Exemplo

O vendaval
à noite arrancou todas as folhas de uma árvore,
menos uma,
deixada
para balançar só num galho nu.

Com este exemplo
a Violência demonstra
que sim –
às vezes ela gosta de se divertir.

Wisława Szymborska

O testamento de Adão

1493 – Roma


Na penumbra do Vaticano, cheirando a perfumes do Oriente, o papa dita uma nova bula.
Faz pouco tempo que Rodrigo Borgia, valenciano da aldeia de Xátiva, se chama Alexandre VI. Não passou ainda um ano desde que comprou, à vista, os sete votos que faltavam no Sagrado Colégio e pôde mudar a púrpura de cardeal pelo manto de arminho de Sumo Pontífice.
Mais horas dedica Alexandre VI a calcular o preço das indulgências que a meditar o mistério da Santíssima Trindade. Ninguém ignora que prefere as missas breves, salvo as que em sua alcova privada celebra, mascarado, o bufão Gabriellino, e todo mundo sabe que o novo papa é capaz de desviar a procissão de Corpus para que passe debaixo da varanda de uma mulher bonita.
Também é capaz de cortar o mundo como se fosse um frango: ergue a mão e traça uma fronteira, de cabo a rabo no planeta, através do mar incógnito. O procurador de Deus concede à perpetuidade tudo o que tenha sido descoberto ou se descubra, a oeste dessa linha, a Isabel de Castilha e a Fernando de Aragão e a seus herdeiros no trono espanhol. Encomenda-lhes que às ilhas e terras firmes encontradas ou por encontrar enviem homens bons, temerosos de Deus, doutos, sábios e experientes, para que instruam os naturais na fé católica e lhes ensinem bons modos. À coroa portuguesa pertencerá o que se descubra ao leste.
Angústia e euforia das velas abertas: Colombo já está preparando, na Andaluzia, sua segunda viagem para os rincões onde o ouro cresce em cachos nas parreiras e as pedras preciosas aguardam no crânio dos dragões.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Cartas para minha avó

O fantasma de sexualização esteve presente em minha vida a maior parte do tempo, me fazendo ser um tanto solitária. Eu ia às atividades do centro espírita — algumas consistiam em visitar orfanatos e asilos —, saía com a minha mãe ou simplesmente ficava em casa. Intuitivamente, eu tinha uma proteção “antimacho” que me afastou de viver péssimas experiências — ou pelo menos evitou muitas. A ilusão de um amor me completava de alguma maneira. Ninguém que eu conhecia na vida real superava o amor imaginário que viria me buscar em casa pra jantar e andaria de mãos dadas comigo, acariciando meus cabelos antes de me beijar com carinho. Claro que essa ilusão também me prejudicou, eu precisava aprender a lidar com a realidade, mas a realidade que se apresentava consistia em forçação de barra e mãos não requisitadas.
Não é que eu estivesse fixada na fantasia. Acho que teria me entregado facilmente a uma experiência amorosa real, com suas contradições, mas era a realidade que insistia em não me olhar com olhos de amor. Eu queria ser vista com delicadeza, encontrar alguém com quem falar dos meus livros favoritos, da história triste do velhinho do asilo. Claro que eu também desejava contato físico, mas não exclusivamente.
Aos dezenove anos, para esquecer o meu primeiro amor que não surgia, eu saía sozinha. Claro, eu poderia ir ao pagode com minha irmã e as amigas dela, mas não gostava, então preferia ficar nos bares de mpb. As primeiras vezes foram legais, eu bebia suco e curtia as músicas. Mas precisei parar de ir. Primeiro porque ainda não tinha a confiança de sentar sozinha em uma mesa de bar, e não conseguia bancar os comentários sobre mim. Segundo, porque alguns homens começaram a enviar bebidas para a minha mesa, talvez julgando que eu era uma prostituta à procura de clientes, e não uma jovem sonhadora querendo se inebriar de canções de amor. Isso se repete até hoje, são muitas as vezes que evito sair sem companhia ou me abstenho de tomar um drink no hotel.
Nas vezes em que fui sozinha a barzinhos, eu voltava andando pelo calçadão da praia, observando todas as pessoas que pareciam viver numa realidade paralela à minha. Mais do que felizes, elas pareciam encaixadas à vida. Em geral, eu buscava todas as possibilidades para não sentir a vida, simplesmente não me reconhecia como parte integrante dela. Minhas amigas loiras estavam sempre com seus namorados e, por mais que se decepcionassem também, sempre tinham alguém para apresentar aos pais e de quem pegar emprestado o moletom em um dia frio. Eu olhava os casais apaixonados nos banquinhos da praia e aquilo parecia um sonho distante. Eu via as famílias parecendo felizes andando pelos jardins, pessoas pedalando suas bicicletas, mães correndo atrás de seus filhos esboçando sorrisos. Havia casais namorando, pais e mães conversando com seus filhos, a lua refletindo o mar. Eu não me reconhecia em nenhuma daquelas pessoas.
Eu queria viver um amor, vó, mas não queria que fosse qualquer amor. Não ficava chateada se não beijasse ninguém numa festa, mas sim se não beijasse o garoto que eu julgava ser legal. E eu nunca beijei o garoto legal, sempre voltava pra casa pensando como teria sido. Uma sensação de vazio me tomava.
Nas poucas vezes que fui a bailes de Carnaval na adolescência ou quando jovem adulta, os rapazes tentavam me beijar à força, tudo era muito naturalizado. E foram várias as vezes em que ouvi, ao rejeitá-los: “Está se achando, hein, neguinha? Você não é tudo isso”. Para eles, eu deveria me sentir honrada em ser beijada à força ou agradecer por eles passarem a mão em mim sem meu consentimento.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

A pintura


É provável que algum professor tenha escrito um livro sobre o assunto, mas, se escreveu, não chegou até nós. “As paixões das artes” seria, mais ou menos, o seu título, e trataria dos namoros entre a música, a literatura, a escultura e a arquitetura e dos efeitos que as artes tiveram umas sobre as outras ao longo do tempo. Na falta de uma tal pesquisa, parece que a literatura tem sido a mais sociável e porosa de todas: a escultura influenciou a literatura grega; a música, a elisabetana; a arquitetura, a literatura inglesa do século XVIII; e, agora, sem dúvida, estamos sob o domínio da pintura. Se todas as pinturas modernas fossem destruídas, um crítico do século XXV seria capaz de deduzir, com base apenas nos livros de Proust, a existência de Matisse, Cézanne, Derain e Picasso; ele seria capaz de dizer, com esses volumes à sua frente, que pintores extraordinariamente originais e fortes deviam estar, na sala ao lado, cobrindo uma tela atrás da outra, apertando um tubo atrás do outro.
Contudo, é extremamente difícil precisar o ponto exato em que a pintura se fez sentir na obra de um escritor tão completo. Nos escritores parciais e incompletos, isso é muito fácil de ser detectado. O mundo está cheio, neste momento, de aleijados, vítimas da arte da pintura, que pintam maçãs, rosas, aparelhos de porcelana, romãs, tamarindos e jarrões de vidro tão bem quanto palavras poderiam pintá-los, o que quer dizer, é claro, que não muito bem. Podemos com certeza dizer que um escritor cuja escrita apela principalmente ao olho é um mau escritor; que se, ao narrar, digamos, um encontro num jardim, ele descreve rosas, lírios, cravos e sombras na grama, de maneira que possamos vê-los, mas deixa que deles se infiram ideias, motivos, impulsos e emoções, é porque ele é incapaz de usar seu meio para os propósitos para os quais ele foi criado e é, como escritor, um homem sem pernas.
Mas é impossível fazer essa acusação contra Proust, Hardy, Flaubert ou Conrad. Eles utilizam os olhos sem, de forma alguma, incapacitar a pena, e os utilizam de uma maneira que nenhum romancista antes deles utilizou. Charcos e bosques, mares tropicais, navios, ancoradouros, salas de visita, flores, roupas, atitudes, efeitos de luz e sombra – eles nos dão tudo isso com uma precisão e uma sutileza que nos faz exclamar que agora, finalmente, os escritores começaram a usar os olhos. Não que, na verdade, qualquer desses grandes escritores pare por um momento para descrever um jarro de cristal como se fosse um fim em si mesmo; os jarros em cima das lareiras são sempre vistos através dos olhos das mulheres presentes na sala. A cena toda, embora sólida e pictorialmente construída, é sempre dominada por uma emoção que não tem nada a ver com o olho. Mas foi o olho que fertilizou seu pensamento; foi o olho, em Proust, sobretudo, que veio em socorro dos outros sentidos, combinou-se com eles, produzindo efeitos de extrema beleza e de uma sutileza até então desconhecida. Eis aqui uma cena num teatro, por exemplo. Precisamos compreender as emoções de um jovem cavalheiro provocadas por uma dama num camarote abaixo. Com uma abundância de imagens e comparações, somos levados a apreciar as formas, as cores, a própria fibra e a textura dos assentos de pelúcia e os vestidos das damas e a debilidade ou a força, o brilho ou o colorido, da luz. Ao mesmo tempo que nossos sentidos absorvem tudo isso, nossas mentes vão cavando túneis, lógica e intelectualmente, na obscuridade das emoções do jovem cavalheiro que, à medida que se ramificam e modulam e se estendem para cada vez mais longe, penetram, afinal, tão profundamente, desaparecem num fragmento tão minúsculo de significado, que mal conseguimos continuar acompanhando não fosse pelo fato de que, de repente, num lampejo atrás do outro, numa metáfora atrás da outra, o olho ilumina aquela caverna de escuridão, mostrando-nos as formas brutas, tangíveis, materiais dos pensamentos incorpóreos pendentes como morcegos da escuridão primeva na qual a luz nunca antes entrara.
Um escritor tem, assim, necessidade de um terceiro olho cuja função é acudir os outros sentidos quando eles gritam por socorro. Mas é muito duvidoso que ele logo aprenda qualquer coisa da pintura. De fato, parece ser verdade que os escritores são, entre todos os críticos das pinturas, os piores – os mais preconceituosos, os mais parciais em seus julgamentos; se os abordarmos em galerias, desarmarmos suas desconfianças e fizermos com que nos digam honestamente o que lhes agrada nas pinturas, eles confessarão que não é, de jeito nenhum, a arte da pintura. Eles não estão ali para compreender os problemas da arte da pintura. Eles estão atrás de algo que possa ser útil para eles próprios. É apenas assim que podem converter essas imensas galerias de câmaras de tortura feitas de enfado e desespero em corredores alegres, em lugares agradáveis cheios de pássaros, em santuários onde o silêncio reina supremo. Livres para seguir seu próprio caminho, para selecionar e escolher como quiserem, eles acham as pinturas modernas, dizem eles, muito úteis, muito estimulantes. Cézanne, por exemplo – nenhum pintor provoca mais o sentido literário do que ele, porque suas pinturas estão tão audaciosa e provocativamente satisfeitas de serem tinta e não palavras que o próprio pigmento, dizem eles, parece nos desafiar, pressionar algum nervo, estimular, provocar. Essa pintura, por exemplo, eles explicam (diante de uma paisagem rochosa, toda clivada como que por um martelo de gigante, em estrias de cor opala, silenciosa, sólida, serena), desperta em nós palavras onde não pensávamos existir; sugere formas onde nunca vimos nada a não ser ar rarefeito. Enquanto contemplamos, as palavras começam a erguer seus frágeis membros na desbotada fronteira da língua sem dono, para afundar de novo, em desespero. Nós as arremessamos como redes sobre uma praia rochosa e inóspita; elas se apagam e desaparecem. É vão, é inútil; mas não podemos nunca resistir à tentação. Os pintores silenciosos, Cézanne e o Sr. Sickert, nos fazem de tolos tantas vezes quanto quiserem.
Mas os pintores perdem sua capacidade assim que tentam falar. Eles precisam dizer o que têm para dizer mudando os verdes em azuis, pondo uma camada em cima da outra. Eles precisam trançar seus feitiços como uma cavala atrás do vidro de um aquário, em silêncio, misteriosamente. Deixe-os levantar o vidro e começar a falar e o feitiço se quebra. Uma pintura que conta uma história é tão patética e absurda quanto um truque feito por um cachorro, e nós o aplaudimos apenas porque sabemos que é tão difícil para um pintor contar uma história com seu pincel quanto o é para um cão pastor equilibrar uma bolacha no nariz. A história do quadro de Rossetti, “Dr. Johnson na Mitra”, é muito mais bem contada por Boswell; numa pintura, o rouxinol de Keats é mudo; com a metade de uma folha de caderneta podemos contar com palavras todas as histórias de todas as pinturas do mundo.
Não obstante, eles admitem, circulando pela galeria, mesmo quando não nos arrastam para os heroicos esforços que têm produzido tantos monstros abortivos, que pinturas são coisas muito agradáveis. Há muito a aprender com elas. Essa pintura de um charco num dia ventoso mostra-nos muito mais claramente do que poderíamos ver por nós mesmos os verdes e os pratas, e a água correndo, os chorões inclinados tremulando ao vento, e nos faz tentar encontrar frases para isso tudo, sugere inclusive uma figura parada lá no meio dos juncos, ou saindo dos portões do pátio da fazenda em botas de cano alto e vestindo um impermeável. Essa natureza morta, continuam eles, apontando para um jarro de lírios-tocha, é para nós o mesmo que um filé para um enfermo – uma orgia de sangue e sustento, de tão famintos que estávamos em nossa dieta feita de negra e magra tinta de impressão. Nós nos aninhamos em sua cor, nos alimentamos e nos empanturramos de amarelo e vermelho e dourado até cairmos, nutridos e contentes. Nosso sentido da cor parece miraculosamente aguçado. Carregamos essas rosas e lírios-tocha por toda parte conosco durante dias, elaborando-os de novo em palavras. De um retrato, também, obtemos quase sempre algo que vale a pena ter – a sala, o nariz, as mãos de alguém, algum pequeno efeito de personagem ou circunstância, alguma coisinha para colocar nos bolsos e levar embora. Mas, de novo, o pintor de retrato deve tentar não falar; ele não deve dizer: “Isto é maternidade; aquilo, intelecto”; o máximo que deve fazer é dar uma batidinha na parede da sala ou no vidro do aquário; ele deve chegar bem perto, mas algo deve sempre nos separar dele.
Há artistas, na verdade, que já nascem sendo bons nisso de batidinhas; assim que vemos uma pintura de Degas com uma dançarina amarrando os laços das sapatilhas exclamamos: “Quanta graça!”, exatamente como se tivéssemos lido um discurso feito por Congreve. Degas destaca uma cena e a comenta exatamente como um grande escritor de comédia o faz, mas silenciosamente, sem, em momento algum, infringir a reticência própria da pintura. Nós rimos, mas não com os músculos que riem na leitura. Mile Lessore tem esse mesmo raro e curioso poder. Como são cheios de graça seus cavalos de circo ou seus grupos de pé com seus binóculos ou seus violinistas no poço da orquestra! Como ela aviva nosso sentido do propósito e da alegria da vida ao dar uma batidinha no outro lado da parede! Matisse dá batidinhas; Derain dá batidinhas; o Sr. Grant dá batidinhas; Picasso, Sickert, a Sra. Bell, por outro lado, são todos tão mudos quanto uma cavala.
Mas os escritores já disseram o bastante. Suas consciências estão inquietas. Ninguém sabe melhor do que eles, murmuram os escritores, que essa não é a maneira de olhar pinturas; que eles são libélulas irresponsáveis, simples insetos, crianças destruindo de maneira travessa obras de arte ao arrancar pétala por pétala. Em suma, é melhor eles darem o fora, pois aí, abrindo a remo seu caminho pelas águas, devaneando, abstraído, contemplativo, vem um pintor, e, pondo suas coisinhas nos bolsos, eles vão embora ligeiro, para não serem surpreendidos em sua travessura e serem obrigados a sofrer a mais extrema das penalidades, a mais refinada das torturas – serem obrigados a olhar pinturas na companhia de um pintor.

Virginia Woolf, in O sol e o peixe

Pergunta inocente

 Por que será que as pessoas virtuosas parece que estão sempre representando?

Mário Quintana, in Caderno H

Ecos

um texto morcego
se guia por ecos
um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?

Paulo Leminski, in Toda Poesia

Nuances

Assento: põe-se embaixo. Acento: põe-se em cima.
Barco: qualquer embarcação. Barca: embarcação lenta.
Ciúme: inveja de afeto. Inveja: ciúme de coisa.
Contagiante: alegria. Contagiosa: doença.
Corda: em qualquer lugar. Cabo: a corda, quando num barco.
Cumpridas: as leis não são. Compridas: as leis são.
Depressão: tristeza de rico. Desespero: tristeza de pobre.
Despensa: armário. Dispensa: o que você não guarda na despensa.
Discriminar: o que é feito com o usuário de drogas. Descriminar: o que deveria ser feito com ele.
Ecologia: proteger o verde. Economia: multiplicar o verde.
Em trânsito: em movimento. No trânsito: sem movimento.
Eu te amo: quando se ama. Eu também: quando não se quer cometer uma grosseria.
Euforia: alegria barulhenta. Felicidade: alegria silenciosa.
Excelência: perfeição. Vossa Excelência: crápula.
Fantasia: roupa no Carnaval. Figurino: na televisão. Caretice desnecessária: no teatro contemporâneo.
Golfinho: baleia extrovertida. Tubarão: golfinho sociopata.
Golpe: revolução pra quem sofreu. Revolução: golpe pra quem participou.
Gravar: quando o ator é de televisão. Filmar: quando ele quer deixar claro que não é de televisão.
Grávida: em qualquer ocasião. Gestante: em filas e assentos preferenciais.
Guardar: na gaveta. Salvar: no computador. Salvaguardar: no Exército.
Javali: porco de raiz. Porco: javali metrossexual.
Língua: dialeto de rico. Dialeto: língua de pobre.
Menta: no sorvete, na bala ou no xarope. Hortelã: na horta, no Mojito ou no suco de abacaxi.
Mentira: na vida real. Inverdade: na política.
Mitologia: religião sem adeptos. Religião: mitologia com seguidores.
Peça: quando você vai assistir. Espetáculo: quando você está em cartaz.
Policial: em qualquer ocasião. Tira: quando está sendo dublado.
Recife: quando você não é de Recife. Ricife: quando você é de Recife. Récife: quando você não é de Recife e está imitando alguém de Recife.
Teatro: em São Paulo. Tchiatro: no Rio. Tiatro: em Ricife. Téatro: na Bahia.
Ukulele: cavaquinho hipster. Rabeca: violino bêbado.
Vocabulário: léxico de quem não tem muito léxico. Léxico: vocabulário de quem tem muito vocabulário.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

Medo

Ilustração: Leya Mira Brander


Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primeiros passos, apoiando-se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo. Precisava dos outros para ir além de si. E tinha medo. Nem muito nem pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar que vestia. No futuro seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se ajustaria mais à sua medida. Por hora, estava ali, naquela manhã fria, indo para a escola, o olhar em névoa, as mãos dentro do bolso da jaqueta. O que o salvava era a mochila presa às costas. O peso dos cadernos e dos livros o curvava, obrigando-o a erguer a cabeça, fazendo-o parecer até um pouco insolente. O que fazer com a sua condição? Apenas levá-la consigo! Andava às pressas, tentando se proteger do vento que, na direção contrária, enregelava seu rosto. Queria aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu medo. E, sem que soubesse, a lição daquele dia o esperava no sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem conhecia ainda — quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do bigode, os braços rijos. Na ignorância das horas por vir — que desejava fossem, senão tranquilas, suportáveis —, o menino passou pelo portão em meio aos outros colegas — vindos também ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela —, e seguiu pelo pátio até a sua sala. A professora, mulher miúda, de fala doce, o perturbava. Já nas primeiras aulas, percebeu que ela não era só voz leve e olhar compreensivo. A sua paciência, como giz, vivia se quebrando. Por que ela agia daquela maneira? Não sabia. O menino com seu medo, o tempo todo. Na hora da chamada, erguia a mão e abaixava furtivamente a cabeça, como se a sua presença fosse um insulto. Se a professora fazia uma pergunta, antes de respondê-la, escutava a risada de um colega, o sussurro de outro, e então pressentia que iria falhar, o que de fato acontecia: ele, paralisado, sem resposta alguma, sob o olhar da classe inteira. Tropeçava no perigo que ele próprio, e não o mundo, deixava em seu caminho. Queria não ser daquele jeito. Mas era. Às vezes, entristecia-se até nas horas de alegria: quando jogava futebol com o irmão e perdia. Ou, quando, no parque de diversões, se negava a ir na montanha-russa, no chapéu mexicano. Era tudo o que sonhava. Experimentar aqueles abismos. Mas não conseguia. Vai, filho!, a mãe o incentivava. Eu vou com você, o pai prometia. Fitava o irmão que subia no brinquedo, acenava lá de cima, gritava e se divertia, enquanto ele se segurava firme no seu medo, inteiramente fiel. Se vivia inquieto na sala de aula pela certeza de se ver, de repente, numa situação que o intimidaria, às vezes se esquecia de seu desconforto, encantado com o universo que a professora lhe abria, as letras do alfabeto, os desenhos na lousa, um trecho de música que ela cantava, uma graça que fazia. E aí ele ria, ria com sinceridade, e, subitamente, se reencontrava, menino-menino. No intervalo, aquela calma provisória, quando o pátio se inundava de alunos. Na multidão, ninguém o notava, nada tinha a recear, era a sua hora macia. E assim foi até aquela manhã. Pegava seu sanduíche, quando percebeu que um garoto, o maior de todos, se acercava. Espantou-se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua frente — tão desproporcional se comparado aos demais alunos — o corpo comprido, a voz firme, Eu sou o Diego, e sorrindo, Você é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para não responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca te vi aqui!, o menino sentiu que estava diante de um desafio, como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto para acender a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca, seguia o movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida mordida. Tá bom o sanduíche?, perguntou, e o menino respondeu , e quis saber, Você já comeu o seu?, o que só serviu para alargar a vantagem de Diego, Não, nunca trago lanche, eu sou pobre. O menino perguntou, Quer um pedaço?, pensando que o outro se contentaria com a oferta, nem supunha que o gesto o conduziria mais depressa a seu destino; era uma entrega superior a que ele imaginava. Diego o mirou, satisfeito, e apanhou o pão com voracidade. Sentou-se no chão e se pôs a comer em silêncio, um silêncio faminto que pedia o olhar do mundo — tanto que o menino, ao seu lado, degustou a cena, orgulhoso por lhe saciar a fome. Se antes era frágil, casca de ovo, agora ele se sentia forte. Descobria uma grande vida dentro de si. Porque, antes que continuassem a conversa, ele sabia: fizera um amigo. E Diego, que conhecia melhor essa cartilha, levantou-se e disse agradecido, Se alguém mexer com você, me avise! Com a amizade de Diego, e a sua força a favorecê-lo, ninguém o afrontaria. Imaginava ter um trunfo, mas também podia ser um erro. Como adivinhar? Estava lá para aprender. E aprendeu rápido a lição que Diego lhe deu, na semana seguinte, ao dizer, Minha mãe tá doente, precisa de remédio e a gente não tem dinheiro. O menino — para mostrar que era bom aprendiz — superou a culpa e entregou ao outro, dias depois, umas cédulas que pegara às escondidas da bolsa da mãe. E então começou um tempo em que o perigo era a estabilidade que Diego lhe garantia. Os dois ficavam juntos no intervalo e quase sempre encontravam-se no fim da aula no portão da escola. O amigo o acompanhava até a casa, cumprindo a sua parte no pacto, e recebia em troca o que lhe faltava: o sanduíche, o estojo de lápis coloridos, os pacotes de figurinhas. Diego sorria. E olhava para ele em silêncio no momento da paga — como um aluno que desafia o mestre. O coração do menino batia alto, incapaz de acordar a desconfiança que o embalava. Diego sorria — e sonhava. Sonhava com uma bicicleta. A amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se meteu numa briga, quando outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no garoto e derrubou-lhe a garrafa de suco. Diego vingou o amigo — e foi suspenso da escola por uma semana. O menino viu no episódio a prova de que o outro lhe era plenamente leal. E nem precisou pensar numa recompensa: Diego a cobrou ao retornar às aulas, dizendo que precisava de mais dinheiro para as injeções que a mãe, agora, tinha de tomar. Era a vez do menino, a sua prova. E apesar da angústia, ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se aferrado à sua mentira ao ver o irmão de cabeça baixa, a mãe chorando, o pai de lá para cá à procura do dinheiro que sumira da carteira. E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois, o garoto viu Diego lá no fim da rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um sorriso para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora, estava mais sozinho do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda

Lembrança do compadre Joaquim

Tenho um afilhado, que se chama João.
Foi o caso que Joaquim Capixaba, antigo pescador, tinha combinado com meu pai que este seria o padrinho de seu próximo filho — isso foi na praia de Marataíses, Estado do Espírito Santo. “No verão que vem, coronel.” Mas o coronel Chico Braga morreu antes do tempo, e não teve mais nenhum verão de praia, que tanto o regalava. A família ficou pobre, a viúva teve de vender a casa da praia e mais uns terreninhos; a primeira vez que voltei lá, estava jogando um sete-e-meio na casa do professor Jorge Kafuri e quando ia saindo veio falar comigo o Capixaba, que tinha sabido de minha chegada e estava há uma porção de tempo me esperando lá fora, acanhado.
Era para eu ser padrinho da criança, no lugar do falecido. Pois não, Joaquim muito obrigado.
Então nesse domingo, compadre?
Depois ficamos conversando, eu vendo que o Joaquim estava querendo me dizer mais alguma coisa, porém sem jeito. Afinal desembuchou: e o nome da criança? Perguntei se era menino ou menina. Era menino. João, “João mesmo, compadre?” Aí eu disse uma dessas bobagens que a gente aprende quando é criança e não tem jeito de esquecer: “que for mulher chamaria Maria, que for homem chamarão João”. E acabou a conversa.
No outro dia minha irmã me contou que o Joaquim tinha conversado com ela uma conversa muito embrulhada, no fim era para dar a entender que estava meio sem graça com o nome que tinha escolhido para o menino, sendo eu um rapaz tão preparado, com tantos estudos, podia escolher um nome bonito, ia botar nome de João. Se minha irmã não podia falar comigo com muito jeito... Eu, como era rapazinho, até que estava agradado de ser padrinho de alguém, mas ao mesmo tempo era uma estopada ter de botar sapato e ir à Vila (naquele tempo não havia igreja na praia) logo numa manhã de domingo, quando o banho tem mais movimento com o pessoal que chega de Cachoeiro no sábado. Assim, quando encontrei o Joaquim, fiz um ar meio amuado, disse a ele com toda delicadeza que tinha ficado muito contente dele me convidar para compadre, mas como sabia que ele não estava satisfeito com o nome que eu tinha escolhido para o menino, se ele quisesse até era melhor, para ele, escolher uma pessoa melhor para padrinho, pois eu já vivia fora do Estado, era capaz de nunca mais vir a Marataíses, assim que para o menino era também melhor ter um padrinho que morasse mesmo no Cachoeira, ou então alguém duma dessas famílias de Muqui, de Alegre, que vêm todo ano; que ele não se acanhasse de convidar outro, pois eu não ficaria zangado.
O senhor nem me diga isso, compadre!
O Joaquim ficou tão envergonhado e tão triste que nem sabia o que dizer, e, para encurtar conversa, domingo lá estava eu na igreja da Vila do Itapemirim de vela na mão, com o diabo do menino chorando que era um desespero.
Filho de pobre é feito criação de peru, perde-se muito. Anos depois eu soube que tinha dado uma peste na casa do compadre Joaquim Capixaba e ele perdera vários filhos, inclusive o maiorzinho que já ajudava; mas meu afilhado João, esse se salvara. E o Joaquim dizia a diversas pessoas: — Devoção forte é essa do compadre Rubes em São João! E o Santo reconhece!

Rubem Braga, in A traição das elegantes

Naufrágios | Capítulo 3





Isaku acomodou a carga de galhos secos nos ombros e começou a descer a trilha. O mar estava ficando mais agitado sob o céu brilhante e avermelhado. As ondas já vinham com espuma desde lá de longe, e arrebentavam com força contra a praia e o cabo. A entrada do inverno era geralmente marcada por quatro dias de mar bravio seguidos por dois de calmaria; nos últimos três dias a agitação do mar havia impedido a pescaria. Havia pedras expostas ao longo de toda a trilha, e Isaku lutava para não tropeçar e cair sob o peso da carga.
Os telhados das casas apareceram à vista. A mãe de Isaku encontrava-se junto à porta dos fundos, acenando para ele se apressar. Ela parecia ter algo urgente a dizer. Apoiando-se em uma vara que usava para manter o equilíbrio, ele aproximou-se da casa.
Chegou uma mensagem dizendo que o chefe da aldeia quer ver você. Vá para lá imediatamente — disse a mãe, afobada.
Apesar de Isaku já ter visto o chefe da aldeia, nunca tinha falado com ele e por isso não podia imaginar por que estava sendo chamado.
Vá logo! — disse a mãe, tirando a carga dos ombros dele, algo que jamais havia feito antes, e dando-lhe um forte tapa na parte de trás da cabeça para apressá-lo. Isaku cambaleou adiante pela trilha. A tonalidade vermelha no céu estava desaparecendo, e o mar começava a ficar escuro. A costa encontrava-se toda molhada por causa do borrifo das ondas.
Ele correu pela trilha e subiu os degraus de pedra. Um velho que trabalhava para a família do chefe da aldeia recolhia grãos que tinham sido espalhados em uma esteira de palha.

Isaku entrou na casa e se abaixou, curvando-se em reverência. O chefe da aldeia encontrava-se sentado diante do fogo. Isaku disse quem era com a voz hesitante, os joelhos tremendo com a certeza de que seria admoestado por alguma ofensa que cometera sem saber.
A começar por hoje, você vai trabalhar nos caldeirões de sal. Vai ser sua primeira noite, por isso você irá com Kichizo e pedirá que ele lhe ensine tudo. Depois, será por sua conta. Não deixe o fogo apagar.
O chefe da aldeia tinha uma voz fina e aguda como a de uma criança. Isaku fez outra reverência, tocando o chão com a testa.
Pode ir.
Ainda ajoelhado, Isaku recuou de costas pela entrada, levantou-se e partiu.
Seu rosto ficou avermelhado com a excitação, enquanto a tensão se esvaía. A ordem de trabalhar toda a noite no caldeirão de sal significava que ele era reconhecido como um adulto. Sabia que isso iria acontecer desde que permitiram que ajudasse na cremação, mas ter a confirmação o enchia de uma alegria irreprimível. Ele correu pela trilha da costa até sua casa. A essa altura o céu já tinha ficado escuro.
Isaku deixou a casa carregando uma tocha acesa. Quando a mãe ficou sabendo que recebera a ordem de cuidar das fogueiras sob os caldeirões, ela ficou animada, o que era muito incomum, e preparou feijão para ele comer durante a noite. A chama da tocha ondulava ao vento. Ele deixou a trilha e seguiu para a praia. Podia ver o brilho do fogo adiante na praia e sentiu que havia alguém ali.
Isaku se apressou. O olho são do homem encontrava-se fixo em Isaku. O outro era branco e opaco, tendo perdido o brilho havia muito. Isaku considerou-se felizardo por ter Kichizo, que era um bom amigo de seu pai, para iniciá-lo.
Pedras de bom tamanho haviam sido arranjadas em dois pontos da área arenosa da praia para servir como base para os dois grandes caldeirões. Sob um deles, a lenha já queimava.
Acenda o outro também — disse Kichizo, olhando para a segunda panela imensa a cerca de dez metros de distância.
Isaku respondeu de forma exagerada, pegando uma braçada de galhos secos de sob uma esteira de palha, girando para colocá-los nas costas, e foi até o segundo caldeirão. Colocou os galhos na área protegida pelas pedras e os acendeu o fogo com um graveto em brasa tirado da primeira fogueira. Os galhos estalaram ao pegar fogo. Isaku jogou mais lenha no fogo.
As chamas erguiam-se sob os dois caldeirões, tremeluzindo ao vento do mar e lançando fagulhas na areia. Isaku olhou para as chamas enquanto estava ali sentado perto de Kichizo em um tronco colocado dentro de uma cabana de madeira.
Vários anos antes, Kichizo tivera uma doença no olho que o deixara incapacitado para pescar, forçando-o a vender a esposa em servidão por três anos. Ela retornara à vila depois de terminar o contrato no porto no extremo sul da ilha, mas só voltara seis meses depois de seu contrato ter acabado, e Kichizo desconfiara que ela tivesse ficado com outro homem, durante esse tempo.
Se era verdade ou não, ninguém sabia, mas havia rumores entre os habitantes da aldeia de que ela tinha tido um bebê e por isso prolongara o contrato.
Kichizo havia batido nela com violência, e em um acesso de fúria chegara ao extremo de cortar os cabelos dela. Em ocasiões como essa, quando a mulher fora correndo para a casa de Isaku, o pai e mãe dele intervieram. Kichizo parara de bater na mulher apenas quando o chefe da aldeia interferira e o admoestara severamente. Depois disso ele se tornara um homem taciturno, de poucas palavras. Costumava ir sempre à noite visitar a casa de Isaku, às vezes levando vinho feito de milho. Ele se sentava lá em silêncio, assentindo enquanto ouvia as histórias de pescador do pai de Isaku.
Você sabe por que fazemos o sal na praia, não sabe? — disse Kichizo, o olho são fixo em Isaku.
O suprimento anual de sal seria produzido e então distribuído de acordo com o número de pessoas de cada família. Mas Isaku percebeu que havia algum outro motivo para a pergunta de Kichizo.
É para chamar O-fune-sama, não é? — disse ele, olhando diretamente para Kichizo. Kichizo não disse nada, desviando o olho para os caldeirões. Por sua expressão, Isaku sentiu que sua resposta não fora satisfatória.
Isaku imaginara que a ordem do chefe da aldeia significava que ele tivesse de aprender tudo sobre cuidar dos caldeirões de sal. Ainda não compreendia muita coisa sobre os rituais da vila, mas agora que era um adulto não podia mais se permitir continuar sendo ignorante. Depois daquela noite ele teria de cuidar sozinho do fogo sob os caldeirões, portanto precisava fazer com que Kichizo lhe contasse tudo.
Serve como oferenda para que O-fune-sama venha para a costa?
Não é só uma oferenda. Serve para atrair barcos que passem ao longo da costa — disse Kichizo, impaciente.
Para atrair barcos?
Isso mesmo. Quando o vento noroeste começa a soprar, o mar fica bravo e mais barcos têm problemas. À noite quando as ondas começam a passar sobre os tombadilhos, eles chegam a jogar carga no mar para diminuir o peso. Em momentos como esse, os tripulantes avistam a luz dos caldeirões e pensam que são casas na costa. Então viram o barco na direção da costa.
O olho são de Kichizo brilhou como se ele estivesse estudando Isaku, que olhou para Kichizo antes de se voltar para o mar. Ele podia perceber a linha onde o céu estrelado encontrava a água escura. Havia um recife vasto e intrincado oculto sob a superfície da água. Quando saíam para pescar, os homens da aldeia contornavam as pedras com seus barcos, mas um navio grande entrando naquelas águas inevitavelmente teria o casco rasgado.
Isaku refletiu que estava finalmente começando a compreender. Tinha deduzido que os caldeirões de sal fossem parte de um ritual realizado com a esperança de que os barcos se acidentassem, mas agora percebia que eles também serviam para atrair os barcos para os recifes.
Se o único objetivo fosse a produção do sal, então fazê-lo durante o dia seria muito mais conveniente; mas agora ele compreendia por que aquilo era feito sempre à noite. Além disso, ficou claro para ele por que as fogueiras não eram acesas em noites calmas; os barcos não teriam problemas navegando no mar calmo.
O fogo está apagando — disse Kichizo, levantando-se.
Isaku se levantou e seguiu Kichizo, pegando um punhado de lenha de sob a esteira de palha. Foi até o caldeirão da direita e jogou a lenha sob ele.
Diziam que marinheiros em má situação durante uma tempestade noturna eram capazes de fazer qualquer coisa para sobreviver. Eles jogavam a carga no mar, cortavam seus cabelos e rezavam para os deuses pedindo proteção, e se o barco parecesse mesmo estar a ponto de virar, eles até cortavam o mastro para mantê-lo estável. Para eles, as fogueiras sob os caldeirões na praia poderiam muito bem parecer luzes de casas na costa. Não havia dúvida de que eles pensariam que suas preces tinham sido atendidas e virariam o navio na direção das luzes.
A madeira foi envolvida pelas chamas.
Quando Isaku retornou para a pequena cabana, Kichizo sentou-se no tronco e empilhou galhinhos secos na areia. Ele os acendeu e colocou mais lenha por cima. Isaku aqueceu as mãos ao fogo. O vento de súbito ficou mais frio.
Estes fogos vão trazer O-fune-sama, não vão? — perguntou Isaku com um brilho nos olhos ao fitar Kichizo.
Kichizo assentiu.
Não aconteceu nos últimos anos, mas quando eles vêm, vêm sempre um depois do outro. Quando comecei a sair para pescar com seu pai, eles vieram quatro anos seguidos. Quando eu tinha onze anos, tivemos três em um só inverno. Tudo por causa destes fogos. Naqueles dias ninguém precisava ser vendido como servo — disse ele em voz baixa.
Isaku imaginou que Kichizo estivesse falando tanto assim porque se sentia à vontade com o filho do amigo. Apesar de ter perdido a visão de um olho, se O-fune-sama tivesse vindo, ele não teria sido forçado a vender a esposa como serva e o casamento deles não teria sido arruinado.
Isaku olhou para o mar. Pensou em Tami, a terceira filha de Senkichi. A filha mais velha já tinha sido vendida, e agora havia rumores de que a segunda filha seguiria o mesmo caminho para a servidão. Se não houvesse uma dádiva do mar nos próximos anos, sem dúvida aconteceria o mesmo com Tami.
Isaku ficou agitado. Se um barco tivesse sido atraído para os recifes, seu pai também não teria sido forçado a se vender. A vida dos habitantes da aldeia dependiam da vinda de O-fune-sama.
Fazemos sal desse modo para garantir que os fogos não se apaguem e para fazer O-fune-sama vir. — O olho de Kichizo refletia o brilho vermelho das chamas do fogo.
Fico imaginando se virá algum neste inverno — disse Isaku, olhando para o mar.
Quem sabe... Quando o vento começa a soprar do noroeste, eles ficam assustados e os navios não saem do porto. Mas mesmo assim, quando têm carga para levar, eles esperam um dia mais calmo para partir. A maioria dos barcos carrega arroz — murmurou Kichizo.
A sonolência tomou conta de Isaku quando se aqueceu ao fogo. Seu corpo estava entorpecido, e as pálpebras começavam a ficar pesadas. Se ele adormecesse, sem dúvida seria dispensado da tarefa de cuidar do fogo do sal, e sua mãe ficaria furiosa e bateria nele. Só de pensar em tal desgraça ficava aterrorizado.
Isaku se levantou e correu para fora da cabana. Um vento frio soprava do mar. Ele ergueu-se na ponta dos pés e olhou dentro do caldeirão. Nuvens de vapor erguiam-se enquanto a água salgada evaporava. Ele verificou o fogo, então pegou vários pedaços de lenha e os jogou sob os caldeirões. No instante seguinte não sentia mais sono.

Akira Yoshimura, in Naufrágios

O Homem que Calculava | Capítulo 2


Chamo-me Beremiz Samir e nasci na pequenina aldeia de Khói, na Pérsia, à sombra da pirâmide imensa formada pelo Ararat. Muito moço ainda, empreguei-me, como pastor, a serviço de um rico senhor de Khamat(1).
Todos os dias, ao nascer do sol, levava para o campo o grande rebanho e era obrigado a trazê-lo ao abrigo antes de cair a noite. Com receio de perder alguma ovelha tresmalhada e ser, por tal negligência, severamente castigado, contava-as várias vezes durante o dia.
Fui, assim, adquirindo, pouco a pouco, tal habilidade em contar que, por vezes, num relance calculava sem erro o rebanho inteiro. Não contente com isso passei a exercitar-me contando os pássaros quando, em bandos, voavam, pelo céu afora. Tornei-me habilíssimo nessa arte.
Ao fim de alguns meses — graças a novos e constantes exercícios — contando formigas e outros pequeninos insetos, cheguei a praticar a proeza incrível de contar todas as abelhas de um enxame! Essa façanha de calculista, porém, nada viria a valer, diante das muitas outras que mais tarde pratiquei! O meu generoso amo possuía, em dois ou três oásis distantes, grandes plantações de tâmaras e, informado das minhas habilidades matemáticas, encarregou-me de dirigir a venda de seus frutos, por mim contados nos cachos, um a um. Trabalhei, assim, ao pé das tamareiras, cerca de dez anos. Contente com os lucros que obteve, o meu bondoso patrão acaba de conceder-me quatro meses de repouso e vou, agora, a Bagdá, pois tenho desejo de visitar alguns parentes e admirar as belas mesquitas e os suntuosos palácios da cidade famosa. E para não perder tempo, exercito-me durante a viagem, contando as árvores que ensombram esta região, as flores que a perfumam, os pássaros que voam, no céu, entre nuvens.
E, apontando para uma velha e grande figueira que se erguia a pequena distância, prosseguiu:
Aquela árvore, por exemplo, tem duzentos e oitenta e quatro ramos. Sabendo-se que cada ramo tem, em média, trezentas e quarenta e sete folhas, é fácil concluir que aquela árvore tem um total de noventa e oito mil, quinhentas e quarenta e oito folhas! Estará certo, meu amigo?
Que maravilha! — exclamei atônito. — É inacreditável possa um homem contar, em rápido volver d’olhos, todos os galhos de uma árvore e as flores de um jardim! Tal habilidade pode proporcionar, a qualquer pessoa, seguro meio de ganhar riquezas invejáveis!
Como assim? — estranhou Beremiz. — Jamais me passou pela ideia que se pudesse ganhar dinheiro, contando aos milhões folhas de árvores e enxames de abelhas! Quem poderá interessar-se pelo total de ramos de uma árvore ou pelo número do passaredo que cruza o céu durante o dia?
A vossa admirável habilidade — expliquei — pode ser empregada em vinte mil casos diferentes. Numa grande capital, como Constantinopla, ou mesmo Bagdá, sereis auxiliar precioso para o governo. Podereis calcular populações, exércitos e rebanhos. Fácil vos será avaliar os recursos do país, o valor das colheitas, os impostos, as mercadorias e todos os recursos do Estado. Asseguro-vos — pelas relações que mantenho, pois sou bagdali(2) — que não vos será difícil obter lugar de destaque junto ao glorioso califa Al-Motacém (nosso amo e senhor). Podeis, talvez, exercer o cargo de vizir-tesoureiro ou desempenhar as funções de secretário da Fazenda muçulmana!(3)
Se assim é, ó jovem — respondeu o calculista —, não hesito. Vou contigo para Bagdá.
E sem mais preâmbulos, acomodou-se como pôde em cima do meu camelo (único que possuíamos), e pusemo-nos a caminhar pela larga estrada em direção à gloriosa cidade.
E daí em diante, ligados por este encontro casual em meio da estrada agreste, tornamo-nos companheiros e amigos inseparáveis.
Beremiz era de gênio alegre e comunicativo. Muito moço ainda — pois não completara vinte e seis anos —, era dotado de inteligência extremamente viva e notável aptidão para a ciência dos números.
Formulava, às vezes, sobre os acontecimentos mais banais da vida, comparações inesperadas que denotavam grande agudeza de espírito e raro talento matemático. Sabia, também, contar histórias e narrar episódios que muito ilustravam suas palestras, já de si atraentes e curiosas.
Às vezes punha-se várias horas, em silêncio, num silêncio maníaco, a meditar sobre cálculos prodigiosos. Nessas ocasiões esforçava-me por não o perturbar. Deixava-o sossegado, a fim de que ele pudesse fazer, com os recursos de sua memória privilegiada, descobertas retumbantes nos misteriosos arcanos da Matemática, a ciência que os árabes tanto cultivaram e engrandeceram.

NOTAS

(1) Khamat de Maru, cidade situada na base do Monte Ararat. Khói fica no vale desse mesmo nome e é banhada pelas águas que descem das montanhas de Salmas. (Nota de Malba Tahan.)
(2) Bagdali, indivíduo natural de Bagdá.
(3) Califado, conselho de ministros do rei.

Malba Tahan, in O Homem que Calculava

Cartas na Rua | UM


4

Quando Jonstone me viu chegar às cinco da manhã seguinte, girou em sua cadeira e sua cara e sua camisa ficaram da mesma cor. Mas não disse nada. Não dei a mínima. Eu tinha ficado até as duas bebendo e trepando com Betty. Inclinei-me para trás e fechei os olhos.
Às sete Jonstone deu mais um giro. Todos os outros substitutos tinham recebido serviço ou sido mandados a outros postos que precisavam de ajuda.
Isso é tudo, Chinaski. Hoje não há nada para você. — Ficou olhando para o meu rosto. Foda-se, eu não dava a mínima. Tudo o que eu queria fazer era voltar para cama e dormir mais um pouco.
Tudo bem, Stone — eu disse.
Entre os carteiros ele era conhecido como “O Stone”, mas eu era o único que o chamava assim.
Fui embora, dei a partida na lata velha e logo eu estava na cama com Betty.
Ah, Hank! Que bom!
Maravilha, baby!
Grudei-me àquele rabo quente e dormi em 45 segundos.

5

Mas na manhã seguinte foi a mesma coisa:
Isso é tudo, Chinaski. Hoje não há nada para você.
Aquilo seguiu por uma semana. Eu sentava lá, todas as manhãs, das cinco às sete e não era pago. Meu nome foi até riscado das coletas noturnas.
Então Bobby Hansen, um dos caras mais antigos — em tempo de serviço me disse:
Ele fez isso comigo uma vez. Tentou me matar de fome.
Não dou a mínima. Não vou lamber as bolas dele. Ou dou o fora ou morro de fome, tanto faz.
Isso não é necessário. Compareça ao Posto Prell todas as noites. Diga ao supervisor que você não está recebendo serviço e pode ficar como substituto de entregas especiais.
Posso fazer isso? Não contraria nenhuma regra?
Eu recebia um cheque a cada duas semanas.
Obrigado, Bobby.

6

Esqueci a que horas o negócio começava. Seis ou sete da noite. Algo assim.
Tudo o que você tinha de fazer era sentar com um punhado de cartas, pegar o mapa das ruas e calcular o trajeto. Uma barbada. Todos os motoristas levavam muito mais tempo do que o necessário para calcular as rotas e eu jogava o jogo deles. Saía quando todos saíam e voltava quando todos voltavam.
Depois era só dar mais outra volta. Sobrava tempo para vadiar um pouco nos cafés, folhear os jornais, me sentir decente. Sobrava tempo até para o almoço. Sempre que queria tirar um dia de folga, eu tirava. Numa das rotas havia uma jovem, grande, que recebia uma entrega especial toda noite. Ela confeccionava vestidos sensuais e camisolas e os usava. Você subia aquela escada íngreme lá pelas onze da noite, tocava a campainha e fazia a entrega especial. Ela deixava escapar um gemido, algo como “OOOOOOOOOOHHHH!”, e ficava ali parada, perto, bem perto, e não o deixava ir embora enquanto não tivesse lido tudo; depois diria:
OOOOOooooh, boa noite, MUITO obrigada!
Isso aí, dona — você diria na saída, o pau do tamanho de um touro.
Mas aquilo não durou muito. A mensagem chegou pelo correio, depois de uma semana e meia de liberdade:

Prezado sr. Chinaski:
O senhor deve se apresentar ao Posto de Oakford imediatamente. Qualquer forma de recusa estará sujeita a advertência ou demissão.
Superint. A. E. Jonstone, Posto de Oakford.”

Mais uma vez eu voltava à minha cruz.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

Depois a louca sou eu

Um dos principais erros do ansioso é procurar “veneno” em seus parceiros amorosos. Aquela pessoa solar não tem nenhuma graça. Aquela pessoa equilibrada, solidificada, bonançosa, que realmente acredita em coisas a ponto de ficar bem porque acredita em coisas (tipo “esse livro do Osho mudou a minha vida”), é chata. E, sim, concordo com você, meio limitada.
Mas pense bem: você é um trem fantasma descarrilado cujo condutor está de ponta-cabeça. Claro que, se outro trem fantasma descarrilado com condutor de ponta-cabeça cruzar seu caminho, vai ser uma explosão louca de sabores densos e picantes. Você morrerá inúmeras vezes, mas terá valido a pena. E a coisa toda vicia num grau, que periga você levantar feito um joão bobo, lá do trilho mesmo, ensanguentado, e implorar mais. E depois mais um pouco. O sexo entre dois seres atormentados e pré-suicidas é o único sexo possível, o resto é amorzinho para fazer nenê.
Só que para tudo, chega. E é nessa hora do “para tudo, chega” que muitos arrumam o famoso cônjuge “ele faz muito bem pra mim”. Aquele que não é o sexo do ano, não é a longa conversa “vamos rir até quatro da manhã de como somos meio infelizes”, mas melhora sua ansiedade, melhora seu pânico, diminui a sua vontade de fazer minicortes pelo seu próprio corpo. Em contrapartida, esse cônjuge “play feliz”, com frequência uma pessoa besta, sempre pronta para correr no parque ou bem-disposta para dar carona a algum velhinho que mora fora do centro expandido, um “gente boa mode on histericamente em paz” ligado na tomada o dia inteiro para purificar o ar da casa, com frequência esse cara é tão sem-sal, mas tão sem-sal, que a única graça e função dele na vida é “ser o parceiro que acalma o doido”. Do doido nós gostamos, já a menina quieta sorridente, o rapaz “peraí que te ajudo enquanto assovio um sambinha”, os civis de um modo geral, nós aturamos porque eles limpam caso o doido suje a nossa sala.
Mas essas pessoas, por não terem “a doencinha”, a doencinha que dá a liga, o veneno entre dois estragadinhos da cabeça, o ponto de encontro espetacular entre duas mentes atormentadas, a maior explosão sexual de todas, essas pessoas não têm graça. Transar com um cara gente boa é legal. Transar com um maluco é o motivo pelo qual inventaram o sexo. Enfim, tudo isso te levará a fugir das encrencas. Mas em círculos.
Você vai dar tempos, intervalos, respiros, construir moradias com esses seres maravilhosos “que te fazem bem”. Mas a quem queremos enganar que isso vai durar? Ou melhor, isso vai durar pra cacete, talvez seja a única coisa que realmente dure na sua vida, mas a quem queremos enganar que você está arrematado e saciado? A quem queremos enganar que as palavras “pleno” e “feliz” não te fazem torcer os olhinhos como descrentes paninhos de chão que nem depois da água sanitária deixaram de ser sujos? A quem você quer enganar que não vai pular a cerca? Não vai encher a cara ou tomar um tarjinha-preta de tão insuportável que está ser felizinho e ter arrumado esse cônjuge-mãe? Felicidade só existe quando é “inha”. Porque “feliz pra cacete” dá uma tristeza enorme.
Enfim, se é veneno o que você busca nas relações, sua vida será preenchida, assim como a minha, por doces rapazes alucinados, especialistas em enxergar a própria loucura refletida na consorte do mês. Eles vão terminar com você por mensagem de texto dizendo: “não dá, você é louca”, e você vai ficar supertensa, achando que eles têm razão… Daí, quando estiver tomando remédios fortes por mais de um ano, você vai descobrir que a mensagem foi enviada do manicômio onde os fofos estavam internados. Então, repete comigo: “louco é o outro”.
Vejamos alguns dos meus casos. Tive um namorado que odiava minhas bolsas. Ele sempre me dizia: “você é bonita e tal, mas falta feminilidade”. E daí ele ia comigo comprar bolsas. Eu escolhia uma coisa horrorosa, cheia de franjas e brilhos e pedras, e ele dizia: “é, acho que pode te deixar mais feminina”. Um dia ele terminou o namoro dizendo que eu era extremamente macha.
Eu gostava desse namorado, então fiquei péssima e por meses me culpei. Minhas amigas falavam: “suas mãos são pequenas e macias, você usa batom rosinha, passa perfume para ficar sozinha em casa, você é supermocinha, esse cara que é maluco”. Mas não tinha jeito. Comecei a achar que o problema estava na minha falta de feminilidade, e cheguei a sonhar, mais de uma vez, que tinha um pênis e que o cortava e jogava para que minha cachorra o trouxesse de volta.
Esse namorado, vamos chamá-lo de Daniel (adoro que esse é exatamente o nome dele e eu estou realmente expondo a criatura, dane-se), dizia que minha dificuldade em usar salto alto estragou nosso romance. Eu sempre preferi sapatilhas fofas e confortáveis. Não era tipo um chinelão da tia Cidinha, era uma sapatilha que tinha lá seus mistérios, tachinhas ou bolinhas, ou deixava levemente à mostra unhas pintadas, vai vendo. Mas ele via em mim um Kichute, não tinha jeito.
Um dia me enchi de pulseiras e brincos e colares pesados (eu andava na rua fazendo tanto barulho que todo mundo olhava achando que era o realejo com o periquito da sorte), meti um salto agulha gigante (que me faria frequentar a fisioterapia por semanas), lancei um batom vermelho na boca, borrifei meio litro de perfume caro no meio dos seios e em outras áreas estratégicas, mandei ver num decotão e fui até a casa dele. Ele riu por um bom tempo (de fato eu estava ridícula, parecendo um requeijão fechado a vácuo, tão colada era a roupa) e me pediu que “tomasse cuidado para não escorregar no piso da casa dele”. E ficou olhando para o chão, cheio de amor, querendo que eu “entendesse algo sem que ele precisasse falar”. Achei que era algo como “vai, fica de quatro nesse piso, sua gata feminina louca”, mas era pior: ele queria que eu notasse como o piso da casa dele brilhava.
Foi quando ele me contou de Larinha, moça rica do interior de Minas a quem acabara de conhecer. Ela estava em São Paulo para estudar “design de sabonetes”. Era rica: um ponto. Era caipira: dois pontos. Tinha uma profissão cretina de moças ricas e caipiras que no fundo não sabem fazer uma caralha da vida e fingem fazer algo até que possam enfim exercer a única função que realmente importa para elas que é ser mulher de homem rico para perpetuar a riqueza da família: três pontos. E tinha descoberto um troço que fazia “reviver os tacos de madeira” e tinha, naquela manhã, esfregado a maravilha em toda a casa do Daniel. Ou seja, uma escravinha: cem pontos. Mano, eu podia colocar franjinhas e tachinhas e strass e pedrarias na virilha que aquele cara jamais veria “uma mulher feminina” em mim. Ele me disse que eu era louca e que por isso não havia dado certo.
Antes do Daniel, namorei um cara que falava sozinho enquanto dormia. Vamos chamá-lo de André (adoro que esse é mesmo o nome dele). Eram altos papos. Ele contava, entre roncos e relinchos, como organizou a sua estante de livros. Primeiro os clássicos, depois os “vivos que valem a pena”, depois os de cinema. Até que um dia ele simplesmente parou de dormir. Não dormiu dois dias, daí viraram cinco dias, daí viraram nove.
Ele usava as madrugadas para ler livros ao mesmo tempo que via filmes ao mesmo tempo que organizava a área de trabalho do computador ao mesmo tempo que falava com sete pessoas pelo inbox do Facebook ao mesmo tempo que baixava músicas ao mesmo tempo que… Numa dessas conheceu uma mulher igual a ele e os dois ficaram várias madrugadas inteiras se falando por todas as infinitas plataformas de internet.
Um dia pedi a ele que voltasse a dormir na casa dele porque estava puxado manter em meu apartamento um homem que não dormia havia dez dias e ficava com todas as luzes acesas, TV e micro-ondas fazendo barulho, e me traía virtualmente. Ele fez as malas, me chamou de “muito ansiosa, precisa aprender a relaxar”, e assim acabou.
Anos depois comecei a namorar o Carlos (vamos chamá-lo por seu nome verdadeiro). Ele me dizia diariamente que eu era louca e que teríamos que terminar, mas… 1) gostava de chorar nu na minha varanda logo depois que a gente transava porque percebia que um dia seu pai morreria; 2) me levou a uma galeria de arte e, ao ver a dona do lugar, com quem “tinha uma relação estremecida”, saiu correndo e me largou lá por meia hora, e depois me deu um esporro porque não o esperei voltar quando estivesse mais calmo; 3) acordava de madrugada para tentar desemperrar janelas que não estavam emperradas; 4) só colecionava arte de gente que já tinha morrido porque “vivo não sabe o que está fazendo”; 5) sofreu um sequestro-relâmpago com outra mulher e, quando os libertaram, me ligou para que eu fosse buscá-los.
Namorei também o Guto, que “odiava criança, odiava morar junto, odiava trabalhar, odiava namorar, odiava cinema, odiava show, odiava beijar na boca toda hora” e terminou comigo porque era impossível me agradar. E, por favor, vamos dar ao Gabriel o prêmio “melhor namorado louco que terminou comigo dizendo que a louca era eu”. Gabriel não aguentava mais sentir que eu o estava observando, “querendo escrever sobre ele”, enquanto ele apenas bebia água ou fazia xixi. Disse que começou a se “autonarrar” vinte e quatro horas por dia porque imaginava que eu passava vinte e quatro horas por dia observando todos os seus movimentos para depois escrever um livro sobre ele. Kikito egocêntrico para ele. Palma de Ouro ególatra para ele. E o pior é que ele tinha razão.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu