terça-feira, 18 de outubro de 2022
Escrever
Escrever
para jornal não é tão impossível: é leve, tem que ser leve, e
até mesmo superficial: o leitor, em relação a jornal, não tem nem
vontade nem tempo de se aprofundar.
Mas
escrever o que se tornará depois um livro exige às vezes mais força
do que aparentemente se tem.
Sobretudo
quando se teve que inventar o próprio método de trabalho, como eu e
muitos outros. Quando conscientemente, aos 13 anos de idade, tomei
posse da vontade de escrever – eu escrevia quando era criança, mas
não tomara posse de um destino – quando tomei posse da vontade de
escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem
pudesse me ajudar.
Eu
tinha eu mesma que me erguer de um nada, tinha eu mesma que me
entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade. Comecei,
e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro –
o sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo
a mais para realmente não poder. A história interminável que então
comecei a escrever (com muita influência de O lobo da estepe,
Hermann Hesse), que pena eu não a ter conservado: rasguei,
desprezando todo um esforço quase sobre-humano de aprendizagem, de
autoconhecimento. E tudo era feito em tal segredo. Eu não contava a
ninguém, vivia aquela dor sozinha. Uma coisa eu já adivinhava: era
preciso tentar escrever sempre, não esperar por um momento melhor
porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil,
embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é
diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto
é, pode-se ser chamado e não saber como ir.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
O sol nascerá | Cartola e Elton Medeiros, 1964
Sucesso
espetacular com Nara Leão em seu álbum de estreia (Elenco, 1964),
marca a volta de Cartola à vida musical, depois de um começo
vitorioso entre os bambas do samba seguido de anos de ostracismo e
alcoolismo, até ser redescoberto pelo cronista Sérgio Porto lavando
carros em Copacabana e ter suas músicas gravadas por Nara.
“O
sol nascerá” nasceu dois anos antes, durante uma noitada na casa
de Cartola, quando o jovem Elton Medeiros aceitou o desafio de seu
mestre para criar uma música na hora. E em pouco tempo os dois
fizeram este samba arrebatador, dividindo tanto a música quanto a
letra.
Angenor
de Oliveira nasceu em 1908 e, com 11 anos, se mudou com a família
para o Morro da Mangueira, onde, em 1928, ajudou a fundar a Estação
Primeira. Além de ter sugerido o nome da escola, foi Cartola quem
escolheu o verde e o rosa como as suas cores. Logo seus sambas
desceram para o asfalto. Amigo e parceiro de Noel Rosa, nos anos 1930
teve músicas gravadas pelos maiores intérpretes da época, como
Sílvio Caldas, Francisco Alves, Mário Reis e Carmen Miranda. Em
1940, esteve entre os compositores populares que Heitor Villa-Lobos
levou até o maestro Leopold Stokowski, em um estúdio montado num
navio ancorado na Praça Mauá, onde fez uma série de gravações
depois lançadas em disco nos Estados Unidos.
Pouco
depois, devastado por uma desilusão amorosa, Cartola sumiu dos bares
e dos estúdios das rádios onde mostrava suas músicas e mergulhou
no álcool e no abandono. Durante anos, ninguém ouviu falar dele.
No
início dos anos 1960, resgatado do alcoolismo pelo amor e a
dedicação de Dona Zica, o sol voltava a nascer para Cartola com a
gravação de Nara, que marcava o começo da fase mais produtiva e
bem-sucedida de sua carreira.
Com
sua mensagem de esperança, o samba apostava na alegria e no novo dia
como um elixir musical para todas as horas. Mas quando foi lançado,
logo após o golpe militar de 1964, a letra também foi ouvida como
uma metáfora política contra a ditadura, como nos versos “finda a
tempestade / o sol nascerá”.
Além
de Nara, “O sol nascerá” ganhou mais quatro versões, entre elas
uma do próprio Cartola em seu primeiro disco, um compacto duplo (com
quatro faixas) lançado pela gravadora Mocambo, sem qualquer
repercussão.
Em
1974, já com 66 anos, Cartola gravou em seu primeiro álbum solo
(Discos Marcus Pereira) uma magistral versão de “O sol nascerá”,
com a voz já curtida por décadas de álcool, tabaco e afins, dando
intensa dramaticidade à receita para quem pretende levar a vida
sorrindo.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
Uma Lição de Moral
Meu
amigo Baiano me pede que eu declare seu nome de batismo. Isso porque,
segundo o Baiano, a rapaziada da terra dele não acredita que a gente
bebe junto no Bar da Maria.
– ‘Xá-de-sê
mintiroso, seu minino. Tu bebe cum Valdimir Branquis nada, ô xente!
– Tá
legal, Baiano. Alô, Nordeste! Atenção, Agreste Sertão, Cerrado,
Caatinga, Coqueirais e Mandacurus! O nome do Baiano é Wilson Flora!
E, só pra não perder a viagem Valdimir Branquis é o cacete!
Tudo
isso é pra dizer que Baiano inventou uma explicação muito original
sobre os motivos que podem levar um senador a mandar matar um
sargento comilão, sujeitando a digníssima esposa a um vexame
nacional. É claro que tudo não passa de especulação e qualquer
semelhança com vivos e mortos do Brasil de hoje é mera
coincidência.
– Cê
vê, Blanc: se o cara tivesse ficado boneco e não chiasse, ou se
tivesse dado apenas ligeira aparadinha nos chifres, umas bolachas e
coisa e tal, o negoço não extrapolava. Ora, pra virar suruba
nacional, só tem uma explicação plausível...
Bom
contador de história, Baiano acende uma cigarrilha e assume um
arzinho altivo, coisa de Sherlock Holmes caboclo.
– Homem
acostumado ao poder, o marido pirou por motivos concernentes à
etiqueta e não necessariamente afeitos à esfera sexual!
Tem
horas que o Baiano enche o saco, né?
– Pegou
o espírito da coisa, Blanc?
– Ainda
não.
– Pois
eu vou reconstituir o crime pra você entender a jogada.
– Obrigado,
Wilson.
– Disponha.
Me acompanhe: o senador chega em casa mais cedo e grita: Queriiidaaa!
– Hum-hum.
– Que
resposta obtém? Nenhuma. Do quarto chega uns gemidozinhos abafados,
ai, ui, tira, bota, esses fundamentos. Que faz o senador?
– Puxa
a parabélum.
– Nãozinho.
– Trinca
a peixeira e parte pra cima.
– Never!
Homem habituado aos meandros do poder, o senador fica frio e vai
investigar a questão. Entra no quarto e dá de cara com o sargento,
ou patente próxima, mais atochado na senhora dele que camarão em
vatapá. Que atitude toma o senador?
– Sei
lá, pô. Explode o cômodo.
– Nunca,
jamais, em tempo algum. íntimo dos acidentes do poder, o senador
delibera, tenta o debate, o que eles mesmo chamam de um “amplo
entendimento”. Diz pro rapaz: “Mas logo você, que não tinha
onde cair morto e a quem tanto ajudei?” E virando o foco pra
cara-metade: “Será possível o que meus olhos veem?”
– Ah,
Baiano, qualé?
– E
o casal? Que reação tem o casal, diante desse exemplo de moderação?
– Bom,
envergonhados, os dois se cobrem e...
– Errou
de novo. O casal continua no vapt-vupt. Aí, sim, o senador,
sentindo-se agredido na investidura do seu poder, perde as
estribeiras. Porque um dos lemas do poder é: querem prevaricar,
prevariquem, mas com muito respeito.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo
domingo, 16 de outubro de 2022
Pelada de barranco
Nada
havia de mais prestante em nós senão a infância.
O
mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira
do
rio. Um menino Guató chegava de canoa e embicava
no
barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar
a
posição de golquíper no Porto de Dona Emília Futebol
Clube.
Nosso valoroso time. As cercas laterais do campo
eram
de cansanção. Espinheiro fechado pra ninguém botar
defeito.
Guató já trazia do barranco duas pedras para servir
de
balizas. Os craques desciam da cidade como formigas.
José
de Camos, nosso beque de espera também tinha a
incumbência
de soprar as bexigas. Porque a nossa bola
era
de bexiga, que às vezes caiam no rio e as piranhas
devoravam.
E se caísse no cansanção os espinhos furavam.
Nosso
campinho por miúdo só permitia times de sete:
O
goleiro, um beque de espera, um beque de avanço e
três
na linha. Chambalé nosso técnico impunha regras:
só
pode mijar no rio e não pode jogar de botina.
Sabastião
era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia
as
variações da bexiga no vento e botava no grau certo.
Quando
alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga.
Metade
de nossos craques eram filhos de lavandeiras e
outra
metade de pescadores. Na aba do campo a namorada
do
Sabastião torcia: quebra esse saba, destina eles pras
piranhas.
Mas Chambalé não deixava destinar. Quem destina
é
Deusi – falava. No fim do jogo alguns iam bater bronha,
outros
iam no mato jogar o mantimento e outros iam
pelotear
passarinho. Guató pegava a canoa e remava até
a
aldeia a mil metros dali. A cidade onde a gente morava
foi
feita em cima de uma pedra branca enorme. E o rio
paraguaio,
lá embaixo, corria com suas piranhas
e
os seus camalotes.
Manoel de Barros, in Memórias Inventas – A segunda infância
Fondue com estrelas
A
fondue não é uma refeição, é uma confraternização. As
pessoas se reúnem em torno de uma pequena panela cheia de óleo
borbulhante e são felizes. A fondue de carne é mais alegre
do que a de queijo. Nesta a panela fica cheia de queijo derretido no
qual você mergulha pedaços de pão, enquanto na de carne você
deixa os pedaços de filé fritando no óleo, espetados na ponta de
garfos compridos, e os garfos ficam ali em divertido congresso dentro
do óleo, cada um esperando o seu dono vir pegá-lo, pegar o garfo
errado e ouvir protestos gerais, deixar cair a carne e depois tentar
pescá-la do fundo da panela — enfim, não há compostura que
resista. Recomenda-se a fondue para jantares formais que logo
ficam informais, para conferências de cúpula entre o Oriente e o
Ocidente e para casais brigados que querem fazer as pazes. Neste caso
é preciso haver um firme desejo de paz, senão pode dar confusão
com os garfinhos, outra briga e cuidado com o óleo fervendo!
A
fondue verdadeira ou, pelo menos, verdadeiramente suíça, é
de queijo acompanhada de vinho tinto e vagos ruídos de satisfação.
O queijo não é qualquer um, claro, e não está sozinho na panela.
Mas não me pergunte o que vai junto. A única parte de qualquer
receita de comida que me interessa é a última, aquela que começa
depois do “leve à mesa”. Eu só entro em cozinha para abrir a
geladeira.
As
outras fondues têm origens diversas, quase todas nas regiões
alpinas francesas. Todas têm em comum a panela com óleo fervendo, o
que varia é o que você coloca dentro do óleo. De todas estas
variações só conheço a fondue de carne, se bem que há
algum tempo contemple a possibilidade de grandes e rubicundos
camarões serem mergulhados — entre gritos selvagens de prazer, e
de dor com o óleo que respinga — na panela, para emergirem
instantes depois tostados e crispados, prontos para o seu destino:
uma rápida passagem pelo molho e o meu estômago impaciente. Só um
minuto que eu preciso passar um lenço pelas teclas da máquina de
escrever. Pronto. Não experimentei ainda a fondue de camarão porque
precisei escolher entre comprar alguns quilos de camarão gigante e
pagar a educação dos meus filhos e a consciência — depois de
alguma hesitação — falou mais alto. Quando as crianças já
estiverem encaminhadas na vida, quem sabe... Na fondue de
carne o importante para se julgar o talento de quem faz são os
molhos, já que cortar um filé em cubos e encher uma panela com
óleo, até eu. A última fondue de carne que comi foi em
Gramado, sábado passado. Oito qualidades de molho: raiz-forte,
laranja, rémoulade, Cardinale, creme, vinagrete, tomate,
framboesa. Feitos por pessoas definitivamente de talento, no
Restaurante Santo Humberto, com janelões sobre o lago Negro. A
fondue do Santo Humberto foi no almoço. O jantar foi na casa
da Olga Reverbel, e não preciso dizer que saiu tarde, pois às nove
da noite a memória dos molhos ainda era mais forte do que a fome e
todas as promessas culinárias de Olga. Fiquei com as crianças no
jardim, atirado numa rede, olhando para o céu mais estrelado da
minha vida, enquanto as mulheres preparavam a janta. Um momento
mágico. Falei para as crianças das constelações, das formas que
os antigos tinham descoberto nas estrelas, na Ursa Maior, no
Escorpião... As meninas não demoraram em descobrir outras no céu,
até então insuspeitas: um urinol, um bigode de mexicano, uma
meleca... Impossível manter a seriedade de qualquer empreendimento
didático, numa noite de outono, em Gramado. E então nos chamaram
para comer.
Em
tempo: o jantar foi um arroz montanhês no qual a linguiça, o milho,
a cebola e a maçã se apresentavam em escandalosa promiscuidade,
isto para só falar nos ingredientes que eu decifrei. Antes de
dormir, revimos na televisão O planeta dos macacos, uma séria
advertência sobre o futuro negro que nos espera e os piores impulsos
da humanidade. Sei não, mas naquela noite nada daquilo era comigo…
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
O homem que escutava as abelhas
1
Estou
assustado com os olhos da minha mulher. Ela não consegue enxergar o
lado de fora, e ninguém consegue enxergar lá dentro. Veja, são
como pedras, pedras cinza, pedras marinhas. Olhe para ela. Veja como
está sentada na beirada da cama, sua camisola no chão, rolando nos
dedos a bola de gude de Mohammed, esperando que eu a vista. Estou
ganhando tempo colocando minha camisa e a calça, porque estou muito
cansado de vesti-la. Veja as dobras da sua barriga, a cor de mel do
deserto, mais escura nas dobras, e as linhas muito finas e prateadas
na pele dos seus seios, as pontas dos seus dedos com cortezinhos
minúsculos, onde as formas de encostas e vales já estiveram
manchadas com tinta azul, amarela ou vermelha. Houve época em que
sua risada era ouro, você poderia vê-la, além de escutá-la. Olhe
para ela, porque acho que ela está desaparecendo.
– Tive
uma noite de sonhos dispersos – ela diz. – Eles encheram o
quarto.
Seus
olhos estão fixos um pouco à minha esquerda. Sinto náusea.
– O
que isso quer dizer?
– Eles
eram fragmentados. Estavam por toda parte. E eu não sabia se estava
acordada ou dormindo. Eram muitos os sonhos, como abelhas em um
quarto, como se o quarto estivesse cheio de abelhas. E eu não
conseguia respirar. Acordei e pensei, por favor, faça com que eu não
sinta fome.
Olho
para ela, confuso. Ainda não há expressão. Não lhe conto que
agora só sonho com assassinato, sempre o mesmo sonho. Sou só eu e o
homem, estou segurando o bastão e minha mão está sangrando; no
sonho, os outros não estão lá, e ele está no chão, as árvores
acima dele, e ele me diz alguma coisa que não consigo escutar.
– E
sinto dor – ela diz.
– Onde?
– Atrás
dos olhos. Uma dor bem aguda.
Ajoelho-me
em frente a ela, e olho nos seus olhos. O vazio absoluto que há
neles me aterroriza. Tiro o celular do bolso, acendo a luz da
lanterna neles. Suas pupilas dilatam-se.
– Você
vê alguma coisa? – pergunto.
– Não.
– Nem
ao menos uma sombra, uma mudança de tom ou cor?
– Só
preto.
Enfio
o celular no bolso e me afasto dela. Desde que chegamos aqui, ela
piorou. É como se sua alma estivesse evaporando.
– Você
pode me levar ao médico? – ela pergunta. – Porque a dor está
insuportável.
– Claro
– eu digo. – Logo.
– Quando?
– Assim
que conseguirmos os documentos.
Fico
feliz que Afra não possa ver este lugar. Mas ela gostaria das
gaivotas, do seu jeito maluco de voar. Em Alepo, estávamos longe do
mar. Tenho certeza de que ela gostaria de ver estes pássaros, talvez
até a costa, porque foi criada junto ao mar, enquanto eu sou do
leste de Alepo, onde a cidade encontra o deserto.
Quando
nos casamos e Afra veio viver comigo, sentiu tanta falta do mar que
começou a pintar água onde quer que a encontrasse. Pelo árido
planalto da Síria, há oásis, córregos e rios que deságuam em
pântanos e pequenos lagos. Antes de termos Sami, seguíamos a água,
e ela a pintava com tinta a óleo. Existe uma pintura do Queiq que eu
gostaria de poder rever. Ela fez com que o rio parecesse um
escoamento de águas pluviais fluindo pelo parque da cidade. Afra
tinha esse jeito de ver verdade em paisagens. A pintura, e seu mísero
rio, lembram-me a luta para permanecer vivo. A cerca de trinta
quilômetros ao sul de Alepo, o rio desiste da luta na rigorosa
estepe síria e se evapora nos pântanos.
Os
olhos dela me assustam. Mas estas paredes úmidas, os fios no teto e
os outdoors, não sei como ela lidaria com tudo isto, caso pudesse
ver. O outdoor logo aí fora diz que nosso número é excessivo, que
esta ilha se partirá com nosso peso. Estou feliz que ela esteja
cega. Sei o que isto parece! Se eu pudesse lhe dar uma chave que
abrisse uma porta para outro mundo, desejaria que ela voltasse a ver.
Mas teria que ser um mundo muito diferente deste aqui. Um lugar onde
o sol acaba de nascer, tocando os muros que circundam a cidade
antiga, e fora desses muros, os bairros que parecem alvéolos, as
casas, apartamentos, hotéis e vielas estreitas, uma feira livre onde
mil colares pendurados brilham à primeira luz, e mais longe, pelas
terras do deserto, ouro sobre ouro, vermelho sobre vermelho.
Sami
estaria ali, sorrindo e correndo por aquelas vielas com seus tênis
surrados, uns trocados na mão, a caminho da loja para comprar leite.
Tento não pensar em Sami. Mas Mohammed? Ainda espero que ele
encontre a carta e o dinheiro que deixei debaixo do pote de Nutella.
Acho que um dia haverá uma batida na porta, e quando eu abrir ele
estará ali parado, e eu direi:
– Mas
como você conseguiu chegar aqui, Mohammed? Como soube onde nos
encontrar?
Ontem,
vi um menino pelo espelho embaçado de vapor do banheiro
compartilhado. Ele usava uma camiseta preta, mas quando me virei, era
o homem do Marrocos, sentado no vaso sanitário, mijando.
– Você
deveria trancar a porta – ele disse, em seu próprio árabe.
Não
consigo me lembrar do seu nome, mas sei que ele é de uma aldeia
perto de Taza, no sopé das montanhas Rif. Ontem à noite, ele me
contou que é possível que eles o mandem para o centro de remoção,
em um lugar chamado Yarl’s Wood. A assistente social acha que
existe uma chance de eles fazerem isto. Nesta tarde, é minha vez de
me reunir com ela. O marroquino diz que ela é muito bonita, que
parece uma dançarina de Paris com quem ele uma vez fez amor num
hotel em Rabat, bem antes de se casar com sua esposa. Ele me
perguntou sobre a vida na Síria. Contei sobre as minhas colmeias em
Alepo.
À
noite, a proprietária nos trás chá com leite. O marroquino é
velho, talvez tenha oitenta, ou mesmo noventa anos. Tem a aparência
e o cheiro de quem é feito de couro. Lê Como ser um britânico,
e às vezes sorri consigo mesmo. Fica com o celular no colo, e às
vezes para ao final de cada página para olhar para ele, mas ninguém
nunca telefona. Não sei quem ele está esperando, e não sei como
chegou até aqui, nem por que fez tal viagem com uma idade tão
avançada, porque ele parece alguém à espera de morrer. Ele detesta
a maneira como os não muçulmanos ficam em pé para mijar.
Existe
cerca de dez de nós neste B&B decadente junto ao mar, todos de
lugares diferentes, todos aguardando. É possível que eles nos
aceitem, é possível que nos mandem embora, mas já não há muito o
que decidir. Que estrada tomar, em quem acreditar, se levantar
novamente o bastão e matar um homem. Estas coisas pertencem ao
passado. Logo evaporarão, como o rio.
Pego
o abaya de Afra no cabide do guarda-roupa. Ela escuta e se
levanta, erguendo os braços. Parece mais velha, agora, mas se
comporta como mais nova, como se tivesse se transformado numa
criança. Seu cabelo tem a cor e a textura de areia, já que o
tingimos para as fotos, descorando o tom árabe. Eu o prendo num
coque, e envolvo sua cabeça com seu hijab, fixando-o com
grampos, enquanto ela orienta meus dedos, como sempre faz.
A
assistente social estará aqui à uma da tarde, e todas as reuniões
acontecem na cozinha. Ela vai querer saber como chegamos até aqui, e
procurará um motivo para nos mandar embora, mas eu sei que se disser
as coisas certas, se convencê-la de que não sou um assassino, então
conseguiremos ficar aqui por sermos os que tiveram sorte, porque
viemos do pior lugar do mundo. O marroquino não tem tanta sorte,
terá que provar mais coisas. Agora, ele está sentado na sala de
visitas, junto às portas de vidro, segurando com as duas mãos um
relógio de bolso de bronze, aninhando-o em suas palmas como se fosse
um ovo incubado. Olha para ele, esperando. Pelo quê? Quando me vê
aqui parado, diz:
– Ele
não funciona, sabe? Parou numa hora diferente.
Levanta-o
para a luz pela corrente e sacode-o com delicadeza, este relógio
parado feito de… bronze… era a cor da cidade lá embaixo.
Vivíamos em uma casinha térrea de dois dormitórios, em uma colina.
Lá do alto, podíamos ver toda a arquitetura anárquica e os lindos
domos e minaretes, e mais distante a cidadela apontando.
Era
agradável sentar na varanda na primavera; podíamos sentir o cheiro
da terra do deserto, e ver o sol vermelho recolhendo-se sobre a
terra. Mas no verão, ficávamos dentro de casa com um ventilador
ligado, toalhas molhadas na cabeça, e os pés numa bacia de água
fria porque era quente como um forno.
Em
julho, a terra ficava ressecada, mas em nosso jardim tínhamos
árvores de damasco e amendoeiras, tulipas, íris e coroas-imperiais.
Quando o rio secava, eu descia até o tanque de irrigação para
pegar água para o jardim e mantê-lo vivo. Em agosto era como tentar
ressuscitar um cadáver, então eu via tudo aquilo morrer e se fundir
com o restante da terra. Quando estava mais fresco, dávamos um
passeio e observávamos os falcões voando pelo céu do deserto.
Eu
tinha quatro colmeias no jardim, empilhadas uma em cima da outra, mas
o restante estava num campo na periferia leste de Alepo. Detestava
ficar longe das abelhas. De manhã, eu acordava cedo, antes do sol,
antes do chamado do muezim3 para a oração. Dirigia os cinquenta
quilômetros até os apiários e chegava quando o sol estava
nascendo, os campos cheios de luz, o zumbir das abelhas uma única
nota límpida.
As
abelhas eram uma sociedade ideal, um pequeno paraíso em meio ao
caos. As obreiras viajavam para longe e por um espaço amplo para
encontrar comida, preferindo ir aos campos mais distantes. Coletavam
néctar de flores de limoeiros e trevos, sementes de cominho preto e
anis, eucalipto, algodão, espinheiros e urzes. Eu cuidava das
abelhas, alimentava-as, e monitorava as colmeias para impedir
infestações ou más condições de saúde. Às vezes, eu construía
novas colmeias, dividia as colônias ou criava abelhas-rainha –
tirava as larvas de outra colônia e observava enquanto as abelhas
cuidadoras alimentavam-nas com geleia real.
Mais
tarde, na época da colheita, eu verificava as colmeias para ver
quanto mel as abelhas tinham produzido, e depois punha os quadros com
os favos nos extratores e enchia os baldes, raspando o resíduo para
recolher o líquido dourado por debaixo. Era meu dever proteger as
abelhas, mantê-las saudáveis e fortes, enquanto elas realizavam sua
tarefa de produzir mel e polinizar a terra para nos manter vivos.
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
Classificar as coisas certas
Podemos
aprender até mesmo com a classe de coisas que as multidões
classificam como boas. Se tivessem classificado as coisas certas — tais
como a prudência, a temperança, a justiça e a fortaleza —, não
suportariam ouvir nada dissonante no que tange aos bens genuínos.
Caso o homem classifique como bom o que somente aparenta ser, ele
ouvirá os escritos do poeta cômico e de imediato os considerará
aplicáveis.
Inclusive,
a multidão percebe a diferença. Caso contrário, dissonâncias não
ofenderiam e não seriam rejeitadas, e ditados a respeito da riqueza,
do luxo e da fama não seriam percebidos como apropriados e
perspicazes.
Prossiga
e questione se devemos valorizar e classificar como boas as coisas às
quais, após uma concepção inicial, as seguintes palavras do poeta
possam ser aplicadas: “Quem as possui em abundância não tem um
canto para se aliviar.”
Marco Aurélio, in Meditações
14 dólares
Um
poeta da geração de 45, meu amigo (há desses milagres), contou-me
que sua glória transpusera enfim o limite do bar Vilarino e se
projetara nos Estados Unidos. Uma revista da Madison Avenue
pedira-lhe versos, traduzira-os limpamente e pagara por eles quantia
que nunca jornal algum, nestas brenhas, ousou soltar por trabalho
desse naipe.
— Mil
contos? — perguntei-lhe, assanhadíssimo.
— Tanto
assim, não. Vinte dólares. Mas o versinho era curto, sem métrica.
Legal, não acha?
Não
dá para um automóvel, pensei comigo, mas felicitei o rapaz, quand
même. Sem intenção de pedir-lhos emprestados; a fraternidade
das gerações não chega a esse ponto. Em todo caso, apeteceu-me
espiar a cor do dinheiro forte.
— Amigo,
vi poucos dólares em minha vida. Viagem mesmo, faço a de lotação
para a cidade, e ando farto da efígie de Rio Branco. Me mostre seu
dolarzinho.
— Bem,
devo explicar que dos meus vinte dólares poéticos, o governo
norte-americano papou seis, de imposto de renda. Cobrado na fonte,
hem?
Não
pude eximir-me de admirar o dom de locomoção desse governo, que vai
à própria fonte de Castália para haver o tributo da poesia. Onde
se esboce um voo lírico, na América do Norte, vela um fiscal do
Income Tax. Aqui, os poetas não devem a César, pelo exercício da
musa.*
— De
qualquer maneira, catorze dólares são catorze dólares —
sentenciei, mais para confortar o jovem confrade que como eco de
convicção profunda. — Ora, deixe ver os catorze dólares.
— O
cheque?
— Não,
a espécie, a figurinha da águia.
— Bem,
não houve propriamente dólares. O cheque dizia esse nome santo, mas
o caixa, no banco americano que o descontou, explicou-me que dólar é
a mesma coisa que cruzeiro.
— E
você acreditou?
— Era
acreditar ou largar. Disse-me que, onde quer que eu levasse o cheque,
me pagariam em cruzeiros, a menos que eu fosse a Nova York receber na
matriz. Tentei argumentar que aquilo era uma importação de
capitais, saudável à pátria: a tal revista possuía catorze
dólares em Nova York, e por artes de um simples poema hermético,
esses dólares vinham dinamizar a economia brasileira. O banco os
desembolsaria aqui, mas ficaria com outros catorze em Nova York para
importação de tratores, geladeiras etc.
— E
ele?
— Sorriu,
mas ponderou que eram ordens da Carteira de Câmbio do Banco do
Brasil. E tinha mais: ia pagar-me ao preço de compra, não ao de
venda do dólar. Mas eu não estou vendendo, estou recebendo,
retruquei ao caixa. Ele abanou a cabeça. “Também não está
comprando; então, aplica-se a cotação de venda, que mais nos
convém.” Em resumo: saí com mil e vinte e nove cruzeiros no
bolso, um tanto confuso. Veja o que é o dólar: a primeira
oportunidade que me dão de possuir vinte, logo de saída perco seis,
e os outros se dissolvem no ar em simples cruzeiros. Há quem os
venda e quem os compre, mas ninguém os vê. Tenho a impressão de
que dólar não existe, apesar de tão forte, ou por isso mesmo.
Era
também velha impressão minha. O dólar, como a girafa, não existe.
O poeta da geração de 45 ganhara, além dos cruzeiros, outra
metáfora. Fomos ingerir um chope.
*
Isto em 1957. Agora, devem. (N. A.)
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
sábado, 15 de outubro de 2022
Do nome
— What
is a name? — já indagava o Poeta.
Um
nome serve, em última instância, para uma lápide.
Ou
para uma estátua, geralmente equestre.
E
a melhor fase da vida — a mais natural — é quando os pais ainda
não escolheram um nome para a gente.
Mário Quintana, in Caderno H
Crianças
DIRETOR
Eu chamei vocês aqui pra falar do Paulinho.
MÃE
Fofo.
DIRETOR
Ele tá com sérios problemas de aprendizado.
MÃE
Deve ser o Déficit de Atenção.
DIRETOR
Ele tem DDA?
MÃE
Muito. Mas a gente já tá medicando.
PAI
Eu não sei se você sabe, mas Einstein tinha DDA.
DIRETOR
Mas o problema vai muito além do DDA.
MÃE
Ele tá hiperativo?
DIRETOR
Bastante.
PAI
É a Ritalina.
DIRETOR
Ele também toma Ritalina?
MÃE
Por causa do DDA.
PAI
Não sei se você sabe, mas Steve Jobs tomava Ritalina.
MÃE
Deve ser bom porque torna ele bastante participativo.
DIRETOR
No recreio. Nas aulas ele costuma dormir.
MÃE
Aí é o Rivotril.
PAI
Que a gente dá pra rebater a Ritalina.
DIRETOR
Ele tá muito agressivo.
MÃE
Quer ver ele ficar calminho? Diz que ele vai ficar sem Frontal. Tiro
e queda. Fica uma flor.
PAI
Tem que saber jogar o jogo dele.
DIRETOR
Vocês não estão entendendo. O Paulinho lidera uma gangue que
extorque outras crianças em troca de proteção.
MÃE
Bom, como você mesmo disse, ele “lidera” uma gangue. Eu vejo
claramente que existe aí um talento pra liderança que vocês estão
desprezando.
PAI
Eu não sei se você sabe mas Picasso, quando criança, liderava uma
gangue de extorsão.
MÃE
Até que ponto não são os professores que não sabem lidar com a
criançada de hoje em dia? Que sabe mais que eles?
DIRETOR
Neste exato momento, ele tem duas crianças de refém e disse que só
vai soltar se a gente conseguir um helicóptero e vinte mil reais.
MÃE
Isso é a cocaína.
DIRETOR
Vocês dão cocaína pra ele?
PAI
Ele rouba da mãe.
MÃE
Eu uso pra rebater o Rivotril.
PAI
Eu não sei se você sabe, mas Freud usava cocaína.
Gregório Duvivier, in Put some farofa
Lembrança da feitura de um romance
Não
me lembro mais onde foi o começo, sei que não comecei pelo começo:
foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou
parecia estar, como no espaçotemporal de um piano aberto, nas teclas
simultâneas do piano.
Escrevi
procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim, e
que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber.
Passei a entender melhor a coisa que queria ser dita.
Meu
receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me
compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha
a impressão, ou melhor, certeza de que, mais tempo eu me desse, e a
história diria sem convulsão o que ela precisava dizer.
Cada
vez acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência,
de paciência criando amor.
O
livro foi se levantando por assim dizer ao mesmo tempo, emergindo
mais aqui do que ali, ou de repente mais ali do que aqui: eu
interrompia uma frase no capítulo 10, digamos, para escrever o que
era o capítulo dois, por sua vez interrompido durante meses porque
escrevia o capítulo 18. Esta paciência eu tive: a de suportar, sem
nem ao menos o consolo de uma promessa de realização, o grande
incômodo da desordem. Mas também é verdade que a ordem constrange.
Como
sempre, a dificuldade maior era a da espera. (Estou sentindo uma
coisa estranha, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai
ter um filho. E eu que pensava que estava morrendo, responderia a
mulher.) A alma deformada, crescendo, se avolumando, sem nem ao menos
se saber que aquilo é espera de algo que se forma e que virá à
luz.
Além
da espera difícil, a paciência de recompor por escrito
paulatinamente a visão inicial que foi instantânea. Recuperar a
visão é muito difícil.
E
como se isso não bastasse, infelizmente não sei redigir, não
consigo relatar uma ideia, não sei “vestir uma ideia com
palavras”. O que escrevo não se refere ao passado de um
pensamento, mas é o pensamento presente: o que vem à tona já vem
com suas palavras adequadas e insubstituíveis, ou não existe.
Ao
escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o
que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. É
como se eu quisesse uma comunicação mais direta, uma compreensão
muda como acontece às vezes entre pessoas. Se eu pudesse escrever
por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de
menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da
palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente
com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as
mesmas profundas decepções inconsoláveis: viveria, não usaria
palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
A morte do pai I
O
velório de meu pai foi um hambúrguer frio. Eu me sentei defronte da
casa mortuária, no Alhambra, e tomei um café. Seria um pulo de
carro até o hipódromo depois que acabasse. Um homem com um rosto
esfolado terrível, óculos muito redondos com lentes grossas,
entrou.
– Henry
– me disse, e sentou-se e pediu um café.
– Oi,
Bert.
– Seu
pai e eu nos tornamos grandes amigos. A gente falava muito de você.
– Eu
não gostava do meu velho – eu disse.
– Seu
pai amava você, Henry. Esperava que você se casasse com Rita. –
Era a filha dele. – Ela está saindo com o cara mais legal agora,
mas ele não excita ela. Ela parece ter uma queda por impostores. Eu
não entendo. Mas deve gostar dele um pouco – disse, animando-se –,
porque esconde o filho no armário quando ele chega.
– Vamos,
Bert, vamos embora.
Atravessamos
a rua e entramos na casa mortuária. Alguém dizia que meu pai tinha
sido um bom homem. Me deu vontade de contar a eles o outro lado.
Depois alguém cantou. Nós desfilamos diante do caixão. Talvez eu
cuspa nele, pensei.
Minha
mãe morrera. Eu a enterrara um ano antes, fora às corridas e depois
trepara. A fila andou. Aí uma mulher gritou:
– Não,
não, não! Ele não pode estar morto!
Enfiou
a mão no caixão, ergueu a cabeça dele e beijou-o. Ninguém a
deteve. Ela pôs os lábios nos dele. Peguei meu pai e a mulher pelo
pescoço e separei-os. Meu pai caiu de volta no caixão e a mulher
foi levada para fora, tremendo.
– Era
a namorada de seu pai – disse Bert.
– Nada
mal – eu disse.
Quando
desci os degraus após o serviço, a mulher estava à espera. Correu
para mim.
– Você
se parece exatamente com ele! Você é ele!
– Não
– eu disse –, ele está morto, e eu sou mais jovem e melhor.
Ela
me abraçou e beijou. Enfiei a língua entre os lábios dela. E
recuei.
– Pronto,
pronto – disse em voz alta –, se contenha!
Ela
tornou a me beijar e desta vez eu enfiei a língua mais fundo. O
pênis começou a ficar duro. Vieram uns homens e umas mulheres para
levá-la.
– Não
– ela disse –, eu quero ir com ele. Preciso conversar com o filho
dele!
– Vamos,
Maria, por favor, venha conosco!
– Não,
não, preciso falar com o filho dele!
– Você
se incomoda? – perguntou um homem.
– Tudo
bem – eu disse.
Maria
entrou em meu carro e fomos para a casa de meu pai. Abri a porta e
entramos.
– Dê
uma olhada – eu disse. – Pode pegar qualquer coisa dele que
queira. Eu vou tomar um banho. Velórios me fazem suar.
Quando
voltei, Maria estava sentada na beira da cama de meu pai.
– Oh,
está usando o roupão dele!
– Agora
é meu.
– Ele
simplesmente adorava esse roupão. Dei a ele no Natal. Ele
tinha tanto orgulho dele! Disse que ia vestir e andar pelo quarteirão
pra todos os vizinhos verem.
– Fez
isso?
– Não.
– É
um ótimo roupão. Agora é meu.
Peguei
um maço de cigarros da mesinha de cabeceira.
– Oh,
são os cigarros dele!
– Quer
um?
– Não.
Acendi
um.
– Há
quanto tempo conhecia ele?
– Cerca
de um ano.
– E
não descobriu?
– Descobriu
o quê?
– Que
ele era um homem ignorante. Cruel. Patriótico. Com fome de dinheiro.
Mentiroso. Covarde. Um impostor.
– Não.
– Estou
surpreso. Você parece uma mulher inteligente.
– Eu
amava seu pai, Henry.
– Quantos
anos você tem?
– Quarenta
e três.
– Está
bem conservada. Tem belas pernas.
– Obrigada.
– Pernas
sexy.
Fui
à cozinha, peguei uma garrafa de vinho do armário, saquei a rolha,
peguei duas taças e voltei. Servi um drinque para ela e
entreguei-lhe a taça.
– Seu
pai falava muito de você.
– É?
– Dizia
que você não tinha ambição.
– Tinha
razão.
– É
mesmo?
– Minha
única ambição é não ser nada, parece a coisa mais sensata.
– Você
é estranho.
– Não,
meu pai é que era. Me deixa servir outro drinque pra você. É um
bom vinho.
– Ele
disse que você era um bebum.
– Está
vendo, consegui alguma coisa.
– Você
se parece muito com ele.
– Só
na superfície. Ele gostava de ovos moles, eu gosto duros. Ele
gostava de companhia, eu gosto de solidão. Ele gostava de dormir à
noite, eu gosto de dormir de dia. Ele gostava de cachorros, eu puxava
as orelhas deles e enfiava fósforos no rabo deles. Ele gostava do
emprego, eu gosto de vagabundar.
Estendi
os braços e agarrei-a. Abri os lábios, enfiei a boca na dela e
comecei a sugar o ar dos pulmões dela. Cuspi pela garganta dela
abaixo e passei o dedo pelo rego da bunda dela. Separamo-nos.
– Ele
me beijava com delicadeza – disse Maria. – Me amava.
– Merda
– eu disse –, minha mãe só estava há um mês debaixo do chão
e ele já estava chupando seus peitos e dividindo o papel higiênico
com você.
– Ele
me amava.
– Bolas.
O medo de ficar só levou ele pra sua vagina.
– Ele
dizia que você era um jovem amargo.
– Diabos,
sim. Veja o que eu tive como pai.
Suspendi
o vestido dela e comecei a beijar as pernas. Comecei nos joelhos.
Cheguei à parte interna da coxa e ela se abriu para mim. Mordi-a com
força, e ela saltou e soltou um peido.
– Oh,
desculpe.
– Está
tudo bem – eu disse.
Servi
outro drinque para ela, acendi um dos cigarros de meu pai morto e fui
à cozinha buscar outra garrafa de vinho. Bebemos por mais uma hora
ou duas. A tarde se tornava noite, mas eu estava cansado. A morte era
tão chata. Isso era o pior sobre a morte. Era chata. Assim que
acontecia, não se podia fazer nada. Não se podia jogar tênis com
ela nem transformá-la numa caixa de bombons. Estava ali, como um
pneu furado. A morte era estúpida. Enfiei-me na cama. Ouvi Maria
tirar os sapatos, a roupa, depois a senti na cama a meu lado. Ela pôs
a cabeça em meu peito e senti meus dedos esfregando atrás das
orelhas dela. Depois meu pênis começou a subir. Ergui a cabeça
dela e pus a boca na dela. Pus delicadamente. Depois peguei a mão
dela e a pus em meu pau.
Eu
tinha bebido vinho demais. Montei nela. Meti e meti. Chegava na
beirinha, mas não conseguia. Estava dando a ela uma longa, suada e
interminável foda. A cama rangia e saltava, rebolava e gemia. Maria
gemia. Eu a beijava e beijava. Ela abria a boca em busca de ar.
– Deus
do céu – disse –, você está me FODENDO MESMO!
Eu
só queria acabar, mas o vinho embotara o mecanismo. Acabei rolando
para o lado.
– Deus
– ela disse. – Deus.
Começamos
a nos beijar e começou tudo de novo. Tornei a montar. Desta vez,
senti o clímax chegando devagar.
– Oh
– eu disse. – Oh, deus!
Finalmente
consegui, me levantei, fui ao banheiro, saí fumando um cigarro e
voltei à cama. Ela estava quase dormindo.
– Meu
deus – ela disse –, você me FODEU mesmo!
Dormimos.
De
manhã me levantei, vomitei, escovei os dentes, gargarejei e abri uma
garrafa de cerveja. Maria acordou e me olhou.
– A
gente fodeu? – perguntou.
– Está
falando sério?
– Não.
Estou querendo saber. A gente fodeu?
– Não
– eu disse. – Não aconteceu nada.
Maria
foi ao banheiro e tomou um chuveiro. Cantava. Depois se enxugou e
saiu. Me olhou.
– Estou
me sentindo como uma mulher que foi fodida.
– Não
aconteceu nada, Maria.
Nós
nos vestimos e eu a levei a um café na esquina. Ela comeu linguiça
com ovos mexidos, torrada de pão de trigo, café. Eu tomei um copo
de suco de tomate e comi um bolinho.
– Eu
não consigo superar isso. Você se parece com ele.
– Esta
manhã, não, Maria, por favor.
Enquanto
a observava enfiar os ovos mexidos, linguiça e torrada (coberta de
geleia de morango) na boca, percebi que tínhamos perdido o enterro.
Tínhamos esquecido de ir ao cemitério ver o velho jogado no buraco.
Eu queria ter visto isso. Era a única parte boa da coisa. Não
tínhamos nos juntado ao préstito fúnebre, e em vez disso tínhamos
ido à casa de meu pai e fumado seus cigarros e bebido seu vinho.
Maria
levou um bocado particularmente grande de ovos mexidos amarelo vivo à
boca e disse:
– Você
deve ter me fodido. Estou sentindo seu sêmen escorrendo pelas minhas
pernas.
– Oh,
é apenas suor. Está quente esta manhã.
Vi-a
enfiar a mão embaixo da mesa e embaixo do vestido. Um dedo voltou.
Ela cheirou-o.
– Isso
não é suor, é sêmen.
Maria
acabou de comer e saímos. Ela me deu seu endereço e eu a levei lá
de carro. Estacionei no meio-fio.
– Gostaria
de entrar?
– Agora,
não. Preciso cuidar das coisas. A herança.
Maria
curvou-se e me beijou. Tinha os olhos muito grandes, assustados,
azedos.
– Eu
sei que você é muito mais jovem, mas eu podia amar você – ela
disse. – Tenho certeza de que podia.
Quando
chegou à porta, ela se virou. Ambos acenamos. Eu fui à primeira
loja de bebidas, peguei meio litro e o Formulário das Corridas.
Previa um bom dia no hipódromo. Eu sempre me saía melhor depois de
um dia de folga.
Charles Bukowski, in Numa Fria
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
Figurativa
O
pai cavando o chão mostrou pra nós,
com
o olho da enxada, o bicho bobo,
a
cobra de duas cabeças.
Saía
dele o cheiro de óleo e graxa,
cheiro
suor de oficina, o brabo cheiro bom.
Nós
tínhamos comido a janta quente
de
pimenta e fumaça, angu e mostarda.
Pisando
a terra que ele desbarrancava aos socavões,
catava
tanajuras voando baixo,
na
poeira de ouro das cinco horas.
A
mãe falou pra mim: “Vai na sua avó buscar polvilho,
vou
fritar é uns biscoitos pra nós”.
A
voz dela era sem acidez. ‘Arreda, arreda’,
o
pai falava com amor.
As
tanajuras no sol, a beira da linha,
o
verde do capim espirrando entre os tijolos
da
beirada da casa descascada, a menina embaraçada
com
a opressão da alegria, o coração doendo,
como
se triste fosse.
Adélia Prado, in Bagagem