sexta-feira, 31 de março de 2023
Exemplo
O
vendaval
à
noite arrancou todas as folhas de uma árvore,
menos
uma,
deixada
para
balançar só num galho nu.
Com
este exemplo
a
Violência demonstra
que
sim –
às
vezes ela gosta de se divertir.
Wisława Szymborska
O testamento de Adão
1493 – Roma
Na
penumbra do Vaticano, cheirando a perfumes do Oriente, o papa dita
uma nova bula.
Faz
pouco tempo que Rodrigo Borgia, valenciano da aldeia de Xátiva, se
chama Alexandre VI. Não passou ainda um ano desde que comprou, à
vista, os sete votos que faltavam no Sagrado Colégio e pôde mudar a
púrpura de cardeal pelo manto de arminho de Sumo Pontífice.
Mais
horas dedica Alexandre VI a calcular o preço das indulgências que a
meditar o mistério da Santíssima Trindade. Ninguém ignora que
prefere as missas breves, salvo as que em sua alcova privada celebra,
mascarado, o bufão Gabriellino, e todo mundo sabe que o novo papa é
capaz de desviar a procissão de Corpus para que passe debaixo da
varanda de uma mulher bonita.
Também
é capaz de cortar o mundo como se fosse um frango: ergue a mão e
traça uma fronteira, de cabo a rabo no planeta, através do mar
incógnito. O procurador de Deus concede à perpetuidade tudo o que
tenha sido descoberto ou se descubra, a oeste dessa linha, a Isabel
de Castilha e a Fernando de Aragão e a seus herdeiros no trono
espanhol. Encomenda-lhes que às ilhas e terras firmes encontradas ou
por encontrar enviem homens bons, temerosos de Deus, doutos, sábios
e experientes, para que instruam os naturais na fé católica e lhes
ensinem bons modos. À coroa portuguesa pertencerá o que se descubra
ao leste.
Angústia
e euforia das velas abertas: Colombo já está preparando, na
Andaluzia, sua segunda viagem para os rincões onde o ouro cresce em
cachos nas parreiras e as pedras preciosas aguardam no crânio dos
dragões.
Eduardo Galeano, in Os Nascimentos
Cartas para minha avó
O
fantasma de sexualização esteve presente em minha vida a maior
parte do tempo, me fazendo ser um tanto solitária. Eu ia às
atividades do centro espírita — algumas consistiam em visitar
orfanatos e asilos —, saía com a minha mãe ou simplesmente ficava
em casa. Intuitivamente, eu tinha uma proteção “antimacho” que
me afastou de viver péssimas experiências — ou pelo menos evitou
muitas. A ilusão de um amor me completava de alguma maneira. Ninguém
que eu conhecia na vida real superava o amor imaginário que viria me
buscar em casa pra jantar e andaria de mãos dadas comigo,
acariciando meus cabelos antes de me beijar com carinho. Claro que
essa ilusão também me prejudicou, eu precisava aprender a lidar com
a realidade, mas a realidade que se apresentava consistia em forçação
de barra e mãos não requisitadas.
Não
é que eu estivesse fixada na fantasia. Acho que teria me entregado
facilmente a uma experiência amorosa real, com suas contradições,
mas era a realidade que insistia em não me olhar com olhos de amor.
Eu queria ser vista com delicadeza, encontrar alguém com quem falar
dos meus livros favoritos, da história triste do velhinho do asilo.
Claro que eu também desejava contato físico, mas não
exclusivamente.
Aos
dezenove anos, para esquecer o meu primeiro amor que não surgia, eu
saía sozinha. Claro, eu poderia ir ao pagode com minha irmã e as
amigas dela, mas não gostava, então preferia ficar nos bares de
mpb. As primeiras vezes foram legais, eu bebia suco e curtia as
músicas. Mas precisei parar de ir. Primeiro porque ainda não tinha
a confiança de sentar sozinha em uma mesa de bar, e não conseguia
bancar os comentários sobre mim. Segundo, porque alguns homens
começaram a enviar bebidas para a minha mesa, talvez julgando que eu
era uma prostituta à procura de clientes, e não uma jovem sonhadora
querendo se inebriar de canções de amor. Isso se repete até hoje,
são muitas as vezes que evito sair sem companhia ou me abstenho de
tomar um drink no hotel.
Nas
vezes em que fui sozinha a barzinhos, eu voltava andando pelo
calçadão da praia, observando todas as pessoas que pareciam viver
numa realidade paralela à minha. Mais do que felizes, elas pareciam
encaixadas à vida. Em geral, eu buscava todas as possibilidades para
não sentir a vida, simplesmente não me reconhecia como parte
integrante dela. Minhas amigas loiras estavam sempre com seus
namorados e, por mais que se decepcionassem também, sempre tinham
alguém para apresentar aos pais e de quem pegar emprestado o moletom
em um dia frio. Eu olhava os casais apaixonados nos banquinhos da
praia e aquilo parecia um sonho distante. Eu via as famílias
parecendo felizes andando pelos jardins, pessoas pedalando suas
bicicletas, mães correndo atrás de seus filhos esboçando sorrisos.
Havia casais namorando, pais e mães conversando com seus filhos, a
lua refletindo o mar. Eu não me reconhecia em nenhuma daquelas
pessoas.
Eu
queria viver um amor, vó, mas não queria que fosse qualquer amor.
Não ficava chateada se não beijasse ninguém numa festa, mas sim se
não beijasse o garoto que eu julgava ser legal. E eu nunca beijei o
garoto legal, sempre voltava pra casa pensando como teria sido. Uma
sensação de vazio me tomava.
Nas
poucas vezes que fui a bailes de Carnaval na adolescência ou quando
jovem adulta, os rapazes tentavam me beijar à força, tudo era muito
naturalizado. E foram várias as vezes em que ouvi, ao rejeitá-los:
“Está se achando, hein, neguinha? Você não é tudo isso”. Para
eles, eu deveria me sentir honrada em ser beijada à força ou
agradecer por eles passarem a mão em mim sem meu consentimento.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
A pintura
É
provável que algum professor tenha escrito um livro sobre o assunto,
mas, se escreveu, não chegou até nós. “As paixões das artes”
seria, mais ou menos, o seu título, e trataria dos namoros entre a
música, a literatura, a escultura e a arquitetura e dos efeitos que
as artes tiveram umas sobre as outras ao longo do tempo. Na falta de
uma tal pesquisa, parece que a literatura tem sido a mais sociável e
porosa de todas: a escultura influenciou a literatura grega; a
música, a elisabetana; a arquitetura, a literatura inglesa do século
XVIII; e, agora, sem dúvida, estamos sob o domínio da pintura. Se
todas as pinturas modernas fossem destruídas, um crítico do século
XXV seria capaz de deduzir, com base apenas nos livros de Proust, a
existência de Matisse, Cézanne, Derain e Picasso; ele seria capaz
de dizer, com esses volumes à sua frente, que pintores
extraordinariamente originais e fortes deviam estar, na sala ao lado,
cobrindo uma tela atrás da outra, apertando um tubo atrás do outro.
Contudo,
é extremamente difícil precisar o ponto exato em que a pintura se
fez sentir na obra de um escritor tão completo. Nos escritores
parciais e incompletos, isso é muito fácil de ser detectado. O
mundo está cheio, neste momento, de aleijados, vítimas da arte da
pintura, que pintam maçãs, rosas, aparelhos de porcelana, romãs,
tamarindos e jarrões de vidro tão bem quanto palavras poderiam
pintá-los, o que quer dizer, é claro, que não muito bem. Podemos
com certeza dizer que um escritor cuja escrita apela principalmente
ao olho é um mau escritor; que se, ao narrar, digamos, um encontro
num jardim, ele descreve rosas, lírios, cravos e sombras na grama,
de maneira que possamos vê-los, mas deixa que deles se infiram
ideias, motivos, impulsos e emoções, é porque ele é incapaz de
usar seu meio para os propósitos para os quais ele foi criado e é,
como escritor, um homem sem pernas.
Mas
é impossível fazer essa acusação contra Proust, Hardy, Flaubert
ou Conrad. Eles utilizam os olhos sem, de forma alguma, incapacitar a
pena, e os utilizam de uma maneira que nenhum romancista antes deles
utilizou. Charcos e bosques, mares tropicais, navios, ancoradouros,
salas de visita, flores, roupas, atitudes, efeitos de luz e sombra –
eles nos dão tudo isso com uma precisão e uma sutileza que nos faz
exclamar que agora, finalmente, os escritores começaram a usar os
olhos. Não que, na verdade, qualquer desses grandes escritores pare
por um momento para descrever um jarro de cristal como se fosse um
fim em si mesmo; os jarros em cima das lareiras são sempre vistos
através dos olhos das mulheres presentes na sala. A cena toda,
embora sólida e pictorialmente construída, é sempre dominada por
uma emoção que não tem nada a ver com o olho. Mas foi o olho que
fertilizou seu pensamento; foi o olho, em Proust, sobretudo, que veio
em socorro dos outros sentidos, combinou-se com eles, produzindo
efeitos de extrema beleza e de uma sutileza até então desconhecida.
Eis aqui uma cena num teatro, por exemplo. Precisamos compreender as
emoções de um jovem cavalheiro provocadas por uma dama num camarote
abaixo. Com uma abundância de imagens e comparações, somos levados
a apreciar as formas, as cores, a própria fibra e a textura dos
assentos de pelúcia e os vestidos das damas e a debilidade ou a
força, o brilho ou o colorido, da luz. Ao mesmo tempo que nossos
sentidos absorvem tudo isso, nossas mentes vão cavando túneis,
lógica e intelectualmente, na obscuridade das emoções do jovem
cavalheiro que, à medida que se ramificam e modulam e se estendem
para cada vez mais longe, penetram, afinal, tão profundamente,
desaparecem num fragmento tão minúsculo de significado, que mal
conseguimos continuar acompanhando não fosse pelo fato de que, de
repente, num lampejo atrás do outro, numa metáfora atrás da outra,
o olho ilumina aquela caverna de escuridão, mostrando-nos as formas
brutas, tangíveis, materiais dos pensamentos incorpóreos pendentes
como morcegos da escuridão primeva na qual a luz nunca antes
entrara.
Um
escritor tem, assim, necessidade de um terceiro olho cuja função é
acudir os outros sentidos quando eles gritam por socorro. Mas é
muito duvidoso que ele logo aprenda qualquer coisa da pintura. De
fato, parece ser verdade que os escritores são, entre todos os
críticos das pinturas, os piores – os mais preconceituosos, os
mais parciais em seus julgamentos; se os abordarmos em galerias,
desarmarmos suas desconfianças e fizermos com que nos digam
honestamente o que lhes agrada nas pinturas, eles confessarão que
não é, de jeito nenhum, a arte da pintura. Eles não estão ali
para compreender os problemas da arte da pintura. Eles estão atrás
de algo que possa ser útil para eles próprios. É apenas assim que
podem converter essas imensas galerias de câmaras de tortura feitas
de enfado e desespero em corredores alegres, em lugares agradáveis
cheios de pássaros, em santuários onde o silêncio reina supremo.
Livres para seguir seu próprio caminho, para selecionar e escolher
como quiserem, eles acham as pinturas modernas, dizem eles, muito
úteis, muito estimulantes. Cézanne, por exemplo – nenhum pintor
provoca mais o sentido literário do que ele, porque suas pinturas
estão tão audaciosa e provocativamente satisfeitas de serem tinta e
não palavras que o próprio pigmento, dizem eles, parece nos
desafiar, pressionar algum nervo, estimular, provocar. Essa pintura,
por exemplo, eles explicam (diante de uma paisagem rochosa, toda
clivada como que por um martelo de gigante, em estrias de cor opala,
silenciosa, sólida, serena), desperta em nós palavras onde não
pensávamos existir; sugere formas onde nunca vimos nada a não ser
ar rarefeito. Enquanto contemplamos, as palavras começam a erguer
seus frágeis membros na desbotada fronteira da língua sem dono,
para afundar de novo, em desespero. Nós as arremessamos como redes
sobre uma praia rochosa e inóspita; elas se apagam e desaparecem. É
vão, é inútil; mas não podemos nunca resistir à tentação. Os
pintores silenciosos, Cézanne e o Sr. Sickert, nos fazem de tolos
tantas vezes quanto quiserem.
Mas
os pintores perdem sua capacidade assim que tentam falar. Eles
precisam dizer o que têm para dizer mudando os verdes em azuis,
pondo uma camada em cima da outra. Eles precisam trançar seus
feitiços como uma cavala atrás do vidro de um aquário, em
silêncio, misteriosamente. Deixe-os levantar o vidro e começar a
falar e o feitiço se quebra. Uma pintura que conta uma história é
tão patética e absurda quanto um truque feito por um cachorro, e
nós o aplaudimos apenas porque sabemos que é tão difícil para um
pintor contar uma história com seu pincel quanto o é para um cão
pastor equilibrar uma bolacha no nariz. A história do quadro de
Rossetti, “Dr. Johnson na Mitra”, é muito mais bem contada por
Boswell; numa pintura, o rouxinol de Keats é mudo; com a metade de
uma folha de caderneta podemos contar com palavras todas as histórias
de todas as pinturas do mundo.
Não
obstante, eles admitem, circulando pela galeria, mesmo quando não
nos arrastam para os heroicos esforços que têm produzido tantos
monstros abortivos, que pinturas são coisas muito agradáveis. Há
muito a aprender com elas. Essa pintura de um charco num dia ventoso
mostra-nos muito mais claramente do que poderíamos ver por nós
mesmos os verdes e os pratas, e a água correndo, os chorões
inclinados tremulando ao vento, e nos faz tentar encontrar frases
para isso tudo, sugere inclusive uma figura parada lá no meio dos
juncos, ou saindo dos portões do pátio da fazenda em botas de cano
alto e vestindo um impermeável. Essa natureza morta, continuam eles,
apontando para um jarro de lírios-tocha, é para nós o mesmo que um
filé para um enfermo – uma orgia de sangue e sustento, de tão
famintos que estávamos em nossa dieta feita de negra e magra tinta
de impressão. Nós nos aninhamos em sua cor, nos alimentamos e nos
empanturramos de amarelo e vermelho e dourado até cairmos, nutridos
e contentes. Nosso sentido da cor parece miraculosamente aguçado.
Carregamos essas rosas e lírios-tocha por toda parte conosco durante
dias, elaborando-os de novo em palavras. De um retrato, também,
obtemos quase sempre algo que vale a pena ter – a sala, o nariz, as
mãos de alguém, algum pequeno efeito de personagem ou
circunstância, alguma coisinha para colocar nos bolsos e levar
embora. Mas, de novo, o pintor de retrato deve tentar não falar; ele
não deve dizer: “Isto é maternidade; aquilo, intelecto”; o
máximo que deve fazer é dar uma batidinha na parede da sala ou no
vidro do aquário; ele deve chegar bem perto, mas algo deve sempre
nos separar dele.
Há
artistas, na verdade, que já nascem sendo bons nisso de batidinhas;
assim que vemos uma pintura de Degas com uma dançarina amarrando os
laços das sapatilhas exclamamos: “Quanta graça!”, exatamente
como se tivéssemos lido um discurso feito por Congreve. Degas
destaca uma cena e a comenta exatamente como um grande escritor de
comédia o faz, mas silenciosamente, sem, em momento algum, infringir
a reticência própria da pintura. Nós rimos, mas não com os
músculos que riem na leitura. Mile Lessore tem esse mesmo raro e
curioso poder. Como são cheios de graça seus cavalos de circo ou
seus grupos de pé com seus binóculos ou seus violinistas no poço
da orquestra! Como ela aviva nosso sentido do propósito e da alegria
da vida ao dar uma batidinha no outro lado da parede! Matisse dá
batidinhas; Derain dá batidinhas; o Sr. Grant dá batidinhas;
Picasso, Sickert, a Sra. Bell, por outro lado, são todos tão mudos
quanto uma cavala.
Mas
os escritores já disseram o bastante. Suas consciências estão
inquietas. Ninguém sabe melhor do que eles, murmuram os escritores,
que essa não é a maneira de olhar pinturas; que eles são libélulas
irresponsáveis, simples insetos, crianças destruindo de maneira
travessa obras de arte ao arrancar pétala por pétala. Em suma, é
melhor eles darem o fora, pois aí, abrindo a remo seu caminho pelas
águas, devaneando, abstraído, contemplativo, vem um pintor, e,
pondo suas coisinhas nos bolsos, eles vão embora ligeiro, para não
serem surpreendidos em sua travessura e serem obrigados a sofrer a
mais extrema das penalidades, a mais refinada das torturas – serem
obrigados a olhar pinturas na companhia de um pintor.
Virginia Woolf, in O sol e o peixe
quinta-feira, 30 de março de 2023
Pergunta inocente
Por que será que as pessoas virtuosas parece que estão sempre representando?
Mário Quintana, in Caderno H
Ecos
um
texto morcego
se guia por ecos
um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?
se guia por ecos
um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?
Paulo Leminski, in Toda Poesia
Nuances
Assento:
põe-se embaixo. Acento: põe-se em cima.
Barco:
qualquer embarcação. Barca: embarcação lenta.
Ciúme:
inveja de afeto. Inveja: ciúme de coisa.
Contagiante:
alegria. Contagiosa: doença.
Corda:
em qualquer lugar. Cabo: a corda, quando num barco.
Cumpridas:
as leis não são. Compridas: as leis são.
Depressão:
tristeza de rico. Desespero: tristeza de pobre.
Despensa:
armário. Dispensa: o que você não guarda na despensa.
Discriminar:
o que é feito com o usuário de drogas. Descriminar: o que deveria
ser feito com ele.
Ecologia:
proteger o verde. Economia: multiplicar o verde.
Em
trânsito: em movimento. No trânsito: sem movimento.
Eu
te amo: quando se ama. Eu também: quando não se quer cometer uma
grosseria.
Euforia:
alegria barulhenta. Felicidade: alegria silenciosa.
Excelência:
perfeição. Vossa Excelência: crápula.
Fantasia:
roupa no Carnaval. Figurino: na televisão. Caretice desnecessária:
no teatro contemporâneo.
Golfinho:
baleia extrovertida. Tubarão: golfinho sociopata.
Golpe:
revolução pra quem sofreu. Revolução: golpe pra quem participou.
Gravar:
quando o ator é de televisão. Filmar: quando ele quer deixar claro
que não é de televisão.
Grávida:
em qualquer ocasião. Gestante: em filas e assentos preferenciais.
Guardar:
na gaveta. Salvar: no computador. Salvaguardar: no Exército.
Javali:
porco de raiz. Porco: javali metrossexual.
Língua:
dialeto de rico. Dialeto: língua de pobre.
Menta:
no sorvete, na bala ou no xarope. Hortelã: na horta, no Mojito ou no
suco de abacaxi.
Mentira:
na vida real. Inverdade: na política.
Mitologia:
religião sem adeptos. Religião: mitologia com seguidores.
Peça:
quando você vai assistir. Espetáculo: quando você está em cartaz.
Policial:
em qualquer ocasião. Tira: quando está sendo dublado.
Recife:
quando você não é de Recife. Ricife: quando você é de Recife.
Récife: quando você não é de Recife e está imitando alguém de
Recife.
Teatro:
em São Paulo. Tchiatro: no Rio. Tiatro: em Ricife. Téatro: na
Bahia.
Ukulele:
cavaquinho hipster. Rabeca: violino bêbado.
Vocabulário:
léxico de quem não tem muito léxico. Léxico: vocabulário de quem
tem muito vocabulário.
Gregório Duvivier, in Put some farofa
Medo
Ilustração: Leya Mira Brander
Era
só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primeiros
passos, apoiando-se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo.
Precisava dos outros para ir além de si. E tinha medo. Nem muito nem
pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar que vestia. No futuro
seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se
ajustaria mais à sua medida. Por hora, estava ali, naquela manhã
fria, indo para a escola, o olhar em névoa, as mãos dentro do bolso
da jaqueta. O que o salvava era a mochila presa às costas. O peso
dos cadernos e dos livros o curvava, obrigando-o a erguer a cabeça,
fazendo-o parecer até um pouco insolente. O que fazer com a sua
condição? Apenas levá-la consigo! Andava às pressas, tentando se
proteger do vento que, na direção contrária, enregelava seu rosto.
Queria aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu
medo. E, sem que soubesse, a lição daquele dia o esperava no
sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem conhecia ainda —
quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do
bigode, os braços rijos. Na ignorância das horas por vir — que
desejava fossem, senão tranquilas, suportáveis —, o menino passou
pelo portão em meio aos outros colegas — vindos também ali para
mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela —, e seguiu
pelo pátio até a sua sala. A professora, mulher miúda, de fala
doce, o perturbava. Já nas primeiras aulas, percebeu que ela não
era só voz leve e olhar compreensivo. A sua paciência, como giz,
vivia se quebrando. Por que ela agia daquela maneira? Não sabia. O
menino com seu medo, o tempo todo. Na hora da chamada, erguia a mão
e abaixava furtivamente a cabeça, como se a sua presença fosse um
insulto. Se a professora fazia uma pergunta, antes de respondê-la,
escutava a risada de um colega, o sussurro de outro, e então
pressentia que iria falhar, o que de fato acontecia: ele, paralisado,
sem resposta alguma, sob o olhar da classe inteira. Tropeçava no
perigo que ele próprio, e não o mundo, deixava em seu caminho.
Queria não ser daquele jeito. Mas era. Às vezes, entristecia-se até
nas horas de alegria: quando jogava futebol com o irmão e perdia.
Ou, quando, no parque de diversões, se negava a ir na
montanha-russa, no chapéu mexicano. Era tudo o que sonhava.
Experimentar aqueles abismos. Mas não conseguia. Vai, filho!,
a mãe o incentivava. Eu vou com você, o pai prometia. Fitava
o irmão que subia no brinquedo, acenava lá de cima, gritava e se
divertia, enquanto ele se segurava firme no seu medo, inteiramente
fiel. Se vivia inquieto na sala de aula pela certeza de se ver, de
repente, numa situação que o intimidaria, às vezes se esquecia de
seu desconforto, encantado com o universo que a professora lhe abria,
as letras do alfabeto, os desenhos na lousa, um trecho de música que
ela cantava, uma graça que fazia. E aí ele ria, ria com
sinceridade, e, subitamente, se reencontrava, menino-menino. No
intervalo, aquela calma provisória, quando o pátio se inundava de
alunos. Na multidão, ninguém o notava, nada tinha a recear, era a
sua hora macia. E assim foi até aquela manhã. Pegava seu sanduíche,
quando percebeu que um garoto, o maior de todos, se acercava.
Espantou-se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua
frente — tão desproporcional se comparado aos demais alunos — o
corpo comprido, a voz firme, Eu sou o Diego, e sorrindo, Você
é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para
não responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca
te vi aqui!, o menino sentiu que estava diante de um desafio,
como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto para acender
a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca,
seguia o movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida
mordida. Tá bom o sanduíche?, perguntou, e o menino
respondeu Tá, e quis saber, Você já comeu o seu?, o
que só serviu para alargar a vantagem de Diego, Não, nunca trago
lanche, eu sou pobre. O menino perguntou, Quer um pedaço?,
pensando que o outro se contentaria com a oferta, nem supunha que o
gesto o conduziria mais depressa a seu destino; era uma entrega
superior a que ele imaginava. Diego o mirou, satisfeito, e apanhou o
pão com voracidade. Sentou-se no chão e se pôs a comer em
silêncio, um silêncio faminto que pedia o olhar do mundo — tanto
que o menino, ao seu lado, degustou a cena, orgulhoso por lhe saciar
a fome. Se antes era frágil, casca de ovo, agora ele se sentia
forte. Descobria uma grande vida dentro de si. Porque, antes que
continuassem a conversa, ele sabia: fizera um amigo. E Diego, que
conhecia melhor essa cartilha, levantou-se e disse agradecido, Se
alguém mexer com você, me avise! Com a amizade de Diego, e a
sua força a favorecê-lo, ninguém o afrontaria. Imaginava ter um
trunfo, mas também podia ser um erro. Como adivinhar? Estava lá
para aprender. E aprendeu rápido a lição que Diego lhe deu, na
semana seguinte, ao dizer, Minha mãe tá doente, precisa de
remédio e a gente não tem dinheiro. O menino — para mostrar
que era bom aprendiz — superou a culpa e entregou ao outro, dias
depois, umas cédulas que pegara às escondidas da bolsa da mãe. E
então começou um tempo em que o perigo era a estabilidade que Diego
lhe garantia. Os dois ficavam juntos no intervalo e quase sempre
encontravam-se no fim da aula no portão da escola. O amigo o
acompanhava até a casa, cumprindo a sua parte no pacto, e recebia em
troca o que lhe faltava: o sanduíche, o estojo de lápis coloridos,
os pacotes de figurinhas. Diego sorria. E olhava para ele em silêncio
no momento da paga — como um aluno que desafia o mestre. O coração
do menino batia alto, incapaz de acordar a desconfiança que o
embalava. Diego sorria — e sonhava. Sonhava com uma bicicleta. A
amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se meteu numa
briga, quando outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no
garoto e derrubou-lhe a garrafa de suco. Diego vingou o amigo — e
foi suspenso da escola por uma semana. O menino viu no episódio a
prova de que o outro lhe era plenamente leal. E nem precisou pensar
numa recompensa: Diego a cobrou ao retornar às aulas, dizendo que
precisava de mais dinheiro para as injeções que a mãe, agora,
tinha de tomar. Era a vez do menino, a sua prova. E apesar da
angústia, ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se
aferrado à sua mentira ao ver o irmão de cabeça baixa, a mãe
chorando, o pai de lá para cá à procura do dinheiro que sumira da
carteira. E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias
depois, o garoto viu Diego lá no fim da rua, pedalando uma
bicicleta. Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um sorriso
para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora,
estava mais sozinho do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.
João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda
quarta-feira, 29 de março de 2023
Lembrança do compadre Joaquim
Tenho
um afilhado, que se chama João.
Foi
o caso que Joaquim Capixaba, antigo pescador, tinha combinado com meu
pai que este seria o padrinho de seu próximo filho — isso foi na
praia de Marataíses, Estado do Espírito Santo. “No verão que
vem, coronel.” Mas o coronel Chico Braga morreu antes do tempo, e
não teve mais nenhum verão de praia, que tanto o regalava. A
família ficou pobre, a viúva teve de vender a casa da praia e mais
uns terreninhos; a primeira vez que voltei lá, estava jogando um
sete-e-meio na casa do professor Jorge Kafuri e quando ia saindo veio
falar comigo o Capixaba, que tinha sabido de minha chegada e estava
há uma porção de tempo me esperando lá fora, acanhado.
Era
para eu ser padrinho da criança, no lugar do falecido. Pois não,
Joaquim muito obrigado.
— Então
nesse domingo, compadre?
Depois
ficamos conversando, eu vendo que o Joaquim estava querendo me dizer
mais alguma coisa, porém sem jeito. Afinal desembuchou: e o nome da
criança? Perguntei se era menino ou menina. Era menino. João, “João
mesmo, compadre?” Aí eu disse uma dessas bobagens que a gente
aprende quando é criança e não tem jeito de esquecer: “que for
mulher chamaria Maria, que for homem chamarão João”. E acabou a
conversa.
No
outro dia minha irmã me contou que o Joaquim tinha conversado com
ela uma conversa muito embrulhada, no fim era para dar a entender que
estava meio sem graça com o nome que tinha escolhido para o menino,
sendo eu um rapaz tão preparado, com tantos estudos, podia escolher
um nome bonito, ia botar nome de João. Se minha irmã não podia
falar comigo com muito jeito... Eu, como era rapazinho, até que
estava agradado de ser padrinho de alguém, mas ao mesmo tempo era
uma estopada ter de botar sapato e ir à Vila (naquele tempo não
havia igreja na praia) logo numa manhã de domingo, quando o banho
tem mais movimento com o pessoal que chega de Cachoeiro no sábado.
Assim, quando encontrei o Joaquim, fiz um ar meio amuado, disse a ele
com toda delicadeza que tinha ficado muito contente dele me convidar
para compadre, mas como sabia que ele não estava satisfeito com o
nome que eu tinha escolhido para o menino, se ele quisesse até era
melhor, para ele, escolher uma pessoa melhor para padrinho, pois eu
já vivia fora do Estado, era capaz de nunca mais vir a Marataíses,
assim que para o menino era também melhor ter um padrinho que
morasse mesmo no Cachoeira, ou então alguém duma dessas famílias
de Muqui, de Alegre, que vêm todo ano; que ele não se acanhasse de
convidar outro, pois eu não ficaria zangado.
— O
senhor nem me diga isso, compadre!
O
Joaquim ficou tão envergonhado e tão triste que nem sabia o que
dizer, e, para encurtar conversa, domingo lá estava eu na igreja da
Vila do Itapemirim de vela na mão, com o diabo do menino chorando
que era um desespero.
Filho
de pobre é feito criação de peru, perde-se muito. Anos depois eu
soube que tinha dado uma peste na casa do compadre Joaquim Capixaba e
ele perdera vários filhos, inclusive o maiorzinho que já ajudava;
mas meu afilhado João, esse se salvara. E o Joaquim dizia a diversas
pessoas: — Devoção forte é essa do compadre Rubes em São João!
E o Santo reconhece!
Rubem Braga, in A traição das elegantes
Naufrágios | Capítulo 3
Isaku
acomodou a carga de galhos secos nos ombros e começou a descer a
trilha. O mar estava ficando mais agitado sob o céu brilhante e
avermelhado. As ondas já vinham com espuma desde lá de longe, e
arrebentavam com força contra a praia e o cabo. A entrada do inverno
era geralmente marcada por quatro dias de mar bravio seguidos por
dois de calmaria; nos últimos três dias a agitação do mar havia
impedido a pescaria. Havia pedras expostas ao longo de toda a trilha,
e Isaku lutava para não tropeçar e cair sob o peso da carga.
Os
telhados das casas apareceram à vista. A mãe de Isaku encontrava-se
junto à porta dos fundos, acenando para ele se apressar. Ela parecia
ter algo urgente a dizer. Apoiando-se em uma vara que usava para
manter o equilíbrio, ele aproximou-se da casa.
— Chegou
uma mensagem dizendo que o chefe da aldeia quer ver você. Vá para
lá imediatamente — disse a mãe, afobada.
Apesar
de Isaku já ter visto o chefe da aldeia, nunca tinha falado com ele
e por isso não podia imaginar por que estava sendo chamado.
— Vá
logo! — disse a mãe, tirando a carga dos ombros dele, algo que
jamais havia feito antes, e dando-lhe um forte tapa na parte de trás
da cabeça para apressá-lo. Isaku cambaleou adiante pela trilha. A
tonalidade vermelha no céu estava desaparecendo, e o mar começava a
ficar escuro. A costa encontrava-se toda molhada por causa do borrifo
das ondas.
Ele
correu pela trilha e subiu os degraus de pedra. Um velho que
trabalhava para a família do chefe da aldeia recolhia grãos que
tinham sido espalhados em uma esteira de palha.
Isaku
entrou na casa e se abaixou, curvando-se em reverência. O chefe da
aldeia encontrava-se sentado diante do fogo. Isaku disse quem era com
a voz hesitante, os joelhos tremendo com a certeza de que seria
admoestado por alguma ofensa que cometera sem saber.
— A
começar por hoje, você vai trabalhar nos caldeirões de sal. Vai
ser sua primeira noite, por isso você irá com Kichizo e pedirá que
ele lhe ensine tudo. Depois, será por sua conta. Não deixe o fogo
apagar.
O
chefe da aldeia tinha uma voz fina e aguda como a de uma criança.
Isaku fez outra reverência, tocando o chão com a testa.
— Pode
ir.
Ainda
ajoelhado, Isaku recuou de costas pela entrada, levantou-se e partiu.
Seu
rosto ficou avermelhado com a excitação, enquanto a tensão se
esvaía. A ordem de trabalhar toda a noite no caldeirão de sal
significava que ele era reconhecido como um adulto. Sabia que isso
iria acontecer desde que permitiram que ajudasse na cremação, mas
ter a confirmação o enchia de uma alegria irreprimível. Ele correu
pela trilha da costa até sua casa. A essa altura o céu já tinha
ficado escuro.
Isaku
deixou a casa carregando uma tocha acesa. Quando a mãe ficou sabendo
que recebera a ordem de cuidar das fogueiras sob os caldeirões, ela
ficou animada, o que era muito incomum, e preparou feijão para ele
comer durante a noite. A chama da tocha ondulava ao vento. Ele deixou
a trilha e seguiu para a praia. Podia ver o brilho do fogo adiante na
praia e sentiu que havia alguém ali.
Isaku
se apressou. O olho são do homem encontrava-se fixo em Isaku. O
outro era branco e opaco, tendo perdido o brilho havia muito. Isaku
considerou-se felizardo por ter Kichizo, que era um bom amigo de seu
pai, para iniciá-lo.
Pedras
de bom tamanho haviam sido arranjadas em dois pontos da área arenosa
da praia para servir como base para os dois grandes caldeirões. Sob
um deles, a lenha já queimava.
— Acenda
o outro também — disse Kichizo, olhando para a segunda panela
imensa a cerca de dez metros de distância.
Isaku
respondeu de forma exagerada, pegando uma braçada de galhos secos de
sob uma esteira de palha, girando para colocá-los nas costas, e foi
até o segundo caldeirão. Colocou os galhos na área protegida pelas
pedras e os acendeu o fogo com um graveto em brasa tirado da primeira
fogueira. Os galhos estalaram ao pegar fogo. Isaku jogou mais lenha
no fogo.
As
chamas erguiam-se sob os dois caldeirões, tremeluzindo ao vento do
mar e lançando fagulhas na areia. Isaku olhou para as chamas
enquanto estava ali sentado perto de Kichizo em um tronco colocado
dentro de uma cabana de madeira.
Vários
anos antes, Kichizo tivera uma doença no olho que o deixara
incapacitado para pescar, forçando-o a vender a esposa em servidão
por três anos. Ela retornara à vila depois de terminar o contrato
no porto no extremo sul da ilha, mas só voltara seis meses depois de
seu contrato ter acabado, e Kichizo desconfiara que ela tivesse
ficado com outro homem, durante esse tempo.
Se
era verdade ou não, ninguém sabia, mas havia rumores entre os
habitantes da aldeia de que ela tinha tido um bebê e por isso
prolongara o contrato.
Kichizo
havia batido nela com violência, e em um acesso de fúria chegara ao
extremo de cortar os cabelos dela. Em ocasiões como essa, quando a
mulher fora correndo para a casa de Isaku, o pai e mãe dele
intervieram. Kichizo parara de bater na mulher apenas quando o chefe
da aldeia interferira e o admoestara severamente. Depois disso ele se
tornara um homem taciturno, de poucas palavras. Costumava ir sempre à
noite visitar a casa de Isaku, às vezes levando vinho feito de
milho. Ele se sentava lá em silêncio, assentindo enquanto ouvia as
histórias de pescador do pai de Isaku.
— Você
sabe por que fazemos o sal na praia, não sabe? — disse Kichizo, o
olho são fixo em Isaku.
O
suprimento anual de sal seria produzido e então distribuído de
acordo com o número de pessoas de cada família. Mas Isaku percebeu
que havia algum outro motivo para a pergunta de Kichizo.
— É
para chamar O-fune-sama, não é? — disse ele, olhando
diretamente para Kichizo. Kichizo não disse nada, desviando o olho
para os caldeirões. Por sua expressão, Isaku sentiu que sua
resposta não fora satisfatória.
Isaku
imaginara que a ordem do chefe da aldeia significava que ele tivesse
de aprender tudo sobre cuidar dos caldeirões de sal. Ainda não
compreendia muita coisa sobre os rituais da vila, mas agora que era
um adulto não podia mais se permitir continuar sendo ignorante.
Depois daquela noite ele teria de cuidar sozinho do fogo sob os
caldeirões, portanto precisava fazer com que Kichizo lhe contasse
tudo.
— Serve
como oferenda para que O-fune-sama venha para a costa?
— Não
é só uma oferenda. Serve para atrair barcos que passem ao longo da
costa — disse Kichizo, impaciente.
— Para
atrair barcos?
— Isso
mesmo. Quando o vento noroeste começa a soprar, o mar fica bravo e
mais barcos têm problemas. À noite quando as ondas começam a
passar sobre os tombadilhos, eles chegam a jogar carga no mar para
diminuir o peso. Em momentos como esse, os tripulantes avistam a luz
dos caldeirões e pensam que são casas na costa. Então viram o
barco na direção da costa.
O
olho são de Kichizo brilhou como se ele estivesse estudando Isaku,
que olhou para Kichizo antes de se voltar para o mar. Ele podia
perceber a linha onde o céu estrelado encontrava a água escura.
Havia um recife vasto e intrincado oculto sob a superfície da água.
Quando saíam para pescar, os homens da aldeia contornavam as pedras
com seus barcos, mas um navio grande entrando naquelas águas
inevitavelmente teria o casco rasgado.
Isaku
refletiu que estava finalmente começando a compreender. Tinha
deduzido que os caldeirões de sal fossem parte de um ritual
realizado com a esperança de que os barcos se acidentassem, mas
agora percebia que eles também serviam para atrair os barcos para os
recifes.
Se
o único objetivo fosse a produção do sal, então fazê-lo durante
o dia seria muito mais conveniente; mas agora ele compreendia por que
aquilo era feito sempre à noite. Além disso, ficou claro para ele
por que as fogueiras não eram acesas em noites calmas; os barcos não
teriam problemas navegando no mar calmo.
— O
fogo está apagando — disse Kichizo, levantando-se.
Isaku
se levantou e seguiu Kichizo, pegando um punhado de lenha de sob a
esteira de palha. Foi até o caldeirão da direita e jogou a lenha
sob ele.
Diziam
que marinheiros em má situação durante uma tempestade noturna eram
capazes de fazer qualquer coisa para sobreviver. Eles jogavam a carga
no mar, cortavam seus cabelos e rezavam para os deuses pedindo
proteção, e se o barco parecesse mesmo estar a ponto de virar, eles
até cortavam o mastro para mantê-lo estável. Para eles, as
fogueiras sob os caldeirões na praia poderiam muito bem parecer
luzes de casas na costa. Não havia dúvida de que eles pensariam que
suas preces tinham sido atendidas e virariam o navio na direção das
luzes.
A
madeira foi envolvida pelas chamas.
Quando
Isaku retornou para a pequena cabana, Kichizo sentou-se no tronco e
empilhou galhinhos secos na areia. Ele os acendeu e colocou mais
lenha por cima. Isaku aqueceu as mãos ao fogo. O vento de súbito
ficou mais frio.
— Estes
fogos vão trazer O-fune-sama, não vão? — perguntou Isaku
com um brilho nos olhos ao fitar Kichizo.
Kichizo
assentiu.
— Não
aconteceu nos últimos anos, mas quando eles vêm, vêm sempre um
depois do outro. Quando comecei a sair para pescar com seu pai, eles
vieram quatro anos seguidos. Quando eu tinha onze anos, tivemos três
em um só inverno. Tudo por causa destes fogos. Naqueles dias ninguém
precisava ser vendido como servo — disse ele em voz baixa.
Isaku
imaginou que Kichizo estivesse falando tanto assim porque se sentia à
vontade com o filho do amigo. Apesar de ter perdido a visão de um
olho, se O-fune-sama tivesse vindo, ele não teria sido
forçado a vender a esposa como serva e o casamento deles não teria
sido arruinado.
Isaku
olhou para o mar. Pensou em Tami, a terceira filha de Senkichi. A
filha mais velha já tinha sido vendida, e agora havia rumores de que
a segunda filha seguiria o mesmo caminho para a servidão. Se não
houvesse uma dádiva do mar nos próximos anos, sem dúvida
aconteceria o mesmo com Tami.
Isaku
ficou agitado. Se um barco tivesse sido atraído para os recifes, seu
pai também não teria sido forçado a se vender. A vida dos
habitantes da aldeia dependiam da vinda de O-fune-sama.
— Fazemos
sal desse modo para garantir que os fogos não se apaguem e para
fazer O-fune-sama vir. — O olho de Kichizo refletia o brilho
vermelho das chamas do fogo.
— Fico
imaginando se virá algum neste inverno — disse Isaku, olhando para
o mar.
— Quem
sabe... Quando o vento começa a soprar do noroeste, eles ficam
assustados e os navios não saem do porto. Mas mesmo assim, quando
têm carga para levar, eles esperam um dia mais calmo para partir. A
maioria dos barcos carrega arroz — murmurou Kichizo.
A
sonolência tomou conta de Isaku quando se aqueceu ao fogo. Seu corpo
estava entorpecido, e as pálpebras começavam a ficar pesadas. Se
ele adormecesse, sem dúvida seria dispensado da tarefa de cuidar do
fogo do sal, e sua mãe ficaria furiosa e bateria nele. Só de pensar
em tal desgraça ficava aterrorizado.
Isaku
se levantou e correu para fora da cabana. Um vento frio soprava do
mar. Ele ergueu-se na ponta dos pés e olhou dentro do caldeirão.
Nuvens de vapor erguiam-se enquanto a água salgada evaporava. Ele
verificou o fogo, então pegou vários pedaços de lenha e os jogou
sob os caldeirões. No instante seguinte não sentia mais sono.
Akira Yoshimura, in Naufrágios
O Homem que Calculava | Capítulo 2
Chamo-me
Beremiz Samir e nasci na pequenina aldeia de Khói, na Pérsia, à
sombra da pirâmide imensa formada pelo Ararat. Muito moço ainda,
empreguei-me, como pastor, a serviço de um rico senhor de Khamat(1).
Todos
os dias, ao nascer do sol, levava para o campo o grande rebanho e era
obrigado a trazê-lo ao abrigo antes de cair a noite. Com receio de
perder alguma ovelha tresmalhada e ser, por tal negligência,
severamente castigado, contava-as várias vezes durante o dia.
Fui,
assim, adquirindo, pouco a pouco, tal habilidade em contar que, por
vezes, num relance calculava sem erro o rebanho inteiro. Não
contente com isso passei a exercitar-me contando os pássaros quando,
em bandos, voavam, pelo céu afora. Tornei-me habilíssimo nessa
arte.
Ao
fim de alguns meses — graças a novos e constantes exercícios —
contando formigas e outros pequeninos insetos, cheguei a praticar a
proeza incrível de contar todas as abelhas de um enxame! Essa
façanha de calculista, porém, nada viria a valer, diante das muitas
outras que mais tarde pratiquei! O meu generoso amo possuía, em dois
ou três oásis distantes, grandes plantações de tâmaras e,
informado das minhas habilidades matemáticas, encarregou-me de
dirigir a venda de seus frutos, por mim contados nos cachos, um a um.
Trabalhei, assim, ao pé das tamareiras, cerca de dez anos. Contente
com os lucros que obteve, o meu bondoso patrão acaba de conceder-me
quatro meses de repouso e vou, agora, a Bagdá, pois tenho desejo de
visitar alguns parentes e admirar as belas mesquitas e os suntuosos
palácios da cidade famosa. E para não perder tempo, exercito-me
durante a viagem, contando as árvores que ensombram esta região, as
flores que a perfumam, os pássaros que voam, no céu, entre nuvens.
E,
apontando para uma velha e grande figueira que se erguia a pequena
distância, prosseguiu:
— Aquela
árvore, por exemplo, tem duzentos e oitenta e quatro ramos.
Sabendo-se que cada ramo tem, em média, trezentas e quarenta e sete
folhas, é fácil concluir que aquela árvore tem um total de noventa
e oito mil, quinhentas e quarenta e oito folhas! Estará certo, meu
amigo?
— Que
maravilha! — exclamei atônito. — É inacreditável possa um
homem contar, em rápido volver d’olhos, todos os galhos de uma
árvore e as flores de um jardim! Tal habilidade pode proporcionar, a
qualquer pessoa, seguro meio de ganhar riquezas invejáveis!
— Como
assim? — estranhou Beremiz. — Jamais me passou pela ideia que se
pudesse ganhar dinheiro, contando aos milhões folhas de árvores e
enxames de abelhas! Quem poderá interessar-se pelo total de ramos de
uma árvore ou pelo número do passaredo que cruza o céu durante o
dia?
— A
vossa admirável habilidade — expliquei — pode ser empregada em
vinte mil casos diferentes. Numa grande capital, como Constantinopla,
ou mesmo Bagdá, sereis auxiliar precioso para o governo. Podereis
calcular populações, exércitos e rebanhos. Fácil vos será
avaliar os recursos do país, o valor das colheitas, os impostos, as
mercadorias e todos os recursos do Estado. Asseguro-vos — pelas
relações que mantenho, pois sou bagdali(2) — que não vos será
difícil obter lugar de destaque junto ao glorioso califa Al-Motacém
(nosso amo e senhor). Podeis, talvez, exercer o cargo de
vizir-tesoureiro ou desempenhar as funções de secretário da
Fazenda muçulmana!(3)
— Se
assim é, ó jovem — respondeu o calculista —, não hesito. Vou
contigo para Bagdá.
E
sem mais preâmbulos, acomodou-se como pôde em cima do meu camelo
(único que possuíamos), e pusemo-nos a caminhar pela larga estrada
em direção à gloriosa cidade.
E
daí em diante, ligados por este encontro casual em meio da estrada
agreste, tornamo-nos companheiros e amigos inseparáveis.
Beremiz
era de gênio alegre e comunicativo. Muito moço ainda — pois não
completara vinte e seis anos —, era dotado de inteligência
extremamente viva e notável aptidão para a ciência dos números.
Formulava,
às vezes, sobre os acontecimentos mais banais da vida, comparações
inesperadas que denotavam grande agudeza de espírito e raro talento
matemático. Sabia, também, contar histórias e narrar episódios
que muito ilustravam suas palestras, já de si atraentes e curiosas.
Às
vezes punha-se várias horas, em silêncio, num silêncio maníaco, a
meditar sobre cálculos prodigiosos. Nessas ocasiões esforçava-me
por não o perturbar. Deixava-o sossegado, a fim de que ele pudesse
fazer, com os recursos de sua memória privilegiada, descobertas
retumbantes nos misteriosos arcanos da Matemática, a ciência que os
árabes tanto cultivaram e engrandeceram.
NOTAS
(1)
Khamat de Maru, cidade situada na base do Monte Ararat. Khói fica no
vale desse mesmo nome e é banhada pelas águas que descem das
montanhas de Salmas. (Nota de Malba Tahan.)
(2)
Bagdali, indivíduo natural de Bagdá.
(3)
Califado, conselho de ministros do rei.
Malba Tahan, in O Homem que Calculava
Cartas na Rua | UM
4
Quando
Jonstone me viu chegar às cinco da manhã seguinte, girou em sua
cadeira e sua cara e sua camisa ficaram da mesma cor. Mas não disse
nada. Não dei a mínima. Eu tinha ficado até as duas bebendo e
trepando com Betty. Inclinei-me para trás e fechei os olhos.
Às
sete Jonstone deu mais um giro. Todos os outros substitutos tinham
recebido serviço ou sido mandados a outros postos que precisavam de
ajuda.
— Isso
é tudo, Chinaski. Hoje não há nada para você. — Ficou olhando
para o meu rosto. Foda-se, eu não dava a mínima. Tudo o que eu
queria fazer era voltar para cama e dormir mais um pouco.
— Tudo
bem, Stone — eu disse.
Entre
os carteiros ele era conhecido como “O Stone”, mas eu era o único
que o chamava assim.
Fui
embora, dei a partida na lata velha e logo eu estava na cama com
Betty.
— Ah,
Hank! Que bom!
— Maravilha,
baby!
Grudei-me
àquele rabo quente e dormi em 45 segundos.
5
Mas
na manhã seguinte foi a mesma coisa:
— Isso
é tudo, Chinaski. Hoje não há nada para você.
Aquilo
seguiu por uma semana. Eu sentava lá, todas as manhãs, das cinco às
sete e não era pago. Meu nome foi até riscado das coletas noturnas.
Então
Bobby Hansen, um dos caras mais antigos — em tempo de serviço me
disse:
— Ele
fez isso comigo uma vez. Tentou me matar de fome.
— Não
dou a mínima. Não vou lamber as bolas dele. Ou dou o fora ou morro
de fome, tanto faz.
— Isso
não é necessário. Compareça ao Posto Prell todas as noites. Diga
ao supervisor que você não está recebendo serviço e pode ficar
como substituto de entregas especiais.
— Posso
fazer isso? Não contraria nenhuma regra?
— Eu
recebia um cheque a cada duas semanas.
— Obrigado,
Bobby.
6
Esqueci
a que horas o negócio começava. Seis ou sete da noite. Algo assim.
Tudo
o que você tinha de fazer era sentar com um punhado de cartas, pegar
o mapa das ruas e calcular o trajeto. Uma barbada. Todos os
motoristas levavam muito mais tempo do que o necessário para
calcular as rotas e eu jogava o jogo deles. Saía quando todos saíam
e voltava quando todos voltavam.
Depois
era só dar mais outra volta. Sobrava tempo para vadiar um pouco nos
cafés, folhear os jornais, me sentir decente. Sobrava tempo até
para o almoço. Sempre que queria tirar um dia de folga, eu tirava.
Numa das rotas havia uma jovem, grande, que recebia uma entrega
especial toda noite. Ela confeccionava vestidos sensuais e camisolas
e os usava. Você subia aquela escada íngreme lá pelas onze da
noite, tocava a campainha e fazia a entrega especial. Ela deixava
escapar um gemido, algo como “OOOOOOOOOOHHHH!”, e ficava ali
parada, perto, bem perto, e não o deixava ir embora enquanto não
tivesse lido tudo; depois diria:
— OOOOOooooh,
boa noite, MUITO obrigada!
— Isso
aí, dona — você diria na saída, o pau do tamanho de um touro.
Mas
aquilo não durou muito. A mensagem chegou pelo correio, depois de
uma semana e meia de liberdade:
“Prezado
sr. Chinaski:
O
senhor deve se apresentar ao Posto de Oakford imediatamente. Qualquer
forma de recusa estará sujeita a advertência ou demissão.
Superint.
A. E. Jonstone, Posto de Oakford.”
Mais
uma vez eu voltava à minha cruz.
Charles Bukowski, in Cartas na Rua
terça-feira, 28 de março de 2023
Depois a louca sou eu
Um
dos principais erros do ansioso é procurar “veneno” em seus
parceiros amorosos. Aquela pessoa solar não tem nenhuma graça.
Aquela pessoa equilibrada, solidificada, bonançosa, que realmente
acredita em coisas a ponto de ficar bem porque acredita
em coisas (tipo “esse livro do Osho mudou a minha vida”),
é chata. E, sim, concordo com você, meio limitada.
Mas
pense bem: você é um trem fantasma descarrilado cujo condutor está
de ponta-cabeça. Claro que, se outro trem fantasma descarrilado com
condutor de ponta-cabeça cruzar seu caminho, vai ser uma explosão
louca de sabores densos e picantes. Você morrerá inúmeras vezes,
mas terá valido a pena. E a coisa toda vicia num grau, que periga
você levantar feito um joão bobo, lá do trilho mesmo,
ensanguentado, e implorar mais. E depois mais um pouco. O sexo entre
dois seres atormentados e pré-suicidas é o único sexo possível, o
resto é amorzinho para fazer nenê.
Só
que para tudo, chega. E é nessa hora do “para tudo, chega” que
muitos arrumam o famoso cônjuge “ele faz muito bem pra mim”.
Aquele que não é o sexo do ano, não é a longa conversa “vamos
rir até quatro da manhã de como somos meio infelizes”, mas
melhora sua ansiedade, melhora seu pânico, diminui a sua vontade de
fazer minicortes pelo seu próprio corpo. Em contrapartida, esse
cônjuge “play feliz”, com frequência uma pessoa besta, sempre
pronta para correr no parque ou bem-disposta para dar carona a algum
velhinho que mora fora do centro expandido, um “gente boa mode on
histericamente em paz” ligado na tomada o dia inteiro para
purificar o ar da casa, com frequência esse cara é tão sem-sal,
mas tão sem-sal, que a única graça e função dele na vida é “ser
o parceiro que acalma o doido”. Do doido nós gostamos, já a
menina quieta sorridente, o rapaz “peraí que te ajudo enquanto
assovio um sambinha”, os civis de um modo geral, nós aturamos
porque eles limpam caso o doido suje a nossa sala.
Mas
essas pessoas, por não terem “a doencinha”, a doencinha que dá
a liga, o veneno entre dois estragadinhos da cabeça, o ponto de
encontro espetacular entre duas mentes atormentadas, a maior explosão
sexual de todas, essas pessoas não têm graça. Transar com um cara
gente boa é legal. Transar com um maluco é o motivo pelo qual
inventaram o sexo. Enfim, tudo isso te levará a fugir das encrencas.
Mas em círculos.
Você
vai dar tempos, intervalos, respiros, construir moradias com esses
seres maravilhosos “que te fazem bem”. Mas a quem queremos
enganar que isso vai durar? Ou melhor, isso vai durar pra cacete,
talvez seja a única coisa que realmente dure na sua vida, mas a quem
queremos enganar que você está arrematado e saciado? A quem
queremos enganar que as palavras “pleno” e “feliz” não te
fazem torcer os olhinhos como descrentes paninhos de chão que nem
depois da água sanitária deixaram de ser sujos? A quem você quer
enganar que não vai pular a cerca? Não vai encher a cara ou tomar
um tarjinha-preta de tão insuportável que está ser felizinho e ter
arrumado esse cônjuge-mãe? Felicidade só existe quando é “inha”.
Porque “feliz pra cacete” dá uma tristeza enorme.
Enfim,
se é veneno o que você busca nas relações, sua vida será
preenchida, assim como a minha, por doces rapazes alucinados,
especialistas em enxergar a própria loucura refletida na consorte do
mês. Eles vão terminar com você por mensagem de texto dizendo:
“não dá, você é louca”, e você vai ficar supertensa, achando
que eles têm razão… Daí, quando estiver tomando remédios fortes
por mais de um ano, você vai descobrir que a mensagem foi enviada do
manicômio onde os fofos estavam internados. Então, repete comigo:
“louco é o outro”.
Vejamos
alguns dos meus casos. Tive um namorado que odiava minhas bolsas. Ele
sempre me dizia: “você é bonita e tal, mas falta feminilidade”.
E daí ele ia comigo comprar bolsas. Eu escolhia uma coisa horrorosa,
cheia de franjas e brilhos e pedras, e ele dizia: “é, acho que
pode te deixar mais feminina”. Um dia ele terminou o namoro dizendo
que eu era extremamente macha.
Eu
gostava desse namorado, então fiquei péssima e por meses me culpei.
Minhas amigas falavam: “suas mãos são pequenas e macias, você
usa batom rosinha, passa perfume para ficar sozinha em casa, você é
supermocinha, esse cara que é maluco”. Mas não tinha jeito.
Comecei a achar que o problema estava na minha falta de feminilidade,
e cheguei a sonhar, mais de uma vez, que tinha um pênis e que o
cortava e jogava para que minha cachorra o trouxesse de volta.
Esse
namorado, vamos chamá-lo de Daniel (adoro que esse é exatamente o
nome dele e eu estou realmente expondo a criatura, dane-se), dizia
que minha dificuldade em usar salto alto estragou nosso romance. Eu
sempre preferi sapatilhas fofas e confortáveis. Não era tipo um
chinelão da tia Cidinha, era uma sapatilha que tinha lá seus
mistérios, tachinhas ou bolinhas, ou deixava levemente à mostra
unhas pintadas, vai vendo. Mas ele via em mim um Kichute, não tinha
jeito.
Um
dia me enchi de pulseiras e brincos e colares pesados (eu andava na
rua fazendo tanto barulho que todo mundo olhava achando que era o
realejo com o periquito da sorte), meti um salto agulha gigante (que
me faria frequentar a fisioterapia por semanas), lancei um batom
vermelho na boca, borrifei meio litro de perfume caro no meio dos
seios e em outras áreas estratégicas, mandei ver num decotão e fui
até a casa dele. Ele riu por um bom tempo (de fato eu estava
ridícula, parecendo um requeijão fechado a vácuo, tão colada era
a roupa) e me pediu que “tomasse cuidado para não escorregar no
piso da casa dele”. E ficou olhando para o chão, cheio de amor,
querendo que eu “entendesse algo sem que ele precisasse falar”.
Achei que era algo como “vai, fica de quatro nesse piso, sua gata
feminina louca”, mas era pior: ele queria que eu notasse como o
piso da casa dele brilhava.
Foi
quando ele me contou de Larinha, moça rica do interior de Minas a
quem acabara de conhecer. Ela estava em São Paulo para estudar
“design de sabonetes”. Era rica: um ponto. Era caipira: dois
pontos. Tinha uma profissão cretina de moças ricas e caipiras que
no fundo não sabem fazer uma caralha da vida e fingem fazer algo até
que possam enfim exercer a única função que realmente importa para
elas que é ser mulher de homem rico para perpetuar a riqueza da
família: três pontos. E tinha descoberto um troço que fazia
“reviver os tacos de madeira” e tinha, naquela manhã, esfregado
a maravilha em toda a casa do Daniel. Ou seja, uma escravinha: cem
pontos. Mano, eu podia colocar franjinhas e tachinhas e strass e
pedrarias na virilha que aquele cara jamais veria “uma mulher
feminina” em mim. Ele me disse que eu era louca e que por isso não
havia dado certo.
Antes
do Daniel, namorei um cara que falava sozinho enquanto dormia. Vamos
chamá-lo de André (adoro que esse é mesmo o nome dele). Eram altos
papos. Ele contava, entre roncos e relinchos, como organizou a sua
estante de livros. Primeiro os clássicos, depois os “vivos que
valem a pena”, depois os de cinema. Até que um dia ele
simplesmente parou de dormir. Não dormiu dois dias, daí viraram
cinco dias, daí viraram nove.
Ele
usava as madrugadas para ler livros ao mesmo tempo que via filmes ao
mesmo tempo que organizava a área de trabalho do computador ao mesmo
tempo que falava com sete pessoas pelo inbox do Facebook ao mesmo
tempo que baixava músicas ao mesmo tempo que… Numa dessas conheceu
uma mulher igual a ele e os dois ficaram várias madrugadas inteiras
se falando por todas as infinitas plataformas de internet.
Um
dia pedi a ele que voltasse a dormir na casa dele porque estava
puxado manter em meu apartamento um homem que não dormia havia dez
dias e ficava com todas as luzes acesas, TV e micro-ondas fazendo
barulho, e me traía virtualmente. Ele fez as malas, me chamou de
“muito ansiosa, precisa aprender a relaxar”, e assim acabou.
Anos
depois comecei a namorar o Carlos (vamos chamá-lo por seu nome
verdadeiro). Ele me dizia diariamente que eu era louca e que teríamos
que terminar, mas… 1) gostava de chorar nu na minha varanda logo
depois que a gente transava porque percebia que um dia seu pai
morreria; 2) me levou a uma galeria de arte e, ao ver a dona do
lugar, com quem “tinha uma relação estremecida”, saiu correndo
e me largou lá por meia hora, e depois me deu um esporro porque não
o esperei voltar quando estivesse mais calmo; 3) acordava de
madrugada para tentar desemperrar janelas que não estavam
emperradas; 4) só colecionava arte de gente que já tinha morrido
porque “vivo não sabe o que está fazendo”; 5) sofreu um
sequestro-relâmpago com outra mulher e, quando os libertaram, me
ligou para que eu fosse buscá-los.
Namorei
também o Guto, que “odiava criança, odiava morar junto, odiava
trabalhar, odiava namorar, odiava cinema, odiava show, odiava beijar
na boca toda hora” e terminou comigo porque era impossível me
agradar. E, por favor, vamos dar ao Gabriel o prêmio “melhor
namorado louco que terminou comigo dizendo que a louca era eu”.
Gabriel não aguentava mais sentir que eu o estava observando,
“querendo escrever sobre ele”, enquanto ele apenas bebia água ou
fazia xixi. Disse que começou a se “autonarrar” vinte e quatro
horas por dia porque imaginava que eu passava vinte e quatro horas
por dia observando todos os seus movimentos para depois escrever um
livro sobre ele. Kikito egocêntrico para ele. Palma de Ouro ególatra
para ele. E o pior é que ele tinha razão.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu