Escrever

Escrever para jornal não é tão impossível: é leve, tem que ser leve, e até mesmo superficial: o leitor, em relação a jornal, não tem nem vontade nem tempo de se aprofundar.
Mas escrever o que se tornará depois um livro exige às vezes mais força do que aparentemente se tem.
Sobretudo quando se teve que inventar o próprio método de trabalho, como eu e muitos outros. Quando conscientemente, aos 13 anos de idade, tomei posse da vontade de escrever – eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino – quando tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse me ajudar.
Eu tinha eu mesma que me erguer de um nada, tinha eu mesma que me entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade. Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro – o sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a mais para realmente não poder. A história interminável que então comecei a escrever (com muita influência de O lobo da estepe, Hermann Hesse), que pena eu não a ter conservado: rasguei, desprezando todo um esforço quase sobre-humano de aprendizagem, de autoconhecimento. E tudo era feito em tal segredo. Eu não contava a ninguém, vivia aquela dor sozinha. Uma coisa eu já adivinhava: era preciso tentar escrever sempre, não esperar por um momento melhor porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

O sol nascerá | Cartola e Elton Medeiros, 1964


Sucesso espetacular com Nara Leão em seu álbum de estreia (Elenco, 1964), marca a volta de Cartola à vida musical, depois de um começo vitorioso entre os bambas do samba seguido de anos de ostracismo e alcoolismo, até ser redescoberto pelo cronista Sérgio Porto lavando carros em Copacabana e ter suas músicas gravadas por Nara.
O sol nascerá” nasceu dois anos antes, durante uma noitada na casa de Cartola, quando o jovem Elton Medeiros aceitou o desafio de seu mestre para criar uma música na hora. E em pouco tempo os dois fizeram este samba arrebatador, dividindo tanto a música quanto a letra.
Angenor de Oliveira nasceu em 1908 e, com 11 anos, se mudou com a família para o Morro da Mangueira, onde, em 1928, ajudou a fundar a Estação Primeira. Além de ter sugerido o nome da escola, foi Cartola quem escolheu o verde e o rosa como as suas cores. Logo seus sambas desceram para o asfalto. Amigo e parceiro de Noel Rosa, nos anos 1930 teve músicas gravadas pelos maiores intérpretes da época, como Sílvio Caldas, Francisco Alves, Mário Reis e Carmen Miranda. Em 1940, esteve entre os compositores populares que Heitor Villa-Lobos levou até o maestro Leopold Stokowski, em um estúdio montado num navio ancorado na Praça Mauá, onde fez uma série de gravações depois lançadas em disco nos Estados Unidos.
Pouco depois, devastado por uma desilusão amorosa, Cartola sumiu dos bares e dos estúdios das rádios onde mostrava suas músicas e mergulhou no álcool e no abandono. Durante anos, ninguém ouviu falar dele.
No início dos anos 1960, resgatado do alcoolismo pelo amor e a dedicação de Dona Zica, o sol voltava a nascer para Cartola com a gravação de Nara, que marcava o começo da fase mais produtiva e bem-sucedida de sua carreira.
Com sua mensagem de esperança, o samba apostava na alegria e no novo dia como um elixir musical para todas as horas. Mas quando foi lançado, logo após o golpe militar de 1964, a letra também foi ouvida como uma metáfora política contra a ditadura, como nos versos “finda a tempestade / o sol nascerá”.
Além de Nara, “O sol nascerá” ganhou mais quatro versões, entre elas uma do próprio Cartola em seu primeiro disco, um compacto duplo (com quatro faixas) lançado pela gravadora Mocambo, sem qualquer repercussão.
Em 1974, já com 66 anos, Cartola gravou em seu primeiro álbum solo (Discos Marcus Pereira) uma magistral versão de “O sol nascerá”, com a voz já curtida por décadas de álcool, tabaco e afins, dando intensa dramaticidade à receita para quem pretende levar a vida sorrindo.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Uma Lição de Moral

Meu amigo Baiano me pede que eu declare seu nome de batismo. Isso porque, segundo o Baiano, a rapaziada da terra dele não acredita que a gente bebe junto no Bar da Maria.
– ‘Xá-de-sê mintiroso, seu minino. Tu bebe cum Valdimir Branquis nada, ô xente!
Tá legal, Baiano. Alô, Nordeste! Atenção, Agreste Sertão, Cerrado, Caatinga, Coqueirais e Mandacurus! O nome do Baiano é Wilson Flora! E, só pra não perder a viagem Valdimir Branquis é o cacete!
Tudo isso é pra dizer que Baiano inventou uma explicação muito original sobre os motivos que podem levar um senador a mandar matar um sargento comilão, sujeitando a digníssima esposa a um vexame nacional. É claro que tudo não passa de especulação e qualquer semelhança com vivos e mortos do Brasil de hoje é mera coincidência.
Cê vê, Blanc: se o cara tivesse ficado boneco e não chiasse, ou se tivesse dado apenas ligeira aparadinha nos chifres, umas bolachas e coisa e tal, o negoço não extrapolava. Ora, pra virar suruba nacional, só tem uma explicação plausível...
Bom contador de história, Baiano acende uma cigarrilha e assume um arzinho altivo, coisa de Sherlock Holmes caboclo.
Homem acostumado ao poder, o marido pirou por motivos concernentes à etiqueta e não necessariamente afeitos à esfera sexual!
Tem horas que o Baiano enche o saco, né?
Pegou o espírito da coisa, Blanc?
Ainda não.
Pois eu vou reconstituir o crime pra você entender a jogada.
Obrigado, Wilson.
Disponha. Me acompanhe: o senador chega em casa mais cedo e grita: Queriiidaaa!
Hum-hum.
Que resposta obtém? Nenhuma. Do quarto chega uns gemidozinhos abafados, ai, ui, tira, bota, esses fundamentos. Que faz o senador?
Puxa a parabélum.
Nãozinho.
Trinca a peixeira e parte pra cima.
Never! Homem habituado aos meandros do poder, o senador fica frio e vai investigar a questão. Entra no quarto e dá de cara com o sargento, ou patente próxima, mais atochado na senhora dele que camarão em vatapá. Que atitude toma o senador?
Sei lá, pô. Explode o cômodo.
Nunca, jamais, em tempo algum. íntimo dos acidentes do poder, o senador delibera, tenta o debate, o que eles mesmo chamam de um “amplo entendimento”. Diz pro rapaz: “Mas logo você, que não tinha onde cair morto e a quem tanto ajudei?” E virando o foco pra cara-metade: “Será possível o que meus olhos veem?”
Ah, Baiano, qualé?
E o casal? Que reação tem o casal, diante desse exemplo de moderação?
Bom, envergonhados, os dois se cobrem e...
Errou de novo. O casal continua no vapt-vupt. Aí, sim, o senador, sentindo-se agredido na investidura do seu poder, perde as estribeiras. Porque um dos lemas do poder é: querem prevaricar, prevariquem, mas com muito respeito.

Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

Pelada de barranco

Nada havia de mais prestante em nós senão a infância.
O mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira
do rio. Um menino Guató chegava de canoa e embicava
no barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar
a posição de golquíper no Porto de Dona Emília Futebol
Clube. Nosso valoroso time. As cercas laterais do campo
eram de cansanção. Espinheiro fechado pra ninguém botar
defeito. Guató já trazia do barranco duas pedras para servir
de balizas. Os craques desciam da cidade como formigas.
José de Camos, nosso beque de espera também tinha a
incumbência de soprar as bexigas. Porque a nossa bola
era de bexiga, que às vezes caiam no rio e as piranhas
devoravam. E se caísse no cansanção os espinhos furavam.
Nosso campinho por miúdo só permitia times de sete:
O goleiro, um beque de espera, um beque de avanço e
três na linha. Chambalé nosso técnico impunha regras:
só pode mijar no rio e não pode jogar de botina.
Sabastião era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia
as variações da bexiga no vento e botava no grau certo.
Quando alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga.
Metade de nossos craques eram filhos de lavandeiras e
outra metade de pescadores. Na aba do campo a namorada
do Sabastião torcia: quebra esse saba, destina eles pras
piranhas. Mas Chambalé não deixava destinar. Quem destina
é Deusi – falava. No fim do jogo alguns iam bater bronha,
outros iam no mato jogar o mantimento e outros iam
pelotear passarinho. Guató pegava a canoa e remava até
a aldeia a mil metros dali. A cidade onde a gente morava
foi feita em cima de uma pedra branca enorme. E o rio
paraguaio, lá embaixo, corria com suas piranhas
e os seus camalotes.

Manoel de Barros, in Memórias Inventas – A segunda infância

Fondue com estrelas

A fondue não é uma refeição, é uma confraternização. As pessoas se reúnem em torno de uma pequena panela cheia de óleo borbulhante e são felizes. A fondue de carne é mais alegre do que a de queijo. Nesta a panela fica cheia de queijo derretido no qual você mergulha pedaços de pão, enquanto na de carne você deixa os pedaços de filé fritando no óleo, espetados na ponta de garfos compridos, e os garfos ficam ali em divertido congresso dentro do óleo, cada um esperando o seu dono vir pegá-lo, pegar o garfo errado e ouvir protestos gerais, deixar cair a carne e depois tentar pescá-la do fundo da panela — enfim, não há compostura que resista. Recomenda-se a fondue para jantares formais que logo ficam informais, para conferências de cúpula entre o Oriente e o Ocidente e para casais brigados que querem fazer as pazes. Neste caso é preciso haver um firme desejo de paz, senão pode dar confusão com os garfinhos, outra briga e cuidado com o óleo fervendo!
A fondue verdadeira ou, pelo menos, verdadeiramente suíça, é de queijo acompanhada de vinho tinto e vagos ruídos de satisfação. O queijo não é qualquer um, claro, e não está sozinho na panela. Mas não me pergunte o que vai junto. A única parte de qualquer receita de comida que me interessa é a última, aquela que começa depois do “leve à mesa”. Eu só entro em cozinha para abrir a geladeira.
As outras fondues têm origens diversas, quase todas nas regiões alpinas francesas. Todas têm em comum a panela com óleo fervendo, o que varia é o que você coloca dentro do óleo. De todas estas variações só conheço a fondue de carne, se bem que há algum tempo contemple a possibilidade de grandes e rubicundos camarões serem mergulhados — entre gritos selvagens de prazer, e de dor com o óleo que respinga — na panela, para emergirem instantes depois tostados e crispados, prontos para o seu destino: uma rápida passagem pelo molho e o meu estômago impaciente. Só um minuto que eu preciso passar um lenço pelas teclas da máquina de escrever. Pronto. Não experimentei ainda a fondue de camarão porque precisei escolher entre comprar alguns quilos de camarão gigante e pagar a educação dos meus filhos e a consciência — depois de alguma hesitação — falou mais alto. Quando as crianças já estiverem encaminhadas na vida, quem sabe... Na fondue de carne o importante para se julgar o talento de quem faz são os molhos, já que cortar um filé em cubos e encher uma panela com óleo, até eu. A última fondue de carne que comi foi em Gramado, sábado passado. Oito qualidades de molho: raiz-forte, laranja, rémoulade, Cardinale, creme, vinagrete, tomate, framboesa. Feitos por pessoas definitivamente de talento, no Restaurante Santo Humberto, com janelões sobre o lago Negro. A fondue do Santo Humberto foi no almoço. O jantar foi na casa da Olga Reverbel, e não preciso dizer que saiu tarde, pois às nove da noite a memória dos molhos ainda era mais forte do que a fome e todas as promessas culinárias de Olga. Fiquei com as crianças no jardim, atirado numa rede, olhando para o céu mais estrelado da minha vida, enquanto as mulheres preparavam a janta. Um momento mágico. Falei para as crianças das constelações, das formas que os antigos tinham descoberto nas estrelas, na Ursa Maior, no Escorpião... As meninas não demoraram em descobrir outras no céu, até então insuspeitas: um urinol, um bigode de mexicano, uma meleca... Impossível manter a seriedade de qualquer empreendimento didático, numa noite de outono, em Gramado. E então nos chamaram para comer.
Em tempo: o jantar foi um arroz montanhês no qual a linguiça, o milho, a cebola e a maçã se apresentavam em escandalosa promiscuidade, isto para só falar nos ingredientes que eu decifrei. Antes de dormir, revimos na televisão O planeta dos macacos, uma séria advertência sobre o futuro negro que nos espera e os piores impulsos da humanidade. Sei não, mas naquela noite nada daquilo era comigo…

Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

O homem que escutava as abelhas


1
Estou assustado com os olhos da minha mulher. Ela não consegue enxergar o lado de fora, e ninguém consegue enxergar lá dentro. Veja, são como pedras, pedras cinza, pedras marinhas. Olhe para ela. Veja como está sentada na beirada da cama, sua camisola no chão, rolando nos dedos a bola de gude de Mohammed, esperando que eu a vista. Estou ganhando tempo colocando minha camisa e a calça, porque estou muito cansado de vesti-la. Veja as dobras da sua barriga, a cor de mel do deserto, mais escura nas dobras, e as linhas muito finas e prateadas na pele dos seus seios, as pontas dos seus dedos com cortezinhos minúsculos, onde as formas de encostas e vales já estiveram manchadas com tinta azul, amarela ou vermelha. Houve época em que sua risada era ouro, você poderia vê-la, além de escutá-la. Olhe para ela, porque acho que ela está desaparecendo.
Tive uma noite de sonhos dispersos – ela diz. – Eles encheram o quarto.
Seus olhos estão fixos um pouco à minha esquerda. Sinto náusea.
O que isso quer dizer?
Eles eram fragmentados. Estavam por toda parte. E eu não sabia se estava acordada ou dormindo. Eram muitos os sonhos, como abelhas em um quarto, como se o quarto estivesse cheio de abelhas. E eu não conseguia respirar. Acordei e pensei, por favor, faça com que eu não sinta fome.
Olho para ela, confuso. Ainda não há expressão. Não lhe conto que agora só sonho com assassinato, sempre o mesmo sonho. Sou só eu e o homem, estou segurando o bastão e minha mão está sangrando; no sonho, os outros não estão lá, e ele está no chão, as árvores acima dele, e ele me diz alguma coisa que não consigo escutar.
E sinto dor – ela diz.
Onde?
Atrás dos olhos. Uma dor bem aguda.
Ajoelho-me em frente a ela, e olho nos seus olhos. O vazio absoluto que há neles me aterroriza. Tiro o celular do bolso, acendo a luz da lanterna neles. Suas pupilas dilatam-se.
Você vê alguma coisa? – pergunto.
Não.
Nem ao menos uma sombra, uma mudança de tom ou cor?
Só preto.
Enfio o celular no bolso e me afasto dela. Desde que chegamos aqui, ela piorou. É como se sua alma estivesse evaporando.
Você pode me levar ao médico? – ela pergunta. – Porque a dor está insuportável.
Claro – eu digo. – Logo.
Quando?
Assim que conseguirmos os documentos.

Fico feliz que Afra não possa ver este lugar. Mas ela gostaria das gaivotas, do seu jeito maluco de voar. Em Alepo, estávamos longe do mar. Tenho certeza de que ela gostaria de ver estes pássaros, talvez até a costa, porque foi criada junto ao mar, enquanto eu sou do leste de Alepo, onde a cidade encontra o deserto.
Quando nos casamos e Afra veio viver comigo, sentiu tanta falta do mar que começou a pintar água onde quer que a encontrasse. Pelo árido planalto da Síria, há oásis, córregos e rios que deságuam em pântanos e pequenos lagos. Antes de termos Sami, seguíamos a água, e ela a pintava com tinta a óleo. Existe uma pintura do Queiq que eu gostaria de poder rever. Ela fez com que o rio parecesse um escoamento de águas pluviais fluindo pelo parque da cidade. Afra tinha esse jeito de ver verdade em paisagens. A pintura, e seu mísero rio, lembram-me a luta para permanecer vivo. A cerca de trinta quilômetros ao sul de Alepo, o rio desiste da luta na rigorosa estepe síria e se evapora nos pântanos.
Os olhos dela me assustam. Mas estas paredes úmidas, os fios no teto e os outdoors, não sei como ela lidaria com tudo isto, caso pudesse ver. O outdoor logo aí fora diz que nosso número é excessivo, que esta ilha se partirá com nosso peso. Estou feliz que ela esteja cega. Sei o que isto parece! Se eu pudesse lhe dar uma chave que abrisse uma porta para outro mundo, desejaria que ela voltasse a ver. Mas teria que ser um mundo muito diferente deste aqui. Um lugar onde o sol acaba de nascer, tocando os muros que circundam a cidade antiga, e fora desses muros, os bairros que parecem alvéolos, as casas, apartamentos, hotéis e vielas estreitas, uma feira livre onde mil colares pendurados brilham à primeira luz, e mais longe, pelas terras do deserto, ouro sobre ouro, vermelho sobre vermelho.
Sami estaria ali, sorrindo e correndo por aquelas vielas com seus tênis surrados, uns trocados na mão, a caminho da loja para comprar leite. Tento não pensar em Sami. Mas Mohammed? Ainda espero que ele encontre a carta e o dinheiro que deixei debaixo do pote de Nutella. Acho que um dia haverá uma batida na porta, e quando eu abrir ele estará ali parado, e eu direi:
Mas como você conseguiu chegar aqui, Mohammed? Como soube onde nos encontrar?
Ontem, vi um menino pelo espelho embaçado de vapor do banheiro compartilhado. Ele usava uma camiseta preta, mas quando me virei, era o homem do Marrocos, sentado no vaso sanitário, mijando.
Você deveria trancar a porta – ele disse, em seu próprio árabe.
Não consigo me lembrar do seu nome, mas sei que ele é de uma aldeia perto de Taza, no sopé das montanhas Rif. Ontem à noite, ele me contou que é possível que eles o mandem para o centro de remoção, em um lugar chamado Yarl’s Wood. A assistente social acha que existe uma chance de eles fazerem isto. Nesta tarde, é minha vez de me reunir com ela. O marroquino diz que ela é muito bonita, que parece uma dançarina de Paris com quem ele uma vez fez amor num hotel em Rabat, bem antes de se casar com sua esposa. Ele me perguntou sobre a vida na Síria. Contei sobre as minhas colmeias em Alepo.
À noite, a proprietária nos trás chá com leite. O marroquino é velho, talvez tenha oitenta, ou mesmo noventa anos. Tem a aparência e o cheiro de quem é feito de couro. Lê Como ser um britânico, e às vezes sorri consigo mesmo. Fica com o celular no colo, e às vezes para ao final de cada página para olhar para ele, mas ninguém nunca telefona. Não sei quem ele está esperando, e não sei como chegou até aqui, nem por que fez tal viagem com uma idade tão avançada, porque ele parece alguém à espera de morrer. Ele detesta a maneira como os não muçulmanos ficam em pé para mijar.
Existe cerca de dez de nós neste B&B decadente junto ao mar, todos de lugares diferentes, todos aguardando. É possível que eles nos aceitem, é possível que nos mandem embora, mas já não há muito o que decidir. Que estrada tomar, em quem acreditar, se levantar novamente o bastão e matar um homem. Estas coisas pertencem ao passado. Logo evaporarão, como o rio.

Pego o abaya de Afra no cabide do guarda-roupa. Ela escuta e se levanta, erguendo os braços. Parece mais velha, agora, mas se comporta como mais nova, como se tivesse se transformado numa criança. Seu cabelo tem a cor e a textura de areia, já que o tingimos para as fotos, descorando o tom árabe. Eu o prendo num coque, e envolvo sua cabeça com seu hijab, fixando-o com grampos, enquanto ela orienta meus dedos, como sempre faz.
A assistente social estará aqui à uma da tarde, e todas as reuniões acontecem na cozinha. Ela vai querer saber como chegamos até aqui, e procurará um motivo para nos mandar embora, mas eu sei que se disser as coisas certas, se convencê-la de que não sou um assassino, então conseguiremos ficar aqui por sermos os que tiveram sorte, porque viemos do pior lugar do mundo. O marroquino não tem tanta sorte, terá que provar mais coisas. Agora, ele está sentado na sala de visitas, junto às portas de vidro, segurando com as duas mãos um relógio de bolso de bronze, aninhando-o em suas palmas como se fosse um ovo incubado. Olha para ele, esperando. Pelo quê? Quando me vê aqui parado, diz:
Ele não funciona, sabe? Parou numa hora diferente.
Levanta-o para a luz pela corrente e sacode-o com delicadeza, este relógio parado feito de… bronze… era a cor da cidade lá embaixo. Vivíamos em uma casinha térrea de dois dormitórios, em uma colina. Lá do alto, podíamos ver toda a arquitetura anárquica e os lindos domos e minaretes, e mais distante a cidadela apontando.
Era agradável sentar na varanda na primavera; podíamos sentir o cheiro da terra do deserto, e ver o sol vermelho recolhendo-se sobre a terra. Mas no verão, ficávamos dentro de casa com um ventilador ligado, toalhas molhadas na cabeça, e os pés numa bacia de água fria porque era quente como um forno.
Em julho, a terra ficava ressecada, mas em nosso jardim tínhamos árvores de damasco e amendoeiras, tulipas, íris e coroas-imperiais. Quando o rio secava, eu descia até o tanque de irrigação para pegar água para o jardim e mantê-lo vivo. Em agosto era como tentar ressuscitar um cadáver, então eu via tudo aquilo morrer e se fundir com o restante da terra. Quando estava mais fresco, dávamos um passeio e observávamos os falcões voando pelo céu do deserto.
Eu tinha quatro colmeias no jardim, empilhadas uma em cima da outra, mas o restante estava num campo na periferia leste de Alepo. Detestava ficar longe das abelhas. De manhã, eu acordava cedo, antes do sol, antes do chamado do muezim3 para a oração. Dirigia os cinquenta quilômetros até os apiários e chegava quando o sol estava nascendo, os campos cheios de luz, o zumbir das abelhas uma única nota límpida.
As abelhas eram uma sociedade ideal, um pequeno paraíso em meio ao caos. As obreiras viajavam para longe e por um espaço amplo para encontrar comida, preferindo ir aos campos mais distantes. Coletavam néctar de flores de limoeiros e trevos, sementes de cominho preto e anis, eucalipto, algodão, espinheiros e urzes. Eu cuidava das abelhas, alimentava-as, e monitorava as colmeias para impedir infestações ou más condições de saúde. Às vezes, eu construía novas colmeias, dividia as colônias ou criava abelhas-rainha – tirava as larvas de outra colônia e observava enquanto as abelhas cuidadoras alimentavam-nas com geleia real.
Mais tarde, na época da colheita, eu verificava as colmeias para ver quanto mel as abelhas tinham produzido, e depois punha os quadros com os favos nos extratores e enchia os baldes, raspando o resíduo para recolher o líquido dourado por debaixo. Era meu dever proteger as abelhas, mantê-las saudáveis e fortes, enquanto elas realizavam sua tarefa de produzir mel e polinizar a terra para nos manter vivos.

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

Classificar as coisas certas

Podemos aprender até mesmo com a classe de coisas que as multidões classificam como boas. Se tivessem classificado as coisas certas — tais como a prudência, a temperança, a justiça e a fortaleza —, não suportariam ouvir nada dissonante no que tange aos bens genuínos. Caso o homem classifique como bom o que somente aparenta ser, ele ouvirá os escritos do poeta cômico e de imediato os considerará aplicáveis.
Inclusive, a multidão percebe a diferença. Caso contrário, dissonâncias não ofenderiam e não seriam rejeitadas, e ditados a respeito da riqueza, do luxo e da fama não seriam percebidos como apropriados e perspicazes.
Prossiga e questione se devemos valorizar e classificar como boas as coisas às quais, após uma concepção inicial, as seguintes palavras do poeta possam ser aplicadas: “Quem as possui em abundância não tem um canto para se aliviar.”

Marco Aurélio, in Meditações

14 dólares

Um poeta da geração de 45, meu amigo (há desses milagres), contou-me que sua glória transpusera enfim o limite do bar Vilarino e se projetara nos Estados Unidos. Uma revista da Madison Avenue pedira-lhe versos, traduzira-os limpamente e pagara por eles quantia que nunca jornal algum, nestas brenhas, ousou soltar por trabalho desse naipe.
Mil contos? — perguntei-lhe, assanhadíssimo.
Tanto assim, não. Vinte dólares. Mas o versinho era curto, sem métrica. Legal, não acha?
Não dá para um automóvel, pensei comigo, mas felicitei o rapaz, quand même. Sem intenção de pedir-lhos emprestados; a fraternidade das gerações não chega a esse ponto. Em todo caso, apeteceu-me espiar a cor do dinheiro forte.
Amigo, vi poucos dólares em minha vida. Viagem mesmo, faço a de lotação para a cidade, e ando farto da efígie de Rio Branco. Me mostre seu dolarzinho.
Bem, devo explicar que dos meus vinte dólares poéticos, o governo norte-americano papou seis, de imposto de renda. Cobrado na fonte, hem?
Não pude eximir-me de admirar o dom de locomoção desse governo, que vai à própria fonte de Castália para haver o tributo da poesia. Onde se esboce um voo lírico, na América do Norte, vela um fiscal do Income Tax. Aqui, os poetas não devem a César, pelo exercício da musa.*
De qualquer maneira, catorze dólares são catorze dólares — sentenciei, mais para confortar o jovem confrade que como eco de convicção profunda. — Ora, deixe ver os catorze dólares.
O cheque?
Não, a espécie, a figurinha da águia.
Bem, não houve propriamente dólares. O cheque dizia esse nome santo, mas o caixa, no banco americano que o descontou, explicou-me que dólar é a mesma coisa que cruzeiro.
E você acreditou?
Era acreditar ou largar. Disse-me que, onde quer que eu levasse o cheque, me pagariam em cruzeiros, a menos que eu fosse a Nova York receber na matriz. Tentei argumentar que aquilo era uma importação de capitais, saudável à pátria: a tal revista possuía catorze dólares em Nova York, e por artes de um simples poema hermético, esses dólares vinham dinamizar a economia brasileira. O banco os desembolsaria aqui, mas ficaria com outros catorze em Nova York para importação de tratores, geladeiras etc.
E ele?
Sorriu, mas ponderou que eram ordens da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil. E tinha mais: ia pagar-me ao preço de compra, não ao de venda do dólar. Mas eu não estou vendendo, estou recebendo, retruquei ao caixa. Ele abanou a cabeça. “Também não está comprando; então, aplica-se a cotação de venda, que mais nos convém.” Em resumo: saí com mil e vinte e nove cruzeiros no bolso, um tanto confuso. Veja o que é o dólar: a primeira oportunidade que me dão de possuir vinte, logo de saída perco seis, e os outros se dissolvem no ar em simples cruzeiros. Há quem os venda e quem os compre, mas ninguém os vê. Tenho a impressão de que dólar não existe, apesar de tão forte, ou por isso mesmo.
Era também velha impressão minha. O dólar, como a girafa, não existe. O poeta da geração de 45 ganhara, além dos cruzeiros, outra metáfora. Fomos ingerir um chope.

* Isto em 1957. Agora, devem. (N. A.)

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

Do nome

What is a name? — já indagava o Poeta.
Um nome serve, em última instância, para uma lápide.
Ou para uma estátua, geralmente equestre.
E a melhor fase da vida — a mais natural — é quando os pais ainda não escolheram um nome para a gente.

Mário Quintana, in Caderno H

Crianças

DIRETOR Eu chamei vocês aqui pra falar do Paulinho.
MÃE Fofo.
DIRETOR Ele tá com sérios problemas de aprendizado.
MÃE Deve ser o Déficit de Atenção.
DIRETOR Ele tem DDA?
MÃE Muito. Mas a gente já tá medicando.
PAI Eu não sei se você sabe, mas Einstein tinha DDA.
DIRETOR Mas o problema vai muito além do DDA.
MÃE Ele tá hiperativo?
DIRETOR Bastante.
PAI É a Ritalina.
DIRETOR Ele também toma Ritalina?
MÃE Por causa do DDA.
PAI Não sei se você sabe, mas Steve Jobs tomava Ritalina.
MÃE Deve ser bom porque torna ele bastante participativo.
DIRETOR No recreio. Nas aulas ele costuma dormir.
MÃE Aí é o Rivotril.
PAI Que a gente dá pra rebater a Ritalina.
DIRETOR Ele tá muito agressivo.
MÃE Quer ver ele ficar calminho? Diz que ele vai ficar sem Frontal. Tiro e queda. Fica uma flor.
PAI Tem que saber jogar o jogo dele.
DIRETOR Vocês não estão entendendo. O Paulinho lidera uma gangue que extorque outras crianças em troca de proteção.
MÃE Bom, como você mesmo disse, ele “lidera” uma gangue. Eu vejo claramente que existe aí um talento pra liderança que vocês estão desprezando.
PAI Eu não sei se você sabe mas Picasso, quando criança, liderava uma gangue de extorsão.
MÃE Até que ponto não são os professores que não sabem lidar com a criançada de hoje em dia? Que sabe mais que eles?
DIRETOR Neste exato momento, ele tem duas crianças de refém e disse que só vai soltar se a gente conseguir um helicóptero e vinte mil reais.
MÃE Isso é a cocaína.
DIRETOR Vocês dão cocaína pra ele?
PAI Ele rouba da mãe.
MÃE Eu uso pra rebater o Rivotril.
PAI Eu não sei se você sabe, mas Freud usava cocaína.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

O pós-impressionismo de Toulouse-Lautrec

At Montrouge (Rosa la Rouge), 1887, de Henri de Toulouse-Lautrec

Lembrança da feitura de um romance

Não me lembro mais onde foi o começo, sei que não comecei pelo começo: foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou parecia estar, como no espaçotemporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano.
Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim, e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Passei a entender melhor a coisa que queria ser dita.
Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão, ou melhor, certeza de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer.
Cada vez acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor.
O livro foi se levantando por assim dizer ao mesmo tempo, emergindo mais aqui do que ali, ou de repente mais ali do que aqui: eu interrompia uma frase no capítulo 10, digamos, para escrever o que era o capítulo dois, por sua vez interrompido durante meses porque escrevia o capítulo 18. Esta paciência eu tive: a de suportar, sem nem ao menos o consolo de uma promessa de realização, o grande incômodo da desordem. Mas também é verdade que a ordem constrange.
Como sempre, a dificuldade maior era a da espera. (Estou sentindo uma coisa estranha, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho. E eu que pensava que estava morrendo, responderia a mulher.) A alma deformada, crescendo, se avolumando, sem nem ao menos se saber que aquilo é espera de algo que se forma e que virá à luz.
Além da espera difícil, a paciência de recompor por escrito paulatinamente a visão inicial que foi instantânea. Recuperar a visão é muito difícil.
E como se isso não bastasse, infelizmente não sei redigir, não consigo relatar uma ideia, não sei “vestir uma ideia com palavras”. O que escrevo não se refere ao passado de um pensamento, mas é o pensamento presente: o que vem à tona já vem com suas palavras adequadas e insubstituíveis, ou não existe.
Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. É como se eu quisesse uma comunicação mais direta, uma compreensão muda como acontece às vezes entre pessoas. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: viveria, não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

A morte do pai I

O velório de meu pai foi um hambúrguer frio. Eu me sentei defronte da casa mortuária, no Alhambra, e tomei um café. Seria um pulo de carro até o hipódromo depois que acabasse. Um homem com um rosto esfolado terrível, óculos muito redondos com lentes grossas, entrou.
Henry – me disse, e sentou-se e pediu um café.
Oi, Bert.
Seu pai e eu nos tornamos grandes amigos. A gente falava muito de você.
Eu não gostava do meu velho – eu disse.
Seu pai amava você, Henry. Esperava que você se casasse com Rita. – Era a filha dele. – Ela está saindo com o cara mais legal agora, mas ele não excita ela. Ela parece ter uma queda por impostores. Eu não entendo. Mas deve gostar dele um pouco – disse, animando-se –, porque esconde o filho no armário quando ele chega.
Vamos, Bert, vamos embora.
Atravessamos a rua e entramos na casa mortuária. Alguém dizia que meu pai tinha sido um bom homem. Me deu vontade de contar a eles o outro lado. Depois alguém cantou. Nós desfilamos diante do caixão. Talvez eu cuspa nele, pensei.
Minha mãe morrera. Eu a enterrara um ano antes, fora às corridas e depois trepara. A fila andou. Aí uma mulher gritou:
Não, não, não! Ele não pode estar morto!
Enfiou a mão no caixão, ergueu a cabeça dele e beijou-o. Ninguém a deteve. Ela pôs os lábios nos dele. Peguei meu pai e a mulher pelo pescoço e separei-os. Meu pai caiu de volta no caixão e a mulher foi levada para fora, tremendo.
Era a namorada de seu pai – disse Bert.
Nada mal – eu disse.
Quando desci os degraus após o serviço, a mulher estava à espera. Correu para mim.
Você se parece exatamente com ele! Você é ele!
Não – eu disse –, ele está morto, e eu sou mais jovem e melhor.
Ela me abraçou e beijou. Enfiei a língua entre os lábios dela. E recuei.
Pronto, pronto – disse em voz alta –, se contenha!
Ela tornou a me beijar e desta vez eu enfiei a língua mais fundo. O pênis começou a ficar duro. Vieram uns homens e umas mulheres para levá-la.
Não – ela disse –, eu quero ir com ele. Preciso conversar com o filho dele!
Vamos, Maria, por favor, venha conosco!
Não, não, preciso falar com o filho dele!
Você se incomoda? – perguntou um homem.
Tudo bem – eu disse.
Maria entrou em meu carro e fomos para a casa de meu pai. Abri a porta e entramos.
Dê uma olhada – eu disse. – Pode pegar qualquer coisa dele que queira. Eu vou tomar um banho. Velórios me fazem suar.
Quando voltei, Maria estava sentada na beira da cama de meu pai.
Oh, está usando o roupão dele!
Agora é meu.
Ele simplesmente adorava esse roupão. Dei a ele no Natal. Ele tinha tanto orgulho dele! Disse que ia vestir e andar pelo quarteirão pra todos os vizinhos verem.
Fez isso?
Não.
É um ótimo roupão. Agora é meu.
Peguei um maço de cigarros da mesinha de cabeceira.
Oh, são os cigarros dele!
Quer um?
Não.
Acendi um.
Há quanto tempo conhecia ele?
Cerca de um ano.
E não descobriu?
Descobriu o quê?
Que ele era um homem ignorante. Cruel. Patriótico. Com fome de dinheiro. Mentiroso. Covarde. Um impostor.
Não.
Estou surpreso. Você parece uma mulher inteligente.
Eu amava seu pai, Henry.
Quantos anos você tem?
Quarenta e três.
Está bem conservada. Tem belas pernas.
Obrigada.
Pernas sexy.
Fui à cozinha, peguei uma garrafa de vinho do armário, saquei a rolha, peguei duas taças e voltei. Servi um drinque para ela e entreguei-lhe a taça.
Seu pai falava muito de você.
É?
Dizia que você não tinha ambição.
Tinha razão.
É mesmo?
Minha única ambição é não ser nada, parece a coisa mais sensata.
Você é estranho.
Não, meu pai é que era. Me deixa servir outro drinque pra você. É um bom vinho.
Ele disse que você era um bebum.
Está vendo, consegui alguma coisa.
Você se parece muito com ele.
Só na superfície. Ele gostava de ovos moles, eu gosto duros. Ele gostava de companhia, eu gosto de solidão. Ele gostava de dormir à noite, eu gosto de dormir de dia. Ele gostava de cachorros, eu puxava as orelhas deles e enfiava fósforos no rabo deles. Ele gostava do emprego, eu gosto de vagabundar.
Estendi os braços e agarrei-a. Abri os lábios, enfiei a boca na dela e comecei a sugar o ar dos pulmões dela. Cuspi pela garganta dela abaixo e passei o dedo pelo rego da bunda dela. Separamo-nos.
Ele me beijava com delicadeza – disse Maria. – Me amava.
Merda – eu disse –, minha mãe só estava há um mês debaixo do chão e ele já estava chupando seus peitos e dividindo o papel higiênico com você.
Ele me amava.
Bolas. O medo de ficar só levou ele pra sua vagina.
Ele dizia que você era um jovem amargo.
Diabos, sim. Veja o que eu tive como pai.
Suspendi o vestido dela e comecei a beijar as pernas. Comecei nos joelhos. Cheguei à parte interna da coxa e ela se abriu para mim. Mordi-a com força, e ela saltou e soltou um peido.
Oh, desculpe.
Está tudo bem – eu disse.
Servi outro drinque para ela, acendi um dos cigarros de meu pai morto e fui à cozinha buscar outra garrafa de vinho. Bebemos por mais uma hora ou duas. A tarde se tornava noite, mas eu estava cansado. A morte era tão chata. Isso era o pior sobre a morte. Era chata. Assim que acontecia, não se podia fazer nada. Não se podia jogar tênis com ela nem transformá-la numa caixa de bombons. Estava ali, como um pneu furado. A morte era estúpida. Enfiei-me na cama. Ouvi Maria tirar os sapatos, a roupa, depois a senti na cama a meu lado. Ela pôs a cabeça em meu peito e senti meus dedos esfregando atrás das orelhas dela. Depois meu pênis começou a subir. Ergui a cabeça dela e pus a boca na dela. Pus delicadamente. Depois peguei a mão dela e a pus em meu pau.
Eu tinha bebido vinho demais. Montei nela. Meti e meti. Chegava na beirinha, mas não conseguia. Estava dando a ela uma longa, suada e interminável foda. A cama rangia e saltava, rebolava e gemia. Maria gemia. Eu a beijava e beijava. Ela abria a boca em busca de ar.
Deus do céu – disse –, você está me FODENDO MESMO!
Eu só queria acabar, mas o vinho embotara o mecanismo. Acabei rolando para o lado.
Deus – ela disse. – Deus.
Começamos a nos beijar e começou tudo de novo. Tornei a montar. Desta vez, senti o clímax chegando devagar.
Oh – eu disse. – Oh, deus!
Finalmente consegui, me levantei, fui ao banheiro, saí fumando um cigarro e voltei à cama. Ela estava quase dormindo.
Meu deus – ela disse –, você me FODEU mesmo!
Dormimos.

De manhã me levantei, vomitei, escovei os dentes, gargarejei e abri uma garrafa de cerveja. Maria acordou e me olhou.
A gente fodeu? – perguntou.
Está falando sério?
Não. Estou querendo saber. A gente fodeu?
Não – eu disse. – Não aconteceu nada.
Maria foi ao banheiro e tomou um chuveiro. Cantava. Depois se enxugou e saiu. Me olhou.
Estou me sentindo como uma mulher que foi fodida.
Não aconteceu nada, Maria.
Nós nos vestimos e eu a levei a um café na esquina. Ela comeu linguiça com ovos mexidos, torrada de pão de trigo, café. Eu tomei um copo de suco de tomate e comi um bolinho.
Eu não consigo superar isso. Você se parece com ele.
Esta manhã, não, Maria, por favor.
Enquanto a observava enfiar os ovos mexidos, linguiça e torrada (coberta de geleia de morango) na boca, percebi que tínhamos perdido o enterro. Tínhamos esquecido de ir ao cemitério ver o velho jogado no buraco. Eu queria ter visto isso. Era a única parte boa da coisa. Não tínhamos nos juntado ao préstito fúnebre, e em vez disso tínhamos ido à casa de meu pai e fumado seus cigarros e bebido seu vinho.
Maria levou um bocado particularmente grande de ovos mexidos amarelo vivo à boca e disse:
Você deve ter me fodido. Estou sentindo seu sêmen escorrendo pelas minhas pernas.
Oh, é apenas suor. Está quente esta manhã.
Vi-a enfiar a mão embaixo da mesa e embaixo do vestido. Um dedo voltou. Ela cheirou-o.
Isso não é suor, é sêmen.
Maria acabou de comer e saímos. Ela me deu seu endereço e eu a levei lá de carro. Estacionei no meio-fio.
Gostaria de entrar?
Agora, não. Preciso cuidar das coisas. A herança.
Maria curvou-se e me beijou. Tinha os olhos muito grandes, assustados, azedos.
Eu sei que você é muito mais jovem, mas eu podia amar você – ela disse. – Tenho certeza de que podia.
Quando chegou à porta, ela se virou. Ambos acenamos. Eu fui à primeira loja de bebidas, peguei meio litro e o Formulário das Corridas. Previa um bom dia no hipódromo. Eu sempre me saía melhor depois de um dia de folga.

Charles Bukowski, in Numa Fria

Figurativa

O pai cavando o chão mostrou pra nós,
com o olho da enxada, o bicho bobo,
a cobra de duas cabeças.
Saía dele o cheiro de óleo e graxa,
cheiro suor de oficina, o brabo cheiro bom.
Nós tínhamos comido a janta quente
de pimenta e fumaça, angu e mostarda.
Pisando a terra que ele desbarrancava aos socavões,
catava tanajuras voando baixo,
na poeira de ouro das cinco horas.
A mãe falou pra mim: “Vai na sua avó buscar polvilho,
vou fritar é uns biscoitos pra nós”.
A voz dela era sem acidez. ‘Arreda, arreda’,
o pai falava com amor.
As tanajuras no sol, a beira da linha,
o verde do capim espirrando entre os tijolos
da beirada da casa descascada, a menina embaraçada
com a opressão da alegria, o coração doendo,
como se triste fosse.

Adélia Prado, in Bagagem