A estrada

No relógio do Céu, o Sol ponteiro
Sangra a Cabra no estranho céu chumboso.
A Pedra lasca o Mundo impiedoso,
A chama da Espingarda fere o Aceiro.

No carrascal do sol, azul braseiro,
Refulge o Girassol rubro e fogoso.
Como morrer na sombra do meu Pouso?
Como enfrentar as flechas desse Arqueiro?

Lá fora, o incêndio: o roxo lampadário
das Macambiras rubras e auri-pardos
Anjos-diabos e Tronos-vai queimando.

Sopra o vento – o Sertão incendiário!
Andam monstros sombrios pela Estrada
e, pela Estrada, entre esses Monstros, ando!

Ariano Suassuna

Sentar numa pedra e ficar quieta

Alba acabou de fazer um curso de massagem e estreou em mim. Tem talento, dormi na cama dela, eu, a rainha da vigília, uma proeza e tanto. Está emagrecida, vincos ao redor da boca, olhos de febre. De insônia, ela disse, minha vontade é sentar numa pedra e ficar quieta pelo resto da vida, não pentear nem os cabelos, errei tanto com filho, a realidade é horrorosa, não estou aguentando nada de nada. Entendo por que o Cirilo matou o cachorro da mulher a pontapé, entendo, sim. Tomei birra de apartamento novo, tudo igual, os cômodos fazem quina, o que é isso, meu deus, não tem um cômodo certo, os banheiros com o mesmo barradinho decorado, me dá vontade de gritar, que bobeira é essa que deu no mundo? Tou rasgando papel, encho saco e mais saco de papel rasgado, só deixei no armário um prato e um copo pra cada um, minha gana é desentupir o mundo, embalagem de plástico me dá tontura. A última vez que fiquei assim igual a Alba, tive de tomar remédio forte. Como a Joana, ela também não conhece o Peru e descobre coisas, só fala em horror da realidade. É mesmo paralisante pro bem ou pro mal. Num momento da minha viagem, numa capela comum, Agnes começou a cantar, ao mesmo tempo frágil e firme, como se um fio de cabelo fosse um fio de diamante, um canto para a Virgem Maria, um louvor, num tom que pedia fôlego além das forças de Agnes, mas o canto não se quebrava e suspendia o instante. Éramos quatro pessoas, Antônio, já pronto para nos fotografar, saiu da capela. Ninguém falou nada. Víramos uma realidade, fendera-se uma cortina. Víramos o quê? Existíramos no que é. Conheci um belo ídolo dos incas, ídolo de grandes olhos a que chamavam, parece, O QUE VÊ. Ao Senhor Jesus chamamos nós O VIVENTE. Pagãos e cristãos, tememos e adoramos. Cuzco à noite, a cidade mais bela que já vi, suspendida no tempo por uma luz amarela. Ficar doente é um dos preços que se paga pela graça de ver. Alba também vai melhorar.

Adélia Prado, in Quero minha mãe

Convicções corretas

Não fique enojado, desanimado ou desgostoso caso não consiga fazer tudo de acordo com as convicções corretas. Quando falhar, retorne, contente-se caso a maioria dos seus atos sejam consistentes com a natureza do homem e ame esses aos quais retorna. Não volte à filosofia como se ela fosse uma mestra. Aja como quem têm olhos doloridos e os umedece ou aplica um pouco de esponja e ovo ou emplastro. Assim, não deixará de obedecer à razão e nela repousará.
Lembre-se que a filosofia requer somente o que a sua natureza demanda. É você quem almeja algo a mais que discorda da natureza.
Ora, o que poderia ser mais harmonioso?”
Não é essa a exata dúvida por meio da qual os deleites nos iludem? Pondere se a magnanimidade, a liberdade, a simplicidade, a equanimidade e a piedade não são mais harmônicas. O que harmoniza mais do que a própria sabedoria, quando pensa na segurança e no curso feliz de tudo que depende da faculdade do entendimento e do conhecimento?

Marco Aurélio, in Meditações

Samba da bênção | Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963


Lançado em 1966, o álbum Os afro-sambas é um marco divisor da música popular brasileira. Mas a revolução estética sintetizada nesse disco começara em 1962, quando o virtuoso violonista fluminense nascido Baden Powell de Aquino (1937-2000) começou a compor em parceria com Vinicius de Moraes. É desse período “Samba da bênção”, obra-prima de síntese rítmica e poesia popular de alta densidade, anunciando as inovações formais de Baden e Vinicius. O samba é um dos destaques do álbum Vinicius & Odette Lara, editado em 1963, ao lado de mais onze composições da então recém-inaugurada parceria, incluindo outros pioneiros afro-sambas como “Berimbau”, “Labareda” e “Deixa”.
Com suas canções impregnadas de magia, paixão e negritude, Baden e Vinicius avançaram muito além da já esgotada fórmula da bossa nova, que saía de moda no Brasil e começava sua brilhante carreira internacional. Os afro-sambas anunciavam o futuro bebendo no passado ancestral, abrindo trilhas que logo seriam seguidas por muitos outros, reaproximando o samba de suas fontes afro-baianas e mudando o rumo da música brasileira.
Na letra autobiográfica, o poeta se apresenta (“Eu, por exemplo, o capitão do mato / Vinicius de Moraes / Poeta e diplomata / O branco mais preto do Brasil / Na linha direta de Xangô, saravá!”) com uma declaração de identidade cultural e oferece um manual de vida:
É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe / é assim como a luz no coração / Mas pra fazer um samba com beleza / É preciso um bocado de tristeza / senão não se faz um samba, não.”
Tão importante quanto a melodia simples sobre dois acordes e um ritmo irresistível é a parte falada, em que, sobre a base rítmica do violão de Baden, Vinicius homenageava amigos e mestres do passado e do presente pedindo-lhes a bênção: “A bênção, Dorival Caymmi, João Gilberto, Pixinguinha, Noel Rosa, Tom Jobim, Carlos Lyra, Nelson Cavaquinho, Cartola, Ary Barroso e muitos outros”, dedicando a cada um deles uma pequena declaração de amor, respeito e amizade.
Entre eles, o maestro Moacir Santos (“que não és um só, és tantos”) merece crédito à parte. Afinal, a gravação original de “Samba da bênção”, em Vinicius & Odette Lara, tinha arranjo e regência dele. Maestro, arranjador, orquestrador, saxofonista, compositor e também professor de dezenas de músicos da época, incluindo Baden Powell, Moacir já vinha procurando essa reconexão com a África em sua música, que foi reunida em seu fundamental primeiro álbum, Coisas (1965).
Sem espaço no Brasil, Moacir (1926-2006) foi viver e ensinar nos Estados Unidos em 1967 e nunca mais voltou.
Em 1966, com a versão em francês de Pierre Barouh e o título de “Saravá”, fez grande sucesso na França, cantada por Barouh no popularíssimo filme Um homem, uma mulher, de Claude Lelouch.
Em 2000, fez sucesso internacional em uma versão electrobossa de Bebel Gilberto.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Pensamentos em Itatiaia

Certamente ela desceu para este pomar, aventurou-se para junto da mata, ouviu cantar esses pássaros. E na varanda, de tarde, talvez tenha pensado em mim. De algum modo eu vivi aqui, eu existi um pouco nessas alturas há longos, longos anos.
Só as árvores mais antigas poderiam saber esse velho segredo triste, esse amor que se perdeu para sempre; este pensamento é tão pueril e romântico, essa coisa das árvores saberem coisas e se lembrarem das pobres coisas da gente! Sinto-me só, triste, vazio, diante da lembrança desse amor antigo que em certo momento era tudo o que existia no mundo e que, entretanto, não existe mais, e é como se não tivesse existido, vive apenas na pueril, inexistente lembrança dessas velhas árvores, dessa água fria que desce da montanha cantando.
O rapaz moreno e magro que alguém um dia entreviu em meio a esses troncos é um triste senhor, agora real, vestido de preto, sentado aqui. A imaginar histórias tolas de velhas árvores que saberiam coisas, que sentiriam e guardariam pensamentos que alguém há muito tempo, há tanto tempo, teria pensado aqui. É um triste senhor gordo, triste como um pobre menino falando sozinho.
Há pensões finlandesas com vapores de sauna e banhos de córrego, e os hotéis tradicionais perdidos no bosque. Vamos ver a cascata da Maromba, andamos para baixo e para cima, e depois passeio, solitário, num desses bosques junto de um hotel.
Ah! Creio divisar, entre os escuros troncos, ao fundo, um vulto gentil que logo se perde na espessura. Minha memória é arbitrária e ruim. Estremeço a uma lembrança tão viva, tão pungente, de algo que eu teria vivido neste lugar a que, entretanto, nunca vim.
Sento-me em um tronco, fico ali quieto, como alguém que acaba de ser ferido. O nome desse hotel de que eu jamais me lembraria, me restitui aquela cuja imagem há pouco acreditei ver. Daqui, talvez daquela pequena sala junto à entrada, há muitos e muitos anos, alguém me escreveu uma carta.
Não me lembro o que dizia; rasguei-a, depois de passar o dia inteiro na rua com esse papel no bolso, junto do coração, me queimando de ternura.
Aqui ela esteve, e estava triste. Por aquele caminho talvez tenha descido a cavalo, de manhã, os leves cabelos ao vento. Esta mesma luz do sol, coada por essas árvores, beijou-lhe as faces, na manhã de ar fino.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

Tem gente

tem gente que nunca andou de bicicleta
mas sabe pedalar a sua vida
tem gente quem fuma cigarro e morre de câncer
antes de quem fuma maconha
tem gente que diz bom dia
e do nada morre à tarde
tem gente que nunca foi ao cinema
e sua vida virou filme
tem gente que compra carros novos
e morre atropelado
tem gente que pensa que é moderna
e é primata até dizer bosta
tem gente que se falta luz
nem um candeeiro acende
tem gente que nem o poste suporta

tem gente que no bar fala demais
e esquece de pagar a conta
tem gente que nem a conta paga

e os dinossauros nunca souberam
que o homem existiu.

Miró da Muribeca, in O penúltimo olhar sobre as coisas

106 anos

Dia 06 de novembro de 2008

Essa mulher de cento e seis anos, Ann Nixon Cooper, que Obama citou no seu primeiro discurso como presidente eleito dos Estados Unidos, talvez venha a ocupar um lugar na galeria das personagens literárias favoritas dos leitores norte-americanos, ao lado daquela outra que, viajando num autocarro, se recusou a levantar-se para dar o lugar a um branco. Não se tem escrito muito sobre o heroísmo das mulheres. Entre o que Obama nos contou sobre Ann Nixon Cooper não havia actos heróicos, salvo os do viver quotidiano, mas as lições do silêncio podem não ser menos poderosas que as da palavra. Cento e seis anos a ver passar o mundo, com as suas convulsões, os seus logros e os seus fracassos, a falta de piedade ou a alegria de estar vivo, apesar de tudo. Na noite passada essa mulher viu a imagem de um dos seus em mil cartazes e compreendeu, não podia deixar de compreendê-lo, que algo novo estava acontecendo. Ou então guardou simplesmente no coração a imagem repetida, à espera de que a sua alegria recebesse justificação e confirmação. Os velhos têm destas coisas, de repente abandonam os lugares-comuns e avançam contra a corrente, fazendo perguntas impertinentes e mantendo silêncios obstinados que arrefecem a festa. Ann Nixon Cooper sofreu escravidões várias, por negra, por mulher, por pobre. Viveu submetida, as leis teriam mudado no exterior, mas não nos seus diversos medos, porque olhava à sua volta e via mulheres maltratadas, usadas, humilhadas, assassinadas, sempre por homens. Via que cobravam menos que eles pelos mesmos trabalhos, que tinham de assumir responsabilidades domésticas que iam ficar na sombra, apesar de necessárias, via como lhes travavam os passos decididos, e não obstante continuam a caminhar, ou não se levantando num autocarro, contemo-lo uma vez mais, como aquela outra mulher negra, Rosa Banks, que fez história, também.
Cento e seis anos a ver passar o mundo. Talvez o veja bonito, como a minha avó, pouco antes de morrer, velha e formosa, pobre. Talvez a mulher de quem Obama nos falou ontem sentisse a serenidade da alegria perfeita, talvez o saibamos um dia. Entretanto felicitemos o presidente eleito por tê-la tirado da sua casa, por ter-lhe prestado uma homenagem que ela provavelmente não necessitaria, mas nós, sim. À medida que Obama ia falando de Ann Nixon Copper, percebemos que a cada palavra o exemplo nos tornava melhores, mais humanos, à beira de uma fraternidade total. De nós depende fazer durar este sentimento.

José Saramago, in O caderno

Delícias de Manaus

As mães ensinam que é feio escutar conversa dos outros, mas, com os coletivos entupidos de gente, somos forçados a isso, e acabamos nos interessando pelo que não é de nossa conta. Talvez fosse mais acertado aconselhar, hoje em dia: Tome parte na conversa alheia. Ajuda a passar o tempo, e contribui para confraternizar solitários e complexados.
Mas conversas há que se desenvolvem num círculo fechado, por mais públicas que se afigurem, e não adianta você demonstrar ânimo participante. Quem disse que o cronista era capaz de insinuar-se naquele papo amazônico, a centímetros apenas de seus ouvidos, pois estava justamente com a cabeça ao nível do diafragma da gorda, enquanto a magra se comprimia a seu lado, nessa demonstração de todos os dias, de que dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço, desde que seja num micro-ônibus?
Eram duas moças entre caboclo e índio, e prosseguiam na conversa que devia ter começado na fila, e que o incômodo da situação não afetava. Em realidade não estavam ali. Estavam comendo em Manaus, pela saudade.
Meu primo chegou ontem de avião, não trouxe muita coisa. Mas vieram uns tucumãs, ô delícia!
De tucumã eu aprecio mais é o vinho. Você tem em casa?
Não, mamãe não tem podido fazer. E você?
Pois olhe, menina, tenho ainda duas garrafas, lhe cedo uma.
Aceito, sim, e vou escrever pra lá pedindo caxiri. Quando vier, reparto com você.
Gosto menos de caxiri, sabe? De pupunha, menina, o que me interessa mesmo é o coco no melaço. Uma bondade!
Era a gorda quem exclamava. A magrinha passava a língua nos lábios. E, por sua vez:
Fruta daqui não dá gosto… Quem está acostumado a coco, hem? de tantas variedades…
É mesmo. E que mais trouxe teu primo?
Bem, trouxe jacundá fresquinho, criatura! Imagine que ele na véspera foi gapuiar no igarapé, e zuque: jacundá apareceu. Foi só embarcar no avião cedinho, o comandante é camarada, e quando meu primo desceu, a gente até que estava sem fome, mas o peixe não esperava, então corremos pra casa e de madrugada preparamos e comemos ele.
Com tucupi, é?
Evidente! De um aipim especial, que isso meu primo não esqueceu nunca de trazer, e pimenta lá de casa.
Ai, ingrata, e você não telefonou pra gente.
Àquela hora? Deixa estar, que na próxima eu chamo. E não vai demorar, meu tio vem aí.
Pede a ele pra me trazer uma língua de pirarucu, filhinha. Preciso muito de um ralador, e esse negócio de lata não vai.
É, amortece o paladar. Mudando de assunto, estou pensando agora numa tartaruguinha de forno, que comi lá nas férias do ano passado; com sal, pimenta, limão e farinha-d’água, dessa passada em gurupema bem fina…
Ai, não me fale. Esta noite sonhei que estava comendo tambaqui de cacete, depois vinham uns ovinhos de tracajá; depois…
Ai! E você já sonhou com panelada de maniçoba, aqui no Rio?
Não, bem. Mas qualquer dia eu sonho.
Houve uma pausa. Lembrei-me do estudo de Dante Costa(4). Eram dois casos — raríssimos entre nós — de sensualidade alimentar, fixada pelo nativismo. E a magra:
Você onde está almoçando agora?
Numa pensão da avenida Antônio Carlos. Cinquenta cruzeiros, mas a dona é baiana, e embora não seja a mesma coisa de Manaus, você sabe, sempre é melhor que essa danação de comidinha carioca!

(4) Trata-se provavelmente de uma referência ao livro O sensualismo alimentar em Portugal e no Brasil, de Dante Costa, publicado em 1952 pelo Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

Copacabana

Em conversa com Pablo Neruda num hotel da avenida Atlântica, ele me contou que o corpo de Walt Disney estava congelado em local secreto à espera da cura do câncer. Francamente, eu acreditava que Neruda fosse falar de poesia quando me dispus a lhe apresentar a noite de Copacabana. Mas ele parecia cansado de ser Pablo Neruda e, sem paciência para jornalistas e fotógrafos que o aguardavam na calçada da avenida, me pediu para sairmos por uma porta lateral. Era uma porta giratória, o que talvez me tenha desnorteado, pois sem querer o conduzi em direção oposta à beira-mar. Demos numa parte acanhada do bairro, de onde toda luz parecia sugada para resplandecer na avenida. Parecia um lado avesso de Copacabana, onde os fundos dos prédios ficavam de frente para a rua. Eram prédios cinzentos de doze ou mais andares, em cujas fachadas figuravam janelas de vidro leitoso ou canelado e roupas estendidas à guisa de cortinas. No térreo havia portas de garagem e entradas de serviço, além de botequins pés-sujos onde Neruda deve ter se desgarrado de mim sorrateiramente; em vez de tomar espumantes num terraço da orla, ele era bastante comunista para preferir uma cachaça num balcão sinistro. Rodei à sua procura de bar em bar, mas não havia sombra dele, e a caminhada foi ficando mais difícil à medida que andarilhos e indigentes se deitavam para dormir na calçada. Comecei a me afligir pela sorte do poeta, imaginei um assalto, um sequestro, um golpe do suadouro nas mãos de um proxeneta. Corri ao hotel na vã esperança de que ele tivesse voltado de táxi, e só pensava no que dizer a Jorge Luis Borges, que me incumbira de ciceronear Pablo Neruda no Rio. É possível que Borges desdenhasse a poesia de Neruda, mas não a ponto de desejar que ele desaparecesse numa cidade violenta como a minha. Agora, seus inimigos peronistas o crucificariam por confiar o poeta a mim, um menino de dezesseis anos. Neruda, de fato, não voltou ao hotel até de manhãzinha, quando adormeci numa poltrona do saguão depois de esperar por ele a noite inteira. Despertei com o dia alto, desconfiando que o passeio com Neruda fora um sonho, quando vi Ava Gardner sair do elevador.
Infelizmente, nunca estive com Neruda nem jamais falei com Borges. Copacabana, essa sim, eu conhecia de ponta a ponta, mas mesmo morando diante do mar, às vezes me sentia contaminado pelo lado sombrio do bairro. Visto de frente, eu era um adolescente de belas cores, o rosto bronzeado e uns olhos claros de fulminar as garotas que mirava na praia. Já minhas costas eram de pobre, apinhadas de cravos, espinhas, quistos e furúnculos que, para além do prejuízo estético, denunciavam minhas práticas masturbatórias. Por um tempo experimentei ir à praia de camisa, mas pegava mal, era traje de suburbano. Então fui me chegando às ruas internas de Copacabana, onde jogava futebol no asfalto com os filhos das empregadas. Ali eu podia andar de torso nu sem constrangimento, pois meus camaradas, com séculos de bordoadas no lombo, talvez não hesitassem em trocar sua pele marrom por uma vermelhenta e sebácea como a minha. De noite, contudo, eu tinha um terno bege para passear na avenida Atlântica, onde os grandes hotéis atraíam jornalistas e fotógrafos ávidos por topar com as estrelas de cinema que na época abundavam por aqui. Pablo Neruda inclusive me contou que, certa vez, Ava Gardner se encantou com o crooner do bar do Copacabana Palace e o convidou a subir à sua suíte. Ao vê-la nua, o sujeito quedou mesmerizado para sempre, levando-a a atirar copos, garrafas, jarros de flores, telefones e cadeiras pela janela. Verídico ou não, foi desse episódio que me lembrei ao ver Ava Gardner sair do elevador. O capitão porteiro nos abriu de par em par a porta nobre da avenida Atlântica, mas Ava Gardner achou excessiva a claridade do dia, mesmo usando óculos escuros. Propôs que fôssemos tomar um martíni ali mesmo, no bar a meia-luz do hotel. Depois de alguns drinques, ela me disse que não queria saber das praias, nem do Pão de Açúcar, muito menos do Cristo Redentor. Antes de deixar o Rio, no entanto, fazia questão de subir ao morro onde rodaram o filme Orfeu Negro, musical a que ela assistira inúmeras vezes. Aproveitei para cantar imitando João Gilberto, o que a levou a me levar pela mão, não à sua suíte como sonhei por um segundo, mas a um conversível rabo de peixe estacionado na avenida Atlântica. No banco traseiro com Ava, sentado com os pés no estofamento, ordenei em inglês ao motorista que nos levasse ao início da avenida, mas ao pé do morro da Babilônia ele vacilou. Disse que além daquele ponto não iria, porque era muito perigoso, e não adiantou a madame lhe acenar com o maço de dólares que trazia na bolsa. As crianças da favela já trepavam no capô do carro quando ela me convocou a acompanhá-la a pé morro acima. Logo os moradores mais crescidos reconheceram a grande estrela, começaram a lhe pedir autógrafos, e naquele empurra-empurra não faltou quem lhe beliscasse e apalpasse a bunda. Foi aí que um valentão numa Harley-Davidson, com ares de chefe do tráfico, dispersou a turba. Quando Ava montou na garupa da moto, lembrei-lhe que ela era casada com o Frank Sinatra. Como não me atendesse, avisei da sua filmagem noturna logo mais, mas o ronco da moto abafou minha voz. Voltei ao hotel sem saber como me explicar ao diretor do filme, John Huston, que deixara Ava Gardner aos meus cuidados. Encontrei-o a beber com o ator Richard Burton na piscina do Copacabana Palace, os dois aparentemente despreocupados com o sumiço da diva problemática. Aliás, já estavam de olho numa substituta, a atriz alemã Romy Schneider, que vi deitada numa espreguiçadeira lendo o roteiro de A Noite do Iguana.
Infelizmente, não tive o prazer de conhecer John Huston nem Richard Burton, ao passo que Romy Schneider nunca foi cogitada para A Noite do Iguana, rodado com Ava Gardner no México. Quanto a Pablo Neruda, morreu doze dias depois do seu amigo Salvador Allende, que se matou para não dar esse gosto a Pinochet. Com o tempo, fui perdendo a inocência de sonhar com artistas, e a vida me levou a paragens distantes de Copacabana. Nas raras ocasiões em que passava pelo bairro, evitava repisar os caminhos da infância, pois tenho a impressão que a nostalgia é um pântano. Relembrar a juventude é como olhar dentro de um poço, e da última vez em que estive numa avenida Atlântica cheia de gente esquisita, minha cabeça rodou e vi tudo preto. Busquei abrigo no Copacabana Palace, onde Pablo Neruda me contou que Romy Schneider também tinha síndrome do pânico. Tudo começou quando ela descobriu que o tio Adolfo, que a sentava no colo e beijava suas bochechas de criança, outro não era senão Adolf Hitler, íntimo de sua mãe. Daí compreendi o ar angustiado com que ela me pediu um cigarro na piscina do hotel. Ficou desolada ao saber que eu não fumava Chesterfield, e o Continental sem filtro que lhe ofereci se molhou com a chuva grossa que só chovia em cima dela. Envolvi-a num roupão felpudo com o monograma do hotel e me enfiei com ela num corredor que desembocou num salão chamado Golden Room. Para minha imensa felicidade, os bacanas pulavam e cantavam a marchinha de Carnaval que traduzi para Romy em alemão: mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar. Falei no seu ouvido que a vida é bela, falei que nasci para ser rico, falei para ela esquecer o Alain Delon, e quando ia beijar a sua boca, fui agarrado por dois grandalhões. Disseram que eu não tinha gabarito para frequentar o Golden Room e me atiraram dentro de um elevador com um ascensorista mal-encarado. O elevador desceu a uma velocidade tal que por pouco o estômago não me saía pela boca. Quando a porta se abriu me vi cara a cara com um general de nome basco, Etchegoyen ou Etcheverría, cuja cara não me era estranha. Perguntei-lhe se não nos havíamos deparado quarenta anos antes num quartel, mas ele me informou que tal entrevista se dera com seu tio, que já na época me repreendeu por andar com comunistas. Antes que eu pudesse me defender, ele chamou seu ajudante de ordens, um tipo de bigodinho que me lembrou Walt Disney. Este me levou para um mafuá recém-instalado na praça do Lido, onde eu deveria liberar a criança que, nas palavras dele, ainda pulsava dentro de mim. Fui instado a andar no trem-fantasma, na montanha-russa, no carro de dar trombada, dei voltas na roda-gigante e tive náuseas. Pedi licença para ir embora, mas Walt Disney me apontou um rinque de patinação no gelo, a maior atração do parque. Com efeito, o rinque estava tão lotado que ninguém podia se locomover. As pessoas se acotovelavam olhando para o chão, e havia um corpo no fundo do gelo. Não deu para ver direito, mas acho que era o Pablo Neruda.

Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Cabelos felizes

No seu livro Literatura e os deuses, o florentino Roberto Calasso fala no prazer provocado pelo que ele chama de literatura absoluta, no sentido estrito de absolutum: sem amarras ou referências, “livre de qualquer tarefa ou causa comum e de qualquer utilidade social”, e na dificuldade em definir o que, exatamente, a faz absoluta e nos enleva. “Temos de nos resignar a isto: que a literatura não oferece qualquer sinal, nunca ofereceu qualquer sinal, pelo qual pode ser imediatamente identificada”, escreve Calasso, um daqueles italianos, como o Calvino e o Eco, que leram tudo e sabem tudo. O melhor, se não o único, teste que podemos fazer é o sugerido por Housman (A. E. Housman, poeta e latinista inglês): observar se uma sequência de palavras, silenciosamente pronunciada enquanto a navalha matinal desliza pela pele, eriça os cabelos da barba enquanto um arrepio desce pela espinha. E isto não é reducionismo fisiológico. Quem lembra uma linha de um verso ao se barbear experimenta esse arrepio, essa ‘romaharsa’, ou ‘horripilação’ como a que acometeu Arjuna no Bhagavad Gita quando deparou-se com a epifania de Krishna. E talvez 'romaharsa' seria melhor traduzido como ‘felicidade dos cabelos’, porque ‘harsa’ significa ‘felicidade’ e também ‘ereção’, inclusive no sentido sexual. Isto é típico de uma língua como o sânscrito que não gosta do explícito, mas sugere que tudo é sexual.
Viu só? O prazer estético, no fundo — ou, no caso, na superfície —, é igual ao prazer sexual, também se manifesta no homem e na mulher, com ou sem barba, por uma excitação da pele, por um movimento milimétrico de cabelos felizes. O arrepio que você sente ao ver uma frase ou uma pessoa particularmente bem torneadas é o mesmo, e é o que Arjuna sentiu diante da epifania de Krishna, só que em sânscrito. “Romaharsa”, guarde essa palavra. Quem sabe quando aparecerá a oportunidade de explorar o potencial erótico de uma citação do Bhagavad Gita dita assim no ouvido?

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

Erro

The greatest error that men can commit is to attempt to jump over the gradualness and evolution of nature and attempt to realize today what nature has penned for tomorrow.
O maior erro que os homens podem cometer é tentarem saltar por cima da gradualidade e da evolução da natureza e realizar hoje aquilo que a natureza previu para amanhã.

Fernando Pessoa, in Aforismos e afins

Medo, a base da religião

A religião se baseia, acredito, em primeiro lugar e principalmente, no medo. Trata-se, em parte, do terror ao desconhecido e, em parte, como eu já disse, do desejo de sentir a existência de um tipo de irmão mais velho a proteger-nos em todos os problemas e disputas. O medo é a base de todo o problema: medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte. O medo é o progenitor da crueldade, e portanto não é nada surpreendente o fato de a crueldade e a religião andarem lado a lado. Isso acontece porque o medo é a base de ambas as coisas. Neste mundo, agora podemos começar a compreender um pouco as coisas e a controlá-las com a ajuda da ciência, que abriu seu caminho à força, passo a passo, contra a religião cristã, contra as igrejas e contra a oposição de todos os preceitos antigos. A ciência pode nos ajudar a superar esse medo covarde no qual a humanidade vive há tantas gerações. A ciência pode nos ensinar, e acredito que também nosso próprio coração pode fazê-lo, a não mais olhar em volta em busca de apoios imaginários, a não mais inventar aliados no céu, mas, em vez disso, a olhar para os nossos próprios esforços aqui embaixo, a fim de fazer deste mundo um lugar adequado para se viver, em vez do tipo de lugar em que as igrejas ao longo desses séculos todos o transformaram.

Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

Um doutor

Um doutor veio formado de São Paulo. Almofadinha.
Suspensórios, colete, botina preta de presilhas.
E um trejeito no andar de pomba rolinha. No verbo,
diga-se de logo, usava naftalina. Por caso, era
um pernóstico no falar. Pessoas simples da cidade
lhe admiravam a pose de doutor. Eu só via o casco.
Fomos de tarde no Bar O Ponto. Ele, meu pai e este
que vos fala. Este que vos fala era um rebelde
adolescente. De pronto o Doutor falou pra meu
pai: Meus parabéns Seo João, parece que seu filho
agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto.
Pintou um clima de urubu com mandioca entre nós.
O doutor pisou no rabo, eu pensei. Ele ainda
perguntou: E o comunismo dele? Está quarando
na beira do rio entre as capivaras, o pai respondeu.
O doutor se levantou da mesa e saiu com seu
andar de vespa magoada.

Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância

Orientação

Uê, ocê é o chim?
Sou, sim, o chim sou.
O cule cão.

Em puridade de verdade; e quem viu nunca tal coisa? No meio de Minas Gerais, um joãovagante, no pé-rapar, fulano-da-china — vindo, vivido, ido — automaticamente lembrado. Tudo cabe no globo. Cozinhava, e mais, na casa do Dr. Dayrell, engenheiro da Central.
Sem cabaia, sem rabicho, seco de corpo, combinava virtudes com mínima mímica; cabeça rapada, bochêchas, o rosto plenilunar. Trastejava, de sol-nascente a vice-versa, sério sorrisoteiro, contra rumor ou confusão, por excelência de técnica. Para si exigia apenas, após o almoço, uma hora de repouso, no quarto. — “Joaquim vai fumar...” — cigarros, não ópio; o que pouco explicava.
Nome e homem. Nome muito embaraçado: Yao Tsing-Lao — facilitado para Joaquim. Quim, pois. Sábio como o sal no saleiro, bem inclinado. Polvilhava de mais alma as maneiras, sem pressa, com velocidade. Sabia pensar de-banda? Dele a gente gostava. O chinês tem outro modo de ter cara.
Dr. Dayrell partiu e deixou-o a zelar o sítio da Estrada. Trenhoso, formigo, Tsing-Lao prosperou, teve e fez sua chácara pessoal: o chalé, abado circunflexo, entre leste-oeste-este bambus, árvores, cores, vergel de abóboras, a curva ideia de um riacho. Morava, porém, era onde em si, no cujo caber de caramujo, ensinado a ser, sua pólvora bem inventada.
Virara o Seô Quim, no redor rural. A mourejar ou a bizarrir, indevassava-se, sem apoquenturas: solúveis as dificuldades em sua ponderação e aprazer-se. Sentava-se, para decorar o chinfrim de pássaros ou entender o povo passar. Traçava as pernas. Esperar é um à-toa muito ativo.
E — vai-se não ver, e vê-se! Yao o china surgiu sentimental. Xacoca, mascava lavadeira respondedora, a amada, por apelido Rita Rola — Lola ou Lita, conforme ele silabava, só num cacarejo de fé, luzentes os olhos de ponto-e-vírgula. Feia, de se ter pena de seu espelho. Tão feia, com fossas nasais. Mas, havido o de haver. Cheiraram-se e gostaram-se.
De que com um chinês, a Rola não teve escrúpulo, fora ele de laia e igualha — pela pingue cordura e façatez, a parecença com ninguém. Quim olhava os pés dela, não humilde mas melódico. Mas o amor assim pertencia a outra espécie de fenômenos? Seu amor e as matérias intermediárias. O mundo do rio não é o mundo da ponte.
Yao amante, o primeiro efeito foi Rita Rola semelhar mesmo Lola-a-Lita — desenhada por seus olhares. A gente achava-a de melhor parecer, senão formosura. Tomava porcelana; terracota, ao menos; ou recortada em fosco marfim, mudada de cúpula a fundo. No que o chino imprimira mágica — vital, à viva vista: ela, um angu grosso em fôrma de pudim. Serviam os dois ao mistério?
Ora, casaram-se. Com festa, a comedida comédia: nôivo e nôiva e bolo. O par — o compimpo — til no i, pingo no a, o que de ambos, parecidos como uma rapadura e uma escada. Ele, gravata no pescoço, aos pimpolins de gato, feliz como um assovio. Ela, pompososa, ovante feito galinha que pôs. Só não se davam o braço. No que não, o mundo não movendo-se, em sua válida intraduzibilidade.
Nem se soube o que se passaram, depois, nesse rio-acima. Lolalita dona-de-casa, de panelas, leque e badulaques, num oco. Quim, o novo-casado, de mesuras sem cura, com esquisitâncias e coisinhiquezas, lunático-de-mel, ainda mais felizquim. Deu a ela um quimão de baeta, lenço bordado, peça de seda, os chinelinhos de pano.
Tudo em pó de açúcar, ou mel-e-açúcar, mimo macio — o de valor lírico e prático. Ensinava-lhe liqueliques, refinices — que piqueniques e jardins são das mais necessárias invenções? Nada de novo. Mas Rola-a-Rita achava que o que há de mais humano é a gente se sentar numa cadeira. O amor é breve ou longo, como a arte e a vida.
De vez, desderam-se, o caso não sucedeu bem. O silêncio pôde mais que eles. Ou a sovinice da vida, as inexatidões do concreto imediato, o mau-hálito da realidade.
Rita a Rola se assustou, revirando atrás. Tirou-se de Quim, pazpalhaço, o dragão desengendrado. Desertou dele. Discutiam, antes — ambos de cócoras; aquela conversação tão fabulosa. E nunca há fim, de patacoada e hipótese.
Rola, como Rita, malsinava-o, dos chumbos de seu pensamento, de coisa qual coisa. Chamou-o de pagão. Dizia: — “Não sou escrava!” Disse: — “Não sou nenhuma mulher-da-vida...” Dizendo: — “Não sou santa de se pôr em altar.” De sínteses não cuidava.
Vai e vem que, Quim, mandarim, menos útil pronunciou-se: — “Sim, sim, sei...” — um obtempero. Mais o: — “T’s, t’s, t’s...” — pataratesco; parecia brincar de piscar, para uma boa compreensão de nada. Falar, qualquer palavra que seja, é uma brutalidade? Tudo tomara já consigo; e não era acabrunhável. Sínico, sutilzinho, deixou-lhe a chácara, por polidez, com zumbaia. Desapareceu suficientemente — aonde vão as moscas enxotadas e as músicas ouvidas. Tivessem-no como degolado.
Rita-a-Rola, em tanto em quanto, apesar de si, mudara, mudava-se. Nele não falava; muito demais. — “De que banda é que aquela terra será?” Apontou-se-lhe, em esmo algébrico, o rumo do Quim chim, Yao o ausente, da Extrema-Ásia, de onde oriundo: ali vivem de arroz e sabem salamaleques.
Aprendia ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir. Ora quitava-se com peneiradinhas lágrimas, num manso não se queixar sem fim. Sua pele, até, com reflexos de açafrão. — “Tivesse tido um filho...” — ao peito as palmas das mãos.
Outr’algo recebera, porém, tico e nico: como gorgulho no grão, grão de fermento, fino de bússola, um mecanismo de consciência ou cócega. Andava agora a Lola Lita com passo enfeitadinho, emendado, reto, proprinhos pé e pé.

Guimarães Rosa, in Tutameia

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Capítulo 333

CARTA ABERTA AO TIMES

Embora de pijama, vejo-me obrigado a representar a W. Exas. contra o abuso inominável de que vimos sendo vítimas, eu e outras pessoas igualmente respeitáveis, num campo de concentração dentre os muitos que devem existir por este mundo concentrado de hoje, e que não sei dizer se fica na Europa ou na Ásia ou mesmo na Polinésia, pois justamente este é o segredo maior que paira sobre as nossas cabeças, enquanto ainda as temos. Aqui todos falam todas as línguas, cada um a sua naturalmente, o que pode parecer estranhável é que nem sempre é o inglês quem fala o inglês, o francês quem fala o francês, o russo quem fala o russo, e assim por diante, sendo ao contrário comum que um embaixador da Abissínia, por exemplo, nunca tenha ouvido falar do abissínio em toda a sua vida, ou que um legado do Papa não saiba sequer dizer amen em latim, ou ainda que um descendente de Napoleão Bonaparte só conheça em francês os nomes das boates mais famosas, como Folies Bergère ou Mandarin e outras semelhantes. Eu mesmo, que sou iraniano, ou que pelo menos me sinto iraniano esta manhã, não sei dizer ao certo nem onde fica situado o Ira no mundo conturbado de hoje, embora já tenha viajado muito no passado, sobretudo em imaginação.
Mas o assunto desta, que coloco numa garrafa e jogo no cano de esgoto para que possa chegar até às mãos de W. Exas., não é geográfico nem linguístico, e sim estritamente moral e humano, como o foi o Sermão da Montanha por exemplo, para só citar um exemplo famoso. Trata-se apenas de despertar a consciência de VV. Exas. para o fato de, em pleno século XX, e ao que consta em pleno período de paz, ser permitido a um pequeno grupo de idiotas manter presos e por vezes mesmo amarrados alguns cidadãos de alta linhagem e de reputação acima de qualquer suspeita — só porque esses cidadãos, entre os quais estou eu naturalmente, não pactuam e não poderiam mesmo pactuar com suas ideias retrógradas e obsoletas, seja em matéria de religião como de política, de amor como de finanças ou de arte. Pois o que ocorre neste campo de concentração onde me encontro, como deve acontecer em todos os demais, é apenas isto e que me parece de um absurdo inominável: uma minoria armada até os dentes, inclusive com cadeiras elétricas, manda e desmanda sobre uma maioria de indivíduos realmente individuais e tenta impor-lhes à força a sua cartilha de primeiras letras, quando não o seu catecismo religioso dos tempos antediluvianos, que é a quanto chegam no melhor dos casos as ideias ou que outro nome tenha a intolerância desses senhores da terra e dos céus.
A comida aqui não é má, mesmo porque já faz parte do programa desses maníacos a preocupação de manterem quanto possível vivos os seus escravos brancos ou negros, amarelos ou vermelhos — sem o que teriam, por desfastio, que devorar-se entre si e declarar-se guerra quase que diariamente, o que não lhes seria de muito proveito. Mas se a comida não é intragável, a liberdade aqui é uma palavra que já não existe nem sequer nos dicionários e de que só ouvimos falar quando somos nós que a pronunciamos, em geral em voz baixa e para nós mesmos. E sem liberdade, hão de convir W. Exas. que este mundo, por melhor que seja, não passa de um pesadelo e de uma farsa de mau gosto — como há de achar no front o soldado com o seu fuzil e suas polainas, num dia azul de primavera.
Não temos sequer a liberdade de amar — já não digo uns aos outros, o que seria demais, mas a uma mulher de nossa predileção, ou mesmo a uma simples mulher pois as únicas mulheres que vemos ou são estrábicas ou não têm quaisquer atributos que as diferenciem dos homens donos do campo, tratando-nos ou como crianças ou como idiotas, no que aliás copiam um pouco as verdadeiras mulheres. E não havendo mulheres propriamente ditas, o cérebro emperra e os nervos sobem à flor da pele, dando azo a esse espetáculo triste e grotesco da masturbação coletiva, mesmo nos feriados e dias-santos. A única mulher que tem algo feminino, dentre as poucas que circulam pelas salas da nossa prisão, é a mulher do inquisidor-mor ou, se W. Exas. preferem, do chefe da guarda ou administrador do estabelecimento — mas essa mesmo tem um estrabismo bem pronunciado e é menos acessível do que a lua no céu ou o seu reflexo no fundo de um poço, dada a vigilância a que estamos continuamente submetidos. Há casos profundamente dolorosos, como o do Dr. Keither por exemplo, que se vê obrigado a masturbar-se como um menino de colégio só porque os nossos carrascos decidiram que não somos homens até o dia em que finalmente resolvamos voltar ao aprisco das ideias feitas e ao cadinho de seus sentimentos desumanizados e postiços. Eu, neste particular, vivo à custa de minhas boas recordações de todos os bordéis e salões de luxo que frequentei dos vinte aos trinta e cinco anos, na Europa, na Ásia, na Oceania, na América, na África, e sobretudo em sonho. Não que eu fuja à regra geral da masturbação; mas posso afirmar que sinto muito menos os aguilhões da carne do que, por exemplo, o legado pontifício ou seu casmurro secretário, para não falar de um estudante chamado Vinícius e que vive a recitar a Bíblia justamente naqueles trechos em que a Bíblia desperta a imaginação da juventude e favorece, de certo modo, as poluções noturnas.
Mas tudo isso é muito trágico, eu bem sei, e o pijama não é o traje apropriado para considerações de tal transcendência, mesmo num mundo em que o absurdo é cada vez mais a regra geral, ou tende a sê-lo pelo menos. Em outra oportunidade (caso me arranjem uma outra garrafa) voltarei ainda ao mesmo assunto, que pode parecer monótono a W. Exas. mas que para nós é vital e direi mesmo único, já que a morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a morte do corpo, e que o homem privado da sua liberdade de pensar e de amar vale menos do que a sua sombra num muro — a menos que se trate naturalmente de um muro junto ao qual ele esteja sendo fuzilado, com os olhos bem abertos e a cabeça erguida.
Respeitosas saudações.

Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia

Como ser editado

Tendo sido, a vida inteira, um escritor marginal, conheci alguns estranhos editores, mas os mais estranhos de todos foram H. R. Mulloch e sua esposa, Honeysuckle. Mulloch, ex-presidiário e ex-ladrão de diamantes, era editor da revista Falecimento. Comecei a mandar-lhe poesia, e seguiu-se uma correspondência. Ele dizia que minha poesia o arruinara para a de todos os outros; e eu lhe respondi que também a mim ela arruinara para a de todos os outros. H. R. começou a falar da possibilidade de produzir um livro de meus poemas e eu disse tudo bem, ótimo, vá em frente. Ele escreveu: não posso pagar os direitos autorais, somos pobres como ratos de igreja. Eu respondi: tudo bem, ótimo, esqueça os direitos, eu sou tão pobre quanto o peito murcho de uma rata de igreja. Ele respondeu: espera aí, a maioria dos escritores, bem, eu os conheci, e são completos babacas e seres humanos horríveis. Eu escrevi: tem razão, eu sou um completo babaca e um ser humano horrível. Tudo bem, ele respondeu, eu e Honeysuckle vamos a Los Angeles dar uma conferida em você.
O telefone tocou uma semana e meia depois. Eles estavam na cidade, acabavam de chegar de Nova Orleans, hospedados num hotel da Rua Três cheio de prostitutas, bebuns, batedores de carteira, lavadores de pratos, assaltantes, estranguladores e estupradores. Mulloch adorava a vida inferior, e acho que até amava a pobreza. Por suas cartas, fiquei com a ideia de que H. R. acreditava que a pobreza gerava a pureza. Claro, é o que os ricos sempre quiseram que a gente acreditasse, mas isso já é outra história.
Entrei no carro com Marie e seguimos, primeiro parando para as embalagens de seis cervejas e uma garrafinha de uísque barato. Um homenzinho grisalho de pouco mais de um metro e sessenta estava parado do lado de fora. Vestia azul de operário, mas com um lenço (branco) no pescoço. Na cabeça, usava um sombrero branco de copa muito alta. Marie e eu nos aproximamos. Ele tirava baforadas de um cigarro e sorria.
Chinaski?
É – respondi – , e esta aqui é Marie, minha mulher.
Nenhum homem – ele disse – pode jamais chamar uma mulher de sua. A gente nunca é dono delas, só tomamos de empréstimo por algum tempo.
É – eu disse –, acho que assim é melhor.
Seguimos H. R. escada acima e por um corredor pintado de azul e vermelho que cheirava a assassinato.
Foi o único hotel que encontramos na cidade que aceitava os cachorros, um papagaio e nós dois.
Parece um ótimo lugar – eu disse.
Ele abriu a porta e entramos. Dois cachorros corriam de um lado para outro, e Honeysuckle estava parada no centro da sala com um papagaio no ombro.
Thomas Wolfe – disse o papagaio – é o maior escritor vivo do mundo.
Wolfe já morreu – eu disse. – Seu papagaio está errado.
É um papagaio velho – disse H. R. – Nós temos ele faz muito tempo.
Há quanto tempo está com Honeysuckle?
Trinta anos.
E apenas tomou ela emprestada por algum tempo?
É o que parece.
Os cachorros corriam em volta e Honeysuckle ficou parada no centro da sala com o papagaio no ombro. Era morena, italiana ou grega, muito magra, com bolsas embaixo dos olhos; tinha um ar trágico, bondoso e perigoso, sobretudo trágico. Pus o uísque e as cervejas na mesa e todo mundo se adiantou para eles. Apareceram copos empoeirados, juntamente com vários cinzeiros. Através da parede à esquerda trovejou de repente uma voz masculina, “Sua puta fodida, eu quero que você coma minha merda!”
Nós nos sentamos e eu servi o uísque pra todos. H. R. me passou um charuto. Eu tirei a embalagem, mordi a ponta fora e acendi.
Que acha da literatura moderna? – perguntou H. R.
Na verdade não gosto muito.
H. R. entrecerrou os olhos e me deu um sorrisinho.
Ah, era o que eu pensava!
Escuta – eu disse –, por que não tira esse sombrero pra eu ver com quem estou tratando? Você pode ser um ladrão de cavalo.
Não – ele disse, arrancando o sombrero com um gesto dramático –, mas fui um dos melhores ladrões de diamantes do estado de Ohio.
É mesmo?
É.
As garotas bebiam.
Eu simplesmente adoro meus cachorros – disse Honeysuckle. – Vocês têm cachorros? – ela me perguntou.
Não sei se gosto deles ou não.
Ele ama a si mesmo – disse Marie.
Marie tem uma mente muito penetrante – eu disse.
Gosto do modo como você escreve – disse H. R. – Sabe dizer muita coisa sem muito babado.
O gênio talento seja a capacidade de dizer coisas profundas de maneira simples.
Que é isso? – perguntou H. R.
Eu repeti a declaração e servi mais uísque pro grupo.
Preciso anotar isso – disse H. R.
Sacou uma caneta do bolso e anotou-a na borda de uma das sacolas de papel pardo em cima da mesa.
O papagaio saltou do ombro de Honeysuckle, atravessou a mesa e subiu em meu ombro esquerdo.
Legal – disse Honeysuckle.
James Thurber – disse o papagaio – é o maior escritor vivo do mundo.
Sacana burro – eu disse ao pássaro.
Senti uma dor aguda na orelha esquerda. O bicho quase a arrancara. Somos todos criaturas muito sensíveis. H. R. destampou mais cervejas. Continuamos bebendo.
A tarde tornou-se noite, e a noite tornou-se meia-noite. Acordei no escuro. Estava dormindo no tapete no centro da sala. H. R. e Honeysuckle dormiam na cama. Marie dormia no sofá. Todos os três roncavam, sobretudo Marie. Eu me levantei e me sentei à mesa. Ainda restava um pouco de uísque. Servi-o e bebi uma cerveja quente. Fiquei ali sentado e bebi mais cerveja quente. O papagaio empoleirava-se nas costas de uma cadeira defronte de mim. De repente, ele saltou e atravessou a mesa por entre os cinzeiros e garrafas vazias e subiu em meu ombro.
Não diga aquilo – eu lhe disse –, me irrita muito quando você diz aquilo.
Puta da porra – disse o papagaio.
Eu o peguei pelos pés e coloquei-o de volta na cadeira. Depois me deitei no tapete e fui dormir.
Pela manhã, H. R. Mulloch fez um anúncio.
Decidi editar um livro com seus poemas. É melhor a gente ir pra casa e começar a trabalhar.
Quer dizer que compreendeu que eu não sou um ser humano horrível?
Não – disse H. R. –, não compreendi nada disso, mas decidi ignorar minha opinião e editar você de qualquer jeito.
Você foi mesmo o melhor ladrão de diamantes do estado de Ohio?
Ah, sim.
Sei que cumpriu pena. Como pegaram você?
Eu fui tão idiota que não quero falar disso.
Eu desci e peguei mais duas embalagens de seis cervejas, voltei e com Marie ajudei H. R. e Honeysuckle a fazerem as malas. Havia caixas especiais para o transporte dos cachorros e do papagaio. Baixamos tudo pela escada para dentro de meu carro, depois nos sentamos e matamos as cervejas. Éramos todos profissionais: ninguém era idiota o bastante para sugerir café da manhã.
Agora vocês vão nos visitar – disse H. R. – Vamos preparar o livro juntos. Você é um filho da puta, mas a gente pode falar com você. Os outros poetas estão sempre exibindo as plumagens e fazendo um número burro de babaca.
Você é legal – disse Honeysuckle. – Os cachorros gostam de você.
E o papagaio – disse H. R.
As garotas ficaram no carro e eu voltei com H. R. para ele devolver a chave. Uma velha de quimono verde, o cabelo pintado de vermelho vivo, abriu a porta.
Essa é Mama Stafford – me disse H. R. – Mama Stafford, esse é o maior poeta do mundo.
É mesmo? – perguntou Mama Stafford.
O maior poeta vivo do mundo – eu disse.
Por que vocês não entram pra tomar um trago? Parece que estão precisados.
Entramos e cada um engoliu um copo de vinho branco quente. Despedimo-nos e voltamos ao carro…
Na estação ferroviária, H. R. comprou as passagens e embarcou os cachorros e o papagaio no balcão de bagagem. Depois voltou e sentou-se conosco.
Odeio voar – disse. – Tenho pavor de voar.
Fui pegar uma garrafinha de uísque e a passamos entre nós enquanto esperávamos. Depois começaram a pôr a carga no trem. Ficamos zanzando na plataforma e de repente Honeysuckle saltou em cima de mim e me deu um longo beijo. No fim, enfiou e retirou rapidamente a língua em minha boca. Eu fiquei parado e acendi um charuto, enquanto Marie beijava H. R. Depois H. R. e Honeysuckle embarcaram no trem.
É um cara legal – disse Marie.
Querida – eu disse –, acho que você paquerou ele.
Está com ciúmes?
Sempre estou.
Veja, estão na janela, sorrindo pra nós.
É embaraçoso. Eu queria que a porra do trem fosse embora.
Finalmente o trem se pôs em movimento. Acenamos, é claro, e eles acenaram de volta. H. R. tinha um sorriso satisfeito e feliz. Honeysuckle parecia chorar. Parecia muito trágica. Depois não pudemos mais vê-los. Acabou-se. Eu ia ser editado. Poemas Seletos. Demos meia-volta e atravessamos a estação ferroviária.

Charles Bukowski, in Numa Fria

Prescrições de Asclépio

Do mesmo jeito que entendemos quando ouvimos que Asclépio receitou exercitar com cavalos, banhar-se com água gelada ou caminhar descalço, devemos entender quando é dito que a natureza universal prescreveu a doença, a mutilação, a perda ou quaisquer outras eventualidades. No primeiro caso, um remédio foi receitado para o homem obter saúde. No segundo, o evento foi prescrito de uma maneira apropriada ao seu destino.
Pedras quadradas são apropriadas para as paredes e as pirâmides quando se encaixam e formam um tipo de conexão”, dizem os construtores. O mesmo se aplica aos eventos, pois há um cabimento singular para todos.
O cosmos é composto por todos os corpos para ser o corpo que é. Analogamente, o destino é constituído por todas as causas existentes para ser a causa que é. Até os ignorantes compreendem isso, pois costumam dizer que “o destino trouxe aquilo para tal pessoa”. Aliás, não só trouxe, como também prescreveu. Portanto, devemos receber esses fatos como recebemos as prescrições de Asclépio. Ainda que muitos sejam desagradáveis, devemos aceitá-los na esperança de nos curar.
Julgue os aperfeiçoamentos e os feitos que a natureza comum julga serem bons como sendo da mesma categoria que o seu bem-estar. Aceite tudo o que sucede, mesmo quando aparenta ser desagradável, pois tudo contribui para a saúde do universo e para a prosperidade e a felicidade de Zeus. Ele jamais traria para um indivíduo algo inútil para todos. Igualmente, nenhuma natureza, qualquer que seja, causaria algo inadequado àquilo que dirige.
Dois motivos para se contentar com as ocorrências:
I. Foram feitas e prescritas especificamente para você a partir das mais antigas causas tecidas juntas do seu destino.
II. Aquelas que advêm individualmente para cada homem contribuem para a felicidade, a perfeição e a continuidade do poder administrador do cosmos. A integridade do todo é mutilada ao seccionar uma parte da conjunção e da cadeia das partes ou das causas. Dentro do possível, você secciona quando está descontente e tenta remover uma ocorrência do trajeto.

Marco Aurélio, in Meditações

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Homem da esquina rosada

Para Enrique Amorim

Logo pra mim, virem falar do finado Francisco Real. Eu o conheci, e isso que estes não eram os bairros dele, pois costumava andar pelo Norte, por aquelas bandas da lagoa de Guadalupe e da Bateria. Não tratei com ele mais de três vezes, e essas na mesma noite, mas é noite que não vou esquecer, pois nela veio a Lujanera, por querer, dormir no meu rancho, e Rosendo Juárez deixou, pra nunca mais voltar, o Arroio. Aos senhores, claro que falta a devida experiência pra reconhecer esse nome, mas Rosendo Juárez, o Pegador, era dos que cantavam mais grosso lá na Villa Santa Rita. Moço tido e havido por bamba com a faca, era um dos homens de dom Nicolás Paredes, que era um dos homens de Morel. Sabia dar as caras com muita panca no conventilho, num murzelo com enfeites de prata; homens e cachorros o respeitavam e as chinas também; ninguém ignorava que devia duas mortes; usava um chapelão alto, de aba fininha, sobre a cabeleira gordurosa; a sorte o mimava, como quem diz. Nós, os moços da Villa, o copiávamos até no jeito de cuspir. Uma noite, porém, ilustrou pra nós a verdadeira natureza de Rosendo.
Parece conto, mas a história daquela noite mais do que esquisita começou com um carro de praça insolente com rodas encarnadas, cheio até o tope de homens, que ia aos solavancos por aqueles becos de barro duro, entre os fornos de tijolos e os terrenos baldios, e dois de preto, dá-lhe violão e zoada, e o da boleia que dava uma guasca na cachorrada solta que atravessava na frente do tordilho, e um de poncho que ia quieto no meio; aquele era o Curraleiro de tanto nome, e o homem ia pra brigar e matar. A noite era uma bênção de tão fresca; dois deles iam sobre a capota arriada, como se a solidão fosse um corso. Aquele foi o primeiro sucedido de tantos que houve, mas só depois é que ficamos sabendo. Nós, os rapazes, estávamos desde cedo no salão da Julia, que era um galpão de chapas de zinco, entre o caminho de Gauna e o Maldonado. Era um local que o senhor podia divulgar de longe, pela roda de luz que mandava o lampião sem-vergonha, e pelo barulho também. A Julia, embora de cor humilde, era das mais conscientes e sérias, de modo que não faltava quem tocasse música nem boa beberagem e parceiras resistentes pro baile. Mas a Lujanera, que era a mulher de Rosendo, dava em todas com sobra. Morreu, senhor, e digo que há anos em que nem penso nela, mas era preciso vê-la em seus dias, com aqueles olhos. Vê-la não dava sono.
A cachaça, a milonga, o mulherio, um palavrão condescendente da boca de Rosendo, uma palmada dele num montão de gente e que eu procurava sentir como amizade: a questão é que eu estava feliz da vida. Pra mim tocou uma parceira das melhores pra acompanhar, que ia como que adivinhando minha intenção. O tango fazia o que queria com a gente e nos arrastava e nos perdia e voltava a nos ordenar e juntar. Naquela diversão estavam os homens, a mesma coisa que num sonho, quando de repente a música me pareceu aumentar, e era que já se embolava com ela a dos guitarristas do carro, cada vez mais perto. Depois, a brisa que a trouxe enveredou pra outro rumo, e voltei a prestar atenção no meu corpo e no da parceira e nas conversações do baile. Muito depois, chamaram à porta com autoridade, uma pancada e uma voz. Em seguida, um silêncio geral, uma peitada poderosa na porta e o homem estava dentro. O homem era parecido com a voz.
Pra nós não era ainda Francisco Real, mas um sujeito alto, fornido, trajado inteiramente de preto, com uma chalina da cor de um baio jogada no ombro. A cara, lembro que era de índio, angulosa.
Ao se abrir, a folha da porta bateu em mim. Por pura afobação, caí em cima dele e lhe encaixei a esquerda na facha, enquanto com a direita sacava a faca afiada que carregava na cava do colete, junto do sovaco esquerdo. Pouco ia durar meu atropelo. O homem, pra se firmar, esticou os braços e me pôs de lado, como quem se livra de um estorvo. Deixou-me encolhido atrás, ainda com a mão debaixo do paletó, na arma inútil. Seguiu como se não fosse nada, adiante. Seguiu sempre mais alto que qualquer um dos que ia apartando, sempre como sem ver. Os primeiros — só uma italianada curiosa — abriram-se como leque, apressados. A coisa não durou. No amontoado seguinte já estava o Inglês à sua espera, e, antes de sentir no ombro a mão do forasteiro, colocou-a pra dormir com uma pranchada que tinha pronta. Foi verem aquela pranchada, e já foram todos na fumaça dele. O estabelecimento tinha mais que muitas varas de fundo, e ele foi arrastado feito um cristo, quase de ponta a ponta, a empurrões, assovios e cuspidas. Primeiro lhe deram socos, depois, ao verem que nem aparava os golpes, simples bofetões com a mão aberta ou com a franja inofensiva das chalinas, como rindo dele. Também, como que o reservando pro Rosendo, que não tinha se mexido da parede do fundo, onde estava encostado, calado. Fumava com pressa seu cigarro, como se já entendesse o que vimos claro depois. O Curraleiro foi empurrado até ele, firme e ensanguentado, com aquela rajada de gentuça chiando atrás. Vaiado, maltratado, cuspido, só abriu a boca quando se encarou com Rosendo. Então olhou pra ele, limpou o rosto com o antebraço e disse estas coisas:
Eu sou Francisco Real, um homem do Norte. Sou Francisco Real, que chamam de Curraleiro. Consenti a esses infelizes que me alçassem a mão porque o que estou procurando é um homem. Andam por aí uns loroteiros dizendo que nestas paragens há um, que chamam de Pegador, que tem fama de riscar a faca e de durão. Quero encontrá-lo pra que me ensine, a mim que sou nicles, o que é um homem de coragem de se ver.
Disse essas coisas e não tirou os olhos de cima dele. Agora lhe brilhava uma baita faca na mão direita, que na certa ele tinha trazido na manga. Ao redor os que empurraram foram se abrindo, e todos olhávamos para os dois, num silêncio grande. Até a fuça do mulato cego que tocava violino acatava esse rumo.
Nisso, ouço que se deslocavam atrás, e vejo junto da moldura da porta seis ou sete homens, que seriam a turma do Curraleiro. O mais velho, um homem com ar do interior, curtido, de bigode grisalho, adiantou-se para ficar como encadeado por tanto mulherio e tanta luz, e descobriu-se com respeito. Os outros vigiavam, prontos para entrar cortando se o jogo não fosse limpo.
Enquanto isso, o que acontecia com Rosendo, que não expulsava a pontapés aquele garganta? Continuava calado, sem erguer os olhos. O cigarro não sei se cuspiu ou deixou cair da cara. Afinal pôde dar com algumas palavras, mas tão devagar que para os da outra ponta do salão não chegou até nós o que disse. Francisco Real tornou a desafiá-lo, e ele a se negar. Então, o mais jovem dos estranhos assoviou. A Lujanera olhou pra ele com ódio, abriu passagem com a cabeleira nas costas, entre os do carro e as chinas, e foi no rumo do seu homem, meteu-lhe a mão no peito, sacou sua faca desembainhada e deu-a a ele com estas palavras:
Rosendo, acho que você está precisando dela.
Na altura do teto havia uma espécie de janela comprida que dava pro riacho. Rosendo recebeu a faca com as duas mãos e botou os olhos nela como se não a reconhecesse. De repente se inclinou pra trás, e a faca voou direto e foi se perder lá fora, no Maldonado. Senti como um frio.
Não te meto a faca só de nojo de te carnear — disse o outro, e levantou a mão pra castigá-lo. Então a Lujanera se agarrou nele, passou-lhe os braços pelo pescoço e, olhando pra ele com aqueles olhos, disse-lhe com raiva:
Deixa esse aí que nos fez acreditar que era um homem.
Francisco Real ficou atrapalhado por um momento, mas em seguida a abraçou como pra sempre, gritando aos músicos que metessem tango e milonga e aos outros da diversão, que era pra gente dançar. A milonga correu solta como um incêndio de ponta a ponta. Real dançava com muita gravidade, mas sem deixar folga entre eles, como se já a possuísse. Chegaram à porta e gritou:
Abram cancha, senhores, que eu já vou com ela dormida!
Disse, e saíram de rosto colado, como no marulhar do tango, como se o tango os deitasse a perder.
Devo ter ficado vermelho de vergonha. Dei algumas voltinhas com alguma mulher e logo a larguei. Inventei que era pelo calor e pelo aperto e fui beirando a parede até sair. Linda noite, pra quem? Na esquina do beco estava o carro de praça, com o par de violões tesos no assento, feito cristãos. Comecei a ficar chateado com tamanha falta de cuidado, como se nem pra catar bugigangas a gente prestasse. Fiquei com raiva de sentir que a gente era coisíssima nenhuma. Um piparote no cravo atrás de minha orelha e joguei-o num charquinho; fiquei um tempo olhando pra ele, como pra não pensar em mais nada. Eu teria gostado de estar no dia seguinte, queria cair fora daquela noite. Nisso, me deram uma cotovelada que foi quase um alívio. Era Rosendo, que se mandava do bairro, sozinho.
Você sempre servindo de estorvo, seu traste — me resmungou ao passar, não sei se pra se desafogar, ou se distraído. Foi pro lado mais escuro, o do Maldonado; não tornei a vê-lo.
Fiquei olhando aquelas coisas da vida inteira — céu até dizer chega, o riacho porfiando solitário lá embaixo, um cavalo dormido, o beco de terra, os tijolos — e pensei que eu era apenas outro matinho daquelas beiras, criado entre flores do brejo e ossadas. Quem ia sair daquele lixo a não ser nós, gritalhões mas fracos pro castigo, boca e tropelia e nada mais? Senti depois que não, que, quanto mais aporrinhado o bairro, maior a obrigação de ser bravo. Lixo? A milonga — dá-lhe doideira, dá-lhe bochinche nas casas —, e trazia odor a madressilvas o vento. Linda até o cerne a noite. Havia estrelas de dar tontura só de olhar, umas sobre as outras. Eu fazia força pra sentir que pra mim o assunto nada representava, mas a covardia de Rosendo e a coragem insuportável do forasteiro não queriam me largar. Até uma mulher para aquela noite, o homem alto tinha podido arrumar. Para aquela e para muitas, pensei, e talvez pra todas, porque a Lujanera era coisa séria. Sabe Deus pra que lado foram.
Muito longe não haviam de estar. Até mesmo, talvez, já andassem aprontando os dois, em qualquer valeta.
Quando consegui voltar, o baileco seguia em frente como se nada tivesse acontecido.
Bancando um menininho, enfiei-me no meio de um monte de gente e vi que alguns dos nossos tinham se mandado e que os do Norte tangueavam junto com os demais. Cotoveladas e encontrões não havia, mas receio e decência. A música parecia sonolenta, as mulheres que tangueavam com os do Norte não diziam esta boca é minha.
Eu esperava alguma coisa, mas não o que aconteceu.
Ouvimos lá fora uma mulher que chorava e depois a voz que já conhecíamos, mas serena, quase serena demais, como se já não fosse de alguém, dizendo-lhe:
Entre, minha filha — e logo outro choro. Em seguida a voz como se começasse a se desesperar.
Abra, estou lhe dizendo, abra, bastarda perdida, abra, cadela! — Nisso a porta trêmula se abriu e entrou a Lujanera, sozinha. Entrou mandada, como se alguém a viesse tocando.
Alguma alma está mandando nela — disse o Inglês.
Um morto, amigo — disse o Curraleiro. A cara era tal qual de bêbado. Entrou e, no claro que todos lhe abrimos, deu alguns passos cambaleantes — alto, sem ver — e foi ao chão de uma vez, como um poste. Um dos que vieram com ele o deitou de costas e acomodou o ponchinho feito seu travesseiro. Esses auxílios o deixaram sujo de sangue. Vimos então que tinha um ferimento forte no peito; o sangue encharcava-o e enegrecia um lenço vermelho vivo que antes eu não havia notado, porque a chalina o tapava. Como primeiro socorro, uma das mulheres trouxe cachaça e uns trapos queimados. O homem não estava pra explicações. A Lujanera olhava pra ele que nem perdida, com os braços pendentes. Todos estavam se perguntando com a cara, e ela conseguiu falar. Disse que, assim que saiu com o Curraleiro, foram a um campinho, e que nisso pinta um desconhecido que o chama desesperado pra briga e lhe enfia uma punhalada; ela jura que não sabe quem haveria de ser e que não era Rosendo. Quem ia acreditar nela?
O homem a nossos pés estava morrendo. Pensei que não havia tremido o pulso de quem o acertou. O homem, porém, era duro. Quando bateu a hora, a Julia tinha estado cevando uns mates e o mate deu a volta completa e voltou à minha mão, antes que ele falecesse. “Tapem meu rosto”, disse devagar, quando não pôde mais. Só lhe restava o orgulho e não ia consentir que ficassem xeretando as caretas de sua agonia. Alguém pôs em cima dele um chapelão preto que era de copa por demais de alta. Morreu debaixo do chapelão, sem queixa. Quando o peito deitado parou de subir e descer, animaram-se a descobri-lo. Tinha aquele ar cansado dos defuntos; era um dos homens de mais coragem que houve naquele então, da Bateria até o Sul; quando o soube morto e sem fala, perdi o ódio dele.
Para morrer basta estar vivo — disse uma do grupo, e outra, pensativa, também:
Tanta soberba o homem, e agora só serve para juntar moscas.
Então os do Norte foram dizendo entre si uma coisa devagar, e dois ao mesmo tempo ficaram repetindo forte depois:
A mulher o matou.
Um lhe gritou na cara se era ela, e todos a cercaram. Eu me esqueci que era preciso ter tino e me meti entre eles que nem a luz. Afobado, quase apelo pra faca. Senti que muitos me olhavam, pra não dizer todos. Disse quase com malícia:
Prestem atenção nas mãos dessa mulher. Que pulso ou coração vai ter pra cravar uma punhalada?
Acrescentei, meio sem vontade, a bravata:
Quem ia sonhar que o finado, que, conforme tem gente dizendo, era durão no bairro dele, fosse abotoar de forma tão bruta e num lugar tão completamente morto como este, onde nada acontece, se não vem alguém de fora para distrair a gente e fica pra cuspida depois?
O couro não ficou pedindo pancada a ninguém.
Nisso, ia crescendo na solidão um barulho de cavaleiros. Era a polícia. Uns mais, outros menos, todos tinham alguma razão pra não querer nada com ela, tanto que decidiram que o melhor era transladar o corpo do morto ao riacho. Os senhores devem estar lembrados daquela janela comprida por onde passou brilhando o punhal. Por lá passou depois o homem de preto. Foi erguido por muitos e de tudo quanto tinha em centavo e miudezas foi aligeirado por aquelas mãos e alguém lhe torou um dedo pra afanar um anel. Aproveitadores, senhor, que assim animavam um pobre defunto indefeso, depois que o acertou outro mais homem. Um empurrão e as águas correntosas e sofridas deram fim nele. Pra não boiar, não sei se lhe arrancaram as vísceras, porque preferi não olhar. O de bigode cinza não tirava os olhos de mim. A Lujanera aproveitou o aperto pra sair.
Quando os da lei vieram dar sua campana, o baile estava meio animado. O cego do violino sabia tirar umas habaneras das que não se ouvem mais. Lá fora estava querendo clarear. Uns postes de algarobo sobre um morro pareciam soltos, porque os fios fininhos não se deixavam avistar tão cedo.
Voltei quieto pro meu rancho, que ficava a umas três quadras. Ardia na janela uma luzinha, que se apagou logo em seguida. Deveras que me apressei em chegar, quando me dei conta. Então, Borges, tornei a puxar a faca curta e afiada que eu sabia carregar aqui, no colete, junto do sovaco esquerdo, e dei outra revisada nela devagar; estava como nova, inocente, e não restava nem um pingo de sangue.

Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia