quarta-feira, 31 de maio de 2023
Capítulo 71 | O Senão do Livro
Começo
a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que
fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo
sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é
enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica;
vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és
tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu
amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e
este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à
esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu,
escorregam e caem…
E
caem! – Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como
quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia
uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se
não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar...
Heis de cair. Turvo é o ar que respirais, amadas folhas. O sol que
vos alumia, com ser de toda gente, é um sol opaco e reles, de
cemitério e carnaval.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
Netinho
Se
tivesse mais dois anos, chamá-lo-ia mentiroso. No seu verdor, é
apenas um ser a quem a imaginação comanda, e que, com isso, dispõe
de todos os filtros da poesia.
O
que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula
a todo instante na conversa e logo se materializa, real dentro do
real. Geralmente, se lhe perguntamos alguma coisa, a resposta é um
ato criador.
— Quem
buliu neste açucareiro e sujou a toalha?
— Foi
Puck.
— Mas
Puck é um cachorrinho de nada, não sobe à mesa.
— Subiu
na cadeira.
— Você
viu Puck subir?
— Vi,
ué.
— E
deixou?
— Eu
disse assim: Puck, não sobe nessa cadeira não.
— E
que foi que Puck lhe respondeu?
— Que
tinha vontade de comer um torrãozinho de açúcar.
— Mas
você é que comeu torrão de açúcar. Está-se vendo pela sua boca
lambuzada.
— É,
eu também comi um, mas foi Puck quem deu.
Horas
depois:
— Você
se lembra? Naquele dia em que Puck me deu um torrão de açúcar…
O
tempo ainda não existe em forma fixa. As coisas marcadas para amanhã
desenham-se no nevoeiro, ou mergulham no insondável. Prometem-lhe um
velocípede.
— Onde
está?
— Espere,
vem amanhã.
— Por
que amanhã nunca é hoje?
E
ninguém, de Bergson ao avô, saberia responder-lhe ao certo.
Contudo,
uma noção se delineia, da sequência das horas. Conta-nos um fato
estranho:
— Quando
o céu ficou azul-escuro, e um gato pulou no terraço, e depois o céu
virou claro outra vez, eu fui espiar devagarzinho, e o gato tinha
comido a máquina de escrever…
Ama
as coisas pelo prazer abstrato da posse, menos pelas coisas em si, ou
pelo seu uso voluptuoso. Há um lápis.
— Me
dá esse lápis pra mim?
— Não
posso.
— Me
empresta?
— Não
posso, preciso dele.
— Ah,
me empresta…
— Está
bem, empresto.
— Agora
ele é meu?
— Seu,
não. Emprestado.
— Eu
queria tanto um lápis pra mim… Me dá, anda.
— Está
bem, pode ficar com ele.
— É
meu? Oba!
E
joga-o fora, imediatamente.
Não
lhe deem brinquedo caro, porque logo o desmonta para brincar com um
pedaço qualquer. Dir-se-ia instinto de destruição, comum à
espécie. Inclino-me a crer que seja instinto de simplificação e
prazer de recriar, em novas bases, a realidade imposta.
Em
suma, grande figura, admirável exemplar de todos os garotos da mesma
idade em todo o mundo, e só Deus sabe como foi batida esta crônica
(se assim podemos chamá-la), enquanto ele montava a cavalo no
cronista: upa, upa, cavalinho alazão!
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 13
Uns
setenta anos depois, Phearson estava à mesa, de frente para mim,
naquela mansão em Nortúmbria, irritado ao me ouvir dizer:
— A
complexidade deve ser seu pretexto para não agir. A complexidade dos
eventos, a complexidade do tempo... De que adianta você saber isso?
Chovia
lá fora, um aguaceiro forte e incessante que chegara dois dias
depois de um calor sufocante, o céu abrindo a torneira. Phearson
viajara para Londres; voltara com mais perguntas e uma atitude menos
dócil.
— Você
está escondendo coisas! — atacou. — Diz que tudo isso vai
acontecer, mas não diz como. Fala de computadores, telefones e do
maldito fim da Guerra Fria, mas não diz merda nenhuma de como nada
disso funciona. Nós somos os mocinhos, estamos aqui para melhorar as
coisas, entendeu? Criar um mundo melhor!
Quando
Phearson se enfurecia, uma veia azul como uma cobra contorcida surgia
em sua têmpora esquerda, e seu rosto, em vez de vermelho, ficava
pálido e acinzentado. Ponderei suas acusações e concluí que boa
parte não tinha fundamento. Eu não era historiador; os eventos do
futuro haviam se desdobrado como ações no presente, dando pouco
tempo para análises ou análises retrospectivas, apresentando-se em
matérias de sessenta segundos no noticiário da TV. A capacidade que
eu tinha de explicar o funcionamento de um computador era a mesma que
tinha de equilibrar um peixe na ponta do nariz.
E,
sim, eu estava escondendo coisas — não todas, mas algumas. Eu
havia lido sobre o Clube Cronus, e a primeira lição que tirei foi
que era um lugar em que se fazia silêncio. Se seus membros fossem
como eu, se sabiam o futuro, ao menos no que dizia respeito às suas
trajetórias pessoais, então eles tinham o poder de afetá-la
diretamente. Ainda assim, escolhiam não fazê-lo. E por quê?
— Complexidade
— repeti com veemência. — Você e eu somos meros indivíduos.
Não podemos controlar os grandes eventos socioeconômicos. Você até
pode tentar alterar um evento, mas isso, mesmo que da forma mais
insignificante possível, invalidaria todo e qualquer outro evento
que eu já tenha descrito. Eu posso lhe contar que os sindicatos vão
sofrer durante a Era Thatcher, mas a verdade é que não sou capaz de
apontar exatamente quais as forças econômicas por trás disso, nem
explicar em poucas palavras por que a sociedade permite a destruição
de suas indústrias. Não sou capaz de dizer o que passa pela cabeça
das pessoas que dançam durante a queda do Muro de Berlim, ou
exatamente quem no Afeganistão vai se levantar um dia e dizer: “Hoje
é um bom dia para a jihad.” E do que valem as minhas informações,
se agir para mudar um único pedaço vai mudar o todo?
— Nomes,
lugares! Diga nomes, diga lugares!
— Por
quê? Você vai assassinar Yasser Arafat? Vai executar crianças por
crimes que ainda não cometeram? Vai dar armas ao Talibã antes do
tempo?
— Isso
é uma decisão política, todas essas decisões são políticas...
— Você
está tomando decisões com base em crimes que ainda não foram
cometidos!
Ele
jogou os braços num grande gesto de frustração.
— A
humanidade está evoluindo, Harry! O mundo está mudando! Nos últimos
duzentos anos a humanidade mudou de formas mais radicais do que nos
dois mil anos anteriores! O ritmo da evolução está acelerando,
tanto para a espécie quanto para a civilização. É o nosso
trabalho, o trabalho dos bons, dos homens e das mulheres de bem,
supervisionar o processo, agir como um guia para evitar mais cagadas
e desastres! Você quer outra Segunda Guerra Mundial? Outro
Holocausto? Nós podemos mudar as coisas, melhorar as coisas.
— Você
se considera capaz de supervisionar o desenvolvimento do futuro?
— Claro
que sim, porra! — rugiu ele. — Porque sou um puta defensor da
democracia! Porque sou um puta liberal que acredita na liberdade,
porque eu sou um cara bom pra cacete e de bom coração e, porra,
porque alguém precisa fazer esse trabalho!
Eu
me recostei na cadeira. A chuva caía na diagonal, batia no vidro da
janela. Havia flores recém-colhidas na mesa, café frio no meu copo.
— Lamento,
senhor Phearson — disse, por fim. — Não sei o que quer ouvir de
mim.
Ele
girou uma cadeira, sentou-se nela, aproximou-a de mim e, baixando o
tom de voz de um jeito que parecia querer conspirar, esticando as
mãos num gesto que parecia um pedido de desculpas, perguntou:
— Por
que não ganhamos no Vietnã? O que estamos fazendo de errado?
Eu
grunhi e levei as mãos à cabeça.
— Vocês
não são bem-vindos! Os vietnamitas não querem vocês, os chineses
não querem vocês, seu próprio povo não quer lutar no Vietnã! Não
dá para ganhar uma guerra que ninguém quer lutar!
— E
se jogássemos a bomba? Uma bomba, em Hanói, uma limpeza geral?
— Não
sei, porque isso nunca aconteceu, e nunca aconteceu porque é
absurdo! — gritei. — Você não quer conhecimento, quer
afirmações, e eu... — Eu me levantei de súbito, e fui o primeiro
a me surpreender com o movimento repentino. —... eu não posso lhe
dar isso — concluí. — Lamento. Quando concordei em fazer isso,
pensei que... que você queria outra coisa. Acho que errei. Eu
preciso... preciso pensar.
Ficamos
em silêncio.
Em
chinês, a asma é descrita como um animal ofegante, com a respiração
pesada resultado de uma enfermidade. Phearson permaneceu imóvel como
uma estátua, apertando as mãos para se conter de forma civilizada,
seu terno bem passado, seu rosto impassível, mas sua respiração
era toda de um animal que ofegava dentro de seu peito.
— Para
que você serve? — perguntou ele, do jeito típico de uma pessoa
criada em meio aos valores da boa educação, do autocontrole
cuidadoso, mas a respiração que acompanhou a pergunta queria rasgar
meu pescoço com os dentes e beber o sangue. — Você acha que isso
não importa, doutor August? Você acha que morre e fica por isso
mesmo? O mundo reinicia, bum! — Ele deu um tapa na mesa, forte o
bastante para fazer as xícaras pularem dos pires. — Nós, os
homens insignificantes com suas vidas insignificantes estão mortos e
esquecidos, e tudo isso... — ele não precisava se mexer, não
precisava fazer mais do que correr os olhos ao redor do quarto —
...tudo não passa de um sonho. Você é Deus, doutor August? Você é
o único ser vivo que importa? Acha que, só porque é capaz de se
lembrar, a sua dor é mais intensa e importante? Acha que, porque
viveu essa dor, sua vida é a única vida que conta? Acha?
Ele
não gritou, não levantou a voz, mas a respiração animal se
acelerou, enquanto ele contraía os dedos para conter o próprio
instinto destrutivo. Eu vi que não tinha nada. Não tinha palavras,
ideias, justificativas, réplicas. Ele se levantou de repente, de um
jeito brusco, como uma espécie de ruptura, embora eu não soubesse
dizer de quê, enquanto a veia de sua têmpora se fazia cada vez mais
visível sob a pele.
— Está
bem. — Ele ofegava as palavras. — Está bem, doutor August. Está
bem. Nós dois estamos um pouco cansados, um pouco frustrados...
Talvez precisemos de um descanso. Por que não tiramos o resto do
dia, e você pensa sobre isso? Tudo bem? Tudo bem — decidiu ele
antes de eu responder. — É esse o plano. Ótimo. Vejo você
amanhã.
Ao
dizer isso, Phearson saiu a passos largos do quarto sem dizer mais
uma palavra ou olhar para trás.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
terça-feira, 30 de maio de 2023
Bem no fundo
no
fundo, no fundo,
bem
lá no fundo,
a
gente gostaria
de
ver nossos problemas
resolvidos
por decreto
a
partir desta data,
aquela
mágoa sem remédio
é
considerada nula
e
sobre ela — silêncio perpétuo
extinto
por lei todo o remorso,
maldito
seja quem olhar pra trás,
lá
pra trás não há nada,
e
nada mais
mas
problemas não se resolvem,
problemas
têm família grande,
e
aos domingos saem todos passear
o
problema, sua senhora
e
outros pequenos probleminhas.
Paulo Leminski, in Toda Poesia
Romaria | Renato Teixeira, 1977
Nos
anos 1970, a música sertaneja vivia em um mundo à parte, era
chamada de caipira e restrita ao interior de São Paulo, Minas e
Goiás. Longe demais, portanto, do eixo Rio-São Paulo, no qual
estavam os principais estúdios e emissoras de rádio e TV e vivia a
constelação de astros da canção. Caso de Elis Regina, em 1977, ao
lançar essa toada no álbum Elis.
Paulista
de Taubaté, com fortes raízes sertanejas mas formado ao som da
bossa nova e da MPB, Renato Teixeira de Oliveira (1945) ganhava a
vida como compositor de jingles em São Paulo até conhecer o casal
Elis Regina e César Camargo Mariano por intermédio de seu irmão,
Roberto de Oliveira, na época produtor musical de Elis. Os dois
perceberam de imediato o potencial daquela poderosa canção-prece,
ao mesmo tempo de construção refinada e popular, com cheiro de
terra e de mato, cantada por um sertanejo em sua jornada de fé a
caminho de Aparecida do Norte:
“Sou
caipira pirapora, Nossa / Senhora de Aparecida / ilumina a mina
escura e funda o trem da minha vida.”
Incluída
num disco repleto de material inédito de pesos-pesados da MPB como
Milton Nascimento e Fernando Brant, João Bosco e Aldir Blanc, Ivan
Lins e Vitor Martins, “Romaria” roubou a missa. Tocou maciçamente
em todo o Brasil, antecipando em quase duas décadas a febre
sertaneja que se instalou nos anos 1990 e continua imperando no
Brasil do século XXI.
O
sucesso também serviu de cartão de visita para Renato Teixeira e,
graças a “Romaria”, ele pôde trocar a publicidade pela
dedicação de corpo e alma à música, tornando-se uma das maiores
referências do melhor sertanejo, ao lado de Almir Sater, com quem
realizou memoráveis discos e shows com um padrão de qualidade muito
acima e além da vulgaridade do sertanejo-pop que veio depois.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
As rãs | 1
Professor,
tínhamos em nossa aldeia um costume bem antigo de batizar as
crianças com o nome de partes do corpo humano, como Chen Nariz, Zhao
Olho, Wu Intestino, Sun Ombro… Nunca procurei saber a origem dessa
prática, talvez tenha surgido por acreditarem que um nome humilde
daria vida longa, ou pelo fato de as mães considerarem o filho parte
da própria carne. Esse é um costume que caiu em desuso. Os pais de
hoje não querem mais dar nomes estranhos aos filhos. As crianças da
aldeia agora recebem nomes sofisticados de personagens de novelas de
Hong Kong, Taiwan, Japão ou Coreia. Quem tinha o nome à maneira
antiga, na maioria dos casos, acabou optando por outro mais elegante.
Naturalmente, há aqueles que mantiveram o original, como Chen Orelha
e Chen Sobrancelha.
Chen
Nariz — pai de Chen Orelha e Chen Sobrancelha — foi meu colega na
escola primária e meu amigo na juventude. Entramos na escola
primária de Dayanglan no outono de 1960. As memórias mais marcantes
que tenho daquela época de fome são, em grande parte, relacionadas
à comida. Por exemplo, a história de quando comi carvão. Muitos
pensam que é invenção minha, mas juro por minha tia que tudo
aquilo aconteceu de fato, não inventei nada.
Era
um carregamento de carvão de alta qualidade, produzido na mina de
Longkou. Dava para ver nitidamente o nosso reflexo nele, de tão
reluzente. Nunca mais encontrei um carvão brilhante como aquele. O
charreteiro da aldeia, Wang Pé, trouxe o minério de carroça desde
a sede do distrito. Wang Pé tinha a cabeça quadrada e o pescoço
grosso. Sofria de gagueira. Quando falava, seus olhos saltavam e o
rosto corava. Era pai de um casal de gêmeos, Wang Fígado e Wang
Vesícula, meus colegas de escola. Fígado, o menino, era alto, mas
Vesícula, a menina, nunca cresceu muito, era uma miniatura —
praticamente uma anã, para usar uma expressão grosseira. Diziam
que, no ventre da mãe, Fígado tomou para si todos os nutrientes, e
por isso Vesícula saiu miudinha daquele jeito. O carvão chegou bem
na hora da saída da escola. Os alunos, de mochila nas costas,
cercaram a carroça para ver o minério ser descarregado. Com uma
grande pá de ferro, Wang Pé ia tirando o carvão da carroça e
despejando-o no chão. As pedras faziam barulho ao cair umas sobre as
outras. Wang Pé tirou da cintura um pano azul para enxugar o suor do
pescoço. Nisso, viu ali os dois filhos e ralhou: “Vão já para
casa cortar capim!”. Wang Vesícula deu meia-volta e saiu correndo
— ia balançando o corpo, sem muito equilíbrio, como uma criança
dando os primeiros passos; era mesmo um encanto. Wang Fígado
afastou-se um pouco, mas não saiu dali. O menino admirava o trabalho
do pai. As crianças de hoje não experimentam mais o fascínio que
Fígado sentia naquele tempo, nem que o pai seja piloto de avião.
Mas a carroça, ah, aquela carroça! Corria ruidosa levantando poeira
atrás das rodas. Era guiada por um cavalo militar da reserva que,
nos tempos do Exército, transportava explosivos. Dizem que ganhara a
marca de ferro na garupa em reconhecimento aos relevantes serviços
prestados no front. A tração ficava a cargo de um burro de
temperamento irritadiço, perito em coices, especialista em mordidas.
Apesar do mau gênio, tinha uma força espantosa e uma velocidade
excepcional. Wang Pé era a única pessoa capaz de controlar aquele
burro louco. Muita gente na vila invejava sua ocupação, mas, só de
ver o burro, mudava de ideia. O animal mordeu duas crianças: uma foi
Yuan Bochecha, filho de Yuan Rosto, a outra foi Wang Vesícula. Certa
vez Wang Pé parou a carroça em frente a sua casa e a filha foi
brincar perto do burro, que abocanhou a menina pela cabeça e a
levantou do chão. Todos tratávamos Wang Pé com a maior
consideração. Ele tinha um metro e noventa de altura, ombros
largos, a força de um touro. Era capaz de erguer nos braços uma
pedra de moinho de cem quilos, e erguia até acima do cocuruto.
Tínhamos especial admiração pelo seu chicote. Quando o burro louco
mordeu a cabeça de Yuan Bochecha, Wang Pé puxou o freio e ficou em
pé sobre os timões da carroça, uma perna de cada lado, brandiu o
chicote e começou a fustigar a garupa do animal. A cada chicotada
era um fio de sangue que escorria, um som de couro que se rasgava. De
início, o burro louco ainda dava coices. Passado algum tempo,
começou a tremer, dobrou as pernas dianteiras, arriou a cabeça e
mordeu a terra, enquanto a garupa erguida continuava debaixo de
açoite. Wang Pé só parou, a contragosto, depois que o pai de Yuan
Bochecha veio pedir que poupasse o animal. Yuan Rosto era secretário
do Partido na aldeia, uma alta autoridade local. Wang Pé não
ousaria desobedecê-lo. Quando o burro louco mordeu Wang Vesícula,
esperávamos assistir a outro espetáculo daqueles, mas Wang Pé não
desferiu uma única chibatada. Pegou um punhado de cal da beira da
estrada e passou na cabeça da filha, em seguida a carregou para
dentro de casa. Poupou o burro, mas deu uma chicotada na mulher e um
pontapé no filho. Apontávamos para aquele burro marrom enquanto
fazíamos comentários. Era tão magro que mostrava os ossos; as
covas dos olhos eram tão fundas que caberia um ovo em cada uma.
Tinha um olhar triste, zurrava de um jeito que às vezes parecia
estar chorando. Não conseguíamos entender como um burro magro
daquele podia ter tanta força. À medida que falávamos, íamos
chegando perto dele. Wang Pé descansava a pá, encarava-nos cheio de
fúria e corríamos assustados. Aos poucos, o monte de carvão diante
da cozinha da escola crescia e a carga da carroça diminuía. Puxamos
o ar com o nariz, todos ao mesmo tempo, porque farejamos um aroma
diferente. Era um cheiro parecido com o de resina de pinheiro, ou de
batata assada. O olfato levou nossos olhos até aquele monte de
carvão brilhante. Wang Pé tocou os animais e afastou-se da escola.
Em vez de sair atrás da carroça, como sempre fazíamos, só para
matar a vontade de pular para cima dela, indiferentes ao risco de
levar uma chicotada na cabeça, ficamos com os olhos fixos no monte
de carvão e nos aproximamos dele devagarzinho. Velho Wang, o
cozinheiro, passou carregando uma vara nos ombros, com um balde
d’água pendurado em cada ponta. Seu corpo balançava. A filha
dele, Wang Renmei, também era nossa colega de escola, e mais tarde
se tornaria minha esposa. Era uma das poucas crianças que não
receberam o nome de partes do corpo, porque o cozinheiro era um homem
culto. Tinha sido diretor da granja de uma comuna, mas perdeu o cargo
e foi mandado de volta para a aldeia porque certa vez falou algo que
não devia. Velho Wang nos olhou desconfiado. Achava que talvez
quiséssemos entrar na cozinha para roubar comida, quem sabe?
Enxotou-nos dali: “Fora, seus pirralhos! Aqui não tem nada para
vocês, vão para casa mamar nas suas mães”. Claro que ouvimos o
que ele disse, até chegamos a considerar a sugestão, mas percebemos
que ele estava só ralhando com a gente. Tínhamos entre sete e oito
anos, quem é que mama nessa idade? Além do mais, ainda que
quiséssemos, nossas mães eram umas mortas de fome, tinham os peitos
colados nas costelas, como é que sairia leite dali? Ninguém foi
discutir o assunto com Velho Wang. Ficamos debruçados sobre o monte
de carvão, parecendo geólogos amadores diante de uma nova
descoberta; farejávamos como cães à procura de comida em meio ao
entulho. Antes de continuar, é preciso agradecer a Chen Nariz e
também a Wang Vesícula. Foi Chen quem primeiro pegou um pedaço de
carvão, colocou-o diante do nariz e cheirou. Franziu a testa como
quem reflete sobre alguma questão profunda. Tinha um nariz enorme,
do qual adorávamos caçoar. Depois de refletir por um momento, ele
arremessou contra uma pedra maior o carvão que tinha na mão. O
carvão se partiu com um ruído e exalou aquele cheiro. Catou uma
lasquinha, seguido de Wang Vesícula, provou com a ponta da língua,
virou os olhos e voltou-se para nós. Vesícula fez o mesmo: lambeu o
carvão e olhou para nós. Depois se entreolharam, sorrindo, com
muito cuidado e, em fortuita sincronia, mordiscaram um pedacinho,
mastigaram, depois morderam mais um pedaço e mastigaram com força.
Seus rostos transbordavam de excitação. O narigão de Chen Nariz
ficou vermelho, orvalhado de suor. O narizinho de Wang Vesícula
estava preto, coberto de cinzas. Ouvíamos, encantados, o som que
faziam ao mastigar. Víamos, assombrados, eles engolirem o carvão. E
engoliram mesmo. Ele disse em voz baixa: “É gostoso, pessoal!”.
Ela gritou com a vozinha fina: “Venha logo, meu irmão, vamos
comer!”. Ele pegou outro pedaço e mastigou com mais força ainda.
Ela tomou um pedaço maior com sua mãozinha e deu a Wang Fígado.
Imitando-os, partimos o carvão, pegamos uma lasca e mordiscamos para
sentir que gosto tinha, e até que era bom, apesar de um pouco
áspero. Generoso, Chen Nariz indicou um tipo de carvão: “Pessoal,
comam deste, que é gostoso”. Ele tinha na mão uma pedra
translúcida, amarelada, parecida com âmbar: “Este aqui tem gosto
de resina de pinheiro”. Na aula de ciências, aprendemos que o
carvão se formou a partir de florestas soterradas há muitos séculos
na crosta terrestre. O professor de ciências era o diretor da nossa
escola, Wu Jinbang. Não acreditamos nele, nem na cartilha. As
florestas são verdes, como poderiam se transformar em carvão preto?
Achávamos que o diretor e a cartilha estavam falando bobagem. Só
quando descobrimos carvão com gosto de resina de pinheiro é que
percebemos que nem o diretor, nem a cartilha estavam tentando nos
enganar. Quase todos os trinta e cinco alunos de nossa turma se
encontravam ali, com exceção de algumas meninas. Cada um de nós
segurava um pedaço de carvão, que íamos mordendo e mastigando com
grande ruído. Em cada rosto se via uma expressão de deslumbramento
e mistério. Era como se estivéssemos num teatro de improviso, ou
envolvidos em algum jogo esquisito. Xiao Lábio Inferior pegou uma
lasca de carvão, olhou-a de todos os ângulos com cara de desprezo e
não comeu. Não comeu porque não tinha fome e não tinha fome
porque seu pai era o zelador do armazém de grãos da comuna. O Velho
Wang, cozinheiro, ficou estarrecido. Saiu correndo com as mãos
cobertas de farinha. Nossa, ele tinha as mãos cobertas de farinha!
Naquela época, a cantina só atendia ao diretor da escola e ao
coordenador pedagógico, além de dois diretores de comuna lotados na
aldeia. O Velho Wang gritou espantado: “O que estão fazendo?
Estão… comendo carvão? E isso lá se come?”. Com sua mãozinha
miúda, Vesícula ergueu um pedaço e ofereceu, numa voz macia: “Tio,
é uma delícia, experimente!”. O Velho Wang abanou a cabeça e
disse: “Wang Vesícula, você, uma menina tão delicada, está
seguindo o mau comportamento desses marmanjos?”. Vesícula deu mais
uma mordida e disse: “Mas é gostoso mesmo, tio”. Era fim de
tarde, um sol vermelho deitava-se no poente. Os dois diretores de
comuna que sempre faziam suas refeições ali chegaram de bicicleta.
Eles
também ficaram olhando para nós. Velho Wang tentava nos enxotar
agitando uma vara. O diretor Yan — parece que era vice-secretário
— mandou o cozinheiro parar com aquilo. Fazendo cara feia, acenou
com a mão, deu meia-volta e se meteu na cozinha.
No
dia seguinte, na sala de aula, comíamos carvão atentos ao que dizia
a professora Yu. Nossas bocas estavam completamente pretas, com
cinzas nos cantos. Além dos meninos, agora também se fartavam de
carvão aquelas meninas que não tinham participado do banquete do
primeiro dia, orientadas por Wang Vesícula. A filha do cozinheiro —
minha primeira esposa —, Wang Renmei, era quem demonstrava maior
avidez. Lembrando hoje, acho que devia sofrer de periodontite, porque
quando comia o carvão sua boca sangrava. Depois de escrever algumas
linhas na lousa, a professora Yu se voltou e ficou nos olhando.
Primeiro interrogou nosso colega Li Mão, seu filho: “Mão, o que
vocês estão comendo?”. “Carvão, mãe!” “Professora,
estamos comendo carvão”, miou Wang Vesícula, “a senhora não
gostaria de provar?” Sentada na primeira fileira, Wang Vesícula
lhe estendia uma amostra. A professora Yu desceu do tablado, tomou o
pedaço de carvão da mão da aluna e colocou-o debaixo do nariz.
Parecia olhar para ele enquanto o cheirava. Ficou um bom tempo sem
dizer nada, por fim o devolveu a Vesícula e disse aos alunos: “Hoje
vamos estudar a sexta lição, ‘O corvo e a raposa’. O corvo
conseguiu um pedaço de carne e, muito orgulhoso, pousou no alto da
árvore. A raposa, ao pé da árvore, lhe disse: ‘Ó corvo, tens
uma voz tão linda que, quando cantas, todos os pássaros do mundo se
calam’. A bajulação surtiu efeito e a ave, cheia de si, abriu o
bico. Nesse momento, a carne caiu direto na boca da raposa”. A
professora Yu conduziu a leitura do texto em voz alta, e nós a
acompanhamos, com nossas bocas enegrecidas.
A
professora Yu era uma mulher culta, mas mesmo assim seguiu o costume
da aldeia e deu ao filho o nome de Li Mão. Com as excelentes notas
que tirava, Li Mão conseguiu entrar para a escola de medicina e,
depois de se formar, veio trabalhar como cirurgião no hospital do
distrito. Ele certa vez salvou três dos quatro dedos que Chen Nariz
cortou na ceifadeira.
Mo Yan, in As rãs
Vergonha de viver
Há
pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais
me incluo. Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço.
Desculpem eu ser eu. Quero ficar só! grita a alma do tímido que só
se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o quente aconchego
das pessoas. Vai, Carlos, vai ser gauche na vida. (Não sei se
estou citando Drummond do modo certo, escrevo de cor.)
E
para pedir aumento de salário – a tortura. Como começar?
Apresentar-se com fingida segurança de quem sabe quanto vale em
dinheiro – ou apresentar-se como se é, desajeitado e
excessivamente humilde.
O
que faz então? Mas é que há a grande ousadia dos tímidos. E de
repente cheio de audácia pelo aumento com um tom reivindicativo que
parece contundente. Mas logo depois, espantado, sente-se mal, julga
imerecido o aumento, fica todo infeliz.
Sempre
fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando há muitos anos fui
passar férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma
pequeníssima estação deserta. Donde se telefonava para a fazenda
que ficava a meia hora dali, num caminho perigosíssimo, rude e
tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de
precipícios. Telefonei para a fazenda e eles me perguntaram se
queria carro ou cavalo. Eu disse logo cavalo. E nunca tinha montado
na vida.
Foi
tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e
fez-se subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada
enxergava à minha frente. Mas os relâmpagos revelavam-me
verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos molhados. E eu,
ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando
finalmente cheguei à fazenda não tinha força de desmontar:
deixei-me praticamente cair nos braços do fazendeiro.
Nessa
fazenda que recebia hóspedes e que era maravilhosa com seus bichos,
sofri horrores. Só depois de uns três dias é que comecei a
conversar com os outros hóspedes e a me descontrair na hora das
refeições, pois eu tinha vergonha de comer na frente de estranhos e
muita fome.
Lá
estava um japonês que me perguntou se eu jogava xadrez. Respondi
audaciosamente que ele me ensinasse, que eu aprenderia logo e jogaria
com ele. E de repente me vi tendo que enfrentar tantas regras de jogo
e com vergonha de não aprender. Mas logo em seguida aprendi
superficialmente a jogar. Acontece que, creio eu, por puro acaso dei
um xeque-mate no japonês que não quis mais jogar comigo. Senti-me
infeliz, achava que o japonês não me perdoaria e que não gostava
de mim. Fiquei muito tímida com ele. Foi pois com enorme espanto que
o ouvi me dizer na hora da despedida, com uma delicadeza toda
oriental que não elogia na cara, o que seria sufocante para a minha
timidez. E ele disse: “Agradeço aos seus pais por terem feito
você.”
De
12 para 13 anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio
inglês. Eu não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio
ousadamente os nomes de comida mais complicados. E me via tendo de
comer, por exemplo, feijão-branco cozido na água e sal. Era o
castigo de minha desenvoltura de tímida.
E
quando eu era pequena em Recife meu encabulamento nunca me impediu de
descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços:
“Quer brincar comigo?” Às vezes me desprezavam como menina.
Com
sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil
que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu,
teimosa, continuava escrevendo.
Aos
nove anos escrevi uma peça de teatro em três atos, que coube dentro
de quatro folhas de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi
a peça atrás de uma estante e depois, com medo de que a achassem e
me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo infelizmente porque
tenho curiosidade do que eu achava do amor aos nove precoces anos.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Hollywood | 15
Alguns
dias depois estávamos de volta ao estúdio de Danny Server, em
Venice.
– Outro
cara escreveu um filme sobre sarjeta e bebedeiras – disse Jon. –
Por que você não dá uma olhada?
Assim,
entramos lá, Jon, Sarah e eu. O pessoal já se achava nas poltronas.
Mas o bar estava fechado.
– O
bar está fechado – eu disse a Jon.
– É
– ele disse.
– Escuta,
a gente precisa beber alguma coisa...
– Tem
uma loja de bebidas a cerca de uma quadra daqui, em direção ao mar,
no outro lado da rua.
– Voltamos
já.
Chegamos
lá, compramos duas garrafas de tinto e um saca-rolhas. Na volta,
fomos parados duas vezes para dar esmolas. E estávamos de volta ao
estúdio. Empurrei a porta e entramos. Estava escuro. O filme rolava.
– Merda
– eu disse. – Não enxergo nada! Não enxergo porra nenhuma!
Alguém
me fez psiu.
– O
mesmo pra você – eu disse.
– Quer
fazer o favor de calar a boca! – disse uma mulher.
– Vamos
tentar as primeiras filas – disse Sarah. – Acho que estou vendo
uns dois lugares, mas não tenho certeza.
Conseguimos
chegar à frente. Eu tropecei nuns pés.
– Filho
da puta! – ouvi um homem dizer baixinho.
– Foda-se
– eu disse.
Finalmente
localizamos duas poltronas e nos sentamos. Sarah pegou os cigarros e
o isqueiro, enquanto eu desarrolhava a garrafa. Não tínhamos copos,
por isso eu tomei um gole e passei a garrafa para ela. Ela tomou um
gole e devolveu-a. Depois acendeu dois cigarros pra gente.
O
cara que escrevera o filme, De Volta do Hades, já tivera uma série
na TV, um daqueles programas familiares. Pat Sellers. Bem, a série
prosseguira indefinidamente, mas Pat perdera a batalha contra a
garrafa e em breve a série estava condenada. Divórcio. Perda da
família, do lar. Pat estava na sarjeta. Agora fazia um retorno.
Fizera aquele filme. Estava abstêmio. E no circuito de conferências,
ajudando outros.
Tomei
outra golada e passei pra Sarah.
Via
o filme. Estavam na miséria. Era noite, e haviam acendido uma
fogueira. Os homens e mulheres pareciam muito bem vestidos para
estarem na sarjeta. Não tinham realmente aparência de vagabundos.
Pareciam pessoas que trabalhavam em filmes de Hollywood, atores de
TV. E cada um tinha um carrinho de supermercado onde guardava seus
bens terrenos. Só que os carrinhos eram novinhos em folha. Reluziam
à luz da fogueira. Eu nunca vira carrinhos tão novos em nenhum
supermercado. Evidentemente, haviam sido comprados para o filme.
– Passa
a garrafa – pedi a Sarah.
Ergui-a
bem alto e tomei uma boa golada. Tornei a ouvir o psiu, seguido de
outro chiado.
– Essas
pessoas são feias – eu disse a Sarah. – Que diabos há com elas?
– Não
sei.
Voltemos
ao filme e às pessoas à luz da fogueira com seus carrinhos de
compras. Um cara falava. Os outros escutavam.
– ...eu
acordava e não reconhecia a cama onde estava, não sabia onde
estava... me vestia, saía e procurava meu carro. Jamais sabia onde
estava o carro. Às vezes levava horas pra descobrir...
– Opa,
isso é bom – eu disse a Sarah. – Já me aconteceu muitas vezes!
Ouvi
outro psiu.
– ...eu
vivia numa espelunca atrás da outra... muitas vezes perdia a
carteira... me quebravam os dentes... era uma alma penada...
penada... penada... Depois meu companheiro de farra, Mike, morreu
bêbado num acidente de carro... isso foi a gota d’água...
Sarah
tomou uma golada.
– Agora
estou em paz... durmo bem... começo a me sentir de novo um ser
humano normal... E Cristo é o meu barato, maior que qualquer bebida
que o demônio pôs nesta terra!
O
cara tinha lágrimas nos olhos.
E
aí recitou um poema:
Tornei
a me encontrar.
Multiplicado
por dez.
Eu
perdi o yen.
Sou
irmão de minha gente.
Tornei
a me encontrar.
Fez
uma mesura e os outros aplaudiram.
Aí
uma mulher começou a falar. Disse que começara a beber em festas. E
daí fora em frente. Começara a beber sozinha em casa. As plantas
morriam porque ela não as aguava. Durante uma discussão, esfaqueara
a filha com uma faca de podar. O marido começara a beber também.
Perdera o emprego. Ficava em casa. Os dois bebiam juntos. Aí ela o
esfaqueara com uma faca de podar. Um dia entrara no carro e se
mandara com a mala e os cartões de crédito. Bebia em motéis.
Fumava e bebia e via TV. Vodca. Adorava vodca. Uma noite tocara fogo
na cama. Um carro de bombeiros viera ao motel. Ela estava bêbada, de
camisola de dormir. Um dos bombeiros lhe palmeara as nádegas. Ela
saltara no carro de camisola de dormir, levando apenas a bolsa.
Dirigira sem parar, estonteada. Por volta do meio-dia do dia seguinte
estava na esquina da 4 com a Broadway. Dois dos pneus haviam se
esvaziado enquanto dirigia. Os pneus haviam se soltado e ela rodava
sobre os aros apenas, deixando fundos sulcos no asfalto. Um policial
a parara. Ela fora detida – para observação. Os dias passavam.
Nem o marido nem a filha apareciam. Estava sozinha. Um dia,
conversava com o analista, e o cara lhe perguntara: “Por que você
insiste em destruir a si mesma?”. E quando lhe perguntara isso não
era mais o rosto do analista que a olhava, era o rosto de Cristo.
Isso fora o bastante...
– Como
é que ela sabia que era o rosto de Cristo? – perguntei em voz
alta.
– Quem
é esse cara? – ouvi alguém perguntar.
Minha
garrafa de vinho se esvaziara. Meti o saca-rolha na outra.
Aí
outro cara contou a sua história. A fogueira seguia ardendo e
ardendo. Ninguém precisava alimentá-la. E não apareciam outros
vagabundos para importuná-los. Quando o cara terminou sua história,
enfiou a mão em seu carrinho de compras e sacou um violão bastante
caro.
Eu
tomei uma golada e passei o tinto para Sarah.
O
cara afinou o violão, e começou a tocar e cantar. Era afinado,
tinha a voz treinada. Cantava sem parar.
A
câmera corria em volta, captando a expressão em todos os rostos.
Estavam emocionados, alguns choravam, outros tinham suaves e belos
sorrisos. Aí o cantor acabou e recebeu entusiásticos e alegres
aplausos.
– Nunca
vi uma sarjeta desse jeito – eu disse a Sarah.
O
filme prosseguiu. Outros atores falavam. Outros tinham violões
caros. Era a noite do violão. E aí veio o grand finale.
Apareceu uma estrela cadente, que traçou um arco sobre os rostos
voltados para cima. Fez-se um breve silêncio. Aí um cara começou a
cantar. Em breve uma mulher juntou-se a ele. Depois juntaram-se
outras vozes. Todos sabiam a letra. Surgiram muitos violões. Era um
coro edificante de esperança e unidade. E acabou. O filme acabou. As
luzes se acenderam. Havia um pequeno palco. Pat Sellers subiu nele.
Aplaudiram-no.
Pat
Sellers tinha uma aparência horrível. Parecia sonolento, sem vida,
morto. Os olhos vagos. Começou a falar.
– Não
tomo um trago há quinhentos e noventa e cinco dias...
Estrugiram
aplausos.
Ele
prosseguiu:
– Sou
um alcoólatra em recuperação... Somos todos alcoólatras em
recuperação...
– Vamos
dar o fora daqui – disse Sarah.
Havíamos
acabado o vinho. Levantamo-nos e nos dirigimos para a saída. Fomos
para o nosso carro.
– Filho
da puta! – eu disse. – Onde está Jon? Por que não está aqui?
– Oh,
tenho certeza de que ele viu o filme – disse Sarah.
– Aprontou
pra gente. É meio engraçado quando se pensa na coisa.
– Eram
todos membros dos A.A. lá dentro...
Entramos
no carro e nos dirigimos para a autoestrada.
Minha
ideia sobre a coisa toda era de que a maioria das pessoas não era
alcoólatra, só pensava que era. Era algo que não podia ser
precipitado. Para alguém se tornar um verdadeiro alcoólatra,
precisava pelo menos uns vinte anos. Eu estava no meu 45º ano e não
me arrependia nem um pouco.
Chegamos
à autoestrada e nos dirigimos de volta à realidade.
Charles Bukowski, in Hollywood
segunda-feira, 29 de maio de 2023
Como é bom ser um camaleão
Quando
o sol está muito forte, como é bom ser um
camaleão
e ficar em cima de uma pedra espiando
o
mundo. Se sinto fome, pego um inseto qualquer com
a
minha língua comprida. Se o inimigo espreita,
me
finjo de pedra verde, cinza ou marrom.
E,
quando de tardinha o sol esfria, dou um rolê por aí.
Chacal, in Muito prazer, Ricardo
Cenas de Nova York
NESSA
ÉPOCA MINHA MÃE morava sozinha em um pequeno apartamento em
Jamaica, Long Island, trabalhava em uma fábrica de sapatos,
esperando que eu retornasse ao lar para lhe fazer companhia e levá-la
ao Radio City uma vez por mês. Mantinha um quarto minúsculo à
minha espera, roupa lavada no armário, lençóis limpos na cama. Foi
um alívio depois de todos aqueles sacos de dormir, beliches e poeira
das estradas de ferro. Foi mais uma das muitas oportunidades que ela
me deu durante sua vida para simplesmente ficar em casa e escrever.
Sempre
dou a ela tudo o que sobra dos meus pagamentos. Me instalei para
longas sonecas sossegadas, para dias inteiros de meditação em casa,
para escrever e para extensas caminhadas pela velha e querida
Manhattan, a meia hora dali de metrô. Percorri as ruas, as pontes,
Times Square, cafés, o cais, visitei todos os meus amigos poetas
beatniks e perambulei com eles, tive casos com garotas do Village e
fiz tudo isso com aquela imensa e louca alegria que se sente quando
se retorna a Nova York.
Tenho
escutado grandes cantores negros a chamarem de “A Maçã”!
“Ali
está agora a vossa cidade insular dos manhattoes, envolta pelo
cais”, cantou Herman Melville.
“Envolta
por marés flamejantes”, recitou Thomas Wolfe.
Vistas
completas de Nova York por toda parte, de New Jersey, dos
arranha-céus.
ATÉ
DE BARES, como um bar da Third Avenue – quatro da tarde, os homens
riem ruidosamente, copos retinindo junto com os pés na barra de
latão do balcão, excitação do tipo “vamos lá, pessoal” –
outubro no ar, no sol do veranico na porta. – Entram dois
vendedores da Madison Avenue que passaram o dia inteiro trabalhando,
jovens, bem-vestidos, roupas justas, charuto na boca, satisfeitos por
terem ganho o dia e pelo drinque que está a caminho, avançam lado a
lado sorridentes, mas não há espaço no balcão congestionado e
barulhento (Merda!), por isso ficam de pé à espera, rindo e
conversando. – Os homens amam os bares, e os bons bares merecem ser
amados. – Esse aqui está repleto de homens de negócios,
operários, Finn MacCools do Tempo. – Velhos beberrões grisalhos
de macacão enxugando cerveja alegres. – Caminhoneiros anônimos
com lanternas dependuradas no cinto – velhos bebedores de cerveja
alquebrados erguendo tristemente os lábios arroxeados para os
píncaros felizes da bebedeira. – Os bartenders são rápidos,
solícitos, interessados tanto em seu trabalho como na clientela. –
Como em Dublin às 4h30 da tarde, quando o trabalho termina, mas aqui
é a fantástica Third Avenue de Nova York, almoço grátis, cheiros
da rua triste, rio de dejetos, almoço na estrada suja, portas que se
fecham, heróis guitarristas de suíças longas, aroma nos degraus de
madeira das soleiras do entardecer sonolento. – Mas são as torres
de Nova York se erguendo mais além, vozes se chocam e se confundem
falando e mastigando a fofoca até Earwicker abrir o jogo – Ah,
Jack Fitzgerald Mighty Murphy, onde anda você? – Trabalhadores
braçais semicalvos de camisas azuis remendadas e jeans puídos
empunham copos de cerveja de fim de tarde coroados de espuma branca.
– O metrô trepida por baixo do bar enquanto o executivo de chapéu
e colete mas sem paletó troca o pé esquerdo pelo direito na barra
de latão sob o balcão. – Um negro de chapéu, respeitável,
jovem, de jornal embaixo do braço, se despede ao balcão, simpático
e paternal, se inclinando sobre os outros homens – um ascensorista
parado ali no canto. – E não era aqui, segundo contam, que Novak,
o corretor de imóveis, costumava ficar de pé até altas horas da
noite para se arranjar e enriquecer em sua cela branca de verme
noturno datilografando relatórios e cartas, mulher e filhos furiosos
em casa às onze da noite – ambicioso, preocupado, em um pequeno
escritório da Island, bem ali naquela rua, sem dignidade, mas aberto
a qualquer tipo de negócio e na infância qualquer negócio pode ser
pequeno e a ambição grande – está agora servindo de adubo para
quantas margaridas? e jamais juntou seu milhão, nunca bebeu um copo
com So Long Gee Gee e I Love You Too nessa cervejaria
do entardecer com homens eufóricos girando nos tamboretes e
arrastando os saltos dos sapatos pela barra de latão em Nova York. –
Nunca chamou Old Glasses para brindar seu nariz vermelho e batatudo
com um trago – jamais sorriu nem permitiu às moscas utilizarem seu
nariz como ponto de referência – mas criou uma úlcera no meio da
noite para enriquecer e proporcionar o melhor à sua família. –
Por isso seu cobertor agora é a melhor porção de terra americana,
produzida nos moinhos do saxão com cara de lua de Hudson Bay e
trazida até aqui por um pintor de macacão branco (em silêncio)
para cercear a jornada de sua outrora una carne, e permitir que os
vermes se enterrem nela – Cerca! Vamos lá, mais uma cerveja, seus
beberrões – Malditos canequeiros! Amantes!
MEUS
AMIGOS E EU temos nossa maneira especial de nos divertirmos em Nova
York sem gastar muita grana e principalmente sem sermos importunados
por chatos formalistas, como por exemplo uma noitada grã-fina no
baile da prefeitura. – Não precisamos apertar mãos, não
precisamos marcar encontros e nos sentimos ótimos. – Vagabundeamos
sem rumo como crianças. – Entramos nas festas e dizemos a todo
mundo o que temos feito, e as pessoas pensam que estamos nos
exibindo. – Dizem: “Oh, olhem os beatniks!”.
Vai
aqui, como exemplo, uma noite típica: –
Emergindo
do metrô da 7th Avenue na 42nd Street, você passa pelo mictório
mais arrebentado de Nova York – nunca se sabe se está aberto ou
não, geralmente há uma enorme corrente atravessada em frente à
porta dizendo que está estragado, ou então tem um monstro decrépito
de cabelos brancos se arrastando na entrada, um mictório pelo qual
todos os sete milhões de habitantes de Nova York já passaram pelo
menos uma vez e repararam em sua estranheza – a seguir você cruza
pelo novo quiosque de hambúrgueres na brasa, bancas de bíblias,
jukeboxes automáticas e uma mísera banca subterrânea de revistas
usadas ao lado de uma tenda de amendoins cheirando a arcadas de metrô
– aqui e ali um exemplar usado do velho bardo Plotino metido entre
pedaços de coleções de livros didáticos alemães – onde vendem
longos cachorros-quentes de aspecto nojento (não, na verdade são
bastante atraentes, principalmente se você não tem quinze centavos
e procura alguém na Bickford’s Cafeteria que aceite abrir um
crédito para você) (que possa emprestar uns trocados).
Depois
de subir a escadaria, as pessoas permanecem horas e horas tagarelando
na chuva, com os guarda-chuvas encharcados – bandos de garotos de
jeans, loucos de medo de entrar no exército, em pé no meio da
escada sobre degraus de ferro à espera sabe Deus do que, certamente
há entre eles alguns heróis românticos recém-chegados de Oklahoma
com ambições de acabar entre suspiros nos braços de alguma jovem
loira sexy e imprevisível em uma cobertura do Empire State Building
– provavelmente alguns deles estão parados ali sonhando ser donos
do Empire State Building por obra e graça de algum passe de mágica
com o qual sonharam junto a um regato do interior próximo a uma
velha casa caindo aos pedaços nos arredores de Texarkana. – Com
vergonha de serem vistos na fila para entrar em um filme de sacanagem
(o filme, como se chama?) na calçada em frente ao New York Times –
O leão e o tigre passando, como Tom Wolfe costumava dizer a respeito
de certos sujeitos cruzando aquela esquina.
Recostado
naquela loja de charutos com uma infinidade de cabines telefônicas
na esquina da 42nd com a Seventh, onde você dá belos telefonemas
observando a rua, e ali dentro parece muito aconchegante enquanto lá
fora chove e parece uma boa ideia prolongar a conversação, quem
você vê? Equipes de beisebol? Treinadores de basquete? Todos
aqueles sujeitos do rinque de patinação vão ali? Caras do Bronx em
busca de ação, mas na real a fim de romance? Estranhas duplas de
garotas saindo de filmes de sacanagem? Você já as viu alguma vez
antes? Ou homens de negócios aturdidos de porre, com chapéus
enviesados nas cabeças grisalhas, fitando catatonicamente os
letreiros que flutuam no alto do prédio do Times, exibindo frases
enormes a respeito de Khrushchev, populações da Ásia enumeradas em
lâmpadas que acendem e apagam, sempre quinhentos pontos depois de
cada frase. – De súbito surge na esquina um policial
psicoticamente preocupado e manda todo mundo circular. – Esse é o
centro da maior cidade que o mundo jamais conheceu, e isso é o que
os beatniks fazem aqui. – “Ficar parado na esquina esperando
ninguém é Poder”, profetizou o poeta Gregory Corso.
Em
vez de ir a boates – se você está na posição de quem pode
frequentar boates (a maioria dos beatniks chacoalha bolsos vazios
quando passa pelo Birdland) – como é estranho parar na calçada e
apenas observar aquele esquisitão excêntrico da Second Avenue que
parece Napoleão ao passar, esmigalhando os pedaços de pão em seu
bolso, ou um garoto de quinze anos e cara atrevida, ou alguém que de
repente passa zunindo com um boné de beisebol (porque é isso que
você vê) e finalmente uma senhora com sete chapéus e um longo
casaco de peles esfarrapado em plena noite de verão carregando uma
enorme bolsa de lã russa cheia de pedacinhos de papel amassado onde
se lê “Festival Foundation Inc., 70 mil Germes” e traças saindo
de suas mangas – ela aborda e perturba os shriners. E
soldados sem guerra com sacos de lona – tocadores de harmônica
saídos de trens de carga. – Claro que há nova-iorquinos normais,
que parecem ridiculamente deslocados e tão esquisitos quanto sua
própria esquisitice elegante, carregando pizzas e jornais diários e
a caminho de porões escuros ou trens da Pensilvânia – o próprio
W. H. Auden pode ser visto todo atrapalhado sob a chuva – Paul
Bowles, alinhado em um terno de poliéster, retornando de uma viagem
ao Marrocos, o fantasma do próprio Herman Melville seguido por
Bartleby, o autor de Wall Street, e Pierre, o hipster ambíguo de
1848 dando um passeio – para ver o que há de novo nos flashes
noticiosos do Times. – Voltemos à banca de jornais da esquina. –
EXPLOSÃO ESPACIAL... O PAPA LAVA OS PÉS DOS POBRES...
Vamos
cruzar a rua até o Grant’s, nosso restaurante predileto. Por 65
centavos você descola uma enorme porção de mexilhões fritos, um
monte de batatas fritas, uma pequena porção de salada de repolho,
um pouco de molho tártaro, uma tacinha de molho vermelho para peixe,
uma rodela de limão, duas fatias de pão de centeio e um pedacinho
de manteiga, e por mais dez centavos um copo de uma excelente cerveja
de raiz de vidoeiro. – Que festim comer aqui! Bandos de espanhóis
em pé engolindo cachorros-quentes encostados nos enormes potes de
mostarda. – Dez balcões diferentes com diferentes especialidades.
– Sanduíches de queijo por dez centavos, dois bares para o
Apocalipse, oh sim, e ótimos garçons indiferentes. – E tiras
comendo de graça lá nos fundos – saxofonistas bêbados cochilando
– respeitáveis punguistas solitários esfarrapados da Hudson
Street sorvendo sua sopa sem trocar uma palavra com ninguém, os
dedos negros, uau. – Vinte mil clientes por dia – cinquenta mil
nos dias de chuva – cem mil quando neva. – Aberto vinte e quatro
horas por noite. Intimidade – absoluta, sob uma forte luz vermelha
repleta de conversações. – Toulouse-Lautrec, com sua deformidade
e sua bengala, rabiscando em um canto. – Você pode ficar ali por
cinco minutos e devorar sua comida ou então permanecer horas
mantendo uma conversa filosófica insana com seu companheiro e se
surpreendendo com as pessoas. – “Vamos comer um cachorro-quente
antes de ir ao cinema!”, e aí você fica tão doido lá dentro que
não vai a cinema nenhum porque aquilo ali é muito melhor do que um
filme de Doris Day em férias no Caribe.
“Mas
o que faremos esta noite? Marty queria ir ao cinema, mas vamos
descolar alguma coisa para fazer a cabeça. – Vamos até o
Automat.”
“Espera
um pouco, preciso engraxar os sapatos em cima de algum hidrante.”
“Você
não quer dar uma espiada no espelho deformante?”
“Está
a fim de tirar quatro fotos por 25 centavos? Afinal, estamos na cena
eterna. Poderemos olhar as fotos e recordar disso tudo quando formos
velhos e sábios Thoreaus de cabelos grisalhos em cabanas.”
“Ah,
já não há mais espelhos deformantes por aqui, antigamente tinha
espelhos deformantes aqui.”
“Que
tal o cinema Laff?”
“Também
já era.”
“Tem
o circo de pulgas.”
“E
ainda tem coristas?”
“O
burlesco já acabou há milhões e milhões de anos.”
“Vamos
até o Automat ver aquelas velhotas comendo feijões, ou os
surdos-mudos parados diante da janela enquanto você os observa e
tenta decifrar a linguagem invisível à medida que ela voa pela
janela, de face para face e de dedo para dedo...? Por que a Times
Square parece uma imensa sala?”
Do
outro lado da rua fica o Bickford’s, bem no meio do quarteirão,
sob a marquise do Apollo Theater e ao lado de uma livraria minúscula
especializada em Havelock Ellis e Rabelais com milhares de maníacos
sexuais remexendo nos caixotes. – O Bickford’s é o maior palco
da Times Square – muita gente tem perambulado por ali há anos,
homens e meninos em busca sabe Deus de que, talvez de algum anjo da
Times Square que transforme aquela grande sala em um lar, o velho lar
doce lar – a civilização precisa disso. – Aliás, o que a Times
Square está fazendo ali? O melhor mesmo é aproveitá-la. – A
maior cidade que o mundo jamais viu. – Será que há uma Times
Square em Marte? O que a Bolha Assassina faria em Times Square? Ou
San Francisco?
Uma
garota desce de um ônibus no Port Authority Terminal e entra no
Bickford’s, garota chinesa, sapatos vermelhos, senta para beber um
chá, à espera do papai.
Há
toda uma população flutuante em torno da Times Square que, dia e
noite, faz sempre do Bickford’s seu quartel-general. Nos velhos
tempos da geração beat, alguns poetas costumavam ir até ali para
encontrar o famoso personagem “Hunkey”, que aparecia de vez em
quando, com uma capa de chuva preta grande demais e uma cigarreira, à
procura de alguém para vender uma cautela de objetos penhorados –
máquina de escrever Remington, rádio portátil, capa de chuva preta
– para descolar um trago, (conseguir uma grana) para poder ir para
a parte alta da cidade arrumar confusão com os tiras ou com alguns
de seus rapazes. Alguns gangsters imbecis da 8th Avenue também
costumavam dar as caras por lá – talvez ainda o façam – os dos
velhos tempos estão na cadeia ou no cemitério. Agora os poetas vão
lá apenas para fumar um cachimbo da paz, à procura do fantasma de
Hunkey ou de seus rapazes, e para sonhar diante de desbotadas xícaras
de chá.
Os
beatniks garantem que, se você fosse lá todas as noites e lá
permanecesse, poderia iniciar por si mesmo uma temporada completa de
Dostoiévski bem ali na Times Square, conhecer todos os colunistas
fofoqueiros dos jornais da madrugada e seus casos, famílias e
infortúnios – fanáticos religiosos que levariam você para casa e
fariam longos sermões na mesa da cozinha sobre o “novo apocalipse”
e ideias assemelhadas: “Meu ministro batista de Winston-Salem disse
que Deus inventou a televisão para que, quando Cristo retornar à
terra, eles O crucifiquem nas ruas dessa Babilônia daqui, e as
câmeras de TV estejam apontadas para a cena, e então o sangue
escorrerá pelas ruas, e todos os olhos hão de ver”.
Se
continuar com fome, vá até a Cafeteria Oriental – também um
“restaurante favorito” – um pouco de vida noturna – barato –
no subterrâneo bem em frente do monolítico terminal de ônibus de
Port Authority na 40 th Street, e coma enormes cabeças de carneiro
gordurosas com arroz grego por noventa centavos. – Exóticas
melodias orientais ondulantes na jukebox.
Dependendo
do quão chapado você esteja agora – presumindo que tenha
descolado algum lance em uma das esquinas – digamos na 42th Street
com 8th Avenue, perto da imensa drogaria Whelan, outro antro
solitário onde se pode encontrar algumas pessoas – prostitutas
negras, damas de andar vacilante em psicose de benzedrina. – Do
outro lado da rua se pode ver as já iniciadas ruínas de Nova York –
o Globe Hotel sendo posto abaixo, um buraco como o de um dente caído
em plena 44th Street – e o edifício verde da McGraw-Hill
arranhando o céu, mais alto do que se possa imaginar – solitário,
apontando em direção ao rio Hudson, onde os cargueiros esperam sob
a chuva sua pedra calcária vinda de Montevidéu.
O
melhor é ir para casa, está ficando tarde. – Ou: “Vamos ao
Village ou ao Lower East Side ouvir Symphony Sid no rádio – ou
tocar nossos discos indígenas – e comer enormes bifes
porto-riquenhos mortos – ou guisado de mondongo – ver se Bruno
andou cortando mais capotas de automóveis no Brooklyn – embora
Bruno ande mais calmo agora, talvez tenha escrito um novo poema”.
Ou
ver televisão. Vida noturna – Oscar Levant falando da sua
melancolia no programa de Jack Paar.
O
Five Spot, na 5th Street com a Bowery, às vezes apresenta Thelonious
Monk no piano e a rapaziada aparece por lá. Quem conhece o dono pode
se sentar de graça em uma mesa com uma cerveja, quem não conhece
pode entrar sorrateiramente e ficar próximo ao ventilador,
escutando. Nos fins de semana está sempre lotado. Monk medita em
abstração mortífera, clonk, faz uma declaração, o pé enorme
batendo delicadamente no chão, cabeça virada para o lado,
escutando, e então entra o piano.
Lester
Young tocou lá pouco antes de morrer e entre um número e outro se
sentava na cozinha, nos fundos. Meu amigo poeta Allen Ginsberg foi
lá, se ajoelhou e perguntou o que ele faria caso uma bomba atômica
caísse em Nova York. Lester respondeu que pelo menos quebraria a
vitrine da Tiffany’s e apanharia algumas joias. Também disse: “O
que você está fazendo ajoelhado?”, sem perceber que era um dos
grandes heróis da geração beat, hoje consagrado. O Five Spot é
mal-iluminado, tem garçons estranhos e boa música sempre, às vezes
John “Train” Coltrane inunda a casa inteira com as notas ásperas
de seu grande sax tenor. Nos fins de semana, grupos de gente elegante
da parte alta da cidade lotam a casa e conversam sem parar –
ninguém liga.
Oh,
quem sabe umas duas horas no Egyptian Gardens do Lower West Side, em
Chelsea, a zona dos restaurantes gregos. – Copos de ouzo, bebida
grega e lindas garotas dançando a dança do ventre com sutiãs
bordados com lantejoulas, a incomparável Zara ondulando na pista
como um mistério ao ritmo das flautas e ao tilintar das notas gregas
– quando não está dançando, Zara se senta na orquestra com olhos
sonhadores, os homens batucando um tambor contra o ventre dela. –
Vastas multidões do que parecem ser casais de subúrbio se sentam às
mesas e acompanham com palmas o flutuante ritmo oriental. – Quem
chega atrasado tem que ficar encostado à parede.
Quer
dançar? Garden Bar, na 3rd Avenue, onde se pode praticar fantásticas
danças bem agitadas na pequena saleta dos fundos ao som de uma
jukebox, barato, o garçom nem liga.
Quer
conversar apenas? Cedar Bar, na University Place, onde aparecem todos
os pintores e onde um garoto de dezesseis anos passou uma tarde
esguichando vinho tinto de um odre espanhol para dentro da boca dos
amigos, errando sempre...
Os
clubes noturnos do Greenwich Village conhecidos por Half Note,
Village Vanguard, Café Bohemia e Village Gate também apresentam
jazz (Lee Konitz, J. J. Johnson, Miles Davis), mas é preciso ter
muita grana e não é só isso, é que a triste atmosfera comercial
está matando o jazz, e o jazz está matando a si mesmo ali, porque o
jazz pertence às cervejarias baratas, alegres e abertas a todos,
como no início.
Há
uma grande festa no loft de um pintor qualquer, um louco som flamengo
na vitrola em alto volume, de repente as garotas se tornam todas
quadris e calcanhares, e as pessoas tentam dançar entre seus cabelos
esvoaçantes. – Homens perdem a cabeça e começam a se agarrar às
pessoas, voam objetos pelos ares, uns sujeitos agarram outros pelos
joelhos e os erguem a dois metros e meio do chão, se desequilibram,
mas ninguém se machuca, blonk. – Garotas se equilibram com as mãos
apoiadas nos joelhos dos homens, as saias delas caem, revelando
rendinhas em suas coxas. – Por fim todo mundo se veste para voltar
para casa, e o anfitrião observa, aturdido: “Vocês parecem todos
tão respeitáveis!”.
Ou
alguém fez um lançamento, ou há leitura de poemas no Living
Theater, ou no Gaslight Café, ou na Seven Arts Coffee Gallery, nas
imediações da Times Square (9th Avenue e 43rd Street, lugar
extraordinário) (nas sextas-feiras começa à meia-noite), depois
dali todo mundo corre de volta para o velho bar do agito. – Ou
então uma festança na casa de Leroi Jones – ele tem um novo
exemplar da Yugen Magazine impresso por ele mesmo em uma máquina
caindo aos pedaços, e lá estão os poemas de toda a rapaziada, de
San Francisco a Gloucester, Massachussetts, e custa apenas cinquenta
centavos. – Editor histórico, hipster secreto da matéria. –
Leroi está começando a ficar farto de festas, todos sempre arrancam
a camisa, começam a dançar, três garotas sentimentais se grudam ao
poeta Raymond Bremser, meu camarada Gregory Corso discute com um
jornalista do Post de Nova York e diz: “Mas você não compreende o
pranto Canguriano! Abandone sua profissão! Vá se refugiar nas ilhas
Enchenedianas!”.
Vamos
cair fora daqui, é literário demais. – Vamos nos embebedar na
Bowery ou comer aquele macarrão comprido com copos de chá no Hong
Pat’s em Chinatown. – Por que estamos sempre comendo? Vamos dar
uma caminhada pela ponte do Brooklyn e abrir o apetite outra vez. –
Que tal um pouco de quiabo na Sands Street?
Oh,
fantasma de Hart Crane!
“VAMOS
VER se encontramos Don Joseph!”
“Quem
é Don Joseph?”
Don
Joseph é um fantástico trompetista que perambula pelo Village, de
bigodinho e braços caídos segurando o trompete, que se estala
quando ele toca mansamente, ou melhor murmura, o melhor e mais suave
dos trompetes desde Bix e mais. – Ele fica parado junto à jukebox
do bar e acompanha a música em troca de cerveja. – Parece um galã
de cinema. – É o incrível, secreto superglamourouso Bobby Hackett
do mundo do jazz.
E
tem aquele sujeito, Tony Fruscella, que senta de pernas cruzadas no
tapete, toca Bach de ouvido no trompete, e mais tarde da noite toca
com os rapazes em uma sessão de jazz moderno –
Ou
George Jones, o oculto da Bowery, que toca um tenor maravilhoso nos
parques ao nascer do dia com Charley Mariano, só de curtição,
porque amam o jazz, e uma vez no cais, ao nascer do sol, tocaram uma
sessão inteira enquanto um sujeito batia com um pedaço de pau na
doca para marcar o ritmo.
Falando
dos malucos da Bowery, que me dizem de Charley Mills, que percorre a
rua com vadios que bebem suas garrafas de vinho cantando em uma
escala de doze tons?
“Vamos
ver os incríveis e estranhos pintores secretos da América e
discutir com eles seus quadros e suas visões – Iris Brodie com sua
delicada filigrana bizantina de virgens –”
“Ou
Miles Frost e seu touro negro na caverna alaranjada.”
“Ou
Franz Klein e suas teias de aranha.”
“Suas
malditas teias de aranha!”
“Ou
Willem de Kooning e seu Branco.”
“Ou
Robert De Niro.”
“Ou
Dody Muller e sua Anunciação em flores de 2,1 metros de altura.”
“Ou
Al Leslie e suas telas com cavaletes gigantescos.”
“O
gigante de Al Leslie está ressonando no edifício da Paramount.”
Há
um outro grande pintor chamado Bill Heine, é um pintor clandestino
realmente secreto, que senta no meio de todos aqueles caras loucos
dos cafés da East Tenth Street, que não se parecem em nada com
cafés, mas sim com uma espécie de empório de roupas usadas dos
porões da Henry Street, com a diferença de que sobre o umbral da
porta se vê uma escultura africana ou talvez uma escultura de Mary
Frank e lá dentro rodam Frescobaldi na vitrola.
AH,
VAMOS VOLTAR PARA O VILLAGE e parar na esquina da Eighth Street com
Sixth Avenue para ver os intelectuais passarem. – Repórteres da AP
correndo para seus apartamentos de subsolo na Washington Square,
colunistas femininas com grandes cães policiais quase rebentando a
corrente, detetives solitários passando como sombras, desconhecidos
peritos em Sherlock Holmes com unhas azuis a caminho de seus quartos
para tomarem escopolamina, um jovem musculoso de terno alemão
cinzento barato explicando algo grotesco para sua namorada gorda,
grandes redatores educadamente recostados às bancas de jornal a
postos para comprarem a primeira edição do Times, enormes
empregados gordos de mudanças saídos de filmes de 1910 de Charlie
Chaplin retornando para casa com imensos sacos transbordando de
chop-suey (alimentam todo mundo), o melancólico arlequim de Picasso
que agora é dono de uma loja de gravuras e molduras pensando na
mulher e no filho recém-nascido e levantando um dedo para chamar um
táxi, engenheiros de som balofos apressados com seus gorros de pele,
gatas artistas da Columbia com seus problemas à D. H. Lawrence
caçando homens de cinquenta anos, velhos no Kettle of Fish, e
o espectro melancólico da prisão feminina de Nova York que se ergue
no horizonte envolta em silêncio como a própria noite – ao pôr
do sol suas janelas parecem laranjas – o poeta e. e. cummings
comprando um pacote de pastilhas para garganta à sombra daquela
monstruosidade. – Se está chovendo, você pode ficar debaixo do
toldo do Howard Johnson’s e observar o outro lado da rua.
O
beatnik Angel Peter Orlovsky no supermercado cinco portas
adiante, comprando biscoitos Uneeda (tarde da noite, sexta-feira),
sorvete, caviar, bacon, pretzels, refrigerantes, TV Guide,
vaselina, três escovas de dentes, leite maltado (sonhando com leitão
assado recheado), comprando batatas de Idaho, pão de passas de uva,
couve com lagartas por engano e tomates frescos e recolhendo selos
vermelhos. – Depois vai para casa falido, joga tudo em cima da
mesa, pega um enorme livro de poemas de Mayakovsky, liga o televisor
de 1949 em um filme de terror e vai dormir.
E
essa é a vida beat na noite de Nova York.
Jack Kerouack, in Cenas de Nova York e outras viagens