terça-feira, 31 de janeiro de 2023

O livro da memória

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Cerca de um século depois que De Fournival terminou seu Bestiaire, Petrarca, que aparentemente seguira as técnicas mnemônicas de santo Tomás para melhor aproveitar suas leituras volumosas, imaginou no Secretum meum uma conversação com seu adorado Agostinho sobre o tema da leitura e da memória. Petrarca, como Agostinho, levara uma vida turbulenta quando jovem. Seu pai, amigo de Dante, tinha sido banido de sua Florença natal tal como o poeta, e, pouco depois do nascimento de Petrarca, mudara-se com a família para a corte do papa Clemente v, em Avignon. Petrarca frequentou as universidades de Montpel ier e Bolonha e, aos 22 anos de idade, depois da morte do pai, estabeleceu-se novamente em Avignon como um jovem rico. Mas nem a riqueza nem a juventude duraram muito tempo. Em poucos anos de vida tumultuada dissipou toda a herança do pai e foi obrigado a entrar numa ordem religiosa. A descoberta dos livros de Agostinho e Cícero despertou o gosto pela literatura no jovem curioso, que pelo resto da vida leu com voracidade. Começou a escrever seriamente com trinta e tantos anos, compondo duas obras, De viris il ustribus [Sobre homens ilustres] e o poema África, no qual reconhecia sua dívida para com os gregos e latinos antigos e graças ao qual recebeu uma coroa de louros do Senado e do povo de Roma, coroa que colocou mais tarde no altar principal de são Pedro. Retratos dele dessa época mostram um homem macilento, de aparência irritadiça, com um nariz grande e olhos nervosos, e pode-se imaginar que a idade fez pouco para aplacar sua inquietação.
No Secretum meum, Petrarca (com seu prenome cristão, Francesco) e Agostinho sentam-se e conversam em um jardim, observados pelo olhar firme da Senhora Verdade.
Francesco confessa que está cansado da vã azáfama da cidade; Agostinho responde que a vida de Francesco é um livro como aqueles da biblioteca do poeta, mas um livro que ele ainda não sabe como ler, e relembra-lhe vários textos sobre o tema das multidões enlouquecidas – inclusive do próprio Agostinho. “Eles não te ajudam?” – pergunta ele. Sim, responde Francesco, durante a leitura são muito úteis, mas “assim que o livro deixa minhas mãos, todos os meus sentimentos por ele desaparecem”.
Agostinho: Essa maneira de ler é agora bastante comum; há uma tal multidão de homens letrados... Mas se tivesses rabiscado algumas notas no lugar adequado, poderias facilmente deleitar-te com o fruto de tua leitura.
Francesco: A que tipo de notas fazes referência?
Agostinho: Sempre que leres um livro e encontrares frases maravilhosas que te instiguem ou deleitem teu coração, não confies apenas no poder de tua inteligência, mas força-te a aprendê-las de cor e torná-las familiares meditando sobre elas, de tal forma que ao surgir um caso urgente de aflição terás sempre o remédio pronto, como se estivesse escrito em tua mente. Quando encontrares quaisquer trechos que te pareçam úteis, faz uma marca forte neles, que poderá servir de visco em tua memória, pois de outra forma eles poderão voar para longe.
O que Agostinho (na imaginação de Petrarca) sugere é uma nova maneira de ler: nem usando o livro como um apoio para o pensamento, nem confiando nele como se confiada na autoridade de um sábio, mas tomando dele uma ideia, uma frase, uma imagem, ligando-a a outra selecionada de um texto distante preservado na memória, amarrando o conjunto com reflexões próprias – produzindo, na verdade, um texto novo de autoria do leitor. Na introdução de De viris il ustribus, Petrarca observou que esse livro deveria servir ao leitor como “uma espécie de memória artificial” de textos “dispersos” e “raros” que ele não apenas coletara, mas, o que é mais importante, nos quais dera uma ordem e um método. Para seus leitores do século XIV, a reivindicação de Petrarca era espantosa, pois a autoridade de um texto era autoestabelecida, enquanto a tarefa do leitor era a de um observador de fora. Um par de séculos depois, a forma de ler de Petrarca, pessoal, recriadora, interpretadora, cotejadora, iria se tornar o método comum de estudo em toda a Europa. Petrarca chega a esse método à luz do que chama de “verdade divina”: um sentido que o leitor deve possuir, com o qual deve ser abençoado, para escolher e interpretar seu caminho através das tentações da página. Mesmo as intenções do autor, quando presumidas, não têm nenhum valor no julgamento de um texto. Este, sugere Petrarca, deve ser feito mediante as lembranças que se tenha de outras leituras, para as quais flui a memória que o autor pôs na página. Nesse processo dinâmico de dar e receber, de separar e juntar, o leitor não deve exceder as fronteiras éticas da verdade – quaisquer que sejam elas, ditadas pela consciência do leitor (pelo senso comum, diríamos). Em uma de suas muitas cartas, Petrarca escreveu: “A leitura raramente evita o perigo, exceto se a luz da verdade divina iluminar o leitor, ensinando o que procurar e o que evitar”. Essa luz (para usar a imagem de Petrarca) ilumina de modo diferente a todos nós, e também varia nos diversos estágios de nossa vida. Jamais voltamos ao mesmo livro e nem à mesma página, porque na luz vária nós mudamos e o livro muda, e nossas lembranças ficam claras e vagas e de novo claras, e jamais sabemos exatamente o que rendemos e esquecemos, e o que lembramos. O que é certo é que o ato de ler, que resgata tantas vozes do passado, preserva-as às vezes muito adiante no futuro, onde talvez possamos usá-las de forma corajosa e inesperada.
Quando eu tinha onze ou doze anos, um de meus professores em Buenos Aires deu-me aulas particulares à noite, de alemão e história da Europa. Para melhorar minha pronúncia em alemão, estimulou-me a decorar poemas de Heine, Goethe e Schiler e a balada de Gustav Schwab “Der Ritter und der Bodensee”, na qual um cavaleiro atravessa o lago congelado de Constança e, ao se dar conta do que acaba de fazer, morre de medo na outra margem. Eu gostava de ler os poemas, mas não compreendia que utilidade poderiam ter “Eles lhe farão companhia no dia em que você não tiver livros para ler”, disse meu professor. Contou-me então que seu pai, morto em Sachsenhausen, fora um famoso intelectual que sabia muitos clássicos de cor e que, no período que passou no campo de concentração, oferecera-se como biblioteca para ser lido por seus companheiros de reclusão. Imaginei o velho homem naquele lugar tenebroso, inexorável, desalentador, sendo abordado com um pedido de Virgílio ou Eurípedes, abrindo-se numa determinada página e recitando as palavras antigas para seus leitores sem livros. Anos mais tarde, dei-me conta de que ele fora imortalizado como um dos peripatéticos salvadores de livros em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury.
Um texto lido e lembrado passa a ser, nessa releitura redentora, como o lago congelado no poema que decorei há tanto tempo, tão sólido quanto a terra e capaz de sustentar a travessia do leitor; contudo, ao mesmo tempo, sua única existência está na mente, tão precária e fugaz como se suas letras fossem escritas na água.

Alberto Manguel, in História da leitura

Paisagem descrita em jornal de 1910

Aqui se elevam pedregulhos em cúmulos
ocultando avaramente o ouro.
Há flores roxas
de melastomas.
Os mirtos em touceira verde-escura
coalham-se de negras bagas.
Fetos arborescentes
radicados à cascalheira úmida
distendem semiperpendiculadas suas palmas
à semelhança de coqueiros.
De pequena gruta
jorra em cascata a água miraculosa
à sombra secular de um fícus.

Carlos Drummond de Andrade, in Boitempo – Esquecer para lembrar

Vingança

A melhor vingança é não se tornar igual.

Marco Aurélio, in Meditações

Cartas para minha avó

Eu realmente não estava sabendo lidar com tanta dor. Se não fosse pelos meus amigos, teria sucumbido. Sobretudo o Hamilton, um amigo da adolescência que cedeu a casa durante boa parte do tempo em que cuidei do meu pai no hospital. Não fossem as jantas gostosas que a mãe dele fazia, aquele feijão que lembrava o seu, tudo teria sido mais difícil. A cama que ele preparava pra eu descansar, as centenas de vezes em que assistimos Moulin Rouge e brigávamos porque ele cometia o pecado de dizer que Céline Dion era melhor do que Whitney Houston. Fui abraçada por aquela família como você me abraçava. Não fosse pelas noites naquela casa, na altura do centésimo degrau da escadaria do Monte Serrat, a vida teria sido mais amarga.
Assim que me acalmei, saí da sala e fui para o quarto onde meu pai estava. Abri o Evangelho Segundo o Espiritismo e fiz a oração para a pessoa que está partindo. Sabia que ele se arrependia de muita coisa, escolhas erradas, traições e abandonos. Sabia que ele ficava triste por, nos últimos anos, ter se afastado da família. Mas sabia também que, naquele momento, tudo estava resolvido.
Conversei com ele, falei o quanto o amava e o quanto era grata por ter tido ele como pai. Dei um beijo em sua testa e decidi ir embora. Eu sabia que ele partiria naquele dia e eu não queria estar lá. Na verdade, ele já estava mais inconsciente do que consciente, mas eu não queria ver. Um ano antes eu havia acompanhado o corpo da minha mãe e eu não tinha estrutura para viver a mesma coisa com meu pai.
Ele ficou com a namorada e alguns amigos no quarto. Cantei uma música do Milton Nascimento bem baixinho, o artista que ele me ensinou a amar, e saí do quarto.
Meu pai ficaria atônito se soubesse que me tornei amiga do Milton, vó, certeza de que ele se gabaria para todas as visitas. Sim, eu me tornei amiga dele e sinto que conhecer o artista que cresci ouvindo com meu pai é um modo de sempre mantê-lo vivo.
Naquela noite, quando o telefone tocou em casa, eu já sabia. Fui inundada por uma sensação de paz por saber que o sofrimento dele havia acabado. “Para quem quer se soltar, invento um cais, invento mais do que a solidão me dá. Invento o amor e sei a dor de me lançar.”

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Vida ensinada


Aí, quando se pegou a supradita estrada, da serra, nos neblinões, que era a desses esforçados trabalhos, o gado jurou descrido mais sabiado, a gente teve de aboiar de antigamente; para a ideia não se tendo prazo, em tanto caminho das terríveis possíveis sortes. A memória da gente teve medo. Mas o nosso bom São Marcos Vaqueiro, viageiro, ajudou: primeiro mandou forte desalento; depois, então, a coragem. Deu um justo lugar de paragens, refresquinhas novas águas de brota, roteiro mais acomodado, capim pelo farto, mais o gado tendo juízo. Assim, de manhã cedo à tarde, tudo se inteirou num arredondamento. Tão certo como eu ser o vaqueiro Martim, o de muitos pecados, mas com eles descontentado. Sem embargos se adormecemos. Na descambada da serra, ainda ventava, a gente cuidando em nós e neste mundo de agora — o que são matérias de tempo adiante.
Da Outra boiada urucuiana, Jornada penúltima.

Aqui no por aqui.
Um reboo, poeira, o surgibufe: de frente, desenvoltada de curva, a boiada, geral, aquele chifralhado no ar. Avante à cavalga o ponteiro-guieiro soa trombeta de guampo; dos lados os cabeceiras — depois os costaneiras e os esteiras — altos se avistam, sentados quer que deslizados sobre rio cheio; mas, atrás, os culatras, entre esses timbutiando um vaqueiro da cara barbada, Sarafim, em seu cavalo cabeçudo.
Ele desdiz do rumor feroz, despertence ao arrojo do cortejo. Se há-de saudar, tira o chapéu roído de solão e chuvas; queria ter um relógio e arranja jeito de se coçar o fio das costas, estava sempre meio com fome. Sozinho às vezes se diverte no cantarolativo, chão adiante.
Sarafim vira nesse dia dez gaviões.
Escasso falava, pela língua começa a confusão; mesmo pensar, só quase repensa o conhecido, resumido por todos ou acontecido. Muitas coisas deixava para o ar — a gente tem de surto viver aos trechos — a alegria não é sem seus próprios perigos, a tristeza produz à-toas cansaços. Tomara ele que o escolhessem para ponteiro, tocar o berrante, So Lau mandasse.
Mas isso nem devendo dar a saber, de desejo, por não parecer ralasso madraço ou frouxo, a culatra impõe as responsabilidades.
So Lalau aparecia ali. Vaqueiro bom, ou o quê, Sarafim; costumeiramente bobo. Que modo podia ter matado outro e ainda com a viúva se ajuntado? So Lalau não olhava, mas pensava.
E, nessa, Inácia, sua esposa adotiva, também Sarafim aqui lembrava constante — passada a Fazenda Sidreira, região do Urubu-do-Gado, baixão — sem certeza na matéria. Estava vivendo mais quente, gostava dela todas as vezes. Ela, pondo o tempo, havia de igual querer a ele — saliente guieiro algum dia à testa de boiadas de Seo Drães, seu favorecedor. Devagar e manso se desata qualquer enliço, esperar vale mais que entender, janeiro afofa o que dezembro endurece, as pessoas se encaixam nos veros lugares.
Aquilo? feio começo, se dera por si, ainda às tortas.
Só foi que desesperado o Roxão lhe entregando garrucha: — Juntos, vamos resistir, aos que vêm! — e ele Sarafim a par de nenhum rixar, nem de armas, a garrucha soltada caiu e disparou, aí o Roxão morto, quente, largava filhos e mulher, por eterno.
Vindo mesmo prestes os que com os soldados: — Você ajudou? merece paga... Mas, outro, sem louvor: — Se atirou sem querer, então é panigudo, comparsa! Roxão tinha sido perseguido criminoso. Inda um disse: que por meros motivos ele Sarafim decerto aproveitara para obrar assassinato.
Sarafim, de seu nariz ignorante, olhando porção de movimentos, em pão de nada. Vá alguém somar o que está doendo na cabeça de todos. Ver a ver... — até hoje, o qual cabimento do caso não achava.
Senão que o Seo Drães o livrara de prisão. Pois, olhe... O cachorro, cão gadeiro, ia no trotejo, sabia que So Lau assoviava era por espairecer, não para o chamar.
Sarafim quase sem erro procede; as faces do que há é que reviram sempre para espanto.
Todos na cruz da ocasião o instavam: — Tem de costear os meninos e a viúva! Ele começou a nada dizer. Não queria nem cobiçava; o apertaram mais. E a mulher havia de se conceder?
Ela segurava com duas mãos a peneira de arroz: — Seo meu vaqueiro... O senhor era estimado do falecido... Amigo? Campeiro companheiro, se tanto, feito os dedos das mãos, desirmãos. Em tal reparou que era bonita; toda a vida não sabendo que a notara assim?
Curto para não complicar, contratou-se com ela, a tinha em maior valia. Agouraram então: — Pode ser para vinganças... — ora. Mal por mal, se casou. Por isso e que...
So Lau na sela se soleva, vê o que adiante, se escuta o tôo do ponteiro. Sarafim produz: — Outro tempo o berrante se tangia mais perfeitamente... — repetindo coração, culatreiro capaz, sobre seu cavalo-de-campo.
Só que secas regalias Inácia lhe regateara, as três, duas vezes, no princípio, de amostra. Desde o que, ficado de remissa, ele olhava o pote e as alpercatas. Logradeira não era, mas por refrieza, amuada, mesmo mulher de ninguém.
Sarafim escorava o descaso, sem queixa nem partes, sem puxar a mecha — quem calca, não conserva — até que quietassem as ideias das coisas. Dia viria. Melhor a tratava, conforme facho de flores. Ia e retornava, para essas retardadas boiadas, consertando o caráter, como um boi não se senta. Em mãos dela deixava inteira a jorna, até o com que se pita e bebe. Suspirava arreando e desarreando o cavalo.
Desentendia remoques — quando o quanto aqui se estava, beira riacho, parados para repouso e dando um capim ao gado — palavras mangativas, conversas de café quente. Mais prezasse o guiador, confronte quem se acocorava. Redizia: — Correta obrigação... — a barba não o obstando de inchar bochechas.
Mesmo somente o voltar indenizava-o, ainda que por dia ou dois, ela o recebendo quase com enfeite. Deixava: ele gostar dela. Fosse por um costume — o passado faz artes — o próprio para render confiança. Mas, no restante, outra vez embezerrava, negada, irosa. E então ele no postiço, em torcido estado, se chuchava, só com o cochilar bem-merecido. Um boi boiadeiro remói andando, aquele se babar que se mexe qual que sem dentes.
S’Lalau, se’o’ vem, vê... — mas Sarafim, emperro, se detém de mostrar: por culpa que de descuido do ponteiro, erravam com a boiada pela estrada enganada piorada, das que vêm-se retorcendo entre enfadonhos morros, o figuradio. Tirou um lembrar — que o Roxão, também, marcado o marido, navegara com boiadas: no coice, não, mas tocador da buzina, guia-guieiro.
Seja que os primeiros dias, das tornadas, davam para ela Inácia gastar o pouquinho de saudade que o voo do tempo juntara. Tanto o valor de canseiras e lenteza, fazendo marcha, desestimado, atrasado em amor. Mas, ah, então: e se as viagens pudessem ser persistidas ainda mais longe, do durado de muitos meses — às boiadas de além-gerais — remotamente?
Sarafim, eh — ouviu e se esteve pronto. — Eh, Sarafim... sustendo ele rente a So Lau o cavalo quebralhão. — Você vai de ponteiro — dá-que.
So Lalau determinava — o de quem me dera! De repente, só o faz-se-que, vem, um dia, tudo do ar, não seja a dúvida, debaixo do pé da palavra, nesse menos, mais, ninguém fazia questão... Agora — e ele, até aí sem saber que era, que podia ser assim — a fácil surpresa das coisas. Tempo para se pasmar não lhe sobrasse, com o quê e quanto. Traçou a correia do instrumento.
Tomou o ponto, refinito montado, à frente daquela exata boiada, de So Lau, sendo que do Seo Drães. Sarafim via a estrada vasta miudamente.
Mas era de tarde, ao puro da aragem, do sol já só o rabo, por essa altura de horas. Inda não ia tocar imponente o berrante, pois que vindo o gado vagarado, sem porquanto dar nem percisão nem azo, e impedido ele de bobeação, qualquer brinquedo. Do que não haviam de rir, nesse debalde, nem o reprovar. — Boi adiante…
Ao Te-Quentes, velho lugar de pastura e aguada, onde deviam sentar bivaque e o cozinheiro já estaria cozinhando o feijão e torresmos.
Ali lá chegavam — davam com cavalos e barracas, de uns ciganos — de encontrôo.

Se caminhando uma rês vinte passos por segundo, me diga, sendo profundo: quanto ela anda em um mês?”
Copla viajadora.
Resposta:
O que ela anda, pouco faz, seja para trás ou para diante: a rês caminha o bastante indo para diante ou para trás.
(Simples hipógrafe.)

Guimarães Rosa, in Tutameia

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O rei secreto de França

Em Paris há coisas que não se entende bem, pois houve reis, imperadores e revoluções, de maneira que acontece, por exemplo, que no túmulo de Maria Antonieta não tem Maria Antonieta.
Mas este é o verdadeiro túmulo de Maria Antonieta — dizia um velho guarda. — Acontece que logo depois de executada ela foi enterrada em certo lugar; mais tarde retiraram seu corpo e lhe deram sepultura de honra, mas depois as coisas viraram, de maneira que...
Mas o homem estava distraído, olhava o relógio, não ouvia o que lhe dizia o velho guarda. Era primavera em Paris, era primavera no mundo, era primavera na vida. E havia ali perto uma pequena rua tranquila com um velho casarão discreto onde chegaria alguém dentro de meia hora — meia hora ainda! O homem suspirava olhando o relógio, contemplando vagamente o túmulo, ouvindo silvos de trens para os lados da gare de Lyon e vagos pios de pássaros nas árvores; o guarda se calara. Muito bem, reis mortos, reis postos, os franceses outrora matavam rainhas, tinham reis chamados luíses numerados, e rainhas e cortesãs, frases de espírito, revoluções, finesse e tudo isso lenta, lentamente foi permitindo a formação de criaturas como aquela velha concierge de cabelos brancos e gargantilha alta, solene como uma imperatriz, que já conhecia o casal de amantes e dizia: — O 14, não é verdade? Vou ver se está livre o 14...
Era um apartamento imenso, com um banheiro imenso, com uma banheira imensa, um leito imenso; era um apartamento de frente na ruazinha quieta, e pelas cortinas se infiltrava uma pálida luz.
O senhor não deseja ver a cripta onde estiveram os ossos?
Teria sido realmente bonita Maria Antonieta? De qualquer modo foi uma judiação matarem a moça; mas também se os franceses não fizessem a Revolução Francesa, quem iria fazer? Os portugueses?
Jamais, jamais de la vie. O homem sentia-se meio tonto com os conhaques que tomara fazendo hora para o encontro de “Maison de Famille”, que era o que estava escrito no casarão do encontro. Que estivesse livre o 14! Pensava aflitamente nisso, mas sua secreta aflição era outra em que não ousava pensar, era ver repetir-se o milagre daquela aparição — bom dia, esperou muito? —, a mais fina e bela mulher da França saltaria de um velho táxi escuro com seu vestido leve, primaveril, sua pele macia, seu gosto de romã de-vez, os olhos verdes — ah, foi preciso muito luxo, como esse de matar rainhas, para se produzir uma graça tão alta — e esse milagre extraordinário, essa fantasia de vir ao seu encontro, e ele então se sentia o rei secreto de França — não é verdade que uma vez, ao entrarem em uma ponte, em um carro puxado a cavalo, a mão da brisa jogara sobre suas cabeças, de um ramo alto, uma chuva de flores? Rei coroado; mas na França, país perigoso, França, aqui se matam reis.
De súbito viu que era tarde, deu um dinheiro ao guarda, desceu escadas, quase correu pela rua, chegou, então viu que ainda era cedo; suspirou. E se ela não viesse, não pudesse vir ou não quisesse vir, que fazer com aquela rua quieta e aquele céu azul e aquela brisa mansa, e aquele corpo e aquela alma trêmula? — tomou mais dois conhaques, sua mão trêmula suava, entretanto era homem, não era um adolescente, era rei. E quando ela chegou e disse que aquele encontro era uma despedida, que devia partir para remotas suécias, talvez nunca mais se vissem e ao sair disse: Meu Deus, preciso falar ao telefone: e então quando ela se afastou e ele entregou a chave do 14 à velha concierge, e lhe pagou em dobro o apartamento, já que era a última vez, a última vez!
Senhor — disse dignamente a dignitária de altas gargantilhas agradecendo —, eu lhe digo, senhor, não sei vosso nome nem quem sois, mas eu lhe digo — tenho mais de 70 anos e tenho visto muita coisa: nunca, por nada, perca essa mulher; é a mais linda da França e do mundo, o senhor tem sorte, senhor, roube, faça tudo, mas não a perca nunca, nunca.
Quando ela saiu da cabine de telefone o táxi estava na porta, e foi apenas o tempo de lhe beijar a mão — mal se olharam — ela entrou no feio carro alto e escuro — tinha tanta pressa e chorava, a futura Rainha da Suécia, das inacessíveis, distantes, insuportáveis suécias e noruegas do nunca mais nunca mais!

Rubem Braga, in A traição das elegantes

Achados & Perdidos

گم کردم
چیزی که یافته بودم،
چیزی یافتم گم شده.

Perdi
algo que havia encontrado
encontrei algo que havia sido perdido.

Abbas Kiarostami, in Nuvens de algodão

Bilinguismo luso-brasileiro (parte 2)

Sei que já escrevi sobre isso. Mas não tenho culpa, o assunto não se esgota. Vivendo em Portugal, não sei se haverá um dia em que não acharei graça nisso tudo. Já mencionei os correios que descobri serem “curraios”, o jet ski que é mota d’água, o sorvete de baunilha que vira “gelado de bónilha” e o fatídico dia em que meu namorado pediu para colocar o despertador para 8h30 e eu podia jurar que ele estava pedindo para eu colocar o despertador para o Tim Maia.
Mas a saga continuou. Em Portugal existe um canal de música chamado VH1, mas cujo nome eles pronunciam em inglês: “vi-eidge-uãn. Foi quando meu namorado disse: “O vi-eidge-uãn está mesmo com boas músicas.” Ocorre que minha cunhada se chama Joana. E se ele fosse dizer “Vi a Joana”, ele certamente diria “Vi-ai-juãn”. Portanto, prontamente entendi que ele estava dizendo que tinha visto minha cunhada com boas músicas. E perguntei “Onde?” e ele disse “Na televisão”. E então perguntei “Sua irmã ouve música na televisão?” e ele respondeu “Ai-juãn?” e eu disse “Sim, você não disse que ela está com boas músicas?” e ele rebateu “Ai-juãn? Não, o vi-eidge-uãn”. Enfim, não vale a pena continuar narrando os minutos que levamos até nos entender.
Algo semelhante aconteceu quando fomos conversar com empreiteiros para fazer a obra da nossa casa. Conhecemos três, um deles moçambicano. E também fomos ver alguns materiais para a cozinha. Chegando em casa, eu perguntei “Qual foi o seu preferido?”, me referindo aos empreiteiros. E ele prontamente respondeu sobre o material da cozinha. Seu favorito era o “corian”, um revestimento branco para as bancadas. Obviamente que eu entendi que “corian” era sua forma lusitana de dizer “coreano”. E perguntei “Moçambicano você quer dizer, amor?” e ele respondeu “O que tem o moçambicano?” e eu disse “Você falou que o moçambicano era coreano” e ele “Eu disse isso? Quando?” e eu “Agora, seu louco”. Nessa situação levamos três meses para nos entender.
Numa outra ocasião, eu estava num evento em Lisboa e fiz uma pergunta qualquer a um senhor que trabalhava na produção. E ele me respondeu “Isso eu não sei responder, a senhora deve perguntar aos Açores”. E eu repeti “Aos Açores?” e ele disse “Sim, senhora”. Fiquei sem saber o que dizer. Encontrei um amigo português e disse, rindo, “Ele me mandou perguntar aos Açores” e o amigo respondeu “E qual a graça? Vamos lá perguntar”. Eu perguntei, rindo mais, “Você vai me levar até os Açores?” e ele disse “Claro, eles estão ali”. E então eu vi os assessores. Assessores. Assssssores. Açores.
Quando acho que estou me habituando às verduras que eles – estranhamente – chamam de grelos, encontro uma amiga portuguesa depois do almoço e digo “Onde você almoçou?”. Ela responde “Num grl” e eu “Oi?” “Fomos a um grl”. Eu tento me situar e pergunto “Foram comer grelos?” e ela “Não! Um grrrrrllllll” e eu assustada “Comeram grilos?????” e ela, quase me batendo, “GRLLLL, GRLLLL, FOMOS A UM GRLLLL DE CARNES!”. Ahhhh. Entendi. Um grill. Um grill de carnes, desculpe qualquer coisa.
Enfim. Eu sigo batalhando todo santo dia. E tento manter o humor, acima de tudo. Outro dia, meu namorado estava fazendo uma carne de porco, abriu o forno e disse “Acho que está fixe”. “Fixe” é legal em Portugal. E eu fiz o brilhante e espirituoso comentário “Então deu errado, porque era pra ter ficado pig e não fixe”. Ele não achou muita graça.
Comemos o pig fish, assistimos a Frozen pela nonagésima vez e minha enteada comeu bolachinhas com leite antes de dormir. Veio de pijama até mim com o pacote vazio na mão e perguntou “Ru, onde eu deito?” e eu falei “Ué, querida, na sua cama”. Ela achou estranho e foi. Quando cheguei ao quarto, estava o pacote na cama, cheia de migalhas. Deitar. Deitar fora. Jogar fora. O pacote. Das bolachas. Saquei.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Um reino cheio de mistério

No dia 21 de setembro comemorou-se o Dia da Árvore, o que deve ter dado trabalho a muito menino do primário, do qual certamente exigiriam uma redação sobre o tema: com a alma bocejando, os meninos devem ter dito que a árvore dá sombra, frutos etc.
Mas, ao que eu saiba, não se comemora o dia da planta, ou melhor, da plantação. E esse dia é importante para a experiência humana das crianças e dos adultos. Plantar é criar na Natureza. Criação insubstituível por outro tipo qualquer de criação.
Lembro-me de quando eu era menina e fui passar o dia numa granja. Foi um dia glorioso: lá plantei um pé de milho com muito amor e excited. Depois, de quando em quando, eu pedia notícias do que havia criado.
Mais tarde, na Suíça, plantei um pé de tomates numa lata grande, bonita. Quando começaram a aparecer os ainda pequenos tomates verdes e duros achei inacreditável que eu mesma lhes tivesse provocado o nascimento: eu entrara no mistério da Natureza. Cada manhã, ao acordar, a primeira coisa que fazia era ir examinar minuciosamente a planta: é como se a planta usasse a escuridão da noite para crescer. Esperar que algo amadureça é uma experiência sem par: como na criação artística em que se conta com o vagaroso trabalho do inconsciente. Só que as plantas são a própria inconsciência.
Nesse reino, que não é nosso, a planta nasce, cresce, amadurece e morre. Sem nenhum objetivo de satisfazer algum instinto. Ou estarei enganada, e há instintos os mais primários no reino vegetal? Meu tomateiro parecia ter tomates vermelhos porque assim queria, sem nenhuma outra finalidade que não a de ser vermelho, sem a menor intenção de ser útil. A utilização do tomate para se comer é problema dos humanos.
Um dos gestos mais belos e largos e generosos do homem, andando vagarosamente pelo campo lavrado, é o de lançar na terra as sementes.
E quando os tomates ficaram redondos, grandes e vermelhos? Chegara a hora da colheita. Não foi sem alguma emoção que vi num prato da mesa os tomates que eram mais meus que um livro meu. Só que não tive coragem de comê-los. Como se comê-los fosse um sacrilégio, uma desobediência à lei natural. Pois um tomateiro é arte pela arte. Sem nenhum proveito senão o de dar tomate.
O ritmo das plantas é vagaroso: é com paciência e amor que ela cresce.
Entrar no Jardim Botânico é como se fôssemos transladados para um novo reino. Aquele amontoado de seres livres. O ar que se respira é verde. E úmido. É a seiva que nos embriaga de leve: milhares de plantas cheias de vital seiva. Ao vento as vozes translúcidas das folhas de plantas nos envolvem num suavíssimo emaranhado de sons irreconhecíveis. Sentada ali num banco, a gente não faz nada: fica apenas sentada deixando o mundo ser. O reino vegetal não tem inteligência e só tem um instinto, o de viver. Talvez essa falta de inteligência e de instintos seja o que nos deixa ficar tanto tempo sentada dentro do reino vegetal.
Lembro-me de que no curso primário a professora mandava cada aluno fazer uma redação sobre um naufrágio, um incêndio, o Dia da Árvore. Eu escrevia com a maior má vontade e com dificuldade: já então não sabia seguir senão a inspiração. Mas que seja esta a redação que em pequena me obrigavam a fazer.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

O Lobo do Mar | Capítulo 30


Não foi por nada que a batizamos de Endeavour Island (91). Passamos duas semanas trabalhando duro na construção de uma cabana. Maud insistiu em ajudar, e o sangue e os machucados em suas mãos me davam vontade de chorar. Mesmo assim, eu tinha orgulho da atitude dela. Havia algo de heroico naquela moça bem-nascida enfrentando dificuldades tremendas e investindo suas migalhas de força nas tarefas de uma camponesa. Ela coletou muitas das pedras que encaixei nas paredes da cabana e se fingiu de surda toda vez que lhe supliquei para desistir. Apesar disso, se comprometeu a assumir as tarefas mais leves, tais como cozinhar e apanhar madeira e líquen para nossa reserva de inverno.
As paredes da cabana foram erguidas sem muita dificuldade e tudo correu bem até que me deparei com o problema do telhado. De que serviam quatro paredes sem telhado? E que material eu poderia usar para construir um? Tínhamos os remos sobressalentes, era verdade. Poderiam ser usados como vigas. Mas com o que eu poderia cobri-los? O líquen não serviria. Grama de tundra era impraticável. Precisávamos da vela do bote, e a lona já tinha começado a vazar.
Winters usou pele de morsa em sua tenda — falei.
Temos focas — ela sugeriu.
Assim, iniciamos a caçada no dia seguinte. Eu não sabia disparar armas de fogo, mas resolvi aprender. Depois de gastar trinta cartuchos em três focas, concluí que a munição terminaria antes que eu adquirisse a prática necessária. Eu havia gastado oito cartuchos para acender fogueiras antes de descobrir o método de amontoar as cinzas com líquen úmido, e restavam no máximo cem cartuchos dentro da caixa.
Vamos ter de matá-las com pancadas na cabeça — proclamei ao constatar minha falta de talento no tiro. — Ouvi os caçadores falando sobre isso.
Elas são tão bonitas — ela protestou. — Não consigo nem pensar em fazer isso. É uma brutalidade tão direta, sabe?, tão diferente de abatê-las a tiro.
Precisamos de um telhado — respondi, carrancudo. — O inverno está quase chegando. É a nossa vida contra a delas. É uma pena que não tenhamos munição suficiente, mas, de todo modo, acho que elas sofrem menos com uma pancada na cabeça do que alvejadas a tiros. Além disso, caberá a mim dar as pancadas.
Esse é o problema — ela começou a desabafar, mas travou de repente, confusa.
A menos, é claro — comecei a retrucar —, que você prefira…
Mas o que vou ficar fazendo? — ela me interrompeu com aquela delicadeza que eu já sabia muito bem identificar como insistência.
Juntando lenha para o fogo e preparando o jantar.
Ela balançou a cabeça.
É perigoso demais para você ir sozinho.
Comecei a protestar, mas ela intercedeu.
Eu sei, eu sei, sou apenas uma mulher fraca, mas uma pequena ajuda minha pode salvá-lo de um desastre.
Mas e o porrete?
O senhor se encarregará dele, é claro. Eu provavelmente gritarei. Olharei para o outro lado quando…
O risco é dos mais sérios — ri.
Eu mesma saberei quando olhar e quando não olhar — ela respondeu com o nariz empinado.
O resultado de tudo isso é que ela me acompanhou na manhã seguinte. Remei até a enseada adjacente e me aproximei da praia. As focas nos cercavam por todos os lados dentro d’água e gritavam aos milhares na areia, obrigando-nos a gritar no ouvido um do outro para conversar.
Sei que são mortas a golpes de porrete — falei, tentando ganhar confiança enquanto olhava com hesitação para um grande macho a menos de dez metros de mim, erguido sobre as nadadeiras dianteiras e me encarando firme —, mas a grande questão é: como se faz?
Vamos colher grama e forrar o telhado — disse Maud.
Ela estava tão assustada diante da situação quanto eu, e não nos faltava motivo, vendo de perto aqueles dentes reluzentes dentro de bocas caninas.
Sempre pensei que tinham medo dos humanos — falei.
Depois de remar mais um pouco ao longo da praia, me perguntei em voz alta:
Como posso afirmar que não estão com medo? Pode ser que eu pise na areia e elas saiam todas correndo, e que eu não consiga alcançar nenhuma.
Mesmo assim, eu ainda hesitava.
Uma vez ouvi falar de um homem que invadiu um território de procriação de gansos selvagens — disse Maud. — Eles o mataram.
Os gansos?
Sim, os gansos. Meu irmão me contou quando era pequena.
Mas sei que são mortas a golpes de porrete — insisti.
Acho que a grama também daria um belo telhado — ela disse.
Ao contrário do que Maud pretendia, suas palavras estavam me tirando do sério, me incentivando a ir em frente. Eu não podia fazer papel de covarde na frente dela.
Lá vai — eu disse, empurrando a água com um dos remos e metendo a proa na areia.
Desci do bote e avancei bravamente na direção de um macho de longas jubas que mantinha posição no meio de suas fêmeas. Fui armado com o porrete comum que os remadores usavam para abater as focas feridas que eram trazidas a bordo pelos caçadores. Tinha apenas meio metro de comprimento, e em minha suprema ignorância eu não podia imaginar que o porrete usado nos ataques a colônias em terra firme media quase um metro e meio. As fêmeas saíram do meu caminho se arrastando pesadamente e minha distância do macho diminuiu. Ele se ergueu sobre as nadadeiras, furioso. Estava a três ou quatro metros de distância. Continuei avançando com convicção, esperando que ele virasse as costas e fugisse a qualquer momento.
A dois metros de distância, uma ideia apavorante invadiu minha mente. E se ele não fugir? Ora, nesse caso basta atingi-lo com o porrete, respondi a mim mesmo. O medo tinha me feito esquecer que eu estava ali para matar o macho e não para afugentá-lo. Bem nesse momento, ele bufou, grunhiu e veio para cima de mim. Seus olhos estavam acesos, sua boca estava escancarada e seus dentes reluziam um branco cruel. Admito sem vergonha alguma que eu, e não ele, dei as costas e fugi. Ele corria de modo desajeitado, mas corria bem. Estava a dois passos de mim quando me atirei dentro do bote, e quando empurrei a areia com o remo ele cravou os dentes na pá. A madeira dura se esmigalhou como uma casca de ovo. Eu e Maud ficamos assombrados. Um instante depois ele mergulhou por baixo do bote, abocanhou a quilha e começou a nos sacudir violentamente.
Meu Deus! — disse Maud. — Vamos voltar.
Balancei a cabeça.
Sou capaz de fazer o que outros já fizeram, e sei que outros homens mataram focas com um porrete. Mas acho que vou deixar os machos em paz na próxima tentativa.
Preferia que não tentasse de novo.
Não me venha com “Por favor, por favor” agora — exclamei, e creio que com uma certa irritação.
Ela não respondeu, e eu sabia que meu tom devia tê-la magoado.
Me perdoe — falei, ou melhor, gritei para ser ouvido em meio ao rugido das focas. — Se quiser, vou dar meia-volta para irmos embora. Sinceramente, porém, prefiro ficar.
Só não me diga que é nisso que dá trazer uma mulher junto — ela disse, abrindo um sorriso zombeteiro e triunfante que me informou que não havia necessidade de perdão.
Remei uns cinquenta metros beirando a praia, até recuperar a calma, e então saltei de novo em terra.
Faça o favor de tomar cuidado — ela gritou atrás de mim.
Assenti com a cabeça e avancei para investir de flanco contra o harém mais próximo. Tudo correu bem, até que mirei na cabeça de uma fêmea afastada demais e errei o golpe. Ela fungou e tentou bater em retirada. Corri para perto e desferi outro golpe, mas atingi o ombro em vez da cabeça.
Cuidado! — ouvi Maud gritar.
Em minha agitação, deixei de prestar atenção em outras coisas, e ao olhar para cima vi o dono do harém correndo para me atacar. Fugi de novo para o bote, perseguido de perto, mas dessa vez Maud não sugeriu que retornássemos.
Talvez fosse melhor se você deixasse os haréns em paz e dedicasse sua atenção às focas mais solitárias e de aparência inofensiva — ela disse. — Creio que li algo sobre elas. No livro do dr. Jordan (92), acho. São os machos jovens, que ainda não têm idade para possuir seu próprio harém. Ele os chama de “holluschickies”, ou algo assim. Quem sabe, se encontrarmos o lugar onde eles ficam…
Parece que seu espírito de batalha despertou — ri.
Ela ruborizou na mesma hora e ficou ainda mais linda.
Admito que a derrota me desagrada tanto quanto a você, embora não me desagrade tanto quanto a ideia de matar criaturas tão belas e inofensivas.
Belas! — torci o nariz. — Não consegui registrar nada preeminentemente belo naquelas bestas que me perseguiram espumando pela boca.
Foi o seu ponto de vista — ela riu. — Faltou-lhe perspectiva. Se não precisasse se aproximar tanto do objeto…
É isso! — exclamei. — É de um porrete maior que eu preciso. E eis um remo quebrado à disposição.
Acaba de me ocorrer — ela disse — que o capitão Larsen me contou sobre como os homens atacam as colônias. Eles acuam as focas em pequenos rebanhos um pouco para dentro do continente antes de matá-las.
A ideia de acuar um desses haréns não me agrada muito — objetei.
Mas há também os “holluschickies” — ela disse. — Eles andam sozinhos, e o dr. Jordan diz que há passagens entre um harém e outro, e que os “holluschickies” não são agredidos pelos donos dos haréns, desde que se limitem a ficar nessas passagens.
Há um deles ali — apontei para um jovem macho nadando no raso. — Vamos observá-lo e segui-lo, caso ele suba pela praia.
Ele nadou direto para a praia e subiu por uma pequena abertura entre dois haréns, cujos donos emitiram ruídos de alerta, mas não o atacaram. Acompanhamos enquanto ele ia se deslocando vagarosamente para a parte mais alta, contornando os haréns pelo que deveria ser a tal da passagem.
Lá vamos nós — falei saltando do bote. Confesso que meu coração estava saindo pela boca só de pensar em atravessar aquele rebanho monstruoso.
Seria inteligente amarrar o bote primeiro — disse Maud.
Ela saltou ao meu lado e eu a encarei espantado. Ela acenou com a cabeça, decidida.
Sim, vou junto com você, então é melhor amarrar o bote e me providenciar um porrete.
Vamos voltar — pronunciei, desanimado. — Acho que a grama vai servir, no fim das contas.
Você sabe que não — ela respondeu. — Devo ir na frente?
Com um erguer de ombros, mas ao mesmo tempo com o coração cheio de um orgulho e uma admiração afetuosos por aquela mulher, entreguei-lhe um remo quebrado e peguei outro para mim. Percorremos os primeiros metros da jornada com trepidação e nervosismo. Em dado momento, Maud gritou aterrorizada quando uma foca esticou um nariz curioso perto do seu pé, e eu apressei o passo diversas vezes pelo mesmo motivo. Mas, fora alguns rosnados de alerta vindos dos dois lados, não houve sinais de hostilidade. Era uma colônia que nunca havia sido atacada por caçadores, e consequentemente as focas eram mansas e sem medo.
No coração do rebanho, o barulho era avassalador, de tal ordem que chegava a dar tontura. Fiz uma pausa e exibi um sorriso de estímulo para Maud, pois havia recobrado a tranquilidade antes dela. Era evidente que ela ainda estava muito assustada. Ela se aproximou de mim e gritou:
Estou morrendo de medo!
E eu não estava. Embora ainda não tivesse me acostumado, o comportamento pacífico das focas havia diminuído em mim a sensação de ameaça. Maud tremia.
Estou com medo e ao mesmo tempo não estou — ela proferiu entre as mandíbulas trêmulas. — é o meu pobre corpo, e não eu.
Tudo bem, tudo bem — eu a confortei, e meu instinto de proteção me fez envolvê-la com o braço.
Jamais esquecerei a consciência que tive de minha virilidade naquele momento. As profundezas primitivas de minha natureza foram despertadas. Me senti másculo, um protetor dos mais fracos, um macho guerreiro. E o melhor de tudo é que me sentia o protetor da pessoa que eu amava. Ela se aninhou contra mim, leve e frágil como um lírio, e à medida que seus tremores iam diminuindo eu me tornava ciente da existência de uma força prodigiosa. Me senti à altura do macho mais feroz do rebanho, e sei que, caso um desses machos tivesse investido contra mim naquele momento, eu o teria enfrentado sem hesitar, com toda a calma, e o teria matado.
Estou bem agora — ela disse, erguendo a cabeça com um olhar agradecido. — Vamos continuar.
Ao ver que minha força tinha sido capaz de acalmá-la e enchê-la de confiança, fiquei exultante. Era como se a juventude da raça tivesse desabrochado dentro de mim, homem hipercivilizado que era, e eu estivesse vivenciando os dias de caçada e as noites na floresta de meus ancestrais remotos e esquecidos. Eu tinha muito a agradecer a Wolf Larsen, foi o que pensei enquanto caminhávamos pela passagem entre os haréns de focas amontoadas.
Depois de subir uns quatrocentos metros pela praia, encontramos os “holluschickies”, machos jovens e esguios vivendo na solidão de sua solteirice e reunindo forças para o dia em que lutariam para ingressar nas fileiras dos casados.
Tudo correu bem dessa vez. Era como se eu soubesse exatamente o que fazer e como fazer. Gritei, fiz gestos ameaçadores com o porrete, cheguei a cutucar os mais preguiçosos, e não demorei para separar um grupo de jovens solteiros de seus companheiros. Quando algum deles tentava abrir caminho em direção à água, eu o impedia. Maud participou ativamente da operação, ajudando bastante com gritos e floreios do remo quebrado. Percebi que ela deixava passar os que pareciam muito cansados e ficavam para trás. Mas também percebi que, sempre que algum deles tentava passar mostrando disposição para o combate, ela arregalava os olhos brilhantes e lhe desferia um golpe preciso com o porrete.
Nossa, quanta emoção! — ela exclamou, fazendo uma pausa para descansar. — Acho que vou sentar um pouco.
Conduzi o pequeno rebanho (agora era um pouco mais de uma dúzia, por conta dos que ela havia deixado escapar) mais uns cem metros acima pela praia, e quando ela me alcançou de novo eu já tinha concluído a matança e estava começando a retirar as peles. Uma hora depois, retornamos orgulhosos pela passagem entre os haréns e repetimos o percurso mais duas vezes com peles pesando nos ombros, até que me pareceu haver quantidade suficiente para o telhado da cabana. Armei a vela, naveguei em uma amura para sair da praia e depois na outra para retornar à proteção de nossa pequena enseada.
É como voltar para casa — disse Maud enquanto eu arrastava o bote para a beira.
Aquelas palavras soaram íntimas e naturais e me encheram de empolgação, tanto que falei:
É como se eu sempre tivesse levado essa vida. O mundo dos livros e as pessoas livrescas ficaram muito vagos, mais como a lembrança de um sonho do que uma realidade. Tenho certeza de que cacei, invadi e lutei a vida toda. E você também parece ser parte dessa vida. Você é — eu estava quase dizendo “minha mulher, minha parceira”, mas consegui mudar para — corajosa para enfrentar tudo isso.
Mas seus ouvidos captaram o improviso. Ela reconheceu um voo interrompido no meio e me lançou um rápido olhar:
Não era isso. Você ia dizer que…?
Que a sra. Meynell dos Estados Unidos está vivendo uma vida selvagem e se saindo muito bem — falei com naturalidade.
Ah — ela se limitou a responder, mas jurei ter ouvido uma ponta de decepção em sua voz.
Apesar disso, aquele “minha mulher, minha parceira” ficou ecoando em minha mente durante todo o resto do dia e por muitos dias depois. Mas nunca ecoou tão forte quanto naquela noite, quando a vi retirar a cobertura de líquens de cima das brasas, soprar o fogo e cozinhar o nosso jantar. Só podia ser a selvageria latente que despertara dentro de mim, fazendo com que aquelas velhas palavras, tão entranhadas nas raízes da nossa raça, me agarrassem e agitassem de tal forma. Foi o que fizeram, me agarraram e agitaram enquanto eu as murmurava comigo mesmo sem parar, até cair no sono.
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(91). A alcunha dada ao local significa algo como “Ilha do Esforço”.
(92). David Starr Jordan (1851-1931), naturalista americano. A obra a que Maud alude é The Fur Seals and Fur-Seal Islands of the North Pacific Ocean (1899), na qual o “holustiaki”, termo russo para o macho jovem da foca, é descrito.

Jack London, in O Lobo do Mar

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

A Arte pelas pupilas de uma criança

Flores (2016, acrílica sobre tela), de Laércio Eugênio


A primeira arte do artista plástico mossoroense Laércio Eugênio que entrou na minha casa, para perfumá-la com beleza, foi esse quadro. A minha neta Maria Eduarda, então com 03 aninhos, contemplou-a e, num deslumbre, poetizou: “Quem colocou ‘essa flor’ nesse quadrado?”

O poeta e a menina

Hoje ganhei o meu dia. Porque uma meninazinha me perguntou: “O senhor pode me botar uma dedicação neste livro?” Escrevi, então, sinceramente: “Para a Heloisa Maria, com toda a minha dedicação.” E assinei. E datei, com tristeza.

Mário Quintana, in Caderno H

Capítulo 41 | A Alucinação

E era verdade. Entrei apressado, achei Virgília ansiosa, mau humor, fronte nublada. A mãe, que era surda, estava na sala com ela. No fim dos cumprimentos disse-me a moça com sequidão:
Esperávamos que viesse mais cedo.
Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que empacara, e de um amigo, que me detivera. De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília… seria Virgília aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista. Tomei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele, ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo que devastara o rosto da espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o lábio triste e a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a brandamente a mim.
Não me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa.
Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a olhar para os meus próprios pés. Devia sair ou ficar?
Rejeitei o primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo, e encaminhei-me para Virgília, que lá estava sentada e calada.
Céus! Era outra vez a fresca, a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei no rosto dela algum vestígio da doença; nenhum havia; era a pele fina e branca do costume.
Nunca me viu? perguntou Virgília, vendo que a encarava com insistência.
Tão bonita, nunca.
Sentei-me, enquanto Virgília, calada, fazia estalar as unhas. Seguiram-se alguns segundos de pausa. Falei-lhe de coisas estranhas ao incidente; ela porém não me respondia nada, nem olhava para mim. Menos o estalido, era a estátua do Silêncio. Uma só vez me deitou os olhos, mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda do lábio, contraindo as sobrancelhas, ao ponto de as unir; e todo esse conjunto de coisas dava-lhe ao rosto uma expressão média entre cômica e trágica.
Havia alguma afetação naquele desdém; era um arrebique do gesto. Lá dentro, ela padecia, e não pouco, – ou fosse mágoa pura, ou só despeito; e porque a dor que se dissimula dói mais, é mui provável que Virgília padecesse em dobro do que realmente devia padecer. Creio que isto é metafísica.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Quem nunca

Ambiente de trabalho. Três mulheres estão sentadas, cada uma em seu computador. Marta puxa papo.
MARTA Gente, eu sou uma pessoa péssima.
TELMA Eu te garanto que eu sou uma pessoa pior que você.
MARTA Não é, não. Meu vizinho ficou fazendo barulho de madrugada. Aí hoje eu acordei e liguei o som no volume máximo. Falamansa: rararará mas eu tô rindo à toa. E vim trabalhar. Deve estar rolando agora.
TATI Você é péssima!
MARTA Ué, qual é o problema? A lei do silêncio só vai até as oito da manhã!
Elas riem.
TELMA Amiga, e eu que criei um perfil falso só pra trollar a nova namorada do meu ex no Instagram.
MARTA Mentira!
TELMA Fico o dia inteiro lá: Feia. Tornozelo grosso. Não vestiu bem. Seu cabelo tá seco.
MARTA Boa! Sua escrota.
TELMA Quem nunca?
Elas riem.
TATI E eu, que roubo?
MARTA Oi?
TATI E eu, que roubo coisas que eu não preciso só pras pessoas não terem mais as coisas?
TELMA Você faz isso?
TATI Vai dizer que sou só eu? Agora vai dizer que eu sou a única que roubo coisas de mendigos que estão dormindo?
MARTA Você rouba de mendigo?
TELMA É a única coisa que eles têm!
JULIA Exatamente!
TATI Eles ficam desesperados!
MARTA Por isso é que não pode.
TATI Por isso é que tem graça!
O clima pesa.
MARTA Você é meio louca.
TATI Obrigada!
TELMA Não, louca ruim. Desculpa dizer isso, mas você é uma pessoa ruim.
TATI Gente, agora lá vêm as moralistas! Vão dizer que nunca roubaram o dinheiro da caixinha do pessoal do almoxarifado?
TELMA Nunca.
TATI Tá bom. E da academia?
MARTA Não.
TATI Aquelas moças só guardam tua bolsa. Pra que tanta caixinha? Aquilo é feito pra pessoa roubar!
TELMA Tati, é o dinheiro deles.
TATI Eles já ganham salário! Décimo terceiro, FGTS, a porra toda. Caixinha é pra quê? Pra roubar.
MARTA Isso é muito errado, Tati.
TATI Gente, se envolver com a milícia e pedir pra matar uma pessoa que falou mal de você na internet também é errado e todo o mundo faz.
TELMA Você fez isso?
MARTA Você é uma pessoa podre.
TATI Uou. Desculpa! Não sabia que eu estava lidando com a Comissão de Ética! Desculpa, Joaquim Barbosa!
MARTA Tati, tudo tem limites.
TATI A que ponto chegou essa patrulha do politicamente correto? Os Trapalhões faziam piada de preto! Hoje em dia você bate numa velha e toca uma sirene.
TELMA Você bate em velha?
TATI Gente, amiga não julga.

Gregório Duvivier, in Put some farofa