Capítulo 71 | O Senão do Livro

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…
E caem! – Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo é o ar que respirais, amadas folhas. O sol que vos alumia, com ser de toda gente, é um sol opaco e reles, de cemitério e carnaval.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Netinho

Se tivesse mais dois anos, chamá-lo-ia mentiroso. No seu verdor, é apenas um ser a quem a imaginação comanda, e que, com isso, dispõe de todos os filtros da poesia.
O que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula a todo instante na conversa e logo se materializa, real dentro do real. Geralmente, se lhe perguntamos alguma coisa, a resposta é um ato criador.
Quem buliu neste açucareiro e sujou a toalha?
Foi Puck.
Mas Puck é um cachorrinho de nada, não sobe à mesa.
Subiu na cadeira.
Você viu Puck subir?
Vi, ué.
E deixou?
Eu disse assim: Puck, não sobe nessa cadeira não.
E que foi que Puck lhe respondeu?
Que tinha vontade de comer um torrãozinho de açúcar.
Mas você é que comeu torrão de açúcar. Está-se vendo pela sua boca lambuzada.
É, eu também comi um, mas foi Puck quem deu.
Horas depois:
Você se lembra? Naquele dia em que Puck me deu um torrão de açúcar…
O tempo ainda não existe em forma fixa. As coisas marcadas para amanhã desenham-se no nevoeiro, ou mergulham no insondável. Prometem-lhe um velocípede.
Onde está?
Espere, vem amanhã.
Por que amanhã nunca é hoje?
E ninguém, de Bergson ao avô, saberia responder-lhe ao certo.
Contudo, uma noção se delineia, da sequência das horas. Conta-nos um fato estranho:
Quando o céu ficou azul-escuro, e um gato pulou no terraço, e depois o céu virou claro outra vez, eu fui espiar devagarzinho, e o gato tinha comido a máquina de escrever…
Ama as coisas pelo prazer abstrato da posse, menos pelas coisas em si, ou pelo seu uso voluptuoso. Há um lápis.
Me dá esse lápis pra mim?
Não posso.
Me empresta?
Não posso, preciso dele.
Ah, me empresta…
Está bem, empresto.
Agora ele é meu?
Seu, não. Emprestado.
Eu queria tanto um lápis pra mim… Me dá, anda.
Está bem, pode ficar com ele.
É meu? Oba!
E joga-o fora, imediatamente.
Não lhe deem brinquedo caro, porque logo o desmonta para brincar com um pedaço qualquer. Dir-se-ia instinto de destruição, comum à espécie. Inclino-me a crer que seja instinto de simplificação e prazer de recriar, em novas bases, a realidade imposta.
Em suma, grande figura, admirável exemplar de todos os garotos da mesma idade em todo o mundo, e só Deus sabe como foi batida esta crônica (se assim podemos chamá-la), enquanto ele montava a cavalo no cronista: upa, upa, cavalinho alazão!

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 13



Uns setenta anos depois, Phearson estava à mesa, de frente para mim, naquela mansão em Nortúmbria, irritado ao me ouvir dizer:
A complexidade deve ser seu pretexto para não agir. A complexidade dos eventos, a complexidade do tempo... De que adianta você saber isso?
Chovia lá fora, um aguaceiro forte e incessante que chegara dois dias depois de um calor sufocante, o céu abrindo a torneira. Phearson viajara para Londres; voltara com mais perguntas e uma atitude menos dócil.
Você está escondendo coisas! — atacou. — Diz que tudo isso vai acontecer, mas não diz como. Fala de computadores, telefones e do maldito fim da Guerra Fria, mas não diz merda nenhuma de como nada disso funciona. Nós somos os mocinhos, estamos aqui para melhorar as coisas, entendeu? Criar um mundo melhor!
Quando Phearson se enfurecia, uma veia azul como uma cobra contorcida surgia em sua têmpora esquerda, e seu rosto, em vez de vermelho, ficava pálido e acinzentado. Ponderei suas acusações e concluí que boa parte não tinha fundamento. Eu não era historiador; os eventos do futuro haviam se desdobrado como ações no presente, dando pouco tempo para análises ou análises retrospectivas, apresentando-se em matérias de sessenta segundos no noticiário da TV. A capacidade que eu tinha de explicar o funcionamento de um computador era a mesma que tinha de equilibrar um peixe na ponta do nariz.
E, sim, eu estava escondendo coisas — não todas, mas algumas. Eu havia lido sobre o Clube Cronus, e a primeira lição que tirei foi que era um lugar em que se fazia silêncio. Se seus membros fossem como eu, se sabiam o futuro, ao menos no que dizia respeito às suas trajetórias pessoais, então eles tinham o poder de afetá-la diretamente. Ainda assim, escolhiam não fazê-lo. E por quê?
Complexidade — repeti com veemência. — Você e eu somos meros indivíduos. Não podemos controlar os grandes eventos socioeconômicos. Você até pode tentar alterar um evento, mas isso, mesmo que da forma mais insignificante possível, invalidaria todo e qualquer outro evento que eu já tenha descrito. Eu posso lhe contar que os sindicatos vão sofrer durante a Era Thatcher, mas a verdade é que não sou capaz de apontar exatamente quais as forças econômicas por trás disso, nem explicar em poucas palavras por que a sociedade permite a destruição de suas indústrias. Não sou capaz de dizer o que passa pela cabeça das pessoas que dançam durante a queda do Muro de Berlim, ou exatamente quem no Afeganistão vai se levantar um dia e dizer: “Hoje é um bom dia para a jihad.” E do que valem as minhas informações, se agir para mudar um único pedaço vai mudar o todo?
Nomes, lugares! Diga nomes, diga lugares!
Por quê? Você vai assassinar Yasser Arafat? Vai executar crianças por crimes que ainda não cometeram? Vai dar armas ao Talibã antes do tempo?
Isso é uma decisão política, todas essas decisões são políticas...
Você está tomando decisões com base em crimes que ainda não foram cometidos!
Ele jogou os braços num grande gesto de frustração.
A humanidade está evoluindo, Harry! O mundo está mudando! Nos últimos duzentos anos a humanidade mudou de formas mais radicais do que nos dois mil anos anteriores! O ritmo da evolução está acelerando, tanto para a espécie quanto para a civilização. É o nosso trabalho, o trabalho dos bons, dos homens e das mulheres de bem, supervisionar o processo, agir como um guia para evitar mais cagadas e desastres! Você quer outra Segunda Guerra Mundial? Outro Holocausto? Nós podemos mudar as coisas, melhorar as coisas.
Você se considera capaz de supervisionar o desenvolvimento do futuro?
Claro que sim, porra! — rugiu ele. — Porque sou um puta defensor da democracia! Porque sou um puta liberal que acredita na liberdade, porque eu sou um cara bom pra cacete e de bom coração e, porra, porque alguém precisa fazer esse trabalho!
Eu me recostei na cadeira. A chuva caía na diagonal, batia no vidro da janela. Havia flores recém-colhidas na mesa, café frio no meu copo.
Lamento, senhor Phearson — disse, por fim. — Não sei o que quer ouvir de mim.
Ele girou uma cadeira, sentou-se nela, aproximou-a de mim e, baixando o tom de voz de um jeito que parecia querer conspirar, esticando as mãos num gesto que parecia um pedido de desculpas, perguntou:
Por que não ganhamos no Vietnã? O que estamos fazendo de errado?
Eu grunhi e levei as mãos à cabeça.
Vocês não são bem-vindos! Os vietnamitas não querem vocês, os chineses não querem vocês, seu próprio povo não quer lutar no Vietnã! Não dá para ganhar uma guerra que ninguém quer lutar!
E se jogássemos a bomba? Uma bomba, em Hanói, uma limpeza geral?
Não sei, porque isso nunca aconteceu, e nunca aconteceu porque é absurdo! — gritei. — Você não quer conhecimento, quer afirmações, e eu... — Eu me levantei de súbito, e fui o primeiro a me surpreender com o movimento repentino. —... eu não posso lhe dar isso — concluí. — Lamento. Quando concordei em fazer isso, pensei que... que você queria outra coisa. Acho que errei. Eu preciso... preciso pensar.
Ficamos em silêncio.
Em chinês, a asma é descrita como um animal ofegante, com a respiração pesada resultado de uma enfermidade. Phearson permaneceu imóvel como uma estátua, apertando as mãos para se conter de forma civilizada, seu terno bem passado, seu rosto impassível, mas sua respiração era toda de um animal que ofegava dentro de seu peito.
Para que você serve? — perguntou ele, do jeito típico de uma pessoa criada em meio aos valores da boa educação, do autocontrole cuidadoso, mas a respiração que acompanhou a pergunta queria rasgar meu pescoço com os dentes e beber o sangue. — Você acha que isso não importa, doutor August? Você acha que morre e fica por isso mesmo? O mundo reinicia, bum! — Ele deu um tapa na mesa, forte o bastante para fazer as xícaras pularem dos pires. — Nós, os homens insignificantes com suas vidas insignificantes estão mortos e esquecidos, e tudo isso... — ele não precisava se mexer, não precisava fazer mais do que correr os olhos ao redor do quarto — ...tudo não passa de um sonho. Você é Deus, doutor August? Você é o único ser vivo que importa? Acha que, só porque é capaz de se lembrar, a sua dor é mais intensa e importante? Acha que, porque viveu essa dor, sua vida é a única vida que conta? Acha?
Ele não gritou, não levantou a voz, mas a respiração animal se acelerou, enquanto ele contraía os dedos para conter o próprio instinto destrutivo. Eu vi que não tinha nada. Não tinha palavras, ideias, justificativas, réplicas. Ele se levantou de repente, de um jeito brusco, como uma espécie de ruptura, embora eu não soubesse dizer de quê, enquanto a veia de sua têmpora se fazia cada vez mais visível sob a pele.
Está bem. — Ele ofegava as palavras. — Está bem, doutor August. Está bem. Nós dois estamos um pouco cansados, um pouco frustrados... Talvez precisemos de um descanso. Por que não tiramos o resto do dia, e você pensa sobre isso? Tudo bem? Tudo bem — decidiu ele antes de eu responder. — É esse o plano. Ótimo. Vejo você amanhã.
Ao dizer isso, Phearson saiu a passos largos do quarto sem dizer mais uma palavra ou olhar para trás.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

Bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Paulo Leminski, in Toda Poesia

Romaria | Renato Teixeira, 1977


Nos anos 1970, a música sertaneja vivia em um mundo à parte, era chamada de caipira e restrita ao interior de São Paulo, Minas e Goiás. Longe demais, portanto, do eixo Rio-São Paulo, no qual estavam os principais estúdios e emissoras de rádio e TV e vivia a constelação de astros da canção. Caso de Elis Regina, em 1977, ao lançar essa toada no álbum Elis.
Paulista de Taubaté, com fortes raízes sertanejas mas formado ao som da bossa nova e da MPB, Renato Teixeira de Oliveira (1945) ganhava a vida como compositor de jingles em São Paulo até conhecer o casal Elis Regina e César Camargo Mariano por intermédio de seu irmão, Roberto de Oliveira, na época produtor musical de Elis. Os dois perceberam de imediato o potencial daquela poderosa canção-prece, ao mesmo tempo de construção refinada e popular, com cheiro de terra e de mato, cantada por um sertanejo em sua jornada de fé a caminho de Aparecida do Norte:
Sou caipira pirapora, Nossa / Senhora de Aparecida / ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida.”
Incluída num disco repleto de material inédito de pesos-pesados da MPB como Milton Nascimento e Fernando Brant, João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins e Vitor Martins, “Romaria” roubou a missa. Tocou maciçamente em todo o Brasil, antecipando em quase duas décadas a febre sertaneja que se instalou nos anos 1990 e continua imperando no Brasil do século XXI.
O sucesso também serviu de cartão de visita para Renato Teixeira e, graças a “Romaria”, ele pôde trocar a publicidade pela dedicação de corpo e alma à música, tornando-se uma das maiores referências do melhor sertanejo, ao lado de Almir Sater, com quem realizou memoráveis discos e shows com um padrão de qualidade muito acima e além da vulgaridade do sertanejo-pop que veio depois.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

As rãs | 1


Professor, tínhamos em nossa aldeia um costume bem antigo de batizar as crianças com o nome de partes do corpo humano, como Chen Nariz, Zhao Olho, Wu Intestino, Sun Ombro… Nunca procurei saber a origem dessa prática, talvez tenha surgido por acreditarem que um nome humilde daria vida longa, ou pelo fato de as mães considerarem o filho parte da própria carne. Esse é um costume que caiu em desuso. Os pais de hoje não querem mais dar nomes estranhos aos filhos. As crianças da aldeia agora recebem nomes sofisticados de personagens de novelas de Hong Kong, Taiwan, Japão ou Coreia. Quem tinha o nome à maneira antiga, na maioria dos casos, acabou optando por outro mais elegante. Naturalmente, há aqueles que mantiveram o original, como Chen Orelha e Chen Sobrancelha.
Chen Nariz — pai de Chen Orelha e Chen Sobrancelha — foi meu colega na escola primária e meu amigo na juventude. Entramos na escola primária de Dayanglan no outono de 1960. As memórias mais marcantes que tenho daquela época de fome são, em grande parte, relacionadas à comida. Por exemplo, a história de quando comi carvão. Muitos pensam que é invenção minha, mas juro por minha tia que tudo aquilo aconteceu de fato, não inventei nada.
Era um carregamento de carvão de alta qualidade, produzido na mina de Longkou. Dava para ver nitidamente o nosso reflexo nele, de tão reluzente. Nunca mais encontrei um carvão brilhante como aquele. O charreteiro da aldeia, Wang Pé, trouxe o minério de carroça desde a sede do distrito. Wang Pé tinha a cabeça quadrada e o pescoço grosso. Sofria de gagueira. Quando falava, seus olhos saltavam e o rosto corava. Era pai de um casal de gêmeos, Wang Fígado e Wang Vesícula, meus colegas de escola. Fígado, o menino, era alto, mas Vesícula, a menina, nunca cresceu muito, era uma miniatura — praticamente uma anã, para usar uma expressão grosseira. Diziam que, no ventre da mãe, Fígado tomou para si todos os nutrientes, e por isso Vesícula saiu miudinha daquele jeito. O carvão chegou bem na hora da saída da escola. Os alunos, de mochila nas costas, cercaram a carroça para ver o minério ser descarregado. Com uma grande pá de ferro, Wang Pé ia tirando o carvão da carroça e despejando-o no chão. As pedras faziam barulho ao cair umas sobre as outras. Wang Pé tirou da cintura um pano azul para enxugar o suor do pescoço. Nisso, viu ali os dois filhos e ralhou: “Vão já para casa cortar capim!”. Wang Vesícula deu meia-volta e saiu correndo — ia balançando o corpo, sem muito equilíbrio, como uma criança dando os primeiros passos; era mesmo um encanto. Wang Fígado afastou-se um pouco, mas não saiu dali. O menino admirava o trabalho do pai. As crianças de hoje não experimentam mais o fascínio que Fígado sentia naquele tempo, nem que o pai seja piloto de avião. Mas a carroça, ah, aquela carroça! Corria ruidosa levantando poeira atrás das rodas. Era guiada por um cavalo militar da reserva que, nos tempos do Exército, transportava explosivos. Dizem que ganhara a marca de ferro na garupa em reconhecimento aos relevantes serviços prestados no front. A tração ficava a cargo de um burro de temperamento irritadiço, perito em coices, especialista em mordidas. Apesar do mau gênio, tinha uma força espantosa e uma velocidade excepcional. Wang Pé era a única pessoa capaz de controlar aquele burro louco. Muita gente na vila invejava sua ocupação, mas, só de ver o burro, mudava de ideia. O animal mordeu duas crianças: uma foi Yuan Bochecha, filho de Yuan Rosto, a outra foi Wang Vesícula. Certa vez Wang Pé parou a carroça em frente a sua casa e a filha foi brincar perto do burro, que abocanhou a menina pela cabeça e a levantou do chão. Todos tratávamos Wang Pé com a maior consideração. Ele tinha um metro e noventa de altura, ombros largos, a força de um touro. Era capaz de erguer nos braços uma pedra de moinho de cem quilos, e erguia até acima do cocuruto. Tínhamos especial admiração pelo seu chicote. Quando o burro louco mordeu a cabeça de Yuan Bochecha, Wang Pé puxou o freio e ficou em pé sobre os timões da carroça, uma perna de cada lado, brandiu o chicote e começou a fustigar a garupa do animal. A cada chicotada era um fio de sangue que escorria, um som de couro que se rasgava. De início, o burro louco ainda dava coices. Passado algum tempo, começou a tremer, dobrou as pernas dianteiras, arriou a cabeça e mordeu a terra, enquanto a garupa erguida continuava debaixo de açoite. Wang Pé só parou, a contragosto, depois que o pai de Yuan Bochecha veio pedir que poupasse o animal. Yuan Rosto era secretário do Partido na aldeia, uma alta autoridade local. Wang Pé não ousaria desobedecê-lo. Quando o burro louco mordeu Wang Vesícula, esperávamos assistir a outro espetáculo daqueles, mas Wang Pé não desferiu uma única chibatada. Pegou um punhado de cal da beira da estrada e passou na cabeça da filha, em seguida a carregou para dentro de casa. Poupou o burro, mas deu uma chicotada na mulher e um pontapé no filho. Apontávamos para aquele burro marrom enquanto fazíamos comentários. Era tão magro que mostrava os ossos; as covas dos olhos eram tão fundas que caberia um ovo em cada uma. Tinha um olhar triste, zurrava de um jeito que às vezes parecia estar chorando. Não conseguíamos entender como um burro magro daquele podia ter tanta força. À medida que falávamos, íamos chegando perto dele. Wang Pé descansava a pá, encarava-nos cheio de fúria e corríamos assustados. Aos poucos, o monte de carvão diante da cozinha da escola crescia e a carga da carroça diminuía. Puxamos o ar com o nariz, todos ao mesmo tempo, porque farejamos um aroma diferente. Era um cheiro parecido com o de resina de pinheiro, ou de batata assada. O olfato levou nossos olhos até aquele monte de carvão brilhante. Wang Pé tocou os animais e afastou-se da escola. Em vez de sair atrás da carroça, como sempre fazíamos, só para matar a vontade de pular para cima dela, indiferentes ao risco de levar uma chicotada na cabeça, ficamos com os olhos fixos no monte de carvão e nos aproximamos dele devagarzinho. Velho Wang, o cozinheiro, passou carregando uma vara nos ombros, com um balde d’água pendurado em cada ponta. Seu corpo balançava. A filha dele, Wang Renmei, também era nossa colega de escola, e mais tarde se tornaria minha esposa. Era uma das poucas crianças que não receberam o nome de partes do corpo, porque o cozinheiro era um homem culto. Tinha sido diretor da granja de uma comuna, mas perdeu o cargo e foi mandado de volta para a aldeia porque certa vez falou algo que não devia. Velho Wang nos olhou desconfiado. Achava que talvez quiséssemos entrar na cozinha para roubar comida, quem sabe? Enxotou-nos dali: “Fora, seus pirralhos! Aqui não tem nada para vocês, vão para casa mamar nas suas mães”. Claro que ouvimos o que ele disse, até chegamos a considerar a sugestão, mas percebemos que ele estava só ralhando com a gente. Tínhamos entre sete e oito anos, quem é que mama nessa idade? Além do mais, ainda que quiséssemos, nossas mães eram umas mortas de fome, tinham os peitos colados nas costelas, como é que sairia leite dali? Ninguém foi discutir o assunto com Velho Wang. Ficamos debruçados sobre o monte de carvão, parecendo geólogos amadores diante de uma nova descoberta; farejávamos como cães à procura de comida em meio ao entulho. Antes de continuar, é preciso agradecer a Chen Nariz e também a Wang Vesícula. Foi Chen quem primeiro pegou um pedaço de carvão, colocou-o diante do nariz e cheirou. Franziu a testa como quem reflete sobre alguma questão profunda. Tinha um nariz enorme, do qual adorávamos caçoar. Depois de refletir por um momento, ele arremessou contra uma pedra maior o carvão que tinha na mão. O carvão se partiu com um ruído e exalou aquele cheiro. Catou uma lasquinha, seguido de Wang Vesícula, provou com a ponta da língua, virou os olhos e voltou-se para nós. Vesícula fez o mesmo: lambeu o carvão e olhou para nós. Depois se entreolharam, sorrindo, com muito cuidado e, em fortuita sincronia, mordiscaram um pedacinho, mastigaram, depois morderam mais um pedaço e mastigaram com força. Seus rostos transbordavam de excitação. O narigão de Chen Nariz ficou vermelho, orvalhado de suor. O narizinho de Wang Vesícula estava preto, coberto de cinzas. Ouvíamos, encantados, o som que faziam ao mastigar. Víamos, assombrados, eles engolirem o carvão. E engoliram mesmo. Ele disse em voz baixa: “É gostoso, pessoal!”. Ela gritou com a vozinha fina: “Venha logo, meu irmão, vamos comer!”. Ele pegou outro pedaço e mastigou com mais força ainda. Ela tomou um pedaço maior com sua mãozinha e deu a Wang Fígado. Imitando-os, partimos o carvão, pegamos uma lasca e mordiscamos para sentir que gosto tinha, e até que era bom, apesar de um pouco áspero. Generoso, Chen Nariz indicou um tipo de carvão: “Pessoal, comam deste, que é gostoso”. Ele tinha na mão uma pedra translúcida, amarelada, parecida com âmbar: “Este aqui tem gosto de resina de pinheiro”. Na aula de ciências, aprendemos que o carvão se formou a partir de florestas soterradas há muitos séculos na crosta terrestre. O professor de ciências era o diretor da nossa escola, Wu Jinbang. Não acreditamos nele, nem na cartilha. As florestas são verdes, como poderiam se transformar em carvão preto? Achávamos que o diretor e a cartilha estavam falando bobagem. Só quando descobrimos carvão com gosto de resina de pinheiro é que percebemos que nem o diretor, nem a cartilha estavam tentando nos enganar. Quase todos os trinta e cinco alunos de nossa turma se encontravam ali, com exceção de algumas meninas. Cada um de nós segurava um pedaço de carvão, que íamos mordendo e mastigando com grande ruído. Em cada rosto se via uma expressão de deslumbramento e mistério. Era como se estivéssemos num teatro de improviso, ou envolvidos em algum jogo esquisito. Xiao Lábio Inferior pegou uma lasca de carvão, olhou-a de todos os ângulos com cara de desprezo e não comeu. Não comeu porque não tinha fome e não tinha fome porque seu pai era o zelador do armazém de grãos da comuna. O Velho Wang, cozinheiro, ficou estarrecido. Saiu correndo com as mãos cobertas de farinha. Nossa, ele tinha as mãos cobertas de farinha! Naquela época, a cantina só atendia ao diretor da escola e ao coordenador pedagógico, além de dois diretores de comuna lotados na aldeia. O Velho Wang gritou espantado: “O que estão fazendo? Estão… comendo carvão? E isso lá se come?”. Com sua mãozinha miúda, Vesícula ergueu um pedaço e ofereceu, numa voz macia: “Tio, é uma delícia, experimente!”. O Velho Wang abanou a cabeça e disse: “Wang Vesícula, você, uma menina tão delicada, está seguindo o mau comportamento desses marmanjos?”. Vesícula deu mais uma mordida e disse: “Mas é gostoso mesmo, tio”. Era fim de tarde, um sol vermelho deitava-se no poente. Os dois diretores de comuna que sempre faziam suas refeições ali chegaram de bicicleta.
Eles também ficaram olhando para nós. Velho Wang tentava nos enxotar agitando uma vara. O diretor Yan — parece que era vice-secretário — mandou o cozinheiro parar com aquilo. Fazendo cara feia, acenou com a mão, deu meia-volta e se meteu na cozinha.
No dia seguinte, na sala de aula, comíamos carvão atentos ao que dizia a professora Yu. Nossas bocas estavam completamente pretas, com cinzas nos cantos. Além dos meninos, agora também se fartavam de carvão aquelas meninas que não tinham participado do banquete do primeiro dia, orientadas por Wang Vesícula. A filha do cozinheiro — minha primeira esposa —, Wang Renmei, era quem demonstrava maior avidez. Lembrando hoje, acho que devia sofrer de periodontite, porque quando comia o carvão sua boca sangrava. Depois de escrever algumas linhas na lousa, a professora Yu se voltou e ficou nos olhando. Primeiro interrogou nosso colega Li Mão, seu filho: “Mão, o que vocês estão comendo?”. “Carvão, mãe!” “Professora, estamos comendo carvão”, miou Wang Vesícula, “a senhora não gostaria de provar?” Sentada na primeira fileira, Wang Vesícula lhe estendia uma amostra. A professora Yu desceu do tablado, tomou o pedaço de carvão da mão da aluna e colocou-o debaixo do nariz. Parecia olhar para ele enquanto o cheirava. Ficou um bom tempo sem dizer nada, por fim o devolveu a Vesícula e disse aos alunos: “Hoje vamos estudar a sexta lição, ‘O corvo e a raposa’. O corvo conseguiu um pedaço de carne e, muito orgulhoso, pousou no alto da árvore. A raposa, ao pé da árvore, lhe disse: ‘Ó corvo, tens uma voz tão linda que, quando cantas, todos os pássaros do mundo se calam’. A bajulação surtiu efeito e a ave, cheia de si, abriu o bico. Nesse momento, a carne caiu direto na boca da raposa”. A professora Yu conduziu a leitura do texto em voz alta, e nós a acompanhamos, com nossas bocas enegrecidas.
A professora Yu era uma mulher culta, mas mesmo assim seguiu o costume da aldeia e deu ao filho o nome de Li Mão. Com as excelentes notas que tirava, Li Mão conseguiu entrar para a escola de medicina e, depois de se formar, veio trabalhar como cirurgião no hospital do distrito. Ele certa vez salvou três dos quatro dedos que Chen Nariz cortou na ceifadeira.

Mo Yan, in As rãs

Vergonha de viver

Há pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais me incluo. Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço. Desculpem eu ser eu. Quero ficar só! grita a alma do tímido que só se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o quente aconchego das pessoas. Vai, Carlos, vai ser gauche na vida. (Não sei se estou citando Drummond do modo certo, escrevo de cor.)
E para pedir aumento de salário – a tortura. Como começar? Apresentar-se com fingida segurança de quem sabe quanto vale em dinheiro – ou apresentar-se como se é, desajeitado e excessivamente humilde.
O que faz então? Mas é que há a grande ousadia dos tímidos. E de repente cheio de audácia pelo aumento com um tom reivindicativo que parece contundente. Mas logo depois, espantado, sente-se mal, julga imerecido o aumento, fica todo infeliz.
Sempre fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando há muitos anos fui passar férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma pequeníssima estação deserta. Donde se telefonava para a fazenda que ficava a meia hora dali, num caminho perigosíssimo, rude e tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de precipícios. Telefonei para a fazenda e eles me perguntaram se queria carro ou cavalo. Eu disse logo cavalo. E nunca tinha montado na vida.
Foi tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e fez-se subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada enxergava à minha frente. Mas os relâmpagos revelavam-me verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos molhados. E eu, ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando finalmente cheguei à fazenda não tinha força de desmontar: deixei-me praticamente cair nos braços do fazendeiro.
Nessa fazenda que recebia hóspedes e que era maravilhosa com seus bichos, sofri horrores. Só depois de uns três dias é que comecei a conversar com os outros hóspedes e a me descontrair na hora das refeições, pois eu tinha vergonha de comer na frente de estranhos e muita fome.
Lá estava um japonês que me perguntou se eu jogava xadrez. Respondi audaciosamente que ele me ensinasse, que eu aprenderia logo e jogaria com ele. E de repente me vi tendo que enfrentar tantas regras de jogo e com vergonha de não aprender. Mas logo em seguida aprendi superficialmente a jogar. Acontece que, creio eu, por puro acaso dei um xeque-mate no japonês que não quis mais jogar comigo. Senti-me infeliz, achava que o japonês não me perdoaria e que não gostava de mim. Fiquei muito tímida com ele. Foi pois com enorme espanto que o ouvi me dizer na hora da despedida, com uma delicadeza toda oriental que não elogia na cara, o que seria sufocante para a minha timidez. E ele disse: “Agradeço aos seus pais por terem feito você.”
De 12 para 13 anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio inglês. Eu não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio ousadamente os nomes de comida mais complicados. E me via tendo de comer, por exemplo, feijão-branco cozido na água e sal. Era o castigo de minha desenvoltura de tímida.
E quando eu era pequena em Recife meu encabulamento nunca me impediu de descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços: “Quer brincar comigo?” Às vezes me desprezavam como menina.
Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu, teimosa, continuava escrevendo.
Aos nove anos escrevi uma peça de teatro em três atos, que coube dentro de quatro folhas de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi a peça atrás de uma estante e depois, com medo de que a achassem e me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo infelizmente porque tenho curiosidade do que eu achava do amor aos nove precoces anos.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Hollywood | 15


Alguns dias depois estávamos de volta ao estúdio de Danny Server, em Venice.
Outro cara escreveu um filme sobre sarjeta e bebedeiras – disse Jon. – Por que você não dá uma olhada?
Assim, entramos lá, Jon, Sarah e eu. O pessoal já se achava nas poltronas. Mas o bar estava fechado.
O bar está fechado – eu disse a Jon.
É – ele disse.
Escuta, a gente precisa beber alguma coisa...
Tem uma loja de bebidas a cerca de uma quadra daqui, em direção ao mar, no outro lado da rua.
Voltamos já.
Chegamos lá, compramos duas garrafas de tinto e um saca-rolhas. Na volta, fomos parados duas vezes para dar esmolas. E estávamos de volta ao estúdio. Empurrei a porta e entramos. Estava escuro. O filme rolava.
Merda – eu disse. – Não enxergo nada! Não enxergo porra nenhuma!
Alguém me fez psiu.
O mesmo pra você – eu disse.
Quer fazer o favor de calar a boca! – disse uma mulher.
Vamos tentar as primeiras filas – disse Sarah. – Acho que estou vendo uns dois lugares, mas não tenho certeza.
Conseguimos chegar à frente. Eu tropecei nuns pés.
Filho da puta! – ouvi um homem dizer baixinho.
Foda-se – eu disse.
Finalmente localizamos duas poltronas e nos sentamos. Sarah pegou os cigarros e o isqueiro, enquanto eu desarrolhava a garrafa. Não tínhamos copos, por isso eu tomei um gole e passei a garrafa para ela. Ela tomou um gole e devolveu-a. Depois acendeu dois cigarros pra gente.
O cara que escrevera o filme, De Volta do Hades, já tivera uma série na TV, um daqueles programas familiares. Pat Sellers. Bem, a série prosseguira indefinidamente, mas Pat perdera a batalha contra a garrafa e em breve a série estava condenada. Divórcio. Perda da família, do lar. Pat estava na sarjeta. Agora fazia um retorno. Fizera aquele filme. Estava abstêmio. E no circuito de conferências, ajudando outros.
Tomei outra golada e passei pra Sarah.
Via o filme. Estavam na miséria. Era noite, e haviam acendido uma fogueira. Os homens e mulheres pareciam muito bem vestidos para estarem na sarjeta. Não tinham realmente aparência de vagabundos. Pareciam pessoas que trabalhavam em filmes de Hollywood, atores de TV. E cada um tinha um carrinho de supermercado onde guardava seus bens terrenos. Só que os carrinhos eram novinhos em folha. Reluziam à luz da fogueira. Eu nunca vira carrinhos tão novos em nenhum supermercado. Evidentemente, haviam sido comprados para o filme.
Passa a garrafa – pedi a Sarah.
Ergui-a bem alto e tomei uma boa golada. Tornei a ouvir o psiu, seguido de outro chiado.
Essas pessoas são feias – eu disse a Sarah. – Que diabos há com elas?
Não sei.
Voltemos ao filme e às pessoas à luz da fogueira com seus carrinhos de compras. Um cara falava. Os outros escutavam.
...eu acordava e não reconhecia a cama onde estava, não sabia onde estava... me vestia, saía e procurava meu carro. Jamais sabia onde estava o carro. Às vezes levava horas pra descobrir...
Opa, isso é bom – eu disse a Sarah. – Já me aconteceu muitas vezes!
Ouvi outro psiu.
...eu vivia numa espelunca atrás da outra... muitas vezes perdia a carteira... me quebravam os dentes... era uma alma penada... penada... penada... Depois meu companheiro de farra, Mike, morreu bêbado num acidente de carro... isso foi a gota d’água...
Sarah tomou uma golada.
Agora estou em paz... durmo bem... começo a me sentir de novo um ser humano normal... E Cristo é o meu barato, maior que qualquer bebida que o demônio pôs nesta terra!
O cara tinha lágrimas nos olhos.
E aí recitou um poema:

Tornei a me encontrar.
Multiplicado por dez.
Eu perdi o yen.
Sou irmão de minha gente.
Tornei a me encontrar.

Fez uma mesura e os outros aplaudiram.
Aí uma mulher começou a falar. Disse que começara a beber em festas. E daí fora em frente. Começara a beber sozinha em casa. As plantas morriam porque ela não as aguava. Durante uma discussão, esfaqueara a filha com uma faca de podar. O marido começara a beber também. Perdera o emprego. Ficava em casa. Os dois bebiam juntos. Aí ela o esfaqueara com uma faca de podar. Um dia entrara no carro e se mandara com a mala e os cartões de crédito. Bebia em motéis. Fumava e bebia e via TV. Vodca. Adorava vodca. Uma noite tocara fogo na cama. Um carro de bombeiros viera ao motel. Ela estava bêbada, de camisola de dormir. Um dos bombeiros lhe palmeara as nádegas. Ela saltara no carro de camisola de dormir, levando apenas a bolsa. Dirigira sem parar, estonteada. Por volta do meio-dia do dia seguinte estava na esquina da 4 com a Broadway. Dois dos pneus haviam se esvaziado enquanto dirigia. Os pneus haviam se soltado e ela rodava sobre os aros apenas, deixando fundos sulcos no asfalto. Um policial a parara. Ela fora detida – para observação. Os dias passavam. Nem o marido nem a filha apareciam. Estava sozinha. Um dia, conversava com o analista, e o cara lhe perguntara: “Por que você insiste em destruir a si mesma?”. E quando lhe perguntara isso não era mais o rosto do analista que a olhava, era o rosto de Cristo. Isso fora o bastante...
Como é que ela sabia que era o rosto de Cristo? – perguntei em voz alta.
Quem é esse cara? – ouvi alguém perguntar.
Minha garrafa de vinho se esvaziara. Meti o saca-rolha na outra.
Aí outro cara contou a sua história. A fogueira seguia ardendo e ardendo. Ninguém precisava alimentá-la. E não apareciam outros vagabundos para importuná-los. Quando o cara terminou sua história, enfiou a mão em seu carrinho de compras e sacou um violão bastante caro.
Eu tomei uma golada e passei o tinto para Sarah.
O cara afinou o violão, e começou a tocar e cantar. Era afinado, tinha a voz treinada. Cantava sem parar.
A câmera corria em volta, captando a expressão em todos os rostos. Estavam emocionados, alguns choravam, outros tinham suaves e belos sorrisos. Aí o cantor acabou e recebeu entusiásticos e alegres aplausos.
Nunca vi uma sarjeta desse jeito – eu disse a Sarah.
O filme prosseguiu. Outros atores falavam. Outros tinham violões caros. Era a noite do violão. E aí veio o grand finale. Apareceu uma estrela cadente, que traçou um arco sobre os rostos voltados para cima. Fez-se um breve silêncio. Aí um cara começou a cantar. Em breve uma mulher juntou-se a ele. Depois juntaram-se outras vozes. Todos sabiam a letra. Surgiram muitos violões. Era um coro edificante de esperança e unidade. E acabou. O filme acabou. As luzes se acenderam. Havia um pequeno palco. Pat Sellers subiu nele. Aplaudiram-no.
Pat Sellers tinha uma aparência horrível. Parecia sonolento, sem vida, morto. Os olhos vagos. Começou a falar.
Não tomo um trago há quinhentos e noventa e cinco dias...
Estrugiram aplausos.
Ele prosseguiu:
Sou um alcoólatra em recuperação... Somos todos alcoólatras em recuperação...
Vamos dar o fora daqui – disse Sarah.
Havíamos acabado o vinho. Levantamo-nos e nos dirigimos para a saída. Fomos para o nosso carro.
Filho da puta! – eu disse. – Onde está Jon? Por que não está aqui?
Oh, tenho certeza de que ele viu o filme – disse Sarah.
Aprontou pra gente. É meio engraçado quando se pensa na coisa.
Eram todos membros dos A.A. lá dentro...
Entramos no carro e nos dirigimos para a autoestrada.
Minha ideia sobre a coisa toda era de que a maioria das pessoas não era alcoólatra, só pensava que era. Era algo que não podia ser precipitado. Para alguém se tornar um verdadeiro alcoólatra, precisava pelo menos uns vinte anos. Eu estava no meu 45º ano e não me arrependia nem um pouco.
Chegamos à autoestrada e nos dirigimos de volta à realidade.

Charles Bukowski, in Hollywood

Como é bom ser um camaleão

Quando o sol está muito forte, como é bom ser um
camaleão e ficar em cima de uma pedra espiando
o mundo. Se sinto fome, pego um inseto qualquer com
a minha língua comprida. Se o inimigo espreita,
me finjo de pedra verde, cinza ou marrom.
E, quando de tardinha o sol esfria, dou um rolê por aí.

Chacal, in Muito prazer, Ricardo

Cenas de Nova York


NESSA ÉPOCA MINHA MÃE morava sozinha em um pequeno apartamento em Jamaica, Long Island, trabalhava em uma fábrica de sapatos, esperando que eu retornasse ao lar para lhe fazer companhia e levá-la ao Radio City uma vez por mês. Mantinha um quarto minúsculo à minha espera, roupa lavada no armário, lençóis limpos na cama. Foi um alívio depois de todos aqueles sacos de dormir, beliches e poeira das estradas de ferro. Foi mais uma das muitas oportunidades que ela me deu durante sua vida para simplesmente ficar em casa e escrever.
Sempre dou a ela tudo o que sobra dos meus pagamentos. Me instalei para longas sonecas sossegadas, para dias inteiros de meditação em casa, para escrever e para extensas caminhadas pela velha e querida Manhattan, a meia hora dali de metrô. Percorri as ruas, as pontes, Times Square, cafés, o cais, visitei todos os meus amigos poetas beatniks e perambulei com eles, tive casos com garotas do Village e fiz tudo isso com aquela imensa e louca alegria que se sente quando se retorna a Nova York.
Tenho escutado grandes cantores negros a chamarem de “A Maçã”!
Ali está agora a vossa cidade insular dos manhattoes, envolta pelo cais”, cantou Herman Melville.
Envolta por marés flamejantes”, recitou Thomas Wolfe.
Vistas completas de Nova York por toda parte, de New Jersey, dos arranha-céus.
ATÉ DE BARES, como um bar da Third Avenue – quatro da tarde, os homens riem ruidosamente, copos retinindo junto com os pés na barra de latão do balcão, excitação do tipo “vamos lá, pessoal” – outubro no ar, no sol do veranico na porta. – Entram dois vendedores da Madison Avenue que passaram o dia inteiro trabalhando, jovens, bem-vestidos, roupas justas, charuto na boca, satisfeitos por terem ganho o dia e pelo drinque que está a caminho, avançam lado a lado sorridentes, mas não há espaço no balcão congestionado e barulhento (Merda!), por isso ficam de pé à espera, rindo e conversando. – Os homens amam os bares, e os bons bares merecem ser amados. – Esse aqui está repleto de homens de negócios, operários, Finn MacCools do Tempo. – Velhos beberrões grisalhos de macacão enxugando cerveja alegres. – Caminhoneiros anônimos com lanternas dependuradas no cinto – velhos bebedores de cerveja alquebrados erguendo tristemente os lábios arroxeados para os píncaros felizes da bebedeira. – Os bartenders são rápidos, solícitos, interessados tanto em seu trabalho como na clientela. – Como em Dublin às 4h30 da tarde, quando o trabalho termina, mas aqui é a fantástica Third Avenue de Nova York, almoço grátis, cheiros da rua triste, rio de dejetos, almoço na estrada suja, portas que se fecham, heróis guitarristas de suíças longas, aroma nos degraus de madeira das soleiras do entardecer sonolento. – Mas são as torres de Nova York se erguendo mais além, vozes se chocam e se confundem falando e mastigando a fofoca até Earwicker abrir o jogo – Ah, Jack Fitzgerald Mighty Murphy, onde anda você? – Trabalhadores braçais semicalvos de camisas azuis remendadas e jeans puídos empunham copos de cerveja de fim de tarde coroados de espuma branca. – O metrô trepida por baixo do bar enquanto o executivo de chapéu e colete mas sem paletó troca o pé esquerdo pelo direito na barra de latão sob o balcão. – Um negro de chapéu, respeitável, jovem, de jornal embaixo do braço, se despede ao balcão, simpático e paternal, se inclinando sobre os outros homens – um ascensorista parado ali no canto. – E não era aqui, segundo contam, que Novak, o corretor de imóveis, costumava ficar de pé até altas horas da noite para se arranjar e enriquecer em sua cela branca de verme noturno datilografando relatórios e cartas, mulher e filhos furiosos em casa às onze da noite – ambicioso, preocupado, em um pequeno escritório da Island, bem ali naquela rua, sem dignidade, mas aberto a qualquer tipo de negócio e na infância qualquer negócio pode ser pequeno e a ambição grande – está agora servindo de adubo para quantas margaridas? e jamais juntou seu milhão, nunca bebeu um copo com So Long Gee Gee e I Love You Too nessa cervejaria do entardecer com homens eufóricos girando nos tamboretes e arrastando os saltos dos sapatos pela barra de latão em Nova York. – Nunca chamou Old Glasses para brindar seu nariz vermelho e batatudo com um trago – jamais sorriu nem permitiu às moscas utilizarem seu nariz como ponto de referência – mas criou uma úlcera no meio da noite para enriquecer e proporcionar o melhor à sua família. – Por isso seu cobertor agora é a melhor porção de terra americana, produzida nos moinhos do saxão com cara de lua de Hudson Bay e trazida até aqui por um pintor de macacão branco (em silêncio) para cercear a jornada de sua outrora una carne, e permitir que os vermes se enterrem nela – Cerca! Vamos lá, mais uma cerveja, seus beberrões – Malditos canequeiros! Amantes!
MEUS AMIGOS E EU temos nossa maneira especial de nos divertirmos em Nova York sem gastar muita grana e principalmente sem sermos importunados por chatos formalistas, como por exemplo uma noitada grã-fina no baile da prefeitura. – Não precisamos apertar mãos, não precisamos marcar encontros e nos sentimos ótimos. – Vagabundeamos sem rumo como crianças. – Entramos nas festas e dizemos a todo mundo o que temos feito, e as pessoas pensam que estamos nos exibindo. – Dizem: “Oh, olhem os beatniks!”.
Vai aqui, como exemplo, uma noite típica: –
Emergindo do metrô da 7th Avenue na 42nd Street, você passa pelo mictório mais arrebentado de Nova York – nunca se sabe se está aberto ou não, geralmente há uma enorme corrente atravessada em frente à porta dizendo que está estragado, ou então tem um monstro decrépito de cabelos brancos se arrastando na entrada, um mictório pelo qual todos os sete milhões de habitantes de Nova York já passaram pelo menos uma vez e repararam em sua estranheza – a seguir você cruza pelo novo quiosque de hambúrgueres na brasa, bancas de bíblias, jukeboxes automáticas e uma mísera banca subterrânea de revistas usadas ao lado de uma tenda de amendoins cheirando a arcadas de metrô – aqui e ali um exemplar usado do velho bardo Plotino metido entre pedaços de coleções de livros didáticos alemães – onde vendem longos cachorros-quentes de aspecto nojento (não, na verdade são bastante atraentes, principalmente se você não tem quinze centavos e procura alguém na Bickford’s Cafeteria que aceite abrir um crédito para você) (que possa emprestar uns trocados).
Depois de subir a escadaria, as pessoas permanecem horas e horas tagarelando na chuva, com os guarda-chuvas encharcados – bandos de garotos de jeans, loucos de medo de entrar no exército, em pé no meio da escada sobre degraus de ferro à espera sabe Deus do que, certamente há entre eles alguns heróis românticos recém-chegados de Oklahoma com ambições de acabar entre suspiros nos braços de alguma jovem loira sexy e imprevisível em uma cobertura do Empire State Building – provavelmente alguns deles estão parados ali sonhando ser donos do Empire State Building por obra e graça de algum passe de mágica com o qual sonharam junto a um regato do interior próximo a uma velha casa caindo aos pedaços nos arredores de Texarkana. – Com vergonha de serem vistos na fila para entrar em um filme de sacanagem (o filme, como se chama?) na calçada em frente ao New York Times – O leão e o tigre passando, como Tom Wolfe costumava dizer a respeito de certos sujeitos cruzando aquela esquina.
Recostado naquela loja de charutos com uma infinidade de cabines telefônicas na esquina da 42nd com a Seventh, onde você dá belos telefonemas observando a rua, e ali dentro parece muito aconchegante enquanto lá fora chove e parece uma boa ideia prolongar a conversação, quem você vê? Equipes de beisebol? Treinadores de basquete? Todos aqueles sujeitos do rinque de patinação vão ali? Caras do Bronx em busca de ação, mas na real a fim de romance? Estranhas duplas de garotas saindo de filmes de sacanagem? Você já as viu alguma vez antes? Ou homens de negócios aturdidos de porre, com chapéus enviesados nas cabeças grisalhas, fitando catatonicamente os letreiros que flutuam no alto do prédio do Times, exibindo frases enormes a respeito de Khrushchev, populações da Ásia enumeradas em lâmpadas que acendem e apagam, sempre quinhentos pontos depois de cada frase. – De súbito surge na esquina um policial psicoticamente preocupado e manda todo mundo circular. – Esse é o centro da maior cidade que o mundo jamais conheceu, e isso é o que os beatniks fazem aqui. – “Ficar parado na esquina esperando ninguém é Poder”, profetizou o poeta Gregory Corso.
Em vez de ir a boates – se você está na posição de quem pode frequentar boates (a maioria dos beatniks chacoalha bolsos vazios quando passa pelo Birdland) – como é estranho parar na calçada e apenas observar aquele esquisitão excêntrico da Second Avenue que parece Napoleão ao passar, esmigalhando os pedaços de pão em seu bolso, ou um garoto de quinze anos e cara atrevida, ou alguém que de repente passa zunindo com um boné de beisebol (porque é isso que você vê) e finalmente uma senhora com sete chapéus e um longo casaco de peles esfarrapado em plena noite de verão carregando uma enorme bolsa de lã russa cheia de pedacinhos de papel amassado onde se lê “Festival Foundation Inc., 70 mil Germes” e traças saindo de suas mangas – ela aborda e perturba os shriners. E soldados sem guerra com sacos de lona – tocadores de harmônica saídos de trens de carga. – Claro que há nova-iorquinos normais, que parecem ridiculamente deslocados e tão esquisitos quanto sua própria esquisitice elegante, carregando pizzas e jornais diários e a caminho de porões escuros ou trens da Pensilvânia – o próprio W. H. Auden pode ser visto todo atrapalhado sob a chuva – Paul Bowles, alinhado em um terno de poliéster, retornando de uma viagem ao Marrocos, o fantasma do próprio Herman Melville seguido por Bartleby, o autor de Wall Street, e Pierre, o hipster ambíguo de 1848 dando um passeio – para ver o que há de novo nos flashes noticiosos do Times. – Voltemos à banca de jornais da esquina. – EXPLOSÃO ESPACIAL... O PAPA LAVA OS PÉS DOS POBRES...
Vamos cruzar a rua até o Grant’s, nosso restaurante predileto. Por 65 centavos você descola uma enorme porção de mexilhões fritos, um monte de batatas fritas, uma pequena porção de salada de repolho, um pouco de molho tártaro, uma tacinha de molho vermelho para peixe, uma rodela de limão, duas fatias de pão de centeio e um pedacinho de manteiga, e por mais dez centavos um copo de uma excelente cerveja de raiz de vidoeiro. – Que festim comer aqui! Bandos de espanhóis em pé engolindo cachorros-quentes encostados nos enormes potes de mostarda. – Dez balcões diferentes com diferentes especialidades. – Sanduíches de queijo por dez centavos, dois bares para o Apocalipse, oh sim, e ótimos garçons indiferentes. – E tiras comendo de graça lá nos fundos – saxofonistas bêbados cochilando – respeitáveis punguistas solitários esfarrapados da Hudson Street sorvendo sua sopa sem trocar uma palavra com ninguém, os dedos negros, uau. – Vinte mil clientes por dia – cinquenta mil nos dias de chuva – cem mil quando neva. – Aberto vinte e quatro horas por noite. Intimidade – absoluta, sob uma forte luz vermelha repleta de conversações. – Toulouse-Lautrec, com sua deformidade e sua bengala, rabiscando em um canto. – Você pode ficar ali por cinco minutos e devorar sua comida ou então permanecer horas mantendo uma conversa filosófica insana com seu companheiro e se surpreendendo com as pessoas. – “Vamos comer um cachorro-quente antes de ir ao cinema!”, e aí você fica tão doido lá dentro que não vai a cinema nenhum porque aquilo ali é muito melhor do que um filme de Doris Day em férias no Caribe.
Mas o que faremos esta noite? Marty queria ir ao cinema, mas vamos descolar alguma coisa para fazer a cabeça. – Vamos até o Automat.”
Espera um pouco, preciso engraxar os sapatos em cima de algum hidrante.”
Você não quer dar uma espiada no espelho deformante?”
Está a fim de tirar quatro fotos por 25 centavos? Afinal, estamos na cena eterna. Poderemos olhar as fotos e recordar disso tudo quando formos velhos e sábios Thoreaus de cabelos grisalhos em cabanas.”
Ah, já não há mais espelhos deformantes por aqui, antigamente tinha espelhos deformantes aqui.”
Que tal o cinema Laff?”
Também já era.”
Tem o circo de pulgas.”
E ainda tem coristas?”
O burlesco já acabou há milhões e milhões de anos.”
Vamos até o Automat ver aquelas velhotas comendo feijões, ou os surdos-mudos parados diante da janela enquanto você os observa e tenta decifrar a linguagem invisível à medida que ela voa pela janela, de face para face e de dedo para dedo...? Por que a Times Square parece uma imensa sala?”
Do outro lado da rua fica o Bickford’s, bem no meio do quarteirão, sob a marquise do Apollo Theater e ao lado de uma livraria minúscula especializada em Havelock Ellis e Rabelais com milhares de maníacos sexuais remexendo nos caixotes. – O Bickford’s é o maior palco da Times Square – muita gente tem perambulado por ali há anos, homens e meninos em busca sabe Deus de que, talvez de algum anjo da Times Square que transforme aquela grande sala em um lar, o velho lar doce lar – a civilização precisa disso. – Aliás, o que a Times Square está fazendo ali? O melhor mesmo é aproveitá-la. – A maior cidade que o mundo jamais viu. – Será que há uma Times Square em Marte? O que a Bolha Assassina faria em Times Square? Ou San Francisco?
Uma garota desce de um ônibus no Port Authority Terminal e entra no Bickford’s, garota chinesa, sapatos vermelhos, senta para beber um chá, à espera do papai.
Há toda uma população flutuante em torno da Times Square que, dia e noite, faz sempre do Bickford’s seu quartel-general. Nos velhos tempos da geração beat, alguns poetas costumavam ir até ali para encontrar o famoso personagem “Hunkey”, que aparecia de vez em quando, com uma capa de chuva preta grande demais e uma cigarreira, à procura de alguém para vender uma cautela de objetos penhorados – máquina de escrever Remington, rádio portátil, capa de chuva preta – para descolar um trago, (conseguir uma grana) para poder ir para a parte alta da cidade arrumar confusão com os tiras ou com alguns de seus rapazes. Alguns gangsters imbecis da 8th Avenue também costumavam dar as caras por lá – talvez ainda o façam – os dos velhos tempos estão na cadeia ou no cemitério. Agora os poetas vão lá apenas para fumar um cachimbo da paz, à procura do fantasma de Hunkey ou de seus rapazes, e para sonhar diante de desbotadas xícaras de chá.
Os beatniks garantem que, se você fosse lá todas as noites e lá permanecesse, poderia iniciar por si mesmo uma temporada completa de Dostoiévski bem ali na Times Square, conhecer todos os colunistas fofoqueiros dos jornais da madrugada e seus casos, famílias e infortúnios – fanáticos religiosos que levariam você para casa e fariam longos sermões na mesa da cozinha sobre o “novo apocalipse” e ideias assemelhadas: “Meu ministro batista de Winston-Salem disse que Deus inventou a televisão para que, quando Cristo retornar à terra, eles O crucifiquem nas ruas dessa Babilônia daqui, e as câmeras de TV estejam apontadas para a cena, e então o sangue escorrerá pelas ruas, e todos os olhos hão de ver”.
Se continuar com fome, vá até a Cafeteria Oriental – também um “restaurante favorito” – um pouco de vida noturna – barato – no subterrâneo bem em frente do monolítico terminal de ônibus de Port Authority na 40 th Street, e coma enormes cabeças de carneiro gordurosas com arroz grego por noventa centavos. – Exóticas melodias orientais ondulantes na jukebox.
Dependendo do quão chapado você esteja agora – presumindo que tenha descolado algum lance em uma das esquinas – digamos na 42th Street com 8th Avenue, perto da imensa drogaria Whelan, outro antro solitário onde se pode encontrar algumas pessoas – prostitutas negras, damas de andar vacilante em psicose de benzedrina. – Do outro lado da rua se pode ver as já iniciadas ruínas de Nova York – o Globe Hotel sendo posto abaixo, um buraco como o de um dente caído em plena 44th Street – e o edifício verde da McGraw-Hill arranhando o céu, mais alto do que se possa imaginar – solitário, apontando em direção ao rio Hudson, onde os cargueiros esperam sob a chuva sua pedra calcária vinda de Montevidéu.
O melhor é ir para casa, está ficando tarde. – Ou: “Vamos ao Village ou ao Lower East Side ouvir Symphony Sid no rádio – ou tocar nossos discos indígenas – e comer enormes bifes porto-riquenhos mortos – ou guisado de mondongo – ver se Bruno andou cortando mais capotas de automóveis no Brooklyn – embora Bruno ande mais calmo agora, talvez tenha escrito um novo poema”.
Ou ver televisão. Vida noturna – Oscar Levant falando da sua melancolia no programa de Jack Paar.
O Five Spot, na 5th Street com a Bowery, às vezes apresenta Thelonious Monk no piano e a rapaziada aparece por lá. Quem conhece o dono pode se sentar de graça em uma mesa com uma cerveja, quem não conhece pode entrar sorrateiramente e ficar próximo ao ventilador, escutando. Nos fins de semana está sempre lotado. Monk medita em abstração mortífera, clonk, faz uma declaração, o pé enorme batendo delicadamente no chão, cabeça virada para o lado, escutando, e então entra o piano.
Lester Young tocou lá pouco antes de morrer e entre um número e outro se sentava na cozinha, nos fundos. Meu amigo poeta Allen Ginsberg foi lá, se ajoelhou e perguntou o que ele faria caso uma bomba atômica caísse em Nova York. Lester respondeu que pelo menos quebraria a vitrine da Tiffany’s e apanharia algumas joias. Também disse: “O que você está fazendo ajoelhado?”, sem perceber que era um dos grandes heróis da geração beat, hoje consagrado. O Five Spot é mal-iluminado, tem garçons estranhos e boa música sempre, às vezes John “Train” Coltrane inunda a casa inteira com as notas ásperas de seu grande sax tenor. Nos fins de semana, grupos de gente elegante da parte alta da cidade lotam a casa e conversam sem parar – ninguém liga.
Oh, quem sabe umas duas horas no Egyptian Gardens do Lower West Side, em Chelsea, a zona dos restaurantes gregos. – Copos de ouzo, bebida grega e lindas garotas dançando a dança do ventre com sutiãs bordados com lantejoulas, a incomparável Zara ondulando na pista como um mistério ao ritmo das flautas e ao tilintar das notas gregas – quando não está dançando, Zara se senta na orquestra com olhos sonhadores, os homens batucando um tambor contra o ventre dela. – Vastas multidões do que parecem ser casais de subúrbio se sentam às mesas e acompanham com palmas o flutuante ritmo oriental. – Quem chega atrasado tem que ficar encostado à parede.
Quer dançar? Garden Bar, na 3rd Avenue, onde se pode praticar fantásticas danças bem agitadas na pequena saleta dos fundos ao som de uma jukebox, barato, o garçom nem liga.
Quer conversar apenas? Cedar Bar, na University Place, onde aparecem todos os pintores e onde um garoto de dezesseis anos passou uma tarde esguichando vinho tinto de um odre espanhol para dentro da boca dos amigos, errando sempre...
Os clubes noturnos do Greenwich Village conhecidos por Half Note, Village Vanguard, Café Bohemia e Village Gate também apresentam jazz (Lee Konitz, J. J. Johnson, Miles Davis), mas é preciso ter muita grana e não é só isso, é que a triste atmosfera comercial está matando o jazz, e o jazz está matando a si mesmo ali, porque o jazz pertence às cervejarias baratas, alegres e abertas a todos, como no início.
Há uma grande festa no loft de um pintor qualquer, um louco som flamengo na vitrola em alto volume, de repente as garotas se tornam todas quadris e calcanhares, e as pessoas tentam dançar entre seus cabelos esvoaçantes. – Homens perdem a cabeça e começam a se agarrar às pessoas, voam objetos pelos ares, uns sujeitos agarram outros pelos joelhos e os erguem a dois metros e meio do chão, se desequilibram, mas ninguém se machuca, blonk. – Garotas se equilibram com as mãos apoiadas nos joelhos dos homens, as saias delas caem, revelando rendinhas em suas coxas. – Por fim todo mundo se veste para voltar para casa, e o anfitrião observa, aturdido: “Vocês parecem todos tão respeitáveis!”.
Ou alguém fez um lançamento, ou há leitura de poemas no Living Theater, ou no Gaslight Café, ou na Seven Arts Coffee Gallery, nas imediações da Times Square (9th Avenue e 43rd Street, lugar extraordinário) (nas sextas-feiras começa à meia-noite), depois dali todo mundo corre de volta para o velho bar do agito. – Ou então uma festança na casa de Leroi Jones – ele tem um novo exemplar da Yugen Magazine impresso por ele mesmo em uma máquina caindo aos pedaços, e lá estão os poemas de toda a rapaziada, de San Francisco a Gloucester, Massachussetts, e custa apenas cinquenta centavos. – Editor histórico, hipster secreto da matéria. – Leroi está começando a ficar farto de festas, todos sempre arrancam a camisa, começam a dançar, três garotas sentimentais se grudam ao poeta Raymond Bremser, meu camarada Gregory Corso discute com um jornalista do Post de Nova York e diz: “Mas você não compreende o pranto Canguriano! Abandone sua profissão! Vá se refugiar nas ilhas Enchenedianas!”.
Vamos cair fora daqui, é literário demais. – Vamos nos embebedar na Bowery ou comer aquele macarrão comprido com copos de chá no Hong Pat’s em Chinatown. – Por que estamos sempre comendo? Vamos dar uma caminhada pela ponte do Brooklyn e abrir o apetite outra vez. – Que tal um pouco de quiabo na Sands Street?
Oh, fantasma de Hart Crane!
VAMOS VER se encontramos Don Joseph!”
Quem é Don Joseph?”
Don Joseph é um fantástico trompetista que perambula pelo Village, de bigodinho e braços caídos segurando o trompete, que se estala quando ele toca mansamente, ou melhor murmura, o melhor e mais suave dos trompetes desde Bix e mais. – Ele fica parado junto à jukebox do bar e acompanha a música em troca de cerveja. – Parece um galã de cinema. – É o incrível, secreto superglamourouso Bobby Hackett do mundo do jazz.
E tem aquele sujeito, Tony Fruscella, que senta de pernas cruzadas no tapete, toca Bach de ouvido no trompete, e mais tarde da noite toca com os rapazes em uma sessão de jazz moderno –
Ou George Jones, o oculto da Bowery, que toca um tenor maravilhoso nos parques ao nascer do dia com Charley Mariano, só de curtição, porque amam o jazz, e uma vez no cais, ao nascer do sol, tocaram uma sessão inteira enquanto um sujeito batia com um pedaço de pau na doca para marcar o ritmo.
Falando dos malucos da Bowery, que me dizem de Charley Mills, que percorre a rua com vadios que bebem suas garrafas de vinho cantando em uma escala de doze tons?
Vamos ver os incríveis e estranhos pintores secretos da América e discutir com eles seus quadros e suas visões – Iris Brodie com sua delicada filigrana bizantina de virgens –”
Ou Miles Frost e seu touro negro na caverna alaranjada.”
Ou Franz Klein e suas teias de aranha.”
Suas malditas teias de aranha!”
Ou Willem de Kooning e seu Branco.”
Ou Robert De Niro.”
Ou Dody Muller e sua Anunciação em flores de 2,1 metros de altura.”
Ou Al Leslie e suas telas com cavaletes gigantescos.”
O gigante de Al Leslie está ressonando no edifício da Paramount.”
Há um outro grande pintor chamado Bill Heine, é um pintor clandestino realmente secreto, que senta no meio de todos aqueles caras loucos dos cafés da East Tenth Street, que não se parecem em nada com cafés, mas sim com uma espécie de empório de roupas usadas dos porões da Henry Street, com a diferença de que sobre o umbral da porta se vê uma escultura africana ou talvez uma escultura de Mary Frank e lá dentro rodam Frescobaldi na vitrola.
AH, VAMOS VOLTAR PARA O VILLAGE e parar na esquina da Eighth Street com Sixth Avenue para ver os intelectuais passarem. – Repórteres da AP correndo para seus apartamentos de subsolo na Washington Square, colunistas femininas com grandes cães policiais quase rebentando a corrente, detetives solitários passando como sombras, desconhecidos peritos em Sherlock Holmes com unhas azuis a caminho de seus quartos para tomarem escopolamina, um jovem musculoso de terno alemão cinzento barato explicando algo grotesco para sua namorada gorda, grandes redatores educadamente recostados às bancas de jornal a postos para comprarem a primeira edição do Times, enormes empregados gordos de mudanças saídos de filmes de 1910 de Charlie Chaplin retornando para casa com imensos sacos transbordando de chop-suey (alimentam todo mundo), o melancólico arlequim de Picasso que agora é dono de uma loja de gravuras e molduras pensando na mulher e no filho recém-nascido e levantando um dedo para chamar um táxi, engenheiros de som balofos apressados com seus gorros de pele, gatas artistas da Columbia com seus problemas à D. H. Lawrence caçando homens de cinquenta anos, velhos no Kettle of Fish, e o espectro melancólico da prisão feminina de Nova York que se ergue no horizonte envolta em silêncio como a própria noite – ao pôr do sol suas janelas parecem laranjas – o poeta e. e. cummings comprando um pacote de pastilhas para garganta à sombra daquela monstruosidade. – Se está chovendo, você pode ficar debaixo do toldo do Howard Johnson’s e observar o outro lado da rua.
O beatnik Angel Peter Orlovsky no supermercado cinco portas adiante, comprando biscoitos Uneeda (tarde da noite, sexta-feira), sorvete, caviar, bacon, pretzels, refrigerantes, TV Guide, vaselina, três escovas de dentes, leite maltado (sonhando com leitão assado recheado), comprando batatas de Idaho, pão de passas de uva, couve com lagartas por engano e tomates frescos e recolhendo selos vermelhos. – Depois vai para casa falido, joga tudo em cima da mesa, pega um enorme livro de poemas de Mayakovsky, liga o televisor de 1949 em um filme de terror e vai dormir.
E essa é a vida beat na noite de Nova York.

Jack Kerouack, in Cenas de Nova York e outras viagens