades, como também de suas imagens, esse cristianismo instaurou a fé cega na Igreja e em suas constituições como a essência da doutrina.
Ainda que essa doutrina fosse estranha ao verdadeiro cristianismo, ainda que fosse degradada, não apenas em comparação àquele, mas também em relação à visão de mundo de um romano como Juliano, ainda assim, para os bárbaros que a seguiram, era uma doutrina mais elevada do que seu culto anterior de deuses, heróis, espíritos bons e maus. E, portanto, era uma religião para os bárbaros que a acataram. E foi com base nessa religião que a arte da época foi avaliada: a arte que retratava a piedosa veneração da Mãe de Deus, Jesus, santos e anjos, a fé cega na Igreja e a obediência a ela, o medo dos tormentos e a esperança de gozo na vida após a morte, era considerada boa; a arte que se opunha a isso era considerada má.
A doutrina com base na qual emergiu essa arte era uma deturpação do ensinamento de Cristo, mas a arte que emergiu desse ensinamento desfigurado ainda era verdadeira, porque correspondia à visão de mundo religiosa do povo no seio do qual ela surgiu.
Os artistas da Idade Média, que compartilhavam com as massas populares a mesma religião, como base de seus sentimentos, enquanto transmitiam na arquitetura, escultura, pintura, música, poesia e drama os sentimentos e disposições que vivenciavam, eram verdadeiros artistas, e a sua atividade, baseada no mais alto entendimento acessível para aquele tempo e partilhada por todos, ainda que pareça mais baixa para a nossa época, era entretanto arte verdadeira, comum a todo o povo.
E assim foi até que surgiu, entre as classes mais altas, ricas e instruídas da sociedade europeia uma dúvida quanto à verdade da compreensão da vida expressa pelo cristianismo da Igreja. Mas quando, após as Cruzadas, depois que o poder papal se tornou altamente desenvolvido e igualmente abusado, depois que as pessoas das camadas ricas se familiarizaram com a sabedoria antiga e viram, por um lado, a lucidez racional dos antigos sábios, e, por outro, a falta de correspondência entre os ensinamentos da Igreja e o ensinamento de Cristo, tornou-se impossível para elas acreditar, como antes, na doutrina da Igreja.
Se, ostensivamente, essas pessoas ainda obedeciam às formas da doutrina da Igreja, elas já não eram capazes de acreditar nela e a seguiam apenas por inércia, ou em nome do povo, que continuava a acreditar cegamente no seu ensinamento e cuja crença as pessoas da aristocracia consideravam necessário apoiar para o bem de seu próprio lucro. Assim, a doutrina cristã da Igreja deixou de ser, a certa altura, a doutrina geral de todo o povo cristão. Alguns — as camadas superiores, aqueles em cujas mãos estavam o poder e a riqueza, e portanto o tempo livre e os meios para produzir e patrocinar a arte — pararam de acreditar na doutrina da Igreja, enquanto o povo continuou a acreditar cegamente nela.
Com relação à religião, as classes superiores na Idade Média se viram na mesma situação dos romanos instruídos antes do aparecimento do cristianismo — isto é, já não acreditavam naquilo que o povo acreditava, mas não tinham eles mesmos nenhuma crença que pudessem colocar no lugar da obsoleta doutrina cristã, que tinha perdido o sentido para eles.
A única diferença era que, enquanto os romanos que perderam a fé em seus imperadores-deuses e em suas divindades domésticas, nada mais tendo a extrair de toda a complexa mitologia que haviam tomado emprestada de todos os povos que conquistaram, tiveram que adotar uma visão de mundo totalmente nova, as pessoas da Idade Média que questionavam a verdade da doutrina católica da Igreja não tiveram que procurar um novo ensinamento. A mesma fé cristã, que confessavam em sua forma deturpada como a doutrina católica da Igreja, havia mapeado o caminho para a humanidade tão mais à frente que eles só tiveram que descartar as perversões que obscureciam o ensinamento descoberto por Cristo e adotá-lo, se não no todo, pelo menos em uma pequena parcela de seu significado (maior, entretanto, do que aquele adotado pela Igreja). Exatamente isso foi feito em parte, não somente pela Reforma de Wyclif, Hus, Lutero e Calvino, mas por todo o movimento dos cristãos sem Igreja, representado nos primeiros tempos pelos paulicianos e os bogomilos, e mais tarde pelos valdensianos e todos os outros — os chamados sectários. Isso só podia ser feito, e o foi, por pessoas pobres, não pelos poderosos. Apenas alguns poucos entre os ricos e fortes, como Francisco de Assis e outros, aceitaram a doutrina cristã em seu sentido vital, ainda que ela destruísse a sua posição superior. A maior parte das pessoas da aristocracia, embora no fundo do coração também tivesse perdido a fé na doutrina da Igreja, era incapaz ou não estava disposta a fazer o mesmo, porque a essência da visão cristã de mundo que teria que adotar, se renunciasse à fé da Igreja, era a de fraternidade e, portanto, a de igualdade dos homens — e tal doutrina lhe negaria as prerrogativas pelas quais vivia e nas quais tinha crescido e sido educada, e com que estava acostumada. No fundo do coração, não acreditavam na doutrina da Igreja, que havia durado além de sua época e já não tinha nenhum sentido verdadeiro para eles. E, como eram incapazes de adotar o verdadeiro cristianismo, as pessoas das classes ricas dominantes — papas, reis, duques e todo o poder deste mundo — viram-se sem qualquer religião, com nada além de suas formas exteriores, que mantiveram, considerando-as não somente lucrativas, mas necessárias a si mesmos, pois essa doutrina justificava as vantagens de que desfrutavam. Essencialmente, essas pessoas não acreditavam em nada, tal como os romanos instruídos dos primeiros séculos. No entanto, o poder e a riqueza estavam em suas mãos, e foram eles que incentivaram a arte e a orientaram. E foi assim que, entre esses povos, começou a se desenvolver uma arte que era avaliada não pelo quão bem ela expressava sentimentos resultantes da consciência religiosa do povo, mas somente considerando quão bela era — em outras palavras, quanto prazer proporcionava.
Incapazes agora de acreditar na religião da Igreja, que tinha traído sua própria mentira, e incapazes de adotar o verdadeiro ensinamento cristão, que negava toda a vida delas, essas pessoas ricas e poderosas, vendo-se sem nenhuma compreensão religiosa da existência, voltaram-se indecisas para a visão de mundo pagã, que coloca o sentido da vida no prazer pessoal. E assim se deu, na aristocracia, o movimento que é conhecido como “o Renascimento da ciência e da arte”, que, em sua essência, não foi somente a negação de toda a religião, mas também o reconhecimento de sua inutilidade.
A doutrina da Igreja, especialmente da Igreja católica romana, é um sistema tão coerente que não pode ser alterado ou corrigido sem destruir o todo. Assim que emergia uma dúvida sobre a infalibilidade dos papas — o que ocorria então a todas as pessoas instruídas —, inevitavelmente questionava-se também a verdade da tradição católica. E essa dúvida demolia não apenas o papado e o catolicismo, mas toda a fé da Igreja, como todos os seus dogmas, a divindade de Cristo, a ressurreição, a Trindade. Ela destruía também a autoridade das Escrituras, porque estas eram reconhecidas como sagradas somente porque a tradição tinha declarado assim.
E, dessa forma, a maior parte daqueles que pertenciam às classes mais altas daquela época, mesmo papas e clérigos, essencialmente não acreditava em nada. Eles não acreditavam no ensinamento da Igreja porque viam sua falsidade, nem podiam reconhecer o ensinamento moral de Cristo, como fora reconhecido por Francisco de Assis, Kelchitsky e a maior parte dos sectários, porque esse ensinamento destruiria sua posição social. Portanto, essas pessoas ficaram sem visão religiosa do mundo. E, não tendo essa visão, não podiam ter nenhum outro padrão para avaliar a boa e a má arte, a não ser o prazer pessoal. Tendo reconhecido o prazer — isto é, a beleza — como o padrão do que é bom, a aristocracia europeia voltou-se, em sua compreensão da arte, para o rude entendimento dos gregos primitivos, já condenado por Platão. E, em correspondência a essa compreensão, tomou forma entre eles uma teoria da arte.

Leon Tolstói, in O que é arte?