Aeroprosa

Bom dia, aeromoça! Não sei se devia dizer-lhe, antes: Bom céu! O dia é de todos, e desejá-lo bom não passa de cumprimento. Já o céu é de vocês, de seus amigos aeronautas, e dos pássaros, em condomínio. Dos passageiros o céu não é, que os passageiros levam para o alto seus cuidados terrestres, seu comportamento terrestre, seu terrestre apego a uma existência rastejante. Ah que la vie est quotidienne!, lamentava-se o poeta Jules Laforgue. Ela jamais é cotidiana para vocês, salvo na medida em que, abdicando temporariamente a condição alada, passam de aeromoças a moças, simplesmente. Sei de uma que está fazendo serviço de escritório, proibida de voar por motivo de saúde, e me pergunto que podem significar para ela esses papéis, esses telefonemas, esses recados que circulam num plano de cimento invariável, enquanto, sobre a plataforma de nuvens, suas irmãs caminham, ao mesmo tempo singelas e majestáticas. Não, não vou confrontar essa rapariga com o passarinho na gaiola ou o peixe no aquário. O diretor do jornal espera de seus redatores que escrevam coisas originais, ou que, em circunstâncias extremas, dissimulem a falta de originalidade com um filete de imaginação. Aeromoça na burocracia me dá ideia de um pé de gerânio intimado a viver e florir dentro de um armário fechado; de uma formiga dentro da garrafa; de um marinheiro que vi doente num sanatório, com a mão em pala sobre os olhos, olhando sempre o vale lá embaixo, à espera de que um navio atracasse entre as árvores; este ainda levava o navio consigo, mas o avião está acima do nosso poder de fixá-lo, e foge por hábito; onde quer que andasse, o marinheiro estaria mais ou menos ao nível do seu barco, porém a moça plantada no escritório sabe que a correlação se perdeu, e o zumbido dos motores, que às vezes nos acorda pela madrugada (depois dormimos, sentindo-nos ancorados à terra do colchão), há de ser para ela um adeus enervante e rouco. Saúde, aeromoça exilada entre fichários: é o que lhe desejo sem nenhum convencionalismo de boa educação, mas porque o justo é voltar às nuvens o que às nuvens pertence.
Estou escrevendo essas bobagens meio líricas no pressuposto de que vocês, amigas, adoram viajar e detestam isso aqui embaixo. Bem sei, entretanto, que não se libertaram de todo da contingência, e querem amar ao nível da terra, e ter filhos que olhem de baixo para os aviões. Que vocês têm medo como a gente, há pouco um filme o contava em cinemascope, seja porque não se aperfeiçoou ainda uma nova geração de aeromoças mais do ar que do sangue, ou de sangue supercontrolado, seja porque o medo, como a fome, o instinto amoroso e o sentimento da beleza, constitui prendas inalienáveis da humanidade, e com elas temos de edificar nossa vida, e mesmo nossa coragem. Mas, por outro lado, aeromoça, deixe que eu saúde em sua figurinha o mais belo mito moderno, aquele que as empresas de navegação aérea criaram num instante inspirado de poesia comercial, aquele que acompanha os homens em sua paúra e os impede de se rebaixarem à situação de macacos em pânico; aparição que os cerca de cuidados quase maternos à força de sutileza, ao mesmo tempo impessoais na sua cortesia planificada; companhia com que sonhamos os mais soberbos e aventurosos romances mentais, no momento em que precisamos urgentemente de uma cota de romance; enfim, peça insubstituível do avião e da ideia de viagem aérea, que torna, com sua ausência, tão cacetes os voos onde só há comissários de bordo; peça, que digo? alma do avião, e seu quinto motor inefável e humanizante.
Bom céu, aeromoça. O céu não tem estado bom nesses últimos dias, e se isso explica o atraso dos aviões, pode explicar também o atraso com que festejo o seu dia 31 de maio. Chove, e há gripe por todos os lados. Não houve propriamente maio, e sim um composto de águas barrentas, tosse, febre e candidaturas. Que o céu clareie e possamos festejar melhor a sua data. E como, afinal de contas, esta é uma página séria, terminarei desejando que lhe deem, no espaço, cada vez maior segurança de voo; e, na terra inflacionada, melhor salário. Você bem o merece, aeromito, aeromusa.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

Ripuária


Seja por que, o rio ali se opõe largo e feio, ninguém o passava. Davam-lhe as costas os de cá, do Marrequeiro, ignorando as paragens dele além, até à dissipação de vista, enfumaçadas. Desta banda se fazia toda comunicação, relações, comércio: ia-se à vila, ao arraial, aos povoados perto. João da Areia, o pai, conhecia muita gente, no meio redor, selava a mula e saía, frequente. O filho, Lioliandro, de fato se aliviava com essas ausências. Ele não gostava de se arredar da beira, atava-se ao trabalho. Era o único a olhar por cima do rio como para um segredado.
Lioliandro tinha irmãs, careciam de quem em futuro as zelasse. — “Morro, das preocupações!” — invocava João da Areia, apontando para os olhos do filho o queimar do cigarro. Morreu. A mãe, acinzentada, disse então àquele, apontando-lhe aos olhos com o dedo: — “Tu, toma conta!” — pelo tom, parecia vingar-se das variadas ofensas da vida.
Lioliandro cismou: a gente podia vender o chão e ir... E virava-se para a extensão do rio, longeante, a não adivinhar a outra margem. Mas constavam-lhe do espírito ainda os propósitos do pai: — “Em parte nenhuma feito aqui dá tanto arroz e tão bom...” Teve de reconhecer a exatidão da tristeza.
Suas irmãs despontavam sacudidas bonitas, umas já com conversado casamento. Delas se afastava Lioliandro, não por falta de afeto, mas por não entender em amor as pessoas. Fazia era nadar no rio, adiantemente, o quanto pudesse, até de noite, nas névoas do madrugar.
— “Diabo o daí venha!” — vetava a mãe, que se mexia como uma enorme formiga. Lioliandro, no fundo, não discordava. Disse: não se casaria, até que a sorte das irmãs estivesse encaminhada. — “Sua obrigação...” — a mãe apôs. Lioliandro disso se doeu, mas considerando tudo certo fatal.
E veio, nesse tempo, foi uma canoa, sem dono, varada na praia. A fim, estragada assim, rodara, de alto rio. Ele ocultou-a, levava muito, sozinho, para a consertar, com mãos de lavrador. Em mente, achava-lhe um nome: Álvara. Depois, não quis, quando ansioso.
Queria era, um dia, que fosse, atravessar o rio, como quem abre enfim os olhos. Tinha notícia — que do lado de lá houvesse lugares: uns Azéns, o Desatoleiro, a grande Fazenda Permutada. Fez os remos.
Por esses espaços ninguém metia lanço, devido a que o rio em seio de sua largura se atalhava de corredeiras — paraíba — repuxando sobre pedregulho labaredas d’água; só léguas abaixo se transpunha, à boca de estrada, no Passo-do-Contrato. De lá surgia pessoa alguma. — “Lá não é mais Minas Gerais...” — o pai, João da Areia, quando vivo, compunha o jurar.
No em que se casaram, junto, as duas primeiras irmãs, se deu festa, mas Lioliandro não sabia dançar. Irrequieta mocinha, também vinda, dançava sorridente, de entre as mais nem se destacava. Lioliandro uma hora desertado se sumiu de todos, buscou a beirada do rio, que no escuro levava água bastante, calado e curto, como o jaguar. Álvara, aquela recuidada moça, no saudar lhe dera a mão. Disse-se lhe dissera: — “Você tem o barquinho, pega a gente para passear?”
Ele a desentendera. Espiava agora o acolá da outra aba, aonde se acendia uma só firme luz, falavam-na o que não se tinha por aqui, que era de eletricidade. Disso tomavam todos inveja. Desconfiou mais, para se arrimar, desse tempo por diante.
Até o choco das garças, nos ninhos nas árvores. Montou então uma vez a canoa e experimentou, no remar largo, era domingo, dia de em serviço não se furtar a Deus. Talvez ele não sendo o de se ver capaz — conforme sentenciara-o o velho, João da Areia. Decerto, desta banda de cá, dos conhecidos, o desestimavam, dele faziam pouco.
Do outro lado, porém, lá, haveria de achar uma moça, e que amistosa o esperava como o mel que as abelhas criam no mato... O rio era que indicava o erro da gente, importantes defeitos, a sina. Dentro quase no meio, se avistava, na seca, ilha-de-capim, antes da maior, inteira, crôa com mouchão, florestosa.
Depois foi a Lica, irmã caçula, que ficou nôiva. A não esquecida moça, Álvara, veio passar mês em casa, para auxiliar nos preparos. Ela cantava coplas, movendo no puro ar os braços. Mesmo não se curava Lioliandro de frouxo desassossego.
Entretanto provara, para sustos e escândalo, a façanha. De aposta, temeram por sua vida! Desapareceu, detrás das ilhas, e da pararaca, em as rápidas águas atrapalhadas. Só voltou ao outro dia, forçoso, a todo o alento.
— “Havia lá o que?” — perguntaram-lhe. Nenhum nada. Mais a dentro deviam de viver as povoações, não margeantes, ver que por receio do ribeiradio, de enfermidades. E fora então buscar a febre-de-maresia? Tanto que não. Dobrava de melancolia. Trouxera a lembrança de meia lua e muitas estrelas: várzeas largas... A praia semeada de vidro moído.
Muito o coração lhe dava novos recados. Lioliandro estudava a solidão. Dela lhe veio alguma coisa.
Álvara, a moça, na festa, para ele atentara, as dadas vezes, com olhos que aumentavam, mioludos, maciamente; ele desencerrava-se. Da feita, também ela ficou de parte. — “Não danço...” — a todos respondia.
Mas agora os mesmos olhos o estranhassem, a voz, que não ouvindo. Dele não era que gostava, não podia; decerto, de algum outro, dos que a enxergavam, diversamente, no giro de alegria. A travessia nem lhe valera, devia mais ter-se perdido, em fim, aos claros nadas, nunca, não voltando.
Na manhã, ele olhou menos as mãos, abertas rudemente: o rio, rebojado, mudava de pele. Nem atendeu aos que lhe falavam, aflitos, à mãe, que desobedecida o amaldiçoava. Entrou, enfiava o rio de frecha, cortada a correnteza, de adeus e adiante, nadava, conteúdo, renadava.
Revia as ilhas, donde o encachoeirado estrondeante, daí o remate e praia — de a-porto. Seu amor, lá, pois. Mediante o que precisava, que de impor-se afã, nem folga, o dever de esforço. — “Não posso é com o tal deste rio!” — tanto tinha dito o pai, João da Areia. Sacudiu dos dois lados os cabelos e somente riu, escorrido cuspindo.
Súbito então se voltou, à voz a chamar seu nome: por entre o torto ondear, que ruge-ruge mau moinhava enrolando-o, virou e veio.
A mãe bem que chorava, desdizendo as próprias antigas pragas. Detrás dela, aparecia aquela escolhida, Álvara, moça, que por ele gritara, corada ou pálida. — “Que é que lá tu queria?!” — as mãos da mãe tacteavam-lhe o corpo.
Mais a moça o encarou. — “Tudo é o mesmo como aqui...” Lioliandro quis ouvir, se bem que leve, nem crendo.
— “De lá vim, lá nasci” — sem pejo, corajosa, a curso. Sim, a gente a podia fácil entender, tão querida, completadamente: — “Sou também da outra banda...”

Guimarães Rosa, in Tutameia

A máquina está crescendo

O homem foi programado por Deus para resolver problemas. Mas começou a criá-los em vez de resolvê-los. A máquina foi programada pelo homem para resolver os problemas que ele criou. Mas ela, a máquina, está começando também a criar problemas que desorientam e engolem o homem. A máquina continua crescendo. Está enorme. A ponto de que talvez o homem deixe de ser uma organização humana. E como perfeição de ser criado, só existirá a máquina. Deus criou um problema para si próprio. Ele terminará destruindo a máquina e recomeçando pela ignorância do homem diante da maçã. Ou o homem será um triste antepassado da máquina; melhor o mistério do paraíso.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Noite fria

Leslie andava sob as palmeiras. Parou diante de um cocô de cachorro. Eram dez e quinze da noite em Hollywood leste. O mercado subira 22 pontos naquele dia e os especialistas não sabiam explicar o motivo. Eram muito melhores para explicar quando o mercado caía. A catástrofe deixava-os felizes. Fazia frio em Hollywood leste. Leslie abotoou o botão de cima do casaco e teve um arrepio. Curvou os ombros contra o frio.
Um homenzinho de chapéu de feltro cinza aproximou-se dele. O rosto parecia a frente de uma melancia, sem expressão. Leslie pegou um cigarro e atravessou o caminho do homenzinho. O outro tinha seus quarenta e cinco anos, um metro e sessenta e poucos, uns setenta quilos talvez.
Tem fósforo, senhor? – ele perguntou ao homem.
Ah, sim...
O homem enfiou a mão no bolso, e enquanto fazia isso Leslie meteu-lhe o joelho nas virilhas. O homem rosnou e curvou-se, e Leslie deu-lhe uma porrada atrás de uma das orelhas. Quando o homem caiu, Leslie ajoelhou-se, sacou a faca e cortou-lhe a garganta, ao frio luar de Hollywood leste.
Foi tudo muito estranho. Foi como um sonho meio lembrado. Leslie não sabia ao certo se aquilo estava acontecendo de fato ou não. A princípio, o sangue pareceu hesitar, era apenas um corte profundo, depois o sangue esguichou. Leslie recuou enojado. Levantou-se, afastou-se. Depois voltou, meteu a mão no bolso do homem, encontrou os fósforos, levantou-se, acendeu o cigarro e afastou-se rua abaixo, em direção a seu apartamento. Leslie nunca tinha fósforos suficientes, a gente sempre vivia sem fósforos, ao que parecia. Fósforos e esferográficas...
Leslie sentou-se com um uísque com água. O rádio tocava Copeland. Bem, Copeland não era grande coisa, mas era melhor que Sinatra. A gente pegava o que conseguia e tentava satisfazer-se. Era o que seu velho lhe dizia. Foda-se seu velho. Fodam-se todos os meninos de Jesus. Foda-se Billy Graham.
Ouviu uma batida na porta. Era Sonny, o garoto louro que morava defronte dele, no lado oposto do pátio. Sonny era meio homem e meio pau, e vivia confuso. A maioria dos caras de pau grande tinha problemas quando acabava a trepada. Mas Sonny era mais legal que a maioria; era suave, era delicado e tinha um pouco de inteligência. Às vezes era até engraçado.
Escuta, Leslie, quero falar com você uns minutos.
Tudo bem. Mas, merda, estou cansado. Passei o dia todo nas corridas.
Mal, hum?
Quando voltei ao estacionamento, depois que acabou, descobri que um filho da puta tinha arrancado meu para-choque ao sair. Isso é uma merda, você sabe.
Como se saiu com os cavalinhos?
Ganhei duzentos e oitenta dólares. Mas estou cansado.
Tudo bem, não vou demorar muito.
Tudo bem. Que é que há? Sua velha? Por que não dá umas porradas pra valer em sua velha? Os dois vão se sentir melhor.
Não, minha velha está bem. Só que... merda, eu não sei. Essas coisas, você sabe. Parece que não consigo entrar em nada. Parece que não me ligo. Tudo travado. Todas as cartas tomadas.
Porra, isso é o normal. A vida é um jogo unilateral. Mas você só tem vinte e sete anos, talvez dê sorte em alguma coisa, de algum modo.
Que fazia você quando tinha minha idade?
Estava pior que você. Ficava deitado no escuro à noite, bêbado, na rua, esperando que alguém me atropelasse. Não dei sorte.
Não conseguia pensar em outra saída?
Isso é uma das coisas mais difíceis, imaginar qual deve ser a primeira jogada da gente.
É... Tudo parece tão inútil.
Nós matamos o filho de Deus. Acha que aquele Sacana vai nos perdoar? Eu posso ser louco, mas sei que Ele não vai!
Você só fica sentado aí, com seu roupão rasgado, e passa metade do tempo bêbado, mas eu sei que é mais são do que qualquer um que eu conheço.
Opa, gosto disso. Você conhece muita gente?
Sonny apenas deu de ombros.
O que eu preciso saber é se há uma saída. Há alguma espécie de saída?
Garoto, não há saída. Os analistas aconselham a gente a jogar xadrez ou colecionar selos ou jogar bilhar. Qualquer coisa, menos pensar nos problemas maiores.
Xadrez é um saco.
Tudo é um saco. Não há como escapar. Sabe que alguns vagabundos de antigamente tatuavam no braço: “NASCIDO PRA MORRER.” Por mais primitivo que pareça isso, é sabedoria fundamental.
Que acha que os vagabundos tatuariam no braço hoje?
Não sei. Na certa alguma coisa tipo “JESUS BARBEIA”.[2]
Não podemos fugir de Deus, podemos?
Talvez Ele não possa fugir de nós.
Bem, escuta, é sempre bom conversar com você. Sempre me sinto melhor depois de conversar com você.
Quando quiser, garoto.
Sonny levantou-se, abriu a porta, fechou-a e se foi. Leslie serviu outro uísque com água. Bem, os Rams de Los Angeles tinham formado sua linha de defesa. Uma boa jogada. Tudo na vida evoluía para a DEFESA. A Cortina de Ferro, a mente de ferro, a vida de ferro. Um treinador realmente durão ia acabar mandando chutar no ar toda vez que sua equipe pegasse a bola, e jamais perderia o jogo.
Leslie acabou o seu uísque, baixou as calças e coçou o rabo, enterrando os dedos. As pessoas que curavam suas hemorroidas eram idiotas. Quando não havia ninguém mais em volta, era melhor do que ficar sozinho. Leslie serviu-se outro uísque. O telefone tocou.
Alô?
Era Francine. Francine gostava de impressioná-lo. Gostava de achar que o impressionava. Mas era uma chata elefantina. Leslie muitas vezes pensava em como era bom deixando que ela o chateasse daquele jeito. O cara médio bateria o telefone na cara dela como uma guilhotina.
Quem escrevera aquele excelente ensaio sobre a guilhotina? Camus? Era, Camus. Camus tinha sido um chato, também. Mas o ensaio sobre a guilhotina e O Estrangeiro eram sensacionais.
Almocei hoje no Beverly Hills Hotel – ela disse. – Tive uma mesa só pra mim. Salada e drinques. Dustin Hoffman estava lá, e algumas outras estrelas de cinema também. Conversei com as pessoas sentadas perto e elas sorriram e balançaram a cabeça, mesas inteiras de sorrisos e acenos de cabeça, carinhas amarelas como narcisos. Continuei falando e eles sorrindo. Achavam que eu era alguma doida, e o jeito de se livrarem era sorrindo. Foram ficando cada vez mais nervosos. Você entende?
Claro.
Achei que você gostaria de saber disso.
É...
Está sozinho? Quer companhia?
Esta noite estou realmente cansado, Francine.
Após algum tempo Francine desligou. Leslie despiu-se, tornou a coçar o rabo e entrou no banheiro. Correu o fio dental entre os poucos dentes que lhe restavam. Que feiúra, aquelas coisas penduradas. Devia espatifar os dentes restantes com um martelo. Todas as brigas de beco que tivera e ninguém pegara os dentes da frente. Bem, tudo acabaria ficando bem. Acabado. Leslie pôs Crest na escova elétrica e tentou ganhar algum tempo.
Depois disso, sentou-se na cama por um longo tempo, com um último uísque e um cigarro. Pelo menos era alguma coisa a fazer enquanto se esperava para ver no que daria. Ele olhou a caixa de fósforos em sua mão, e de repente lembrou-se que era a que tirara do homem da cara de melancia. O pensamento espantou-o. Aquilo tinha acontecido de fato ou não? Ele fitava a caixa de fósforos, imaginando. Olhou a tampa:
1.000 RÓTULOS PERSONALIZADOS
COM SEU NOME E ENDEREÇO
APENAS 1 DÓLAR
Bem, pensou, isso não parece um mau negócio.

[2] “JESUS SHAVES” – Trocadilho com saves (salva), de “Jesus Saves”, com shaves (barbeia). (N. T.)

Charles Bukowski, in Numa Fria

terça-feira, 29 de novembro de 2022

O mundo de Deus

Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.
Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópoles terrenas.
E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac:
O deserto é Deus sem os homens.”

Mário Quintana, in Caderno H

Da vida

 A vida é um mal digno de ser gozado.

Fernando Pessoa, in Aforismos e afins

Revelações

A posteridade não é mais um lugar seguro. Com a nova liberalidade, principalmente em matéria de sexo, as biografias agora contam tudo. Biografia sem uma revelação antes desconhecida ou suprimida não tem graça, ou não é biografia. Até as autobiografias precisam incluir confissões reveladoras, para serem confiáveis.
Existe um livro que diz explicitamente o que todos já desconfiavam: que J. Edgar Hoover, eterno diretor do FBI, defensor da lei, da ordem e dos bons costumes, caçador de comunistas e um notório durão, ia a festas vestindo um tutu rodado. John Kennedy, sabe-se agora, jamais perguntava a americanas o que seu país poderia fazer por elas, mas o que elas poderiam fazer pelo seu país ali mesmo, em cima da mesa do Gabinete Oval. Durante os anos Kennedy a maior ameaça à segurança dos Estados Unidos era alguma moça disparar foguetes nucleares contra a União Soviética com sua bunda, sem querer. (E quando os mísseis soviéticos começassem a cair sobre Washington em retaliação, se ouviria da Casa Branca a voz de Kennedy gritando “My God, isto é o que eu chamo de orgasmo!”.)
Em breve saberemos que Cristóvão Colombo desembarcou no Novo Mundo de mãos dadas com um marinheiro. Que Átila, o Flagelo de Deus, era secretamente chamado pelos seus comandados de Rainha dos Hunos e vivia maritalmente com seu cavalo. Que mesmo durante a guerra Winston Churchill continuou reunindo-se todas as quintas com ex-colegas de escola para relembrarem as festas no dormitório, inclusive com as ligas pretas. E que certa vez Charles de Gaulle foi convidado para a reunião, chocou-se com o que viu, mas no meio da noite já estava só de combinação.
Alguns detalhes históricos serão esclarecidos. Napoleão enfiava a mão dentro da túnica seguidamente para ajeitar o soutien. Stalin tinha um bigode cor-de-rosa para usar em ocasiões especiais. Monsieur e Madame Curie eram a mesma pessoa. O doutor Frankenstein inventou a história do monstro criado no seu laboratório para justificar aquele halterofilista morando com ele.
Etc. Etc.

Luís Fernando Veríssimo, in Diálogos Impossíveis

Cartas para minha avó

Enquanto escrevia essas cartas para você, meu irmão Denis, o mais velho, me enviou uma foto sua, vó. Você estava toda altiva, usando roupas brancas e com um turbante na cabeça. Fiquei observando cada detalhe da imagem, me demorei imaginando quais histórias havia por trás das rugas em seu rosto, quantas vidas tinham sido afetadas por aquelas mãos calejadas que curavam cobreiros e davam esperança aos que foram benzidos. Mas nada me chamou mais atenção do que seus olhos. Um olhar penetrante, forte e, de novo, altivo. Minha mãe carregava o mesmo olhar, apesar de ele ter sido encurvado pelo tempo. Às vezes ela falava só com olhares, e eu aprendi a decifrar cada um deles: “Saia daqui”, “Fique quieta”, “Não se meta, é conversa de adulto”, “Quando seu pai for trabalhar, você vai se ver comigo”.
Um olhar, porém, me é inesquecível. Um olhar que só mulheres cúmplices podem trocar: “Confirme com seu pai que a compra custou tanto”, “Veja se seu pai desligou o chuveiro para que eu tenha tempo de checar a carteira dele”. O resultado desse olhar significaria compras a mais no supermercado, roupas novas fora do Natal, guloseimas no domingo. “Se seu pai vai gastar dinheiro na rua, que a gente tire o nosso”, minha mãe dizia.
Essa cumplicidade, porém, tinha um sentido mais profundo: o de me proteger das violências que somente mulheres sofrem. Esse olhar poderia ser feio para quem mexesse com a gente na rua, de fúria para vizinhos que dissessem lascivamente “suas filhas estão crescendo”, de amor e afeto quando ela me dizia para dormir com ela na sua cama. Se as injustiças do mundo me deixam indignada, foi porque olhos altivos negros da cor da noite me acolheram antes que eu pudesse aprender as palavras, antes que eu soubesse o que era feminismo ou luta política. Olhos que me repreenderam quando eu estava errada e que me ensinaram a humildade de pedir desculpas.
Por mais que você e minha mãe se desentendessem constantemente, seus olhares eram quase iguais. Penso que somente a geração futura poderá fazer justiça às mais velhas ou compreender outros olhares. Como se diz no candomblé, os mais novos precisam dos mais velhos, reconhecer o caminho pavimentado, mas os mais velhos também precisam dos mais novos, para seguirem existindo e terem senso de continuidade. A força dos olhares cúmplices seus e de minha mãe, mesmo que menos frequentes do que desejávamos, foi fundamental para me ensinar a ver o mundo pela perspectiva da mulher que enfrenta visceralmente o mundo. Ao ver seus olhos na foto, entendi de onde herdei os meus.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Cena carioca | II

No meio das barracas tem a moça morta. Podem apostar que, à exceção de um ou outro parente, vamos esquecer esse acontecimento na vida de nossas retinas tão fatigadas. Não temos, é pena, a memória do poeta.
Ridículo transformar o pivete Maguinho, que nada tem de seu, a não ser o calção e o revólver, num Al Capone de Xou da Xuxa, num micro Cara-de-Cavalo, num pequeno Ministro da Indústria e Comércio.
Quem armou o garoto? Mãos semelhantes às das pessoas, justamente indignadas ou não, que pensam em subir o morro e dar porrada. Mais porrada? E o que, depois? Arame farpado, holofotes, quem sabe os fornos?
Não falei em pastores alemães porque já temos os nossos, latindo e vendendo candidaturas com a Bíblia na mão.
A África do Sul é aqui.
O verão tem chegado assim: corpos rolando na enxurrada, mestres-salas assassinados nos ensaios, barcos afundando enquanto comodoros comodistas não largam a taça pra prestar socorro, mortes na praia...
O Haiti é aqui.
Pra quem viver: verão. Gostaríamos que a alegria reinasse. Qual é a saída? Votar no Bozo?
No meio das barracas tem a moça morta.

Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

Da natureza dos sonhos

Quando o sonho por fim os membros ata
com um doce torpor, e quando o corpo
em profundo repouso está estirado,
então nos parece estar despertos,
e também fazer de nossos membros uso;
cremos ver o Sol e a luz do dia
em meio à noite tenebrosa;
e, em uma peça estreita e bem fechada,
mudar de climas, mares, montes, rios,
e atravessar a pé grandes planícies;
e no profundo e completo silêncio
da noite parece-nos ouvir sons,
e em silêncios responder acordes.
Vemos, de certa maneira surpreendidos,
semelhantes fenômenos, que tendem
todos a destruir a confiança
devida aos sentidos, mas é em vão:
o engano provém de nossa parte,
dos julgamentos da alma que nós todos
pintamos com aquelas relações
dos sentidos, supondo termos visto
aquilo que não viram nossos órgãos;
porque a distinção de relações
evidentes de incertas conjeturas
que nos associa à própria alma,
é a coisa mais extraordinária e excelente.

Ora, quero dizer a ti, com brevidade,
quais os corpos que dão à alma movimento
e de onde vêm suas ideias.
Digo que muitos são os espectros que vagam
em todas as direções, com muitas formas,
tão sutis, que se unem facilmente
se chegam a encontrar-te pelos ares
como o fio da aranha e pães de ouro;
porque, além do mais, excedem em delicadeza
as efígies pelas quais nós vemos
os objetos. É claro que se introduzem
por todos os condutos que há nos corpos
e dão interiormente movimento
da alma à substância delicada,
e animam suas funções.
Os centauros, Escilas e Cerberos
e fantasmas de mortos assim vemos,
cujos ossos a terra abrasa em si,
pois a atmosfera ferve em tais espectros;
uns se formam pelo ar,
outros emanam de variados corpos,
e de duas espécies juntas, resultam outras.
A imagem de um centauro não se forma,
seguramente, de um centauro vivo:
Não criou jamais a Natureza
semelhante animal: é um composto
de espectros de cavalo e de homem
que o acaso juntou; e deles dizemos
que seu tecido sutil e delicado
a reunião ao momento facilita:
como esta imagem, se combinam outras,
que por sua leveza extraordinária
afeta a alta no primeiro impulso,
porque o próprio espírito é delicado,
e de mobilidade extraordinária.
E uma prova certa disso
é se assemelharem em um todo os objetos
que a alma olha, aqueles que os olhos veem,
porque nascem do mesmo mecanismo:
se ensinei que via eu leões
recebendo auxílio dos espectros,
que ao chegar nos ferem bem nos olhos,
se deduz que igualmente a alma move
os demais espectros desses leões,
que tão bem vê os mesmos olhos.
Não é de outra maneira que a alma está desperta,
quando se estendeu o sonho sobre os membros
porque chegam a alma tão de fato
os espectros que durante o dia ferem,
que nos parece ver o tal deserto
que é dominado pela morte e pela terra.
A esta ilusão a Natureza obriga;
porque repousam todos os sentidos
em um profundo sono, as verdades
não podem fazer oposição aos erros
porque a memória está adormecida
e, lânguida, com o sonho não disputa;
e quem crê ver a alma com vida
é despojo da morte e do olvido.
No mais, não é uma maravilha
a movimentação destes espectros
e a agitação de braços e de membros
conforme as regras, pois durante o sono
devem ter lugar as aparências;
como que se o primeiro se dissipasse
e viesse a sucedê-lo outro diferente,
parece que é o mesmo espectro
que mudou de atitude num instante.
Muitas perguntas existem sobre o assunto,
e muitas dúvidas ainda a esclarecer
se desejamos a coisa aprofundar.
A primeira pergunta que se faz
é: por que a alma no momento tem
as ideias do objeto de que gosta:
os espectros olham a vontade?
Vêm-nos a imagem assim que desejamos?
Se mar, se terra, se, por fim, o céu,
os congressos, as pompas, os banquetes
se os combates, se outro objeto que nos apraz.
A Natureza não guarda e não cria
as efígies de todo e qualquer sinal,
enquanto que na região, no local mesmo,
jazem profundamente as almas de outros
ocupadas de ideias muito diferentes?
E o que direi quando vemos no sonho
os espectros irem bailando no compasso
quando movem seus membros delicados,
e estendem seus braços flexíveis
alternativamente com destreza,
e tornam a fazê-lo levemente?
Estudaram por acaso artes e regras
para poderem divertir-se à noite?
Tenho eu como certo e verdadeiro
que percebemos estes movimentos
em um instante apenas, assim como quando
se dá um único comando, e não obstante
passam-se muitos instantes, que somente a razão
distingue; esta é a causa
de se apresentarem espectros tão numerosos
em qualquer tempo e em qualquer parte:
grande é o seu número e sua leveza!
E sendo tão fina sua textura
não pode a alma vê-los claramente
sem recolher-se dentro de si mesma:
se ela não se dispõe a recebê-los
com grandes cuidados, todos perecem,
e o consegue graças à esperança
ver aquilo que realmente olha.
E não percebes tu também como os olhos
não podem distinguir aquele objeto
pouco sensível, porque o olharam
sem suficiente resguardo e sem preparo?
Mesmo os corpos que à vista estão expostos
são para a alma, se ela não se esforça
como se a cem mil léguas estivessem:
e por que admirar-se de que a alma
deixe escapar a todos os espectros
menos aqueles que a tem ocupada?
Talvez a alma exagere os espectros
e nos leva ao erro, e nos engana;
também transforma o sexo da imagem,
e em vez de uma mulher, nós só tocamos
um homem transmutado num instante,
ou outro qualquer objeto que o sucede
de semblante e de idade muito diferente:
isto provém do esquecimento e do sonho.

Tito Lucrécio Caro, Da Natureza das coisas, Livro IV (s.Ia.C.) (Tradução para o espanhol de José Marchena Ruiz de Cueto (1768-1821), chamado “O clérigo Marchena”; leva a data de 1791)

Jorge Luís Borges, in Livro de Sonhos

Capítulo 21 | O Almocreve

Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, e com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal; tentou disparar, e efetivamente deu dois saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.
Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.
E era verdade; se o juramento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, e lá se me ia a bacharelice em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! Enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, – essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.
Pronto, disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura.
Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim...
Ora qual!
Pois não é certo que ia morrendo?
Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.
Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, urna moeda. Tirei-a, via-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o “senhor doutor” podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.
Olé! Exclamei.
Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstância de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituí-lo simples instrumento de Providência; e de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Da alma

As coisas em si não tocam, acessam, giram ou movem a alma. Ela, sozinha, gira-se, move-se e julga as coisas que se apresentam conforme lhe parece apropriado.

Marco Aurélio, in Meditações

domingo, 27 de novembro de 2022

Vivo, vivíssimo

Dia 18 de novembro de 2008

Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certo que procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões. Trato de habituar-me sem excessivo dramatismo à ideia de que o corpo não só é finível, como de certo modo é já, em cada momento, finito. Que importância tem isso, porém, se cada gesto, cada palavra, cada emoção são capazes de negar, também em cada momento, essa finitude? Em verdade, sinto-me vivo, vivíssimo, quando, por uma razão ou por outra, tenho de falar da morte…

José Saramago, in O caderno

Canto de Ossanha | Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966


Com a bossa nova já decadente no Brasil e seu parceiro Tom Jobim morando nos Estados Unidos, Vinicius de Moraes mudou de novo o rumo da música brasileira quando criou com o violonista Baden Powell o afro-samba, um estilo oposto à bossa nova branca e carioca, inspirado pelos ritmos e cantos de candomblé da Bahia e pelo mundo mágico dos orixás.
Os primeiros afro-sambas, “Consolação” e “Berimbau”, caíram como bombas de ritmo sobre o intimismo da bossa nova. O fraseado musical ecoava cantos ancestrais, cheios de dramaticidade e tensões que explodiam em refrões abertos e festivos, cantados em coro com Elis Regina e Jair Rodrigues pelos auditórios do programa O fino da bossa e também gravados com sucesso pelo Quarteto em Cy e pelo Tamba Trio.
Tudo começou em 1962, quando Vinicius, empolgado com discos de cantos de candomblé da Bahia presenteados pelo poeta Carlos Coqueijo, encontrou Baden, recém-chegado de uma viagem a Salvador, onde ficara fascinado com os ritmos e os cantos dos terreiros. Além de anunciar o novo estilo, “Berimbau” e “Consolação” foram grandes sucessos populares como um novo caminho da música brasileira.
Vinicius, que se dizia o branco mais preto do Brasil, e Baden, um mulato carioca que era o maior violonista do momento, viveram três meses num belíssimo apartamento da mulher do Poetinha no Parque Guinle. Após dezenas de litros de uísque, saíram com os primeiros 25 afro-sambas, entre eles o clássico “Canto de Ossanha”.
O canto da mais difícil / E a mais misteriosa das deusas / Do candomblé baiano / Aquela que sabe tudo / Sobre as ervas / Sobre a alquimia do amor.”
Baden e Vinicius continuaram compondo até 1966, quando gravaram o disco histórico, com oito afro-sambas, arranjos do maestro Guerra Peixe e vocais do Quarteto em Cy – um dos melhores e mais influentes discos da história da música brasileira.
No texto de apresentação, Vinicius dizia que Baden “conseguiu carioquizar, dentro do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe, ao mesmo tempo, uma dimensão mais universal”.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Sesta

Sigo por teu corpo como pelo mundo.
Octavio Paz

Na sesta feliz entre as árvores,
Atravessa o sol as folhas, tudo arde,
O tempo corre entre a luz e o céu
Como um furtivo deus deixa as coisas.
O meio-dia flui em teu nu
Como o sopro de verão pelo ar.
Em teus seios trepidam os verões.
Sentes passar a terra por teu corpo
Como cruza uma estrela o firmamento.
À distância voa o mar como um pássaro.
Sobre o invencível pó em que dormes
Esta sombra ligeira marca o peso
De um abraço solar contra o destino.
Somos dois no alto de uma vida.
Somos um no alto do instante.
Teu corpo é uma lua impenetrável
Que o esplendor destrói nesta hora.
Quando abro tua carne firo o tempo,
Cubro com minha aflição a dinastia,
Basta minha voz para apagar os deuses,
Me afundo em ti para enfrentar a morte.
O meio-dia é vasto como o mundo.
Canta o corpo na luz, a terra canta,
Dança no sol de todas as cores,
Cada sabor é único em minha língua.
Sou um súbito amor por cada coisa.
Vejo, apalpo sem fim, cada sentido
É um espelho breve na delícia.
Te vejo envolta em um suor espesso.
Bebemos vinho tinto. As laranjas
Deixam seu agudo cheiro entre teus lábios.
São os grandes calores do verão.
O fugitivo sol busca tuas plantas,
O mundo foge pelo firmamento,
Enchemos este nada com as nuvens,
Furtamos ao ser cada momento,
Por igual te despi com nosso duelo.
Sei que vou morrer. Termina o dia.

Jorge Gaitán Durán, poeta colombiano

Amor e outros males

Uma delicada leitora me escreve: não gostou de uma crônica minha de outro dia, sobre dois amantes que se mataram. Pouca gente ou ninguém gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora estranha é que o cronista “qualifique o amor, o principal sentimento da humanidade, de coisa tão incômoda”. E diz mais: “Não é possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza incômodo.”
Não, minha senhora, não amo ninguém; o coração está velho e cansado. Mas a lembrança que tenho de meu último amor, anos atrás, foi exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo — “incômodo”.
Na época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o amor, ainda que infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida sentir que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha; daquele ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.
Não sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda; não, não a descreverei, porque só de revê-la em pensamento alguma coisa dói dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e sensível — e não me tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade, igual a muitas outras e inferior a várias.
A história acaba aqui; é, como vê, uma história terrivelmente sem graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase. Mas o pior é que não foi curta. Durou, doeu e — perdoe, minha delicada leitora — incomodou.
Eu andava pela rua e a sua lembrança era alguma coisa encostada em minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço que me faltava, e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar, suspensa de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mau jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite. Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela.
Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a “vontade de chorar e de morrer”, de que fala o samba?
Por favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

A religião dos outros

Sério, gente, vocês têm que parar de rir da religião dos outros. A fé das pessoas é uma coisa sagrada. Não, macumba é diferente. Vocês têm que fazer um vídeo sobre macumba.
Macumba não é religião, macumba é magia negra. Macumba, umbanda, candomblé, vudu, tudo a mesma coisa de preto velho. Misifi põe uma galinha preta na encruzilhada que eu trago a pessoa amada em três dias.
Por favor, faz um vídeo sobre isso. Desculpa, gente, mas é que macumba é muito engraçado. Espiritismo também é uma piada pronta. Sabe o que vocês podem dizer? Que quem conversa com gente morta é esquizofrênico e tem que ser internado.
Budismo não é religião, é moda. Tem seis gatos pingados no Tibete e o resto é tudo socialite e ator em início de carreira. Fora que aqueles monges são muito gordos pra quem é vegetariano. Aposto que quando ninguém tá olhando eles comem uma bela de uma picanha.
Mas pelo menos eles não pintam a cara igual hare krishna. Aquilo não é religião, aquilo é pretexto pra não tomar banho. Vocês não entenderam: quando eu digo religião, eu tô falando das religiões sérias.
Não, islamismo já é sério demais. Aí tem que zoar. Aquelas mulheres de burca parecem um apicultor. E os terroristas que acham que vão se encontrar com trinta virgens? Isso dava um vídeo. Quando eu digo religião, eu tô falando das religiões da Bíblia.
Não, judeu pode zoar também, claro. Judeu por acaso lê Bíblia? Estranho, foram eles que mataram Jesus. Vocês têm que rir daquele bando de mão de vaca. Por que é que não fizeram nenhum vídeo de judeu? Tem que fazer.
Eu tô falando da Bíblia de verdade, completa, sem cortes. A escritura sagrada, que fala da vinda do Deus vivo à Terra.
Acho que é isso: quando eu digo religião, eu tô falando das religiões que envolvem Jesus. Não, não tô falando do Inri Cristo. Gente, eu tô falando sério. Quando eu digo religião, eu tô falando das religiões que envolvem Jesus, Maria, José, as que têm multidões de fiéis.
Tem que rir das religiões menores, as religiões de preto, de judeu. Não tem graça rir da fé da maioria do povo brasileiro. Acho que é isso: quando eu digo religião, eu tô falando da religião da maioria. Aí é que perde a graça.
Sim, por acaso essa é a minha religião. Tá bom. Quando eu digo que não pode brincar com religião, eu tô falando da minha religião. A minha religião não tem a menor graça.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

Sábado, com sua luz

Trabalhar, como? O que interessa nesse sábado que é puro ar, apenas ar? “Todos aqueles que fizeram grandes coisas, fizeram-nas para sair de uma dificuldade, de um beco sem saída.” Minha vida tem que ser escrever, escrever, escrever? como exercício espiritual profundo? E incorporar o ar aéreo deste sábado no que eu escrever. O que quero escrever? Quero hoje escrever qualquer coisa que seja tranquila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas quero, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Vou parar aqui, porque é tão sábado!

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Sonho

O mundo do sonho é silencioso como o mundo submarino. Por isso é que faz bem sonhar.

Mário Quintana, in Caderno H