Os perigos

O que fez o sol e a lua avisou aos taínos que tomassem cuidado com os mortos.
Durante o dia os mortos se escondiam e comiam goiaba, mas pelas noites saíam a passear e desafiavam os vivos. Os mortos ofereciam combates e as mortas, amores. Na luta, desapareciam quando queriam; e no melhor do amor ficava o amante sem nada entre os braços. Antes de aceitar a luta contra um homem ou deitar-se junto a uma mulher, era preciso roçar-lhe o ventre com a mão, porque os mortos não têm umbigo.
O dono do céu também avisou aos taínos que tomassem muito mais cuidado ainda com gente vestida.
O chefe Cáicihu jejuou uma semana e foi digno de sua voz: Breve será o gozo da vida, anunciou o invisível, o que tem mãe mas não tem princípio: Os homens vestidos chegarão, dominarão e matarão.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Balanço | Dia 5 de janeiro de 2009

Valeu a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Isso esperava? Satisfeito com o trabalho? Responder “sim” a todas estas perguntas, ou mesmo a só alguma delas, seria a demonstração clara de uma cegueira mental sem desculpa. E responder com um “não” sem excepções, que poderia ser? Excesso de modéstia? De resignação? Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana não passa de uma pálida sombra da obra antes sonhada? Conta-se que Miguel Ângelo, quando terminou o Moisés que se encontra em Roma, na Igreja de San Pietro in Vincoli, deu uma martelada no joelho da estátua e gritou: “Fala!”. Não será preciso dizer que Moisés não falou. Moisés nunca fala. Também o que neste lugar se escreveu ao longo dos últimos meses não contém mais palavras nem mais eloquentes que as que puderam ser escritas, precisamente essas a quem o autor gostaria de pedir, apenas murmurando, “Falem, por favor, digam-me o que são, para que serviram, se para algo foi”. Calam, não respondem. Que fazer, então? Interrogar as palavras é o destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois seja, já sabemos que Moisés não responderá.

José Saramago, in O caderno

Pérola negra | Luiz Melodia, 1972


Cartão de visita explosivo de um compositor até então inédito, “Pérola negra” foi apresentada ao mundo durante a temporada de Fa-tal: Gal a todo vapor, no Rio de Janeiro. O revolucionário show dirigido por Waly Salomão (ou Sailormoon, como assinava na época o poeta) estreou em novembro de 1971, no Teatro Tereza Raquel, e logo virou um disco duplo que, quatro décadas depois, continua como um dos melhores e mais influentes de Gal Costa. Entre canções de Caetano, Novos Baianos, Macalé & Waly, Roberto & Erasmo e sambas antológicos de Ismael Silva e Geraldo Pereira, chamou a atenção aquele blues pesado e pungente, digno de uma Billie Holiday, do desconhecido Luiz Melodia, que se transformou num dos hinos do verão louco de 1972. Um sucesso que viraria clássico para qualquer estação e revelaria um de nossos compositores mais originais.
Descoberto por Waly, o artista plástico Hélio Oiticica e o cineasta underground Ivan Cardoso em suas andanças pelas periferias cariocas, Melodia (1951) era um jovem negro do morro de São Carlos, junto ao bairro do Estácio, que cresceu ouvindo tanto o samba quanto a Jovem Guarda, tanto o forró quanto o rock, o blues e o soul. “Pérola negra” é fruto dessa formação sem preconceitos nem limites, e abriu as portas da indústria do disco para o extraordinário cantor e compositor inspirado, que, ainda em 1972, emplacou na voz de Maria Bethânia outra balada arrasadora, “Estácio, Holly Estácio”.
A bela gravação de Gal foi um perfeito lançamento, mas “Pérola negra” ganhou sua versão definitiva como canção-título do disco de estreia de Melodia, em 1973. Em vez da roupagem roqueira de Gal (arranjo do tropicalista Lanny Gordin, mas com a guitarra nas mãos de Pepeu Gomes, que o substituiu no show), na versão do autor a música ganhou uma embalagem luxuosa jazzy & bluesy em clima de big band. Um tratamento mais lírico, centrado na voz rascante e aveludada de Melodia, no piano de Antonio Perna, no baixo de Rubão Sabino e no fraseado dos sopros. A letra é uma cantada meio desesperada do compositor tentando seduzir sua musa, que chama de “Pérola negra”, inspirado pelo nome de guerra de um travesti do morro de São Carlos.
Na verdade, a pérola negra da música brasileira é Luiz Melodia.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Capítulo 47 | O Recluso

Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de ser da minha afeição anterior. Pena de maus costumes, ata uma gravata ao teu estilo, veste-lhe um colete menos sórdido; e depois sim, depois vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me embalou a melhor parte dos anos que decorreram desde o inventário de meu pai até 1842.
Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador, não cuides que o mandei derramar para meu regalo; é um vestígio da N. ou da Z. ou da U. – que todas essas letras maiúsculas embalaram aí a sua elegante abjeção. Mas, se além do aroma, quiseres outra coisa, fica-te com o desejo, porque eu não guardei retratos, nem cartas, nem memórias; a mesma comoção esvaiu-se e só me ficaram as letras iniciais.
Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a mor parte do tempo passei-a comigo mesmo. Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo. Escrevia política e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as folhas públicas e cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta. Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgília, futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, – eu, que valia mais, muito mais do que ele, – e dizia isto a olhar para a ponta do nariz…

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

As mães não deveriam morrer

Uma amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail, agora que a internet deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também aqui, neste lugar sem distância que é o mundo virtual, mas onde o tempo é mais veloz e uma hora pode ser um pretérito definitivo na disputa pela supremacia dos segundos. Como era antes, quando as notícias levavam meses para chegar e o mundo sobre o qual falavam já tinha inteiro se transmutado, quando as cartas eram sempre um retrato do passado? Agora tudo é agora. E os tempos se confundem de outro modo. Mas se confundem.
Sei que as mães não deveriam morrer e, ao me conectar com o desamparo desta amiga, sonhei com meus mortos. Meu avô sentava-se com minha avó ao redor da mesa da cozinha como antes e como nunca, porque meu avô sabia que minha avó tinha morrido, e eu sabia que meu avô tinha morrido uns 20 anos depois dela. E uma quarta pessoa, desconhecida de todos nós reunidos naquela cozinha, sabia que eu também já tinha morrido, numa outra época que ainda não chegou para mim. Mas comíamos bolinhos de chuva naquela mesa porque compreendíamos que, no curto espaço de existência, neste soluço entre o nascimento e a morte que pertence a cada um de nós, nem os sonhos devem ser desperdiçados. E ali, enquanto eu dormia num quarto de hotel, éramos uma impossibilidade lógica que conversava e que ria.
Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come vivos, como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos documentários da National Geographic. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. Nos espreita do espelho diante do qual escovamos os dentes pela manhã com um braço que pesa uma tonelada. E, quando por um instante nos distraímos, crava seus dentes bem no coração. Neste longo momento depois da perda, sabemos mais dos buracos negros do que os astrônomos, porque carregamos um dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior de sua boca esfomeada, com uma força que não temos, para que não nos sugue de dentro para dentro.
Devagar, bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o vazio vai virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver. Descobrimos que nossos mortos nos habitam, fazem parte de nós, correm em nossas veias fundidos a hemácias e leucócitos. Que suas histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se deixaram em nós. Que, de certo modo, somos muita gente, multidão. Como também nós seremos em muita gente, deixando, em cada um, ecos de diferentes decibéis e intensidades. Acolhemos então aquele que nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E como saudade não poderá mais partir.
Somada, a vida humana é um rio barulhento de memórias correndo num leito feito de tempo. Enquanto outras espécies sabem, sem que ninguém tenha ensinado, que precisam voar para o sul para não sucumbir no inverno ou que devem escalar dezenas de metros de uma árvore em busca da fêmea para se acasalar num momento preciso, nós perpetuamos lembranças. Não é uma intuição prática no sentido ordinário do termo. Mas é tão vital quanto o acasalamento ou a fuga do inverno.
Assim como a natureza tece mil expedientes para perpetuar seus genes, pertençam eles a um chimpanzé ou a uma mosca, nós, cuja diferença evolutiva nos permitiu inventar a cultura e ser na cultura, perpetuamos a vida através da memória. Já que, para nós, não há vida sem a consciência da vida. Transmitimos as histórias, o conhecimento e os sentimentos dos que se foram, tanto como humanidade quanto como indivíduo, como se fossem parte de um DNA imaterial. Do contrário, seria impossível conviver com o privilégio de nossa espécie, a consciência do fim.
Quem não entende isso acha que, quando doamos as roupas e os objetos de quem amamos e se foi ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a perda. Não acredito que exista superação no sentido do esquecimento. O que acontece é que compreendemos que aquela pessoa não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas também não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às vezes anos. Ela agora mora no mundo de dentro, vive como memória nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva de um outro jeito. É o que me ensina João, o homem que divide comigo a aventura arriscada de viver. De luto por sua própria mãe, percebo que a carrega nos olhos quando se maravilha com a novidade do mundo.
Ele me ensina que a vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. A memória fica então pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, seja num dogma, seja numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas, quando os mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de fazer acima e apesar do horror que nos atinge até mesmo em partes que nem sabíamos que existiam.
Quando perdeu a mãe, João compreendeu por completo a poesia que Carlos Drummond de Andrade escreveu para a poeta Ana Cristina Cesar, que se suicidou aos 31 anos, atirando-se pela janela do 13° andar. Ela fala da diferença entre falta e ausência. “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” É isso. A ausência não é falta. Ou, dito de outro modo, a falta nos come vivos. A ausência, por paradoxal que pareça, nos preenche.
Há um filme de extraordinária beleza sobre a perda, a saudade e o lugar dos mortos em nós. Chama-se Hanami — Cerejeiras em Flor*. Se você o encontrar, feche as cortinas, desligue o celular, prepare-se para algo especial. O filme conta a história de um homem que não gosta de sair da rotina em sua viagem mais longa e menos previsível. Ele parte em busca de sua mulher e só a encontra quando descobre que ela está dentro dele, nos gestos dele, no corpo e nos olhos que ele empresta a ela. É um filme sobre a morte que nos leva ao único lugar onde vale a pena chegar: à vida.
Quando sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe pessoal de outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com as melhores intenções, que tudo passa. Acho que, na verdade, nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós, que aqui estamos como matéria, um dia seremos apenas eco. Tanto pelas nossas células, que alimentam e se agregam a outros seres vivos, a partir da decomposição de nosso corpo, quanto pelas histórias, que transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos muitas vezes até o fim da vida. E é este o movimento que importa.
Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora ela ouve, mas não pode escutar. A dor a está comendo viva como as formigas africanas. Tudo é horror e absoluto. Mas com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe dentro dela. E levá-la para passear.
E, num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos.
18 de outubro de 2010

*Hanami — Cerejeiras em flor é dirigido por Doris Dörrie (2007, Alemanha).

Eliane Brum, in A Menina Quebrada

Balada XV

a Carlos Drummond de Andrade

A rosa do amor
perdi-a nas águas.

Manchei meus dedos de luta
naquela haste de espinho.
E no entanto a perdi.
Os tristes me perguntaram
se ela foi vida p’ra mim.
Os doidos nada disseram
pois sabiam que até hoje
os homens
dela jamais se apossaram.

Ficou um resto de queixa
na minha boca oprimida.
Ficou gemido de morte
na mão que a deixou cair.

A rosa do amor
perdi-a nas águas.
Depois me perdi
no coração de amigos.

Hilda Hilst, in Baladas 

Mingau de milho verde e Havaianas azuis

Outro dia, “conversando miolo de pote” lá no quintal da casa de meu compadre Wellington, no meio da roda de conversa alguém disse que nos Estados Unidos existe uma tradição que dá a um condenado à morte o direito de escolher sua última refeição. Pronto, Camila foi logo dizendo que o prato dela seria o pirão do meu tio Popó, Douglas disse que escolheria baião de dois com carne de sol, Roberto disse que pediria caviar com lagostas só pra não morrer sem saber o gosto que tinha, e tome risada, e tome prosa, e eu só conseguia pensar em uma coisa: o mingau de milho verde servido na merenda da Escola Urcesina Moura Cantídio.
Eu me recordo da cena: as merendeiras mexendo a colher de pau nos caldeirões da cozinha da escola, o rádio ligado, parecia até que estavam dançando com o próprio mingau, que era servido quente, pegando fogo, num copo de plástico azul, assim como a colher.
O recreio era às nove da manhã, mas oito e pouco a escola toda já estava cheirosa. Quando tocava o sino, a fila para o paraíso se formava. E aí era nossa vez de dançar a dança do assopra, esfria e come.
Sim, tenho certeza: eu escolheria o mingau da merenda da escola como última refeição.
É incrível como, às vezes sem querer, reviramos nossas lembranças e descobrimos coisas sobre nós que, de certa forma, não sabíamos. Talvez porque nunca tivéssemos tomado a iniciativa de nos perguntar, de conversar mais com as próprias lembranças. Naquela noite, fui banhado por uma enxurrada de lembranças vívidas da Urcesina Moura Cantídio e da Francisco Nonato Freire, ambas escolas públicas de Alto Santo.
O assunto da última refeição se esfarelou, de repente todos já estavam falando de outra coisa, e eu ali, lembrando dos meus tempos de escola e ainda sentindo o gosto do mingau em minha boca.
Mas uma das lembranças mais marcantes dessa época não veio da boca, e sim dos pés. Na sexta série, eu tinha apenas um par de tênis para ir à escola. Certa vez, mamãe lavou esses tênis à noite, mas choveu e eles acabaram não secando. E agora? Vai de chinela.
Como minha chinela já estava bem velhinha, mamãe correu na bodega de Nanam e comprou um par de Havaianas azuis, aquelas mais tradicionais e baratas. Vixe, na época era quase moda ir à escola usando sandálias Kenner ou Opanka, chegar lá de Havaianas era certeza de piada.
Mãe, os meninos vão tudo mangar de mim!
Mangar de você por quê?
Porque isso aqui é chinelo de pobre.
Meu filho, você vai calçar a chinela que eu tenho condições de comprar. Agora, se você quer tanto usar essa tal de Kenner e Opanka, vá pra escola nem que seja de pés descalços, porque filho de pobre, pra ter alguma coisa na vida, tem que estudar.
E lá fui eu, cheio de vergonha. No caminho da escola ficava a casa de Seu João Lima, marido de Dona Cira, que fazia o melhor dindim da cidade. Sempre que eu passava, ele estava na calçada e fazia alguma brincadeira comigo. Aliás, não só comigo, ele brincava com a meninada toda que passava.
Seu João Lima tinha diabetes e, devido a complicações causadas pela doença, um de seus pés já estava quase sem dedos e talvez precisasse ser amputado. Eu nunca tinha prestado muita atenção naquilo. A alegria dele, as brincadeiras, a gaiatice, tiravam toda a atenção do pé doente. Mas nesse dia reparei exatamente no problema e pensei: “Seu João Lima quase perdendo o pé e não está nem aí, e eu aqui com vergonha porque não estou calçando um chinelo da moda.”
Me senti tão burro. Tão ingrato. Tão injusto! Eu deveria sentir orgulho e gratidão a minha mãe pelas Havaianas, e a Deus por, simplesmente, ter os pés para calçá-las.
O tempo passou. Estudei, trabalhei, ganhei dinheiro e ainda não comprei um par de sandálias da Kenner nem da Opanka. Continuo inclusive usando Havaianas tradicionais na cor azul.
Outro dia, postei em minhas redes sociais uma foto em frente ao famoso castelo da Disney em Orlando, EUA. Fui pro parque bem à vontade, exatamente como eu me vestiria pra ir tomar uma cana no bar de Suilo em Alto Santo. E mesmo com toda a beleza do castelo, ao ler os comentários da minha postagem, vi que o que mais chamou a atenção das pessoas foi o fato de eu estar usando Havaianas na Disney.
A maioria dos comentários exaltavam minha humildade. Como se humildade estivesse estampada na parte de fora da gente. E não. Aquele par de Havaianas dizia muito mais a respeito da minha falta de humildade e gratidão quando criança.
Pode parecer coisa de doido, mas, enfim, sou artista, poeta, a doidice faz parte do pacote. Mas faço questão de sempre ter um par de Havaianas tradicionais na cor azul em casa e na mala, pra nunca esquecer a lição que mamãe, João Lima e a escola me ensinaram.
Quando pensar em reclamar da chinela, agradeça por ter os pés.

Bráulio Bessa, in Um carinho na alma

Valorização

Nada disto deve ser valorizado:
I. a transpiração, uma vez que é comum às plantas;
II. a respiração, comum aos animais domesticados e às bestas selvagens;
III. o recebimento de impressões por intermédio das aparências;
IV. ser impulsionado pelo desejo tal como marionetes são impulsionadas pelas cordas;
V. ser reunido em rebanhos;
VI. ser nutrido por alimentos, pois isso significa meramente separar e retirar a porção inútil de nossa comida.
O que, então, vale a pena valorizar? Ser recebido com aplausos?”
Não. Do mesmo jeito, não devemos apreciar o aplauso das línguas, pois o elogio das multidões trata-se disso: línguas aplaudindo.
Supondo que desistiu dessa inutilidade chamada fama, o que de valor resta?”
Na minha perspectiva, isto: mover-se e se restringir conforme a sua própria constituição — fim para o qual todos os esforços e todas as artes conduzem, pois o que foi feito deve se adaptar ao trabalho para o qual foi constituído. O agricultor, que cuida das suas videiras, o adestrador de cavalos e o treinador de cachorros buscam esse fim. A educação e o ensino dos jovens visam algo, e este é seu valor. Se esse for bom, você não buscará mais nada.
Não deixará de valorizar outras coisas? Então não será livre, nem suficiente para sua própria felicidade ou destituído das paixões. Necessariamente, será invejoso, ciumento e desconfiado em relação a quem pode tirar essas coisas de você. Além disso, conspirará contra aqueles que têm o que você valoriza.
Quem aprecia essas coisas se condena a um estado de perturbação e culpa os deuses. Quem honra e reverencia o próprio entendimento está contente consigo mesmo, em harmonia com a sociedade e em concordância com os deuses — louvando tudo o que providenciam e ordenam.

Marco Aurélio, in Meditações

Melim-Meloso (sua apresentação)


Nos tempos que não sei, pode ser até que ele venha ainda a existir. Das Cantigas de Serão, de João Barandão, tão apócrifas, surge, com efeito, uma vez:

Encontrei Melim-Meloso
fazendo ideia dos bois:
o que ele imagina em antes
vira a certeza depois.

Conto-me, muito, quando não seja, a simpática história de Melim-Meloso, filho das serras, intransitivo, deslizado, evadido do azar. Daria diversidade de estória a primeira-mão de suas governanças; e aventura. Eis, assim:

Melim-Meloso
amontado no seu baio:
foi comprar um chapéu novo,
só não gosta de trabalho.

Sombra de verdade, apenas. Ele trabalhava, em termos. E, o que sobre isso afirma, tira-se no bíblico e raia no evangélico: — Trabalho não é vergonha, é só uma maldição... Bismarques, o vendeirão, quis impingir-lhe chapéu antiquíssimo, fora-de-moda, que ninguém comprava. Melim-Meloso renegou dele, só sorrindo; se o regateou, foi com supras de amabilidades. Bismarques veio baixando o preço, até a um quase-nada. Melim-Meloso fechou a compra, botou na cabeça o chapéu — dando-lhe um arranjo — e o objeto se transformou, uma beleza, no se ver. Despeitificado, o Bismarques então abusou de tornar a agravar o preço. Melim-Meloso o refutou, delicado. Por fim, para não desgostar o outro, falou: concorde. Pagou, com uma nota nova, se disse ainda agradecido. Mas, em célere seguida, riu, às claras risadas. O Bismarques, enfiado, remirou a nota: meditou que ela podia ser falsa. Mas já tinha assumido. Com o que, Melim-Meloso logo propôs a humildade de aceitar de volta a nota, desde que com um rebate: que orçava, por acaso, justo no tanto aumentado depois no preço do chapéu. Bismarques se coçou e aprovou. Mas, como o ar de lá se tinha amornado, meio sem-ensejo, Melim-Meloso fez que lembrou, só suave, o talvez: que um copázio de vinho, pelo seguro, era o que tudo bem espairecia. O Bismarques serviu o vinho. Somente no encerrar, foi que viu que o convidador se dava de ser ele mesmo, para a salda das custas. Restou desenxavido; não mal-alegrado de todo. Melim-Meloso ganhara, às vazas, aquele chapéu de príncipe.
Ou, pois:

Melim-Meloso
amontado no pedrês:
foi à missa, chegou tarde,
só desfez o que não fez.

Melim-Meloso
amontado no murzelo:
uma nôiva em Santa-Rita,
outra nôiva no Curvelo.

Melim-Meloso
amontado no alazão:
Veio ver minha senhora,
disto é que eu não gosto, não.

Duvide-se, divirja-se, objete-se. Padre Lausdéo, da Conceição-de-Cima, louvou e premiou Melim-Meloso, naquela domingação. A nôiva de Santa-Rita, Quirulina, era só por uma amizade emprestada. Maria Roméia, a nôiva no Curvelo, a ele ensinava apenas certas formas de ingratidão. E a mulher do Nhô Tampado notava-se como a feia das feias. São estas, aliás, para mais tarde, estórias de encompridar. Melim-Meloso, ipso, de si pouco fornecia:

Diz assim: Melim-Meloso,
não repete o seu dizer.
Perguntei: — coisa com coisa,
não quis nada responder.

Reportava-se: — Sou homem de todas as palavras! Mas gostava de guardar segredos; e aproveitava qualquer silêncio. Do mal que dele se dizia, tenha-se por exagerada, senão de todo inautêntica, à propala, a parla dessa afamação. O herói nunca foi conquistador, vagabundo, impostor, nem cigano exibidor de animais. Corra tanta incertidão por conta dos que tentaram ser inimigos dele: o Cantanha, Reumundo Bode, o Sem-Caráter, Pedro Pubo, o Alcatruz; o Cagamal e José Me-Seja. Melim-Meloso, mesmo, é que nunca foi inimigo de ninguém. Escutem-se, pois, à outra face da lenda, os seus amigos principais: Cristomiro, o Dandrá, José Infância, João Vero, Padrinho Salomão, Seo Tau, o Santelmo, Montalvões e Sosiano:

Melim-Meloso
amontado no quartau:
viaja para as cabeceiras,
procura o rio no vau.

Melim-Meloso
amontado no corcel:
porque é Melim-Meloso,
bebe fel e sente o mel.

Melim-Meloso
amontado no castanho:
O que ganho, nunca perco,
o que perco sempre é ganho…

Diz assim: Melim-Meloso
só quer amar sem sofrer.
Errando sempre, para diante,
um acerta, sem saber.

Diz assim: Melim-Meloso
ouve “não”, sabe que é “sim”:
o sofrer vigia o gozo,
mas o gozo não tem fim.

Resumo. Serra do Sõe, verde em sua neblina, nesse frio fiel, que inclina os pássaros. Serra do Sõe e Serra da Maria-Pinta, que a redobra; serras e pessoas. O fazendeiro Pedro Matias, rico. Tio Lirino, com as sensatas barbas. Elesbão — o estrito boiadeiro. Lá, ressoam distâncias; e a alegria é pouca: é devagarinho, feito um gole. A serra faz saudade de outros lugares. Melim-Meloso possuía somente seus sete cavalos, comprados, um a um, com seus economizados. Seria para ir-se embora, com luxo, com eles. Melim-Meloso tinha pena de não ser órfão também do padrasto, com quem descombinava; porque o padrasto era prático de bronco, na desalegria, não avistava o sutil de viver, principalmente. Vai, um dia, Melim-Meloso não aguentou mais: — Faço de conta que este padrasto não existe, de jeito nenhum... — ele entendeu de obrar, com doçuras. Isto é: não via mais, nem em frente nem em mente, a pessoa existente do padrasto, para bem ou para mal. Procedeu. Aí, o padrasto teve a graça de morrer, subitamente, em paz; mas, deixando dívidas. Melim-Meloso se disse: — A vida são dívidas. A vida são coisas muito compridas. Para pagar esses deveres, teve de negociar seus cavalos, foi dispondo de um por um. Vendia um — chorava (o que seja: no figuradamente), mas com mágoas medidas. Queria mais ir-se embora, lá ele corria o risco de ficar mofino; salvava-o sua incompetência de tristeza. Mas o Elesbão desceu, para o Quipú, com boiada completada. Pedro Matias desceu, num lençol, na vara, carregado, para o cemitério-mor, no Adiante. Tio Lirino desceu com a tropa, tantos lotes de burros: rumo de sertões e ranchos. Melim-Meloso sentiu-se pronto: — Quando vi — adeus! — minha gente, vou de arrieiro — no formal…

Episódios. Mas Melim-Meloso fazia-se muito causador de invejas. Sofrer, até, ele sofria tão garboso, que lho invejavam. Sofria só sorrisos. Vai, pois, por qual-o-quê, quiseram vingar-se dele, disso. Os sujeitos que lhe tinham comprado os cavalos, compareceram na saída, para o afligir, cada qual montado no agora seu. Mas Melim-Meloso se riu, de pôr a cabeça para trás. Conforme pensou, tãoforme lhes falou: — O que vejo, na verdade, é que estes cavalos formosos continuam sendo meus. Por prova, é que vocês tiveram de trazer todos eles, para os meus olhos!
No que se diga, os invejantes não podiam naquilo achar razoável espécie. Mas, orabolas deles. Melim-Meloso pediu: — Me esperem amigos, só um pouquinho... Foi, veio, trouxe uma égua, luzente, quente. Os sete cavalos sendo todos pastores. Relinchou-se! Aí — que Melim-Meloso soltou de embora a égua: aqueles pulavam e escoiceavam, rasgalhando rinchos, mordendo o ar, e assim desembestaram os cavalos equivocados. Jogaram seus cavaleiros no chão. Só ficou em sela o João Vero, no preto. Os outros se estragaram um bocado, até um, o pior, o Cantanha, se machucou o bastante. Melim-Meloso somente sorriu, atencioso. Virou-se para o João Vero, lhe disse: — Você, se vê: que parece mestre cavaleiro! Prazido, com essas, o Vero conseguiu então admirar Melim-Meloso; perguntou: Se ele se ia era por querer uma nôiva, coberta de ouro-e-prata, feito Dona Sancha? Melim-Meloso respondeu: — Não. É para, algum dia, tornar a adquirir, um a um estes cavalos... Com essas, o Vero começou a respeitar a decisão do outro. De repente, se determinou: ofereceu que cedia desde já o preto a Melim-Meloso, para ele pagar indenizado, quando possível... Melim-Meloso, aceitando, gentil, disse: — Você, se vê: que sabe dar, direito, sem prazo de cobrar. Deus dá é assim... Com essas, o Vero também se riu, por fora e por dentro. E Melim-Meloso disse um mais: — Para, em futura ocasião, eu pagar a você a quantia redonda, você me empresta agora o quebrado que falta, para poder logo arredondar... O Vero concedeu.
Melim-Meloso muito se despediu, da terra da Serra, à sua satisfação. Soltou as rédeas para a Vila, ia levar o caminho até lá. Saiu com os pés na aurora, à fanfa, seu nariz bem alumiado. Era sujeito a morrer; por isso, queria antes dar uma vista no mundo, achar a fôrma do seu pé. Sobre o que, o Vero ainda veio com ele, e com a tropa, por um trecho, conversavam prezadamente — o Vero conseguira começar a querer-bem a ele.
E chegou-se, de caminho, na fazenda Atravessada, antes de chegar-se ao próprio fim, que era na Conceição-de-Baixo. Nessa fazenda, reinava, na noite, a furupa de uma grande festa — de casamento ou batizado. Melim-Meloso apeou lá sem espera de agrados, não conhecendo ninguém. Ora vez, ali se deram várias coisas, ele com elas. Porém, são para outra narração; convém que sejam. A vida de Melim-Meloso nunca se acaba. Ao que, na voz das violas, segundo o seguinte:

Conte-se a estória de Melim-Meloso
sempre sem sossego, sempre com repouso,
vivo por inteiro, possuindo amor:
Melim-Meloso, ao vosso dispor…

Guimarães Rosa, in Tutameia

Os últimos dias

Que a terra há de comer.
Mas não coma já.

Ainda se mova,
para o ofício e a posse.

E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.

Sinta frio, calor, cansaço;
pare um momento; continue.

Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.

O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.

Prazer de balanço, prazer de voo.

Prazer de ouvir música;
sobre papel deixar que a mão deslize.

Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.

Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra na chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.

O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.

De ver passar este conto: o vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante,
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito,
e cada folha é uma diferente.

E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.

Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um torso
de mil anos, recebe minha visita, prolonga
para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.

O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da vida ficou mais forte, e os naufrágios
não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas:
que os objetos continuam, e a trepidação incessante
não desfigurou o rosto dos homens;
que somos todos irmãos, insisto.

Em minha falta de recursos para dominar o fim,
entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho da hora, que se vai acumulando século após século
e causa vertigem,
tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.

E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.

A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.
Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?

A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança,
esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida.

Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.

E a matéria se veja acabar: adeus, composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, ideia
de justiça, revolta e sono, adeus,
vida aos outros legada.

Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo

Hemisférios

Há três dias eu estava em Lisboa.
Lá, fevereiro é mês de esticar as meias de lã até os joelhos e colocar os braços para fora da janela, tentando concluir se o casaco pode ser curto ou se é melhor ser longo, tendo em vista meu termômetro eternamente tropical. É mês para contar quanto tempo falta para o frio se afastar, permitindo que os braços e as pernas voltem a ver as ruas.
Mas cai a noite em fevereiro e os cheiros são bons. O cheiro da sopa que depois de tantos anos tornou-se bem-vinda, o cheiro do vinho tinto que desde que se tornou permitido sempre foi tão bem-vindo e o cheiro do cabelo da miúda, tão curiosamente bem-vinda, no beijo roubado de boa-noite.
O pouco que verdadeiramente aquece vem dele: braços seguros e xícaras de chá. É frio demais e é bom por ser exatamente assim.
Há dois dias estou em São Paulo.
Aqui, fevereiro é mês no qual não se abre a gaveta das meias. Mês de abrir a janela e olhar para o céu, tentando concluir se dá para sair às 14h ou se é melhor esperar até o sol baixar às 16h. É mês para se perguntar quando chegará uma trégua, um vento fresco, uma chance de comer massa com molho branco.
Mas a noite cai em fevereiro e os cheiros são bons. O cheiro da chuva de verão, tão assustadora quanto bem-vinda, o cheiro do repelente de mosquitos, que é cheiro de infância e de férias, cuja memória se sobrepõe à dos insetos, tão pouco bem-vindos. O cheiro do suor no pescoço das sobrinhas, da grande e da pequena, invariavelmente bem-vindas.
O pouco que refresca vem deles: meu pai se aproximando com copos de cerveja, minha mãe se aproximando com estrelas de carambola. É quente demais e é bom por ser exatamente assim.
Deve ser isso que chamam de sorte.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

O chalé da praça Quinze

O chalé fazia parte da gente. Me lembro do Bilu, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio, o longo bico mergulhado — não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chope, que era de fato o que estava acontecendo —, mas no poço artesiano de si mesmo.
Me lembro do Reynaldo, redondo, pacato, amável, tão amável, pacato e redondo que parecia um desses personagens de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala.
Me lembro do Cavalcanti, com a sua cara silenciosa e receptiva de mata-borrão.
Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso inesquecível de Valéry: “Oh mon bon compagnon de silence!”
Este silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isto não perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos... Pois havia um profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a todas as nossas palavras.
Era o rio da poesia?
O rio da harmoniosa confusão das almas?
Agora é apenas o rio do tempo que passou.

Mário Quintana, in Caderno H

Capítulo quinze | O sonho

Mais e mais me assemelho ao caranguejo: olhos fora do colpo, vou sonhando de lado hesitante entre duas almas: a da água e a da terra.
Curozero Muando –

Eis o que sonhei: que o coveiro Curozero Muando tinha escavado em terras fora do cemitério, longe da vila. Procurara as mais distantes paragens, nas bermas das lagoas, nos outeiros de Zipene, nos vales de Xitulundo. Em todos os lugares sucedia o mesmo: não era possível penetrar no solo. Tentou-se mesmo até. na secreta sombra de Ximhambanine, a sagrada floresta dos anciãos. O coveiro desabara, joelhos na areia: os deuses nos acudissem e amolecessem o chão. Mas nem reza nem lamento resultaram. Invariavelmente, a pá chocava com um duro manto de pedra. Era como se, em todo o lado, a terra inteira tivesse fechado.
Chegaram amigos da cidade e disseram-me que o mesmo fenômeno estava ocorrendo noutros lugares. Em todo o país, a terra negava abrir o seu ventre aos humanos desígnios. Enviei mensagem para o exterior. E o mesmo se passava também por lá. Em todos os continentes o chão endurecera, intransponível. O assunto tornara-se uma catástrofe de proporções mundiais. Não era apenas a impossibilidade de enterrar os cadáveres. A agricultura paralisara. Os trabalhos de construção, as minas, as dragagens nos portos, tudo estava parado.
Dirigentes internacionais procuravam apressadamente explicações, cientistas de reputação pesquisavam motivos, multiplicavam-se comissões, viagens e expedições. Ninguém fazia ideia que a raiz de tão grave desequilíbrio se localizava, afinal, na nossa pequena Ilha. Ninguém sabia que tudo começara na pessoa do Avô Mariano.
No sonho, eu regressava ao cemitério. Não encontrava o coveiro Curozero. Mas lá estava a sua irmã, Nyembeti, mais convidativa que nunca, trajando a movediça capulana que mostrava mais que cobria.
Instigando-me com gestos e assobios a moça me conduziu para um local que só ela conhecia, no sopé de um monte. Escolheu entre fragas e cavernas e se meteu por um esconso recanto. Ali onde a luz mal chegava, ela se deitou na terra escura e me chamou. Era uma gruta sombria e o cheiro me era familiar. Hesitei antes de me estender no chão. Me fazia temor o não ver onde me pendia.
Deite-se em cima de mim! Afinal, Nyembeti falava? E falava português? Meu corpo cobriu o dela, os braços me suportaram para não pesar sobre ela. Mas ela me puxou os pulsos e levou as minhas mãos a que lhe cobrissem os seios. E depois visitassem o seu corpo, seus húmidos segredos. Ali no escuro fizemos amor. Nossos gemidos se amplificavam, ecoando nos redondos da caverna. No final, uma ave se soltou do tecto, esbranquiçando as penumbras.
Só quando me recompunha, arfante, é que reparei: aquele cheiro da gruta era o mesmo do quarto de arrumos. E o gosto daquela mulher, a voz, o perfume, tudo era o mesmo. Podia Nyembeti ter estado naquele dia em Nyumba-Kaya? Podia ser ela a incógnita amante que antes me assaltara? – Se admira de eu falar português? Me espantava ela falar. Mas a moça explicou: queria escapar aos vários Ultímios que lhe apareciam, com ares citadinos. Se fazia assim, tonta e indígena, para os afastar de intentos.
Com você posso falar qualquer língua. E mesmo em nenhuma língua.
Beijámo-nos. De novo, me veio a sensação de regressar ao escuro do quarto de arrumos. O braço dela me afasta, com doçura mas sem vacilar.
Agora, venha comigo. Eu trouxe-lhe aqui para lhe mostrar.
As mãos, em concha, escavaram a terra. E o assombro me catapultou o peito. O solo ali era fofo, minhocável, esfarelento. Nyembeti descobrira onde se podia cavar a sepultura do Avô.
Como é que você encontrou este lugar? Mas ela negou. Os lugares não se encontram, constroem-se. A diferença daquele chão não estava na geografia. Apontou para nós dois e embrulhou as mãos para, em seguida, as levar ao coração. Ela queria dizer que a terra ficou assim porque nela nos amáramos? Seria o amor que reparara a terra? Fazer do chão um leito nupcial, seria isso que amoleceria a terra e nos punha de bem com a nossa mais antiga morada? Talvez. Talvez fosse tudo tão simples como o lençol do velho Mariano, esse onde ele agora repousa. É esse lençol, quem sabe, com todos os cheiros de antigos amores, é esse lençol que vai prendendo o velho à vida.
Nyembeti me olhou, curiosa de me ver ausente. Sorriu e com um gesto sugeriu que eu regressasse à vila. Ela ficaria na gruta. Ainda me dirigiu um pedido, à despedida: – Sei que você irá para a cidade. Mas quando voltar deve trazer-me uma prenda de lembrança.
Estranho o que ela queria que eu trouxesse: saliva de cobra, cuspo de lagarto. Ou antes, caso eu pudesse: seivas de arbusto maligno, gosma de cacto. Qualquer coisa desde que fosse da ordem dos venenos, das mortais peçonhas que certos bichos e plantas confeccionam em seus interiores infernos. Isso eu sonhei, naquela noite quente.
Manhã cedo me ergo e vou à deriva. Preciso separar-me das visões do sonho anterior. Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreara os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas, esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra.
Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão.
As cabras me atiram para lembranças antigas. E o rosto de Mariavilhosa, minha doce mãe, vai neblinando o meu olhar. Porque naquelas pastagens muitas vezes aquele rosto me visitara proéurando refúgio em minha pequena alma. Minha mãe tinha engravidado, antes de mim. Mas alguma coisa não correra bem. Diz-se que abortara, mas a história se distorcia no tempo. O médico, sempre o mesmo Mascarenha, tinha assegurado que Dona Mariavilhosa jamais poderia voltar a conceber. A medicina se engana e eu sou prova viva disso. Depois de mim, a mãe ainda voltou a engravidar. Mas a velha profecia desta vez se confirmou. Aquele meu irmãozito, dentro do ventre dela, não se abraçara à vida. Para Mariavilhosa aquilo foi motivo de loucura. Podia ser estranho, mas o parto – chamemos parto àquele acto vazio – se deu na noite da Independência. Naquela noite, enquanto a vila celebrava o deflagrar de todo o futuro, minha mãe morria de um passado: o corpo frio daquele que seria o seu último filho. Meu pai me levou para dentro de casa enquanto Mariavilhosa, com o recém-falecido ao colo, se arrastou pelo pátio. Ainda a vimos erguer o corpo do bebé para o apresentar à lua nova. Como se faz com os meninos recém-nascidos. Meu pai lhe entregou um pedaço de lenha ardendo. E ela atirou o tição para a lua enquanto gritava: – Leva-o, lua, leva o teu marido! Aquele fogo riscando o escuro me ficou gravado como se fosse um astro subindo alto para depois tombar em mil cadências de luzes. Anos mais tarde, já minha mãe falecida, eu olhava a lua enquanto pastoreava no escuro e via Mariavilhosa com o menino em suas costas. E escutava o seu pranto aflito, aferroado pela fome. Então eu acorria à fogueira e apagava o lume. Matando o fogo eu me expunha aos bichos e ao frio. Mas isso não tinha importância. Eram as trevas que eu necessitava. Só no escuro minha mãe encontrava conforto e guarida. Nesse recanto ela calava meu falecido irmão, esse que, por nunca ter vivido, não haveria nunca de morrer.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra 

Gente

tem gente que nunca andou de bicicleta
mas sabe pedalar a sua vida
tem gente quem fuma cigarro e morre de câncer
antes de quem fuma maconha
tem gente que diz bom dia
e do nada morre à tarde
tem gente que nunca foi ao cinema
e sua vida virou filme
tem gente que compra carros novos
e morre atropelado
tem gente que pensa que é moderna
e é primata até dizer bosta
tem gente que se falta luz
nem um candeeiro acende

tem gente que nem o poste suporta

tem gente que no bar fala demais
e esquece de pagar a conta
tem gente que nem a conta paga

e os dinossauros nunca souberam
que o homem existiu.

Miró da Muribeca, in O penúltimo olhar sobre as coisas

Mitologias

O Olimpo andava muito chato e Zeus murmurou:
Tá faltando mulher no pedaço.
Resolveu criar a secretária gostosa. Pandora. Cada um dos deuses contribuiu pra vaquinha de atributos. O dom da persuasão foi presente de Hermes. Afrodite brindou-a com a beleza. Apoio dotou-a para a música. João Araújo arrumou um contrato na Som Livre e Marta Rocha cedeu-lhe as famosas polegadas a mais nos quadris. Pandora foi dada a Epimeteu. Um dia, Epimeteu chegou de porre do Lamas. Pandora, tentando descolar algum pro cabeleireiro, vasculhou o bolso da bermuda do cara e encontrou um lenço manchado de baton, ingressos pro circo Orlando Orfei e uma caixa. Desconfiada de que Epimeteu estivesse metendo o epi na xavasca alheia, Pandora abriu a tal caixa. Deve ser camisinha, pensou. Acontece que a caixa continha os males, os crimes, as pragas e os votos que reelegeram Antonio Carlos Magalhães. Essas merdas escaparam da caixa e se espalharam pelo mundo. Só a Esperança ficou no fundo da caixa. Louca de raiva, Pandora berrou:
Não banca a sonsa pra cima de moá, piranha.
E enfiou os tamancos nos cornos da pobrezinha até matar. Daí vieram as expressões “matou a pau” e “a Esperança é a última que morre”. Epimeteu passou a viver de bar em bar, sempre resmungando: “Vivi séculos com aquela pilantra c não saquei a peste que era”. Por isso é que Epimeteu, em grego, significa mais ou menos “o que reflete demasiado tarde”, ou, no jargão carioca, “aquele babaca”.

Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo