terça-feira, 28 de fevereiro de 2023
Os perigos
O
que fez o sol e a lua avisou aos taínos que tomassem cuidado com os
mortos.
Durante
o dia os mortos se escondiam e comiam goiaba, mas pelas noites saíam
a passear e desafiavam os vivos. Os mortos ofereciam combates e as
mortas, amores. Na luta, desapareciam quando queriam; e no melhor do
amor ficava o amante sem nada entre os braços. Antes de aceitar a
luta contra um homem ou deitar-se junto a uma mulher, era preciso
roçar-lhe o ventre com a mão, porque os mortos não têm umbigo.
O
dono do céu também avisou aos taínos que tomassem muito mais
cuidado ainda com gente vestida.
O
chefe Cáicihu jejuou uma semana e foi digno de sua voz: Breve será
o gozo da vida, anunciou o invisível, o que tem mãe mas não tem
princípio: Os homens vestidos chegarão, dominarão e matarão.
Eduardo Galeano, in Os Nascimentos
Balanço | Dia 5 de janeiro de 2009
Valeu
a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas
críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Isso
esperava? Satisfeito com o trabalho? Responder “sim” a todas
estas perguntas, ou mesmo a só alguma delas, seria a demonstração
clara de uma cegueira mental sem desculpa. E responder com um “não”
sem excepções, que poderia ser? Excesso de modéstia? De
resignação? Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana
não passa de uma pálida sombra da obra antes sonhada? Conta-se que
Miguel Ângelo, quando terminou o Moisés que se encontra em Roma, na
Igreja de San Pietro in Vincoli, deu uma martelada no joelho da
estátua e gritou: “Fala!”. Não será preciso dizer que Moisés
não falou. Moisés nunca fala. Também o que neste lugar se escreveu
ao longo dos últimos meses não contém mais palavras nem mais
eloquentes que as que puderam ser escritas, precisamente essas a quem
o autor gostaria de pedir, apenas murmurando, “Falem, por favor,
digam-me o que são, para que serviram, se para algo foi”. Calam,
não respondem. Que fazer, então? Interrogar as palavras é o
destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois
seja, já sabemos que Moisés não responderá.
José Saramago, in O caderno
Pérola negra | Luiz Melodia, 1972
Cartão
de visita explosivo de um compositor até então inédito, “Pérola
negra” foi apresentada ao mundo durante a temporada de Fa-tal:
Gal a todo vapor, no Rio de Janeiro. O revolucionário show
dirigido por Waly Salomão (ou Sailormoon, como assinava na época o
poeta) estreou em novembro de 1971, no Teatro Tereza Raquel, e logo
virou um disco duplo que, quatro décadas depois, continua como um
dos melhores e mais influentes de Gal Costa. Entre canções de
Caetano, Novos Baianos, Macalé & Waly, Roberto & Erasmo e
sambas antológicos de Ismael Silva e Geraldo Pereira, chamou a
atenção aquele blues pesado e pungente, digno de uma Billie
Holiday, do desconhecido Luiz Melodia, que se transformou num dos
hinos do verão louco de 1972. Um sucesso que viraria clássico para
qualquer estação e revelaria um de nossos compositores mais
originais.
Descoberto
por Waly, o artista plástico Hélio Oiticica e o cineasta
underground Ivan Cardoso em suas andanças pelas periferias cariocas,
Melodia (1951) era um jovem negro do morro de São Carlos, junto ao
bairro do Estácio, que cresceu ouvindo tanto o samba quanto a Jovem
Guarda, tanto o forró quanto o rock, o blues e o soul. “Pérola
negra” é fruto dessa formação sem preconceitos nem limites, e
abriu as portas da indústria do disco para o extraordinário cantor
e compositor inspirado, que, ainda em 1972, emplacou na voz de Maria
Bethânia outra balada arrasadora, “Estácio, Holly Estácio”.
A
bela gravação de Gal foi um perfeito lançamento, mas “Pérola
negra” ganhou sua versão definitiva como canção-título do disco
de estreia de Melodia, em 1973. Em vez da roupagem roqueira de Gal
(arranjo do tropicalista Lanny Gordin, mas com a guitarra nas mãos
de Pepeu Gomes, que o substituiu no show), na versão do autor a
música ganhou uma embalagem luxuosa jazzy & bluesy em
clima de big band. Um tratamento mais lírico, centrado na voz
rascante e aveludada de Melodia, no piano de Antonio Perna, no baixo
de Rubão Sabino e no fraseado dos sopros. A letra é uma cantada
meio desesperada do compositor tentando seduzir sua musa, que chama
de “Pérola negra”, inspirado pelo nome de guerra de um travesti
do morro de São Carlos.
Na
verdade, a pérola negra da música brasileira é Luiz Melodia.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
Capítulo 47 | O Recluso
Marcela,
Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes, como
se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de ser da
minha afeição anterior. Pena de maus costumes, ata uma gravata ao
teu estilo, veste-lhe um colete menos sórdido; e depois sim, depois
vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me embalou a
melhor parte dos anos que decorreram desde o inventário de meu pai
até 1842.
Vem;
se te cheirar a algum aroma de toucador, não cuides que o mandei
derramar para meu regalo; é um vestígio da N. ou da Z. ou da U. –
que todas essas letras maiúsculas embalaram aí a sua elegante
abjeção. Mas, se além do aroma, quiseres outra coisa, fica-te com
o desejo, porque eu não guardei retratos, nem cartas, nem memórias;
a mesma comoção esvaiu-se e só me ficaram as letras iniciais.
Vivi
meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou
palestra, mas a mor parte do tempo passei-a comigo mesmo. Vivia;
deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora
buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo. Escrevia
política e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as folhas
públicas e cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de
poeta. Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de
Virgília, futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria
melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, – eu, que
valia mais, muito mais do que ele, – e dizia isto a olhar para a
ponta do nariz…
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
As mães não deveriam morrer
Uma
amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail,
agora que a internet deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também
aqui, neste lugar sem distância que é o mundo virtual, mas onde o
tempo é mais veloz e uma hora pode ser um pretérito definitivo na
disputa pela supremacia dos segundos. Como era antes, quando as
notícias levavam meses para chegar e o mundo sobre o qual falavam já
tinha inteiro se transmutado, quando as cartas eram sempre um retrato
do passado? Agora tudo é agora. E os tempos se confundem de outro
modo. Mas se confundem.
Sei
que as mães não deveriam morrer e, ao me conectar com o desamparo
desta amiga, sonhei com meus mortos. Meu avô sentava-se com minha
avó ao redor da mesa da cozinha como antes e como nunca, porque meu
avô sabia que minha avó tinha morrido, e eu sabia que meu avô
tinha morrido uns 20 anos depois dela. E uma quarta pessoa,
desconhecida de todos nós reunidos naquela cozinha, sabia que eu
também já tinha morrido, numa outra época que ainda não chegou
para mim. Mas comíamos bolinhos de chuva naquela mesa porque
compreendíamos que, no curto espaço de existência, neste soluço
entre o nascimento e a morte que pertence a cada um de nós, nem os
sonhos devem ser desperdiçados. E ali, enquanto eu dormia num quarto
de hotel, éramos uma impossibilidade lógica que conversava e que
ria.
Quando
perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come
vivos, como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos
documentários da National Geographic. A dor está lá quando
acordamos. Continua lá quando respiramos. Nos espreita do espelho
diante do qual escovamos os dentes pela manhã com um braço que pesa
uma tonelada. E, quando por um instante nos distraímos, crava seus
dentes bem no coração. Neste longo momento depois da perda, sabemos
mais dos buracos negros do que os astrônomos, porque carregamos um
dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior de sua boca
esfomeada, com uma força que não temos, para que não nos sugue de
dentro para dentro.
Devagar,
bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o
vazio vai virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver.
Descobrimos que nossos mortos nos habitam, fazem parte de nós,
correm em nossas veias fundidos a hemácias e leucócitos. Que suas
histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se
deixaram em nós. Que, de certo modo, somos muita gente, multidão.
Como também nós seremos em muita gente, deixando, em cada um, ecos
de diferentes decibéis e intensidades. Acolhemos então aquele que
nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E
como saudade não poderá mais partir.
Somada,
a vida humana é um rio barulhento de memórias correndo num leito
feito de tempo. Enquanto outras espécies sabem, sem que ninguém
tenha ensinado, que precisam voar para o sul para não sucumbir no
inverno ou que devem escalar dezenas de metros de uma árvore em
busca da fêmea para se acasalar num momento preciso, nós
perpetuamos lembranças. Não é uma intuição prática no sentido
ordinário do termo. Mas é tão vital quanto o acasalamento ou a
fuga do inverno.
Assim
como a natureza tece mil expedientes para perpetuar seus genes,
pertençam eles a um chimpanzé ou a uma mosca, nós, cuja diferença
evolutiva nos permitiu inventar a cultura e ser na cultura,
perpetuamos a vida através da memória. Já que, para nós, não há
vida sem a consciência da vida. Transmitimos as histórias, o
conhecimento e os sentimentos dos que se foram, tanto como humanidade
quanto como indivíduo, como se fossem parte de um DNA imaterial. Do
contrário, seria impossível conviver com o privilégio de nossa
espécie, a consciência do fim.
Quem
não entende isso acha que, quando doamos as roupas e os objetos de
quem amamos e se foi ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a
perda. Não acredito que exista superação no sentido do
esquecimento. O que acontece é que compreendemos que aquela pessoa
não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas
também não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às
vezes anos. Ela agora mora no mundo de dentro, vive como memória
nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva de um outro
jeito. É o que me ensina João, o homem que divide comigo a aventura
arriscada de viver. De luto por sua própria mãe, percebo que a
carrega nos olhos quando se maravilha com a novidade do mundo.
Ele
me ensina que a vida dos mortos em nós não é possessão nem
fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um
lugar vivo para o morto. A memória fica então pregada naquele
momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência
não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém,
pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um
lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, seja num dogma, seja
numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas, quando os
mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver
de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é
movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida
ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não
pode haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de
fazer acima e apesar do horror que nos atinge até mesmo em partes
que nem sabíamos que existiam.
Quando
perdeu a mãe, João compreendeu por completo a poesia que Carlos
Drummond de Andrade escreveu para a poeta Ana Cristina Cesar, que se
suicidou aos 31 anos, atirando-se pela janela do 13° andar. Ela fala
da diferença entre falta e ausência. “Por muito tempo achei que a
ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a
lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio
e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa
ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” É isso. A
ausência não é falta. Ou, dito de outro modo, a falta nos come
vivos. A ausência, por paradoxal que pareça, nos preenche.
Há
um filme de extraordinária beleza sobre a perda, a saudade e o lugar
dos mortos em nós. Chama-se Hanami — Cerejeiras em Flor*.
Se você o encontrar, feche as cortinas, desligue o celular,
prepare-se para algo especial. O filme conta a história de um homem
que não gosta de sair da rotina em sua viagem mais longa e menos
previsível. Ele parte em busca de sua mulher e só a encontra quando
descobre que ela está dentro dele, nos gestos dele, no corpo e nos
olhos que ele empresta a ela. É um filme sobre a morte que nos leva
ao único lugar onde vale a pena chegar: à vida.
Quando
sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe
pessoal de outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com
as melhores intenções, que tudo passa. Acho que, na verdade, nada
passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós, que
aqui estamos como matéria, um dia seremos apenas eco. Tanto pelas
nossas células, que alimentam e se agregam a outros seres vivos, a
partir da decomposição de nosso corpo, quanto pelas histórias, que
transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui ontem já
mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na
pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente
a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me
alargaram. De certo modo, nascemos e morremos muitas vezes até o fim
da vida. E é este o movimento que importa.
Queria
dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora ela ouve,
mas não pode escutar. A dor a está comendo viva como as formigas
africanas. Tudo é horror e absoluto. Mas com o tempo, um período só
dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém,
minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência
presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça
quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas
histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se
perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe
dentro dela. E levá-la para passear.
E,
num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos
de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na
vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos.
18
de outubro de 2010
*Hanami
— Cerejeiras em flor é dirigido por Doris Dörrie (2007,
Alemanha).
Eliane Brum, in A Menina Quebrada
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023
Balada XV
a
Carlos Drummond de Andrade
A rosa do amor
perdi-a nas águas.
Manchei meus dedos de luta
naquela haste de espinho.
E no entanto a perdi.
Os tristes me perguntaram
se ela foi vida p’ra mim.
Os doidos nada disseram
pois sabiam que até hoje
os homens
dela jamais se apossaram.
Ficou um resto de queixa
na minha boca oprimida.
Ficou gemido de morte
na mão que a deixou cair.
A rosa do amor
perdi-a nas águas.
Depois me perdi
no coração de amigos.
A rosa do amor
perdi-a nas águas.
Manchei meus dedos de luta
naquela haste de espinho.
E no entanto a perdi.
Os tristes me perguntaram
se ela foi vida p’ra mim.
Os doidos nada disseram
pois sabiam que até hoje
os homens
dela jamais se apossaram.
Ficou um resto de queixa
na minha boca oprimida.
Ficou gemido de morte
na mão que a deixou cair.
A rosa do amor
perdi-a nas águas.
Depois me perdi
no coração de amigos.
Hilda Hilst, in Baladas
Mingau de milho verde e Havaianas azuis
Outro
dia, “conversando miolo de pote” lá no quintal da casa de meu
compadre Wellington, no meio da roda de conversa alguém disse que
nos Estados Unidos existe uma tradição que dá a um condenado à
morte o direito de escolher sua última refeição. Pronto, Camila
foi logo dizendo que o prato dela seria o pirão do meu tio Popó,
Douglas disse que escolheria baião de dois com carne de sol, Roberto
disse que pediria caviar com lagostas só pra não morrer sem saber o
gosto que tinha, e tome risada, e tome prosa, e eu só conseguia
pensar em uma coisa: o mingau de milho verde servido na merenda da
Escola Urcesina Moura Cantídio.
Eu
me recordo da cena: as merendeiras mexendo a colher de pau nos
caldeirões da cozinha da escola, o rádio ligado, parecia até que
estavam dançando com o próprio mingau, que era servido quente,
pegando fogo, num copo de plástico azul, assim como a colher.
O
recreio era às nove da manhã, mas oito e pouco a escola toda já
estava cheirosa. Quando tocava o sino, a fila para o paraíso se
formava. E aí era nossa vez de dançar a dança do assopra, esfria e
come.
Sim,
tenho certeza: eu escolheria o mingau da merenda da escola como
última refeição.
É
incrível como, às vezes sem querer, reviramos nossas lembranças e
descobrimos coisas sobre nós que, de certa forma, não sabíamos.
Talvez porque nunca tivéssemos tomado a iniciativa de nos perguntar,
de conversar mais com as próprias lembranças. Naquela noite, fui
banhado por uma enxurrada de lembranças vívidas da Urcesina Moura
Cantídio e da Francisco Nonato Freire, ambas escolas públicas de
Alto Santo.
O
assunto da última refeição se esfarelou, de repente todos já
estavam falando de outra coisa, e eu ali, lembrando dos meus tempos
de escola e ainda sentindo o gosto do mingau em minha boca.
Mas
uma das lembranças mais marcantes dessa época não veio da boca, e
sim dos pés. Na sexta série, eu tinha apenas um par de tênis para
ir à escola. Certa vez, mamãe lavou esses tênis à noite, mas
choveu e eles acabaram não secando. E agora? Vai de chinela.
Como
minha chinela já estava bem velhinha, mamãe correu na bodega de
Nanam e comprou um par de Havaianas azuis, aquelas mais tradicionais
e baratas. Vixe, na época era quase moda ir à escola usando
sandálias Kenner ou Opanka, chegar lá de Havaianas era certeza de
piada.
– Mãe,
os meninos vão tudo mangar de mim!
– Mangar
de você por quê?
– Porque
isso aqui é chinelo de pobre.
– Meu
filho, você vai calçar a chinela que eu tenho condições de
comprar. Agora, se você quer tanto usar essa tal de Kenner e Opanka,
vá pra escola nem que seja de pés descalços, porque filho de
pobre, pra ter alguma coisa na vida, tem que estudar.
E
lá fui eu, cheio de vergonha. No caminho da escola ficava a casa de
Seu João Lima, marido de Dona Cira, que fazia o melhor dindim da
cidade. Sempre que eu passava, ele estava na calçada e fazia alguma
brincadeira comigo. Aliás, não só comigo, ele brincava com a
meninada toda que passava.
Seu
João Lima tinha diabetes e, devido a complicações causadas pela
doença, um de seus pés já estava quase sem dedos e talvez
precisasse ser amputado. Eu nunca tinha prestado muita atenção
naquilo. A alegria dele, as brincadeiras, a gaiatice, tiravam toda a
atenção do pé doente. Mas nesse dia reparei exatamente no problema
e pensei: “Seu João Lima quase perdendo o pé e não está nem aí,
e eu aqui com vergonha porque não estou calçando um chinelo da
moda.”
Me
senti tão burro. Tão ingrato. Tão injusto! Eu deveria sentir
orgulho e gratidão a minha mãe pelas Havaianas, e a Deus por,
simplesmente, ter os pés para calçá-las.
O
tempo passou. Estudei, trabalhei, ganhei dinheiro e ainda não
comprei um par de sandálias da Kenner nem da Opanka. Continuo
inclusive usando Havaianas tradicionais na cor azul.
Outro
dia, postei em minhas redes sociais uma foto em frente ao famoso
castelo da Disney em Orlando, EUA. Fui pro parque bem à vontade,
exatamente como eu me vestiria pra ir tomar uma cana no bar de Suilo
em Alto Santo. E mesmo com toda a beleza do castelo, ao ler os
comentários da minha postagem, vi que o que mais chamou a atenção
das pessoas foi o fato de eu estar usando Havaianas na Disney.
A
maioria dos comentários exaltavam minha humildade. Como se humildade
estivesse estampada na parte de fora da gente. E não. Aquele par de
Havaianas dizia muito mais a respeito da minha falta de humildade e
gratidão quando criança.
Pode
parecer coisa de doido, mas, enfim, sou artista, poeta, a doidice faz
parte do pacote. Mas faço questão de sempre ter um par de Havaianas
tradicionais na cor azul em casa e na mala, pra nunca esquecer a
lição que mamãe, João Lima e a escola me ensinaram.
Quando
pensar em reclamar da chinela, agradeça por ter os pés.
Bráulio Bessa, in Um carinho na alma
Valorização
Nada
disto deve ser valorizado:
I.
a transpiração, uma vez que é comum às plantas;
II.
a respiração, comum aos animais domesticados e às bestas
selvagens;
III.
o recebimento de impressões por intermédio das aparências;
IV.
ser impulsionado pelo desejo tal como marionetes são impulsionadas
pelas cordas;
V.
ser reunido em rebanhos;
VI.
ser nutrido por alimentos, pois isso significa meramente separar e
retirar a porção inútil de nossa comida.
“O
que, então, vale a pena valorizar? Ser recebido com aplausos?”
Não.
Do mesmo jeito, não devemos apreciar o aplauso das línguas, pois o
elogio das multidões trata-se disso: línguas aplaudindo.
“Supondo
que desistiu dessa inutilidade chamada fama, o que de valor resta?”
Na
minha perspectiva, isto: mover-se e se restringir conforme a sua
própria constituição — fim para o qual todos os esforços e
todas as artes conduzem, pois o que foi feito deve se adaptar ao
trabalho para o qual foi constituído. O agricultor, que cuida das
suas videiras, o adestrador de cavalos e o treinador de cachorros
buscam esse fim. A educação e o ensino dos jovens visam algo, e
este é seu valor. Se esse for bom, você não buscará mais nada.
Não
deixará de valorizar outras coisas? Então não será livre, nem
suficiente para sua própria felicidade ou destituído das paixões.
Necessariamente, será invejoso, ciumento e desconfiado em relação
a quem pode tirar essas coisas de você. Além disso, conspirará
contra aqueles que têm o que você valoriza.
Quem
aprecia essas coisas se condena a um estado de perturbação e culpa
os deuses. Quem honra e reverencia o próprio entendimento está
contente consigo mesmo, em harmonia com a sociedade e em concordância
com os deuses — louvando tudo o que providenciam e ordenam.
Marco Aurélio, in Meditações
Melim-Meloso (sua apresentação)
Nos
tempos que não sei, pode ser até que ele venha ainda a existir. Das
Cantigas de Serão, de João Barandão, tão apócrifas, surge, com
efeito, uma vez:
Encontrei
Melim-Meloso
fazendo
ideia dos bois:
o
que ele imagina em antes
vira
a certeza depois.
Conto-me,
muito, quando não seja, a simpática história de Melim-Meloso,
filho das serras, intransitivo, deslizado, evadido do azar. Daria
diversidade de estória a primeira-mão de suas governanças; e
aventura. Eis, assim:
Melim-Meloso
amontado
no seu baio:
foi
comprar um chapéu novo,
só
não gosta de trabalho.
Sombra
de verdade, apenas. Ele trabalhava, em termos. E, o que sobre isso
afirma, tira-se no bíblico e raia no evangélico: — Trabalho
não é vergonha, é só uma maldição... Bismarques, o
vendeirão, quis impingir-lhe chapéu antiquíssimo, fora-de-moda,
que ninguém comprava. Melim-Meloso renegou dele, só sorrindo; se o
regateou, foi com supras de amabilidades. Bismarques veio baixando o
preço, até a um quase-nada. Melim-Meloso fechou a compra, botou na
cabeça o chapéu — dando-lhe um arranjo — e o objeto se
transformou, uma beleza, no se ver. Despeitificado, o Bismarques
então abusou de tornar a agravar o preço. Melim-Meloso o refutou,
delicado. Por fim, para não desgostar o outro, falou: concorde.
Pagou, com uma nota nova, se disse ainda agradecido. Mas, em célere
seguida, riu, às claras risadas. O Bismarques, enfiado, remirou a
nota: meditou que ela podia ser falsa. Mas já tinha assumido. Com o
que, Melim-Meloso logo propôs a humildade de aceitar de volta a
nota, desde que com um rebate: que orçava, por acaso, justo no tanto
aumentado depois no preço do chapéu. Bismarques se coçou e
aprovou. Mas, como o ar de lá se tinha amornado, meio sem-ensejo,
Melim-Meloso fez que lembrou, só suave, o talvez: que um copázio de
vinho, pelo seguro, era o que tudo bem espairecia. O Bismarques
serviu o vinho. Somente no encerrar, foi que viu que o convidador se
dava de ser ele mesmo, para a salda das custas. Restou desenxavido;
não mal-alegrado de todo. Melim-Meloso ganhara, às vazas, aquele
chapéu de príncipe.
Ou,
pois:
Melim-Meloso
amontado
no pedrês:
foi
à missa, chegou tarde,
só
desfez o que não fez.
Melim-Meloso
amontado
no murzelo:
uma
nôiva em Santa-Rita,
outra
nôiva no Curvelo.
Melim-Meloso
amontado
no alazão:
— Veio
ver minha senhora,
disto
é que eu não gosto, não.
Duvide-se,
divirja-se, objete-se. Padre Lausdéo, da Conceição-de-Cima, louvou
e premiou Melim-Meloso, naquela domingação. A nôiva de Santa-Rita,
Quirulina, era só por uma amizade emprestada. Maria Roméia, a nôiva
no Curvelo, a ele ensinava apenas certas formas de ingratidão. E a
mulher do Nhô Tampado notava-se como a feia das feias. São estas,
aliás, para mais tarde, estórias de encompridar. Melim-Meloso,
ipso, de si pouco fornecia:
Diz
assim: Melim-Meloso,
não
repete o seu dizer.
Perguntei:
— coisa com coisa,
não
quis nada responder.
Reportava-se:
— Sou homem de todas as palavras! Mas gostava de guardar
segredos; e aproveitava qualquer silêncio. Do mal que dele se dizia,
tenha-se por exagerada, senão de todo inautêntica, à propala, a
parla dessa afamação. O herói nunca foi conquistador, vagabundo,
impostor, nem cigano exibidor de animais. Corra tanta incertidão por
conta dos que tentaram ser inimigos dele: o Cantanha, Reumundo Bode,
o Sem-Caráter, Pedro Pubo, o Alcatruz; o Cagamal e José Me-Seja.
Melim-Meloso, mesmo, é que nunca foi inimigo de ninguém.
Escutem-se, pois, à outra face da lenda, os seus amigos principais:
Cristomiro, o Dandrá, José Infância, João Vero, Padrinho Salomão,
Seo Tau, o Santelmo, Montalvões e Sosiano:
Melim-Meloso
amontado
no quartau:
viaja
para as cabeceiras,
procura
o rio no vau.
Melim-Meloso
amontado
no corcel:
porque
é Melim-Meloso,
bebe
fel e sente o mel.
Melim-Meloso
amontado
no castanho:
— O
que ganho, nunca perco,
o
que perco sempre é ganho…
Diz
assim: Melim-Meloso
só
quer amar sem sofrer.
Errando
sempre, para diante,
um
acerta, sem saber.
Diz
assim: Melim-Meloso
ouve
“não”, sabe que é “sim”:
o
sofrer vigia o gozo,
mas
o gozo não tem fim.
Resumo.
Serra do Sõe, verde em sua neblina, nesse frio fiel, que inclina os
pássaros. Serra do Sõe e Serra da Maria-Pinta, que a redobra;
serras e pessoas. O fazendeiro Pedro Matias, rico. Tio Lirino, com as
sensatas barbas. Elesbão — o estrito boiadeiro. Lá, ressoam
distâncias; e a alegria é pouca: é devagarinho, feito um gole. A
serra faz saudade de outros lugares. Melim-Meloso possuía somente
seus sete cavalos, comprados, um a um, com seus economizados. Seria
para ir-se embora, com luxo, com eles. Melim-Meloso tinha pena de não
ser órfão também do padrasto, com quem descombinava; porque o
padrasto era prático de bronco, na desalegria, não avistava o sutil
de viver, principalmente. Vai, um dia, Melim-Meloso não aguentou
mais: — Faço de conta que este padrasto não existe, de jeito
nenhum... — ele entendeu de obrar, com doçuras. Isto é: não
via mais, nem em frente nem em mente, a pessoa existente do padrasto,
para bem ou para mal. Procedeu. Aí, o padrasto teve a graça de
morrer, subitamente, em paz; mas, deixando dívidas. Melim-Meloso se
disse: — A vida são dívidas. A vida são coisas muito
compridas. Para pagar esses deveres, teve de negociar seus
cavalos, foi dispondo de um por um. Vendia um — chorava (o que
seja: no figuradamente), mas com mágoas medidas. Queria mais ir-se
embora, lá ele corria o risco de ficar mofino; salvava-o sua
incompetência de tristeza. Mas o Elesbão desceu, para o Quipú, com
boiada completada. Pedro Matias desceu, num lençol, na vara,
carregado, para o cemitério-mor, no Adiante. Tio Lirino desceu com a
tropa, tantos lotes de burros: rumo de sertões e ranchos.
Melim-Meloso sentiu-se pronto: — Quando vi — adeus! — minha
gente, vou de arrieiro — no formal…
Episódios.
Mas Melim-Meloso fazia-se muito causador de invejas. Sofrer, até,
ele sofria tão garboso, que lho invejavam. Sofria só sorrisos. Vai,
pois, por qual-o-quê, quiseram vingar-se dele, disso. Os sujeitos
que lhe tinham comprado os cavalos, compareceram na saída, para o
afligir, cada qual montado no agora seu. Mas Melim-Meloso se riu, de
pôr a cabeça para trás. Conforme pensou, tãoforme lhes falou: —
O que vejo, na verdade, é que estes cavalos formosos continuam sendo
meus. Por prova, é que vocês tiveram de trazer todos eles, para os
meus olhos!
No
que se diga, os invejantes não podiam naquilo achar razoável
espécie. Mas, orabolas deles. Melim-Meloso pediu: — Me esperem
amigos, só um pouquinho... Foi, veio, trouxe uma égua, luzente,
quente. Os sete cavalos sendo todos pastores. Relinchou-se! Aí —
que Melim-Meloso soltou de embora a égua: aqueles pulavam e
escoiceavam, rasgalhando rinchos, mordendo o ar, e assim
desembestaram os cavalos equivocados. Jogaram seus cavaleiros no
chão. Só ficou em sela o João Vero, no preto. Os outros se
estragaram um bocado, até um, o pior, o Cantanha, se machucou o
bastante. Melim-Meloso somente sorriu, atencioso. Virou-se para o
João Vero, lhe disse: — Você, se vê: que parece mestre
cavaleiro! Prazido, com essas, o Vero conseguiu então admirar
Melim-Meloso; perguntou: Se ele se ia era por querer uma nôiva,
coberta de ouro-e-prata, feito Dona Sancha? Melim-Meloso respondeu: —
Não. É para, algum dia, tornar a adquirir, um a um estes cavalos...
Com essas, o Vero começou a respeitar a decisão do outro. De
repente, se determinou: ofereceu que cedia desde já o preto a
Melim-Meloso, para ele pagar indenizado, quando possível...
Melim-Meloso, aceitando, gentil, disse: — Você, se vê: que
sabe dar, direito, sem prazo de cobrar. Deus dá é assim... Com
essas, o Vero também se riu, por fora e por dentro. E Melim-Meloso
disse um mais: — Para, em futura ocasião, eu pagar a você a
quantia redonda, você me empresta agora o quebrado que falta, para
poder logo arredondar... O Vero concedeu.
Melim-Meloso
muito se despediu, da terra da Serra, à sua satisfação. Soltou as
rédeas para a Vila, ia levar o caminho até lá. Saiu com os pés na
aurora, à fanfa, seu nariz bem alumiado. Era sujeito a morrer; por
isso, queria antes dar uma vista no mundo, achar a fôrma do seu pé.
Sobre o que, o Vero ainda veio com ele, e com a tropa, por um trecho,
conversavam prezadamente — o Vero conseguira começar a querer-bem
a ele.
E
chegou-se, de caminho, na fazenda Atravessada, antes de chegar-se ao
próprio fim, que era na Conceição-de-Baixo. Nessa fazenda,
reinava, na noite, a furupa de uma grande festa — de casamento ou
batizado. Melim-Meloso apeou lá sem espera de agrados, não
conhecendo ninguém. Ora vez, ali se deram várias coisas, ele com
elas. Porém, são para outra narração; convém que sejam. A vida
de Melim-Meloso nunca se acaba. Ao que, na voz das violas, segundo o
seguinte:
Conte-se
a estória de Melim-Meloso
sempre
sem sossego, sempre com repouso,
vivo
por inteiro, possuindo amor:
Melim-Meloso,
ao vosso dispor…
Guimarães Rosa, in Tutameia
domingo, 26 de fevereiro de 2023
Os últimos dias
Que
a terra há de comer.
Mas
não coma já.
Ainda
se mova,
para
o ofício e a posse.
E
veja alguns sítios
antigos,
outros inéditos.
Sinta
frio, calor, cansaço;
pare
um momento; continue.
Descubra
em seu movimento
forças
não sabidas, contatos.
O
prazer de estender-se; o de
enrolar-se,
ficar inerte.
Prazer
de balanço, prazer de voo.
Prazer
de ouvir música;
sobre
papel deixar que a mão deslize.
Irredutível
prazer dos olhos;
certas
cores: como se desfazem, como aderem;
certos
objetos, diferentes a uma luz nova.
Que
ainda sinta cheiro de fruta,
de
terra na chuva, que pegue,
que
imagine e grave, que lembre.
O
tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de
aprender como vivem, de ajudá-las.
De
ver passar este conto: o vento
balançando
a folha; a sombra
da
árvore, parada um instante,
alongando-se
com o sol, e desfazendo-se
numa
sombra maior, de estrada sem trânsito.
E
de olhar esta folha, se cai.
Na
queda retê-la. Tão seca, tão morna.
Tem
na certa um cheiro, particular entre mil.
Um
desenho, que se produzirá ao infinito,
e
cada folha é uma diferente.
E
cada instante é diferente, e cada
homem
é diferente, e somos todos iguais.
No
mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o
silêncio global, mas não seja logo.
Antes
dele outros silêncios penetrem,
outras
solidões derrubem ou acalentem
meu
peito; ficar parado em frente desta estátua: é um torso
de
mil anos, recebe minha visita, prolonga
para
trás meu sopro, igual a mim
na
calma, não importa o mármore, completa-me.
O
tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da
vida ficou mais forte, e os naufrágios
não
cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas:
que
os objetos continuam, e a trepidação incessante
não
desfigurou o rosto dos homens;
que
somos todos irmãos, insisto.
Em
minha falta de recursos para dominar o fim,
entretanto
me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho
da hora, que se vai acumulando século após século
e
causa vertigem,
tamanho
de qualquer João, pois somos todos irmãos.
E
a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida
menos imediata. Ah, podeis rir também,
não
da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de
outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no
ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano,
tudo, mas tudo é nosso irmão.
O
tempo de despedir-me e contar
que
não espero outra luz além da que nos envolveu
dia
após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena
ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas
reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas
que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é
boa medida, irmãos, vivamos o tempo.
A
doença não me intimide, que ela não possa
chegar
até aquele ponto do homem onde tudo se explica.
Uma
parte de mim sofre, outra pede amor,
outra
viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou
todas as comunicações, como posso ser triste?
A
tristeza não me liquide, mas venha também
na
noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que
lute lealmente com sua presa,
e
reconheça o dia entrando em explosões de confiança,
esquecimento,
amor,
ao
fim da batalha perdida.
Este
tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos
bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E
todo o mel dos domingos se tire;
o
diamante dos sábados, a rosa
de
terça, a luz de quinta, a mágica
de
horas matinais, que nós mesmos elegemos
para
nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de
cada um de nós, no tempo.
E
que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão
ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói
sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas
não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas
antes com voz firme, os pensamentos
maduramente
pensados, os atos
que
atrás de si deixaram situações.
Que
o riso sem boca não a aterrorize
e
a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos
torcidos, lívido
suor
de remorso.
E
a matéria se veja acabar: adeus, composição
que
um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus,
minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus
sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal
meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, ideia
de
justiça, revolta e sono, adeus,
vida
aos outros legada.
Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo
Hemisférios
Há
três dias eu estava em Lisboa.
Lá,
fevereiro é mês de esticar as meias de lã até os joelhos e
colocar os braços para fora da janela, tentando concluir se o casaco
pode ser curto ou se é melhor ser longo, tendo em vista meu
termômetro eternamente tropical. É mês para contar quanto tempo
falta para o frio se afastar, permitindo que os braços e as pernas
voltem a ver as ruas.
Mas
cai a noite em fevereiro e os cheiros são bons. O cheiro da sopa que
depois de tantos anos tornou-se bem-vinda, o cheiro do vinho tinto
que desde que se tornou permitido sempre foi tão bem-vindo e o
cheiro do cabelo da miúda, tão curiosamente bem-vinda, no beijo
roubado de boa-noite.
O
pouco que verdadeiramente aquece vem dele: braços seguros e xícaras
de chá. É frio demais e é bom por ser exatamente assim.
Há
dois dias estou em São Paulo.
Aqui,
fevereiro é mês no qual não se abre a gaveta das meias. Mês de
abrir a janela e olhar para o céu, tentando concluir se dá para
sair às 14h ou se é melhor esperar até o sol baixar às 16h. É
mês para se perguntar quando chegará uma trégua, um vento fresco,
uma chance de comer massa com molho branco.
Mas
a noite cai em fevereiro e os cheiros são bons. O cheiro da chuva de
verão, tão assustadora quanto bem-vinda, o cheiro do repelente de
mosquitos, que é cheiro de infância e de férias, cuja memória se
sobrepõe à dos insetos, tão pouco bem-vindos. O cheiro do suor no
pescoço das sobrinhas, da grande e da pequena, invariavelmente
bem-vindas.
O
pouco que refresca vem deles: meu pai se aproximando com copos de
cerveja, minha mãe se aproximando com estrelas de carambola. É
quente demais e é bom por ser exatamente assim.
Deve
ser isso que chamam de sorte.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
O chalé da praça Quinze
O
chalé fazia parte da gente. Me lembro do Bilu, com o seu perfil
perpendicular de cegonho sábio, o longo bico mergulhado — não no
gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chope,
que era de fato o que estava acontecendo —, mas no poço artesiano
de si mesmo.
Me
lembro do Reynaldo, redondo, pacato, amável, tão amável, pacato e
redondo que parecia um desses personagens de romance policial que
ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala.
Me
lembro do Cavalcanti, com a sua cara silenciosa e receptiva de
mata-borrão.
Me
lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos
silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo
o verso inesquecível de Valéry: “Oh mon bon compagnon de
silence!”
Este
silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos
centrífugo e pirotécnico. Mas isto não perturbava o nosso
silêncio, nem o próprio silêncio do Athos... Pois havia um
profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a
todas as nossas palavras.
Era
o rio da poesia?
O
rio da harmoniosa confusão das almas?
Agora
é apenas o rio do tempo que passou.
Mário Quintana, in Caderno H
Capítulo quinze | O sonho
Mais
e mais me assemelho ao caranguejo: olhos fora do colpo, vou sonhando
de lado hesitante entre duas almas: a da água e a da terra.
– Curozero
Muando –
Eis
o que sonhei: que o coveiro Curozero Muando tinha escavado em terras
fora do cemitério, longe da vila. Procurara as mais distantes
paragens, nas bermas das lagoas, nos outeiros de Zipene, nos vales de
Xitulundo. Em todos os lugares sucedia o mesmo: não era possível
penetrar no solo. Tentou-se mesmo até. na secreta sombra de
Ximhambanine, a sagrada floresta dos anciãos. O coveiro desabara,
joelhos na areia: os deuses nos acudissem e amolecessem o chão. Mas
nem reza nem lamento resultaram. Invariavelmente, a pá chocava com
um duro manto de pedra. Era como se, em todo o lado, a terra inteira
tivesse fechado.
Chegaram
amigos da cidade e disseram-me que o mesmo fenômeno estava ocorrendo
noutros lugares. Em todo o país, a terra negava abrir o seu ventre
aos humanos desígnios. Enviei mensagem para o exterior. E o mesmo se
passava também por lá. Em todos os continentes o chão endurecera,
intransponível. O assunto tornara-se uma catástrofe de proporções
mundiais. Não era apenas a impossibilidade de enterrar os cadáveres.
A agricultura paralisara. Os trabalhos de construção, as minas, as
dragagens nos portos, tudo estava parado.
Dirigentes
internacionais procuravam apressadamente explicações, cientistas de
reputação pesquisavam motivos, multiplicavam-se comissões, viagens
e expedições. Ninguém fazia ideia que a raiz de tão grave
desequilíbrio se localizava, afinal, na nossa pequena Ilha. Ninguém
sabia que tudo começara na pessoa do Avô Mariano.
No
sonho, eu regressava ao cemitério. Não encontrava o coveiro
Curozero. Mas lá estava a sua irmã, Nyembeti, mais convidativa que
nunca, trajando a movediça capulana que mostrava mais que cobria.
Instigando-me
com gestos e assobios a moça me conduziu para um local que só ela
conhecia, no sopé de um monte. Escolheu entre fragas e cavernas e se
meteu por um esconso recanto. Ali onde a luz mal chegava, ela se
deitou na terra escura e me chamou. Era uma gruta sombria e o cheiro
me era familiar. Hesitei antes de me estender no chão. Me fazia
temor o não ver onde me pendia.
– Deite-se
em cima de mim! Afinal, Nyembeti falava? E falava português? Meu
corpo cobriu o dela, os braços me suportaram para não pesar sobre
ela. Mas ela me puxou os pulsos e levou as minhas mãos a que lhe
cobrissem os seios. E depois visitassem o seu corpo, seus húmidos
segredos. Ali no escuro fizemos amor. Nossos gemidos se amplificavam,
ecoando nos redondos da caverna. No final, uma ave se soltou do
tecto, esbranquiçando as penumbras.
Só
quando me recompunha, arfante, é que reparei: aquele cheiro da gruta
era o mesmo do quarto de arrumos. E o gosto daquela mulher, a voz, o
perfume, tudo era o mesmo. Podia Nyembeti ter estado naquele dia em
Nyumba-Kaya? Podia ser ela a incógnita amante que antes me
assaltara? – Se admira de eu falar português? Me espantava ela
falar. Mas a moça explicou: queria escapar aos vários Ultímios que
lhe apareciam, com ares citadinos. Se fazia assim, tonta e indígena,
para os afastar de intentos.
– Com
você posso falar qualquer língua. E mesmo em nenhuma língua.
Beijámo-nos.
De novo, me veio a sensação de regressar ao escuro do quarto de
arrumos. O braço dela me afasta, com doçura mas sem vacilar.
– Agora,
venha comigo. Eu trouxe-lhe aqui para lhe mostrar.
As
mãos, em concha, escavaram a terra. E o assombro me catapultou o
peito. O solo ali era fofo, minhocável, esfarelento. Nyembeti
descobrira onde se podia cavar a sepultura do Avô.
– Como
é que você encontrou este lugar? Mas ela negou. Os lugares não se
encontram, constroem-se. A diferença daquele chão não estava na
geografia. Apontou para nós dois e embrulhou as mãos para, em
seguida, as levar ao coração. Ela queria dizer que a terra ficou
assim porque nela nos amáramos? Seria o amor que reparara a terra?
Fazer do chão um leito nupcial, seria isso que amoleceria a terra e
nos punha de bem com a nossa mais antiga morada? Talvez. Talvez fosse
tudo tão simples como o lençol do velho Mariano, esse onde ele
agora repousa. É esse lençol, quem sabe, com todos os cheiros de
antigos amores, é esse lençol que vai prendendo o velho à vida.
Nyembeti
me olhou, curiosa de me ver ausente. Sorriu e com um gesto sugeriu
que eu regressasse à vila. Ela ficaria na gruta. Ainda me dirigiu um
pedido, à despedida: – Sei que você irá para a cidade. Mas
quando voltar deve trazer-me uma prenda de lembrança.
Estranho
o que ela queria que eu trouxesse: saliva de cobra, cuspo de lagarto.
Ou antes, caso eu pudesse: seivas de arbusto maligno, gosma de cacto.
Qualquer coisa desde que fosse da ordem dos venenos, das mortais
peçonhas que certos bichos e plantas confeccionam em seus interiores
infernos. Isso eu sonhei, naquela noite quente.
Manhã
cedo me ergo e vou à deriva. Preciso separar-me das visões do sonho
anterior. Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas
onde, em menino, eu pastoreara os rebanhos da família. As cabras
ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas, esquecidas de
morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o
homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não
conheço quem não tenha pastoreado cabra.
Ao
pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o
primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o
pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão.
As
cabras me atiram para lembranças antigas. E o rosto de Mariavilhosa,
minha doce mãe, vai neblinando o meu olhar. Porque naquelas
pastagens muitas vezes aquele rosto me visitara proéurando refúgio
em minha pequena alma. Minha mãe tinha engravidado, antes de mim.
Mas alguma coisa não correra bem. Diz-se que abortara, mas a
história se distorcia no tempo. O médico, sempre o mesmo
Mascarenha, tinha assegurado que Dona Mariavilhosa jamais poderia
voltar a conceber. A medicina se engana e eu sou prova viva disso.
Depois de mim, a mãe ainda voltou a engravidar. Mas a velha profecia
desta vez se confirmou. Aquele meu irmãozito, dentro do ventre dela,
não se abraçara à vida. Para Mariavilhosa aquilo foi motivo de
loucura. Podia ser estranho, mas o parto – chamemos parto àquele
acto vazio – se deu na noite da Independência. Naquela noite,
enquanto a vila celebrava o deflagrar de todo o futuro, minha mãe
morria de um passado: o corpo frio daquele que seria o seu último
filho. Meu pai me levou para dentro de casa enquanto Mariavilhosa,
com o recém-falecido ao colo, se arrastou pelo pátio. Ainda a vimos
erguer o corpo do bebé para o apresentar à lua nova. Como se faz
com os meninos recém-nascidos. Meu pai lhe entregou um pedaço de
lenha ardendo. E ela atirou o tição para a lua enquanto gritava: –
Leva-o, lua, leva o teu marido! Aquele fogo riscando o escuro me
ficou gravado como se fosse um astro subindo alto para depois tombar
em mil cadências de luzes. Anos mais tarde, já minha mãe falecida,
eu olhava a lua enquanto pastoreava no escuro e via Mariavilhosa com
o menino em suas costas. E escutava o seu pranto aflito, aferroado
pela fome. Então eu acorria à fogueira e apagava o lume. Matando o
fogo eu me expunha aos bichos e ao frio. Mas isso não tinha
importância. Eram as trevas que eu necessitava. Só no escuro minha
mãe encontrava conforto e guarida. Nesse recanto ela calava meu
falecido irmão, esse que, por nunca ter vivido, não haveria nunca
de morrer.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
sábado, 25 de fevereiro de 2023
Gente
tem
gente que nunca andou de bicicleta
mas
sabe pedalar a sua vida
tem
gente quem fuma cigarro e morre de câncer
antes
de quem fuma maconha
tem
gente que diz bom dia
e
do nada morre à tarde
tem
gente que nunca foi ao cinema
e
sua vida virou filme
tem
gente que compra carros novos
e
morre atropelado
tem
gente que pensa que é moderna
e
é primata até dizer bosta
tem
gente que se falta luz
nem
um candeeiro acende
tem
gente que nem o poste suporta
tem
gente que no bar fala demais
e
esquece de pagar a conta
tem
gente que nem a conta paga
e
os dinossauros nunca souberam
que
o homem existiu.
Miró da Muribeca, in O penúltimo olhar sobre as coisas
Mitologias
O
Olimpo andava muito chato e Zeus murmurou:
– Tá
faltando mulher no pedaço.
Resolveu
criar a secretária gostosa. Pandora. Cada um dos deuses contribuiu
pra vaquinha de atributos. O dom da persuasão foi presente de
Hermes. Afrodite brindou-a com a beleza. Apoio dotou-a para a música.
João Araújo arrumou um contrato na Som Livre e Marta Rocha
cedeu-lhe as famosas polegadas a mais nos quadris. Pandora foi dada a
Epimeteu. Um dia, Epimeteu chegou de porre do Lamas. Pandora,
tentando descolar algum pro cabeleireiro, vasculhou o bolso da
bermuda do cara e encontrou um lenço manchado de baton, ingressos
pro circo Orlando Orfei e uma caixa. Desconfiada de que Epimeteu
estivesse metendo o epi na xavasca alheia, Pandora abriu a tal caixa.
Deve ser camisinha, pensou. Acontece que a caixa continha os males,
os crimes, as pragas e os votos que reelegeram Antonio Carlos
Magalhães. Essas merdas escaparam da caixa e se espalharam pelo
mundo. Só a Esperança ficou no fundo da caixa. Louca de raiva,
Pandora berrou:
– Não
banca a sonsa pra cima de moá, piranha.
E
enfiou os tamancos nos cornos da pobrezinha até matar. Daí vieram
as expressões “matou a pau” e “a Esperança é a última que
morre”. Epimeteu passou a viver de bar em bar, sempre resmungando:
“Vivi séculos com aquela pilantra c não saquei a peste que era”.
Por isso é que Epimeteu, em grego, significa mais ou menos “o que
reflete demasiado tarde”, ou, no jargão carioca, “aquele
babaca”.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo