quarta-feira, 31 de agosto de 2022
Uma história sutil
—Beleza,
a sua cozinha.
— Obrigado,
eu...
— E
você quem cozinha sempre ou...
— Não,
não. Tem uma senhora que vem arrumar o apartamento sempre e deixa um
prato feito na geladeira. Sou cozinheiro de fim de semana. Marinheiro
de... Como é mesmo que se diz?
— O
quê?
— Doce.
— Eu?
— Água
doce. Marinheiro de água doce. Você quer esperar na sala, enquanto
eu...
— Fico
aqui com você. A menos que...
— Não,
pode ficar. Quem sabe a gente já abre o vinho e fica bebericando,
enquanto eu...
— Adoro
bebericar. Uma beleza, o seu abridor.
— Obrigado.
Este vinho precisa respirar um pouco antes de ser servido. Pode
parecer bobagem mas...
— Não,
não. Respirar é uma das coisas mais importantes que existem.
— Ele
precisa estar na temperatura ambiente.
— Adoro
a temperatura ambiente.
— Você
está disposta a experimentar o meu bobó?
— O
seu...
— Bobó
de camarão. Minha especialidade.
—Ah,
claro. Não foi para isso que você me convidou? Adoro bobó...
— Você
já comeu alguma vez?
— Nunca.
Mas adoro.
— Olha
o vinho.
— Mmmmm.
— Hein?
— Eu
disse “Mmmmm”... Epa!
— Desculpe.
Estou um pouco nervoso. Sabe como é, a responsabilidade. Você pode
não gostar do meu...
— Bobo.
— Bobó.
— Bobo
é você. Vou adorar o seu bobó.
— Será
que o vinho vai manchar o seu vestido?
— Não.
Em todo o caso...
— Quem
sabe um pano com água quente? E só esquentar a água e...
— Adoro
tudo o que é quente. Uma beleza a sua chaleira.
— Enquanto
isto, vou preparando os ingredientes. Deixa ver. Pimen tinha...
— Sim?
— Não,
eu disse “pimentinha”.
— Não
me diz que leva pimenta!
— Leva.
Você não gosta?
— Adoro!
— E
da braba.
— Ui!
Você, hein? Com esse jeito tímido... Só de ouvir falar em pimenta,
fiquei toda arrepiada. Passa a mão aqui...
— É
mesmo. Que estranho. Só de ouvir falar em pimenta...
— Mal
posso esperar o seu bobó.
— Calma,
calma.
— Demora
muito?
— Se
você me der uma mão... Na geladeira na parte de baixo, estão os
camarões... Você vai ter que se abaixar um pouco e...
— Beleza
a sua geladeira. Foi você que assobiou?
— Não,
foi a minha chaleira. Mas..
— Sim?
— Eu
concordo com ela. Mmmmm…
Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça
Quando for crescido quero ser como Rita
Esta
Rita a quem quero parecer-me quando for crescido é Rita
Levi-Montalcini, ganhadora do Prêmio Nobel de Medicina em 1984 pelas
suas investigações sobre o desenvolvimento das células
neurológicas. Ora, Prêmio Nobel é coisa que já tenho, logo não
seria por ambição dessa grande ou pequena glória, as opiniões dos
entendidos divergem, que estou disposto a deixar de ser quem tenho
sido para tornar-me em Rita. De mais a mais estando eu numa idade em
que qualquer mudança, mesmo quando prometedora, sempre se nos
afigura um sacrifício das rotinas em que, mais ou menos, acabamos
por nos acomodar.
E
por que quero eu parecer-me a Rita? É simples. No ato do seu
investimento como Doutora Honoris Causa na aula magna da Universidade
Complutense, de Madrid, esta mulher, que em Abril completará cem
anos, fez umas quantas declarações (pena que não tenhamos
conseguido a transcrição completa do seu improvisado discurso) que
me deixaram ora assombrado ora agradecido, posto que não é fácil
imaginar juntos e unidos estes dois sentimentos extremos. Disse ela:
“Nunca pensei em mim mesma. Viver ou morrer é a mesma coisa.
Porque, naturalmente, a vida não está neste pequeno corpo. O
importante é a maneira como vivemos e a mensagem que deixamos. Isso
é o que nos sobrevive. Isso é a imortalidade”. E disse mais: “É
ridícula a obsessão do envelhecimento. O meu cérebro é melhor
agora do que foi quando eu era jovem. É verdade que vejo mal e oiço
pior, mas a minha cabeça sempre funcionou bem. O fundamental é
manter ativo o cérebro, tentar ajudar os outros e conservar a
curiosidade pelo mundo”. E estas palavras que me fizeram sentir que
havia encontrado uma alma gêmea: “Sou contra a reforma ou qualquer
outro tipo de subsídio. Vivo sem isso. Em 2001 não cobrava nada e
tive problemas econômicos até que o presidente Ciampi me nomeou
senadora vitalícia”.
Nem
toda a gente estará de acordo com este radicalismo. Mas aposto que
muitos dos que me leem vão também querer ser como Rita quando
crescerem. Que assim seja. Se o fizerem tenhamos a certeza de que o
mundo mudará logo para melhor. Não é isso o que andamos a dizer
que queremos? Rita é o caminho.
27
de outubro de 2008
José Saramago, in O caderno
– Vem, galano. Volta outra vez
– Estás
cansado, velho – disse. – Estás cansado de todo.
Os
tubarões não voltaram a atacar antes do pôr do sol.
O
velho viu as barbatanas castanhas avançando pelo largo rasto que o
peixe devia deixar nas águas. Nem sequer vinham farejando. Vinham
enfiados ao esquife, nadando lado a lado.
Prendeu
a cana, amarrou a ponta da vela, e estendeu a mão para o cacete,
debaixo da popa. Era um remo partido e serrado depois, com quase um
metro. Só podia ser manejado eficazmente com uma das mãos, por
causa do chanfro do punho, e segurou-o com a mão direita, bem
fechada nele, ao ver chegar os tubarões. Ambos eram galanos.
“Devo
deixar o primeiro morder bem, e dar-lhe depois uma pancada na ponta
do nariz ou mesmo no alto da cabeça”, pensou.
Os
dois tubarões chegaram juntos, e, quando o mais próximo abriu a
goela e enterrou as queixadas no flanco prateado do peixe, ele
levantou o cacete ao alto e deixou-o cair pesadamente no cimo da
larga cabeça do tubarão. No cair do cacete, sentiu a elástica
solidez dela. Mas sentiu também a rigidez do osso, e tornou a bater
com força, mas na ponta do nariz, quando o tubarão já se soltava
do peixe.
O
outro tubarão andara cá e lá, e aí vinha ele de goela
escancarada. O velho bem via pedaços da carne do peixe a
saltarem-lhe do canto da boca, ao atacar o peixe e fechar as
queixadas. Voltou-se a ele e acertou-lhe na cabeça, e o tubarão
fitou-o e arrancou a carne. O velho deu-lhe outra vez, já ele se
afastava para engolir, e acertou apenas na elasticidade sólida e
maciça.
– Vem,
galano. Volta outra vez.
O
tubarão veio de carreira, e o velho acertou-lhe, fechava ele a boca.
Acertou-lhe em cheio e de tão alto quanto podia levantar o cacete.
Desta vez, sentiu o osso na base do crânio e tornou a dar-lhe no
mesmo sítio, enquanto o tubarão molemente arrancava a carne e se
sumia do peixe.
O
velho ficou a ver se ele voltava, mas nenhum voltou.
Tempo
depois, um deles apareceu à superfície, nadando em círculo. Não
viu mais a barbatana do outro.
“Não
podia esperar matá-los, pensou. No meu tempo, sim. Mas magoei-os de
verdade, e nenhum deles se deve sentir muito bem. Se tivesse um pau
com duas pegas, matava de certeza o primeiro. Até agora”.
Para
o peixe não queria olhar. Sabia que metade dele fora destruída. O
sol desaparecera, enquanto durara a luta com os tubarões.
– Não
tarda que seja noite – disse. – Hei-de ver então o clarão de
Havana. E, se estiver muito para leste, verei as luzes de uma das
praias novas.
“Já
não posso estar muito ao largo. Espero que ninguém se tenha
afligido. Claro que o rapaz se aflige. Mas estou certo de que terá
confiado. Muitos pescadores mais velhos se afligirão. E muitos
outros também. Vivo numa boa terra”.
Com
o peixe não podia falar, porque o peixe estava todo estragado.
Veio-lhe então uma ideia à cabeça.
– Semipeixe!
– exclamou. – α peixe que tu eras! Desculpa ter vindo tão para
o largo. Dei cabo de nós ambos. Mas matamos muitos tubarões, tu e
eu, e demos cabo de muitos outros. Quantos mataste tu, meu velho
peixe? Não tens para nada essa lança na cabeça.
Gostou
de pensar no peixe e no que este faria a um tubarão, se nadasse em
liberdade. “Devia ter-lhe cortado a lança para lutar com ele”,
pensou. Mas machado não havia, e agora nem sequer a faca.
“Se
tivesse, e amarrasse a lança ao remo... que arma! E é que havíamos
então lutado juntos. Que farás, se eles voltam de noite? Que podes
tu fazer?” Lutar – respondeu. – Lutar até morrer.
Na
treva, porém, sem clarão fulgindo, nem luzes, só com o vento e o
firme impulso da vela, sentiu-se como se já estivesse morto. Juntou
as mãos para sentir as palmas. Não estavam mortas, e era capaz de
sentir a dor da vida, apenas com abri-las e fechá-las. Encostou as
costas à popa, e reconheceu que não estava morto. Os ombros lho
disseram.
“Tenho
para rezar todas as orações que prometi, se apanhasse o peixe,
pensou. Mas estou muito cansado para as rezar agora. É melhor pegar
no saco e pô-lo pelos ombros”.
Deitado
na popa, governava o barco e esperava que a claridade surgisse no
céu. “Talvez eu tenha a sorte de chegar com a metade dianteira.
Devia caber-me alguma sorte. Não. Violaste a sorte, quando saíste
para o largo demais”!.
– Não
sejas tolo! – exclamou. – E não adormeças e governa. Ainda
podes ter muita sorte.
“Gostava
de comprar alguma, se há sítio onde se venda”.
“Com
que havia de comprá-la? Perguntou a si próprio. Havia de comprá-la
com um arpão perdido, uma faca partida e duas mãos desfeitas?”
– E
podias – disse. – Querias comprá-la com oitenta e quatro dias no
mar. E quase te venderam.
“Não
devo pensar em tolices. A sorte é coisa que vem de muitas formas.
Quem sabe reconhecê-la? No entanto, eu aceitava alguma em qualquer
forma, e pagava o que me pedissem. Quem me dera ver o clarão das
luzes. Quem me dera tanta coisa! Mas é isto o que eu quero agora”.
Procurou instalar-se mais confortavelmente ao leme, e pela dor sabia
que não estava morto.
Viu
o reflexo das luzes da cidade, por volta do que seriam as dez horas
da noite. Era perceptível apenas, a princípio, como a claridade no
céu antes de a lua nascer. Depois, viu as luzes firmes no oceano que
engrossava com o refrescar da brisa. Navegava dentro do clarão e
pensou que não tardaria a passar a borda da corrente.
“Agora,
acabou-se. Se calhar, atacam-me outra vez. Mas que pode um homem
contra eles, no escuro, sem armas?”
Sentia-se
dormente, dorido, e as feridas e as partes mais esforçadas do corpo
doíam-lhe com o frio da noite. “Espero não ter de lutar mais,
pensou. Tanto espero não ter de lutar outra vez!”
Mas,
por volta da meia-noite, lutou e dessa vez sabia que era inútil.
Vieram em massa, e apenas via as linhas que as barbatanas abriam na
água e a fosforescência deles ao atirarem-se ao peixe. Batia-lhes
na cabeça, ouvia o estalo das queixadas, sentia o tremer do esquife
quando eles mordiam por baixo. Batia-lhes desesperadamente no que
apenas sentia e ouvia, e sentiu que alguém lhe agarrava no cacete,
que se sumiu.
Arrancou
a cana do leme, e bateu e feriu com ela, segurando-a com ambas as
mãos, abatendo-a vezes seguidas.
Mas
vinham pela proa, um após outro, juntos, arrancando pedaços de
carne, que brilhavam dentro do mar quando eles se voltavam para um
novo ataque.
Veio,
por fim, um, que se atirou à cabeça, e o velho viu que tudo
acabara. Acertou com a cana na cabeça do tubarão, cujas maxilas
estavam presas na dureza da cabeça do peixe, que se não rasgava.
Vibrou a pancada uma, duas, três vezes.
Ouvia
a cana partir-se, e espicaçou o tubarão com a ponta estilhaçada.
Sentiu-a penetrar e, ciente de que era aguçada, enterrou-a mais. O
tubarão soltou-se e rolou para longe. Era o último tubarão do
bando que aparecera. Nada mais havia de comer.
O
velho mal podia respirar, e sentia na boca um sabor estranho,
adocicado, metálico, e por instantes teve medo. Mas não durou
muito.
Cuspiu
para o oceano e disse: – Comam isso, galanos. E fiquem a
julgar que mataram um homem.
Sabia-se
irremediavelmente derrotado e voltou à popa e verificou que a ponta
partida da cana encaixava no olhal do leme o suficiente para ele
poder governar. Compôs o saco pelos ombros e repôs o esquife no
rumo. Vogava ligeiro, e o velho não tinha pensamentos ou sentimentos
nenhuns. Passara por tudo, e limitava-se a dirigir o barco para o
porto, tão bem e tão inteligentemente quanto podia. Pela noite,
tubarões atacaram a carcaça, como alguém pode apanhar migalhas da
mesa. O velho não lhes prestou atenção e a nada prestava atenção
senão ao leme. Apenas reparava em como o barco singrava bem, muito
ligeiro, agora que não levava grande peso na borda.
Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar
Terra
Atravesso
os acontecimentos proporcionais à natureza até cair e descansar,
devolvendo meu fôlego ao elemento do qual o inspiro diariamente e me
estirando sobre a terra.
Terra
da qual meu pai coletou a semente, minha mãe, o sangue, e minha ama,
o leite. Ademais, a qual, durante tantos anos, supriu-me com comida e
bebida e me sustenta quando piso sobre e me aproveito dela para
tantos propósitos.
Marco Aurélio, in Meditações
As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 4
Há
um momento em que o pântano ganha vida. Eu gostaria que você visse,
mas, de algum modo, sempre que caminhávamos juntos pelo campo,
perdíamos esses preciosos e escassos momentos de revelação. Em vez
disso, o céu tem ficado bastante nublado, da cor das pedras sob ele,
ou a seca transforma a terra num lugar marrom, empoeirado e
espinhoso, ou teve aquela vez em que nevou tanto que a porta da
cozinha ficou presa por fora e eu precisei sair pela janela e, com
uma pá, abrir caminho para a nossa liberdade, e, durante uma viagem
em 1949, choveu sem parar, acho que por cinco dias ininterruptos.
Você nunca viu o pântano logo depois da chuva, quando fica tudo
púrpura e amarelo e cheira a solo negro e fértil.
Estava
correta a dedução que você fez logo no começo da nossa amizade,
de que eu havia nascido no norte da Inglaterra, apesar de todas as
afetações e manias que adquiri ao longo de tantas vidas, e meu pai
adotivo, Patrick August, nunca me deixou esquecer minhas raízes. Ele
era o único capataz do patrimônio dos Hulne, e havia sido durante
toda a sua vida. Assim como seu pai, e o pai dele, remontando a 1834,
quando a recém-enriquecida família Hulne comprou a terra para dar
forma a seu sonho de cidadãos da classe alta. Plantaram árvores,
abriram estradas no pântano, construíram torres e arcos ridículos
— construções extravagantes de donos extravagantes — que, na
época do meu nascimento, já se encontravam tomados pelos musgos que
evidenciavam sua decadência. Não era para eles o sórdido matagal
que cercava a propriedade, com seus dentes de pedra e suas gengivas
pegajosas de carne viva da terra. Mais vigorosas, as gerações
anteriores da família criavam ovelhas, ou talvez seja mais justo
dizer que as ovelhas se criavam sozinhas, nos prados que se estendiam
até os muros de pedra, mas o século XX não foi generoso com a
sorte dos Hulne, e o terreno, embora ainda de propriedade da família,
encontra-se negligenciado, selvagem — o lugar perfeito para um
garoto correr livre enquanto seus pais cumprem os afazeres.
Curiosamente, ao viver minha infância novamente, fui bem menos
intrépido. Meu conservador cérebro de idoso passou a considerar
perigosos os buracos e penhascos que eu pulava e escalava durante a
primeira vida, e usei meu corpo infantil como uma idosa talvez use um
biquíni atrevido presenteado por uma amiga esguia.
Como
o suicídio falhou espetacularmente na tarefa de terminar o ciclo dos
meus dias, decidi dedicar a terceira vida à busca das respostas que
pareciam tão distantes. Acredito que seja um pequeno ato de
misericórdia o fato de que nossas memórias voltem aos poucos,
conforme avançamos na infância; por isso, a lembrança de ter me
atirado para a morte surgiu, por assim dizer, como um resfriado que
chega aos poucos, sem causar surpresa, apenas a confirmação de que
aquilo acontecera e de fato não servira para nada.
Se
considerarmos a ignorância uma forma de inocência e a solidão uma
forma de se distanciar das preocupações, minha primeira vida teve
um tipo de felicidade, por mais que não tivesse um objetivo
concreto. Mas, já sabendo de tudo o que havia vivido antes, eu não
poderia viver aquela nova vida da mesma forma. Não só por já saber
os eventos que estavam por vir, mas principalmente por causa da nova
forma de perceber a realidade ao meu redor, e, tendo sido exposto a
essa realidade na minha primeira vida, nunca cheguei a pensar na
possibilidade de que fosse uma mentira. Outra vez um garoto e ao
menos temporariamente em comando de todas as minhas faculdades como
adulto, percebi a realidade que muitas vezes é encenada na frente de
uma criança na crença de que ela não será capaz de compreendê-la.
Acredito que meus pais adotivos me amaram — ela, muito antes dele
—, mas, para Patrick August, eu nunca fui carne de sua carne até
que minha mãe adotiva morresse.
Há
um estudo médico sobre esse fenômeno, mas minha mãe adotiva nunca
morre exatamente no mesmo dia em cada vida. A causa é sempre a mesma
— a menos que fatores externos intervenham violentamente. Perto do
meu aniversário de seis anos, ela começa a tossir, e, perto de eu
completar sete, a tosse vem com sangue. Meus pais não podem pagar os
honorários do médico, mas por fim minha tia Alexandra fornece a
moeda para que a minha mãe vá ao hospital de Newcastle e volte com
o diagnóstico de câncer de pulmão. (Acredito que sejam carcinomas
de células não pequenas, confinadas primeiro ao pulmão esquerdo;
frustrantemente tratável quarenta anos após esse diagnóstico, mas,
na época, absolutamente fora do alcance da ciência.) O médico
prescreve tabaco e láudano, mas a morte chega depressa em 1927. Após
o falecimento, meu pai para de falar por completo e começa a fazer
passeios pelas colinas, às vezes sumindo durante dias. Eu cuido de
mim mesmo com total competência, e a partir de então, na
expectativa da morte da minha mãe, estoco comida para me alimentar
durante as longas ausências de meu pai. Quando volta, ele permanece
calado e distante, e, embora não responda com raiva a nenhuma das
abordagens do meu eu infantil, isso se dá, em suma, porque ele não
responde a absolutamente nada. Durante a minha primeira vida, eu não
entendia seu sofrimento nem sua forma de manifestá-lo, pois eu mesmo
me via sofrendo com a mudez exacerbada própria de uma criança que
precisava de ajuda, ajuda essa que não tive dele. Na segunda vida, a
morte da minha mãe se deu quando eu ainda estava no hospício, e eu
me via concentrado demais na minha própria loucura para processar o
fato, mas na terceira vida tudo veio como um trem que se aproxima
devagar de um homem amarrado aos trilhos; inevitável, irrefreável,
visto de longe à noite, e, para mim, saber de antemão o que vai
acontecer era pior do que o acontecimento em si. Eu sabia o que
estava por vir, e, de certa forma, quando ela morreu, foi um alívio,
o fim de uma expectativa e portanto, um evento menos traumático.
A
morte iminente da minha mãe também me proporcionou uma espécie de
ocupação durante a minha terceira vida. A prevenção, ou pelo
menos o gerenciamento da situação, havia se tornado minha principal
preocupação. Como não encontrava explicação para o que vivia,
salvo, talvez, que um deus do Antigo Testamento tivesse me lançado
uma maldição, eu acreditava que, ao realizar atos de caridade ou
tentar afetar os grandes eventos da minha vida, talvez quebrasse esse
ciclo de morte-nascimento-morte que parecia ter se abatido sobre mim.
Pensando não ter cometido crimes que precisassem de redenção e sem
eventos maiores por desfazer na vida, eu me apeguei ao bem-estar de
Harriet como minha primeira e mais evidente cruzada, e nela embarquei
com toda a sabedoria que a minha mente de uma criança de 5 anos (já
chegando aos 97) seria capaz de reunir.
Usei
a ajuda que servia como desculpa para evitar o tédio da escola, e
meu pai estava preocupado demais para prestar atenção ao que eu
fazia; assim, eu me dediquei a cuidar da minha mãe e descobri como
nunca antes o modo como ela vivia quando meu pai não se encontrava
por perto. Acho que se pode pensar nisso como uma chance de conhecer,
com a mentalidade de um adulto, uma mulher que conheci apenas
brevemente quando criança. E foi então que suspeitei pela primeira
vez que Patrick não era meu pai verdadeiro.
Toda
a família Hulne foi ao funeral da minha mãe adotiva, quando enfim
ela morreu na minha terceira vida. Meu pai entoou um breve discurso,
e eu fiquei ao lado dele, um menino de 7 anos usando calça e paletó
pretos emprestados de Clement Hulne, o primo três anos mais velho
que, na minha vida anterior, implicava comigo, quando lembrava que eu
estava lá para sofrer com seus maus-tratos. Apoiada na bengala com
cabo de marfim talhado no formato de uma cabeça de elefante,
Constance Hulne disse algumas poucas palavras sobre a lealdade e a
força de Harriet, além da família que ela deixava. Alexandra Hulne
me disse que eu deveria ser forte; Victoria Hulne se curvou e
beliscou minhas bochechas, provocando em mim um estranho impulso
infantil de morder os dedos enluvados que haviam profanado meu rosto.
Rory Hulne não disse nada e ficou me encarando. Ele havia feito isso
antes, na primeira vez em que eu pegara roupas emprestadas para
enterrar minha mãe, mas eu, tomado de uma tristeza inexprimível,
não compreendera a intensidade daquele olhar. Dessa vez, nós nos
encaramos, e pela primeira vez vi refletida a minha imagem, a imagem
do que eu me tornaria.
Você
não me conheceu em todos os estágios da vida, então me permita
descrevê-los aqui.
Quando
criança, eu nasço com o cabelo quase vermelho, tom que, com o tempo
desvanece e os caridosos diriam que se torna castanho-avermelhado,
mas que francamente parece mais a cor de uma cenoura. A cor vem da
família da minha mãe verdadeira, assim como a propensão a ter bons
dentes e à hipermetropia. Quando criança sou pequeno, um pouco mais
baixo do que a média, e magro, embora isso se dê tanto pela má
alimentação quanto pela predisposição genética. Meu estirão
começa quando faço 11 anos e continua até os 15, quando,
felizmente, posso fingir que sou um garoto de 18 anos que parece mais
novo e, portanto, pular três anos entediantes e ir direto para a
vida adulta.
Quando
jovem, eu deixava a barba crescer desgrenhada, tal qual meu pai
adotivo, Patrick; mas ela não me cai bem, e, quando a deixo
descuidada, fico parecido com um conjunto de órgãos sensoriais
perdido num arbusto de framboesa. Quando tomei consciência disso,
comecei a fazer a barba com regularidade, revelando assim a face do
meu pai verdadeiro. Temos os mesmos olhos acinzentados, as mesmas
orelhas diminutas, o cabelo levemente ondulado e um nariz que, junto
com a tendência a ter doenças ósseas quando idoso, provavelmente é
a pior herança genética que ele me legou. Não que o nariz seja
especialmente grande — não é; mas ele é tão inegavelmente
arrebitado que se encaixaria bem no rosto do rei dos duendes, e em
vez de ser delineado na minha face e traçar um ângulo com meu
rosto, parece homogeneizado, fundido com a minha pele, como se fosse
um apêndice moldado em argila, não em osso. As pessoas são
educadas demais para comentar, mas vez ou outra, quando uma criança
menos comedida e dona de um melhor material genético o vê, começa
a chorar. Quando idoso, meu cabelo fica tão branco que parece um
flash de fotografia; o estresse pode adiantar a descoloração, e nem
a medicina nem a psicologia são capazes de preveni-la. Preciso de
óculos para ler aos 51 anos; lamentavelmente chego a essa idade
durante a década de 1970, época ruim para a moda, portanto, assim
como quase todos que chegam a certa idade, eu recorro ao estilo com
que me sentia mais à vontade quando jovem e escolho uma armação
discreta e antiquada. Com eles na frente dos meus olhos, que são
mais juntos do que o normal, eu me olho no espelho do banheiro e
percebo que fico igual a um acadêmico idoso; era um rosto ao qual,
no momento de enterrar Harriet pela terceira vez, eu já tivera quase
cem anos para me familiarizar. É o rosto de Rory Edmond Hulne,
encarando-me do outro lado do caixão da mulher que não poderia ser
minha mãe verdadeira.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
As três perguntas
Certa
vez, ocorreu a um imperador que, se soubesse responder apenas às
seguintes perguntas, nada jamais o afastaria do caminho justo:
– Qual
é o melhor momento para qualquer coisa?
– Quais
são as pessoas mais importantes em qualquer trabalho?
– Qual
é a coisa mais importante a fazer em qualquer momento?
O
imperador promulgou um decreto para todo o seu império, anunciando
que quem soubesse responder às três perguntas receberia uma grande
recompensa. Depois de ler este decreto, muitos se dirigiram ao
palácio com as suas diferentes respostas.
Respondendo
à primeira pergunta, alguém sugeriu ao imperador que estabelecesse
uma ocupação total do tempo, com as horas, dias, meses, anos e as
tarefas a realizar. Se seguisse isso à letra, o imperador poderia
então vir a fazer cada coisa em seu devido tempo. Uma outra pessoa
retorquiu que era impossível prever tudo, que o imperador devia pôr
todas as distrações inúteis à parte e manter-se atento a todas as
coisas, para saber quando e como agir. Uma outra insistiu que o
imperador sozinho não podia possuir a clarividência e a competência
necessárias para decidir quando fazer algo. Parecia-lhe que o mais
importante era nomear um Conselho de Sábios e agir de acordo com as
suas recomendações. Uma outra pessoa disse que certas questões
necessitavam de uma decisão imediata e não podiam esperar por uma
consulta. Contudo, se o soberano desejasse conhecer com antecedência
o que ia acontecer, ser-lhe-ia possível interrogar os adivinhos e os
magos.
As
respostas à segunda pergunta também divergiram muito entre si.
Alguém disse que o imperador devia colocar toda a sua confiança nos
seus ministros; um outro recomendou que fosse aos padres e aos
monges; outros, ainda, aos médicos e mesmo aos militares.
À
terceira pergunta foram dadas respostas igualmente variadas. Alguns
afirmaram que a procura mais importante era a ciência, outros
insistiram que era a religião e outros, ainda, a arte da guerra. O
imperador não ficou satisfeito com nenhuma das repostas e não
atribuiu a ninguém a recompensa.
Depois
de várias noites de reflexão, o soberano decidiu visitar um eremita
que vivia na montanha e que era tido por ser iluminado. O imperador
desejava encontrar o santo homem para lhe fazer as três perguntas,
mas sabia muito bem que o eremita nunca deixava as montanhas e que
era conhecido por não receber senão pessoas pobres e por recusar
qualquer contato com ricos e poderosos. Por esta razão, o soberano
disfarçou-se como um pobre camponês e ordenou à sua escolta que
esperasse por ele aos pés da montanha, enquanto sozinho procurava o
eremita.
Ao
chegar à morada do homem santo, o imperador avistou-o a cavar o
jardim diante da sua cabana. Ao ver o estrangeiro, o eremita saudou-o
com a cabeça e continuou a cavar. Era um trabalho aparentemente
muito penoso para um velho: ele ofegava ruidosamente a cada vez que
enterrava a enxada no solo para revolver a terra. O imperador
aproximou-se dele e disse: “Vim pedir a vossa ajuda. São estas as
minhas perguntas”:
“Qual
é o melhor momento para qualquer coisa?”
“Quais são as
pessoas mais importantes em qualquer trabalho?” “Qual é a coisa
mais importante a fazer em qualquer momento?”
O
eremita escutou-o atentamente e retomou o trabalho depois de dar uma
pequena palmada no ombro do imperador. O monarca disse então:
“Deveis estar cansado. Deixai-me ajudar-vos”.
O
velho homem agradeceu-lhe, entregou-lhe a enxada e sentou-se no chão
para descansar. Depois de ter cavado duas fileiras, o imperador
parou, voltou-se para o eremita e repetiu-lhe as suas três
perguntas. De novo, o velho homem não respondeu, mas levantou- se e
disse-lhe, mostrando a enxada: “Porque não descansais um pouco? Eu
continuo”. Mas o imperador continuou a cavar a terra. Passaram uma
e outra hora. Por fim, o sol pôs-se atrás da montanha. O soberano
pousou a enxada e disse ao eremita: “Escutai-me, eu vim até aqui
para vos perguntar se sabeis responder às minhas três perguntas.
Mas se não souberdes, dizei-mo para eu regressar à minha casa”.
O
eremita levantou a cabeça e perguntou ao imperador: “Ouvis alguém
a correr na nossa direção?”. O imperador virou a cabeça e ambos
viram surgir do bosque um homem com uma longa barba branca. Corria
tropegamente, com as mãos a pressionar uma ferida no ventre, que
sangrava. O homem correu em direção ao soberano até cair sem
sentidos no chão. Gemia. Ao abrir a sua camisa, o imperador e o
eremita viram que ele tinha uma ferida profunda. O monarca limpou-a
totalmente e, a seguir, fez-lhe um curativo com a sua própria
camisa. Visto que o sangue corria abundantemente, teve de enxaguar e
enfaixar várias vezes a sua camisa até conseguir estancar o sangue
da ferida.
Finalmente,
o homem ferido retomou a consciência e pediu água. O imperador
correu até ao rio e trouxe consigo uma bilha de água fresca. Ao
longo de todo este tempo, o sol pusera-se e o frio da noite viera. O
eremita ajudou o imperador a levar o homem para a cabana, onde o
deitaram sobre a cama. Aí, ele fechou os olhos e adormeceu
sossegadamente. O soberano estava esgotado pela longa jornada que
fizera, por caminhar na montanha e cavar o jardim. Apoiando-se à
porta, adormeceu. Por um momento, esqueceu-se de onde estava e o que
ali tinha ido fazer. Quando acordou, olhou para a cama e viu o homem
ferido, que também se perguntava o que fazia ali naquela cabana.
Quando este viu o imperador, olhou-o atentamente nos olhos e disse
num murmúrio dificilmente perceptível: “Por favor, perdoai-me”.
“Mas
o que fizestes para merecerdes ser perdoado?”, perguntou o
soberano.
“Vossa
Majestade não me conhece, mas eu vos conheço. Eu fui vosso inimigo
e fiz o voto de me vingar por terdes morto o meu irmão na última
guerra e por terdes se apoderado de todos os meus bens. Quando soube
que vínheis sozinho a esta montanha para vos encontrardes com o
eremita, decidi montar-vos uma cilada e matar-vos. Esperei durante
muito tempo, mas vendo que não vínheis, deixei o meu esconderijo
para vos procurar. Foi assim que acabei por dar com os soldados da
vossa guarda que, ao reconhecerem-me, infligiram-me esta ferida.
Felizmente, consegui fugir e correr até aqui. Se não vos tivésseis
encontrado, teria, com certeza, morrido na hora. Eu tinha a intenção
de vos matar e vós salvastes-me a vida! Sinto uma enorme vergonha,
mas também um reconhecimento infinito. Se viver, faço o voto de vos
servir até ao meu derradeiro sopro e ordenarei aos meus filhos e aos
meus netos que sigam o meu exemplo. Suplico-vos, Majestade,
concedei-me o vosso perdão!”.
O
imperador encheu-se de alegria ao ver com que facilidade se havia
reconciliado com um antigo inimigo. Não apenas o perdoou, mas
prometeu também restituir-lhe todos os seus bens e enviar o seu
próprio médico e os seus servidores para se ocuparem dele até se
curar completamente. Após ter dado ordem à sua escolta de
reconduzir o homem a sua casa, o imperador regressou para se
encontrar com o eremita. Antes de regressar ao seu palácio, o
soberano desejava, por uma última vez, fazer as três perguntas ao
velho homem. Encontrou o eremita a semear os grãos nas fileiras
cavadas na véspera. O velho homem levantou-se e olhou-o: “Mas já
tendes a resposta a essas perguntas”.
“Como
assim?”, disse o imperador intrigado.
“Ontem, se não tivésseis
tido piedade da minha velhice e não me tivésseis ajudado a cavar a
terra, teríeis sido atacado por este homem quando regressásseis.
Teríeis então lamentado profundamente não terdes ficado comigo.
Por consequência, o momento mais importante foi o tempo passado a
cavar o jardim, a pessoa mais importante fui eu e a coisa mais
importante foi ajudares-me. Mais tarde, depois da chegada do homem
ferido, o momento mais importante foi aquele que passastes a tratar
da ferida, porque se o não tivésseis feito, ele teria morrido e vós
teríeis desperdiçado a ocasião de vos reconciliar com um inimigo.
Do mesmo modo, ele foi a pessoa mais importante, e cuidar da ferida
foi a tarefa mais importante. Lembrai-vos que não existe senão um
único momento importante, que é agora. Este instante presente é o
único momento sobre o qual podemos exercer o nosso magistério. A
pessoa mais importante é sempre a pessoa com a qual se está, aquela
que está diante de vós, porque quem sabe se vireis a estar ocupado
com uma outra no futuro? A tarefa mais importante é fazer feliz a
pessoa que está ao vosso lado, porque a procura da vida é apenas
isso”.
León Tolstói, in Os últimos dias de Tolstói
terça-feira, 30 de agosto de 2022
O que eu sei?
Sei
poucas coisas sei que ler
é
uma coreografia
que
concentrar-se é distrair-se
sei
que primeiro se ama um nome sei
que
o que se ama no amor é o nome do amor
sei
poucas coisas esqueço rápido as coisas
que
sei sei que esquecer é musical
sei
que o que aprendi do mar não foi o marque só a morte ensina o que
ela ensina
sei
que é um mundo de medo de vizinhança
de
sono de animais de medo
sei
que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se
porém
sei
que a desistência resiste
que
esperar é violento
sei
que a intimidade é o nome que se dá
a
uma infinita distância
sei
poucas coisas.
Ana Martins Marques, in O livro das dessemelhanças
O autor invisível
Certa
vez, quando se realizava um garden-party num dos castelos da
Inglaterra, compareceu um distinto ancião, muito bem-posto e apoiado
na sua bengala. E, para constrangimento de todos, olhava detidamente
na cara de cada um, como se se tratasse de um bicho ou de uma coisa.
E como alguém indagasse quem era, respondeu o anfitrião que se
tratava do romancista Sir Bulwer-Lytton, já completamente gagá e
que se considerava invisível.
Gagá?
Mas o que ele estava realizando era o ideal de todo verdadeiro
romancista: ser isento de quaisquer inibições, de respeitos de
qualquer ordem, e ver portanto imparcialmente o mundo. Não
embelezar, não reformar, não polemizar: — ver!
Mário Quintana, in Caderno H
Fazendo a barba
O
barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço.
Encostou a mão:
— Ele
está quente ainda...
— Que
hora que foi? — perguntou o rapazinho.
O
barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos
grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o
barbeiro olhou para ele.
— Que
hora que ele morreu? — o rapazinho tornou a perguntar.
— De
madrugada — disse o barbeiro; — ele morreu de madrugada.
Estendeu
a mão:
— O
pincel e o creme.
O
rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a
mesinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem
no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até
fazer espuma.
O
rapazinho era sempre rápido no serviço mas aquela hora sua rapidez
parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo
de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado
junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais
descontrolado ainda.
— Não
foi nada — disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça;
— isso acontece...
O
rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então
entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida. Antes de
começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz:
— Você
acharia melhor esperar lá fora? — perguntou, de um modo muito
educado.
— Não,
senhor.
— A
morte não é um espetáculo agradável para os jovens — disse. —
Aliás, para ninguém...
Começou
a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava
cerrada.
Através
da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um
terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava
pela janela aberta do quarto.
O
barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a
navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a
vasilhinha com o pincel.
O
barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de
afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia
assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo
diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que
ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre.
— É
tão esquisito — disse o rapazinho.
— Esquisito?
— o barbeiro parou de afiar. — A gente fazer a barba dele...
O
barbeiro olhou para o morto:
— O
que não é esquisito? — disse. — Ele, nós, a morte, a vida, o
que não é esquisito?
Começou
a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a
direita ia raspando.
— Deus
me ajude a morrer com a barba feita— disse o rapazinho, que já
tinha alguma barba. — Assim eles não têm de fazer ela depois de
eu morto. É tão esquisito...
O
barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o
rosto do morto — mas não tinha nada a ver com a observação do
rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho.
— Será
que ele está vendo a gente de algum lugar? — perguntou o
rapazinho.
Olhou
para o alto — o teto ainda de luz acesa —, como se a alma do
morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia
como se a alma estivesse por ali.
A
navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o
rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a
barba, ele agora parecia mais um morto.
— Por
que a gente morre? — perguntou. — Por que a gente tem de morrer?
O
barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha
e fechou-a, deixando-a na beirada da cama.
— Me
dá a outra toalha — pediu; — e molhe o paninho.
O
rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então
entregou ao barbeiro, junto com a toalha.
O
barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto.
Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no
ouvido.
— Por
que será que a gente não acostuma com a morte? — perguntou o
rapazinho. — A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não
morre? Então por que a gente não acostuma?
O
barbeiro fixou-o um segundo:
— É
— disse, e se voltou para o morto.
Começou
a fazer o bigode.
— Não
é esquisito? — perguntou o rapazinho. — Eu não entendo.
— Há
muita coisa que a gente não entende — disse o barbeiro.
Estendeu
a mão:
— A
tesourinha.
Na
casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em
quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase
acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na
rua, caminhando no ar fresco da manhã.
— O
pente — disse o barbeiro. — Pode ir guardando as coisas.
Quando
acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o
rosto do morto.
— A
tesourinha de novo — pediu.
O
rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha.
O
barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode.
Os dois ficaram olhando.
— A
morte é uma coisa muito estranha — disse o barbeiro.
Lá
fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais
um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola,
carros passando.
Os
dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um
boteco, o barbeiro parou:
— Vamos
tomar uma pinguinha?
O
rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não
sabia o que responder.
— Uma
pinguinha é bom para retemperar os nervos — disse o barbeiro,
olhando-o com um sorriso bondoso.
— Bem...
— disse o rapaz.
O
barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco.
Luiz Vilela, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
História real (Outubro de 2013)
A
primeira vez que eu fumei maconha foi no aterro do Flamengo, depois
de uma pelada. Éramos quatro pernas de pau do liceu francês.
Perdemos de muito a zero. Sentamos debaixo de uma árvore e o Marcio
apertou (mal) um baseado pra atenuar a derrota. “Tomamos um
esculacho.” O esculacho maior estava por vir. O beque mal apertado
ainda não tinha dado uma volta completa quando brotaram, do nada,
dois PMs trincados: “Cadê o flagrante?”. O flagrante, a essas
alturas, estava longe. Bruno tinha isolado o beque pro mato. O PM bom
disse que se a gente não achasse o tal flagrante eles levariam a
gente para Bangu 2, onde “bandidos comeriam o nosso cu”.
Argumentei, me sentindo Mel Gibson em Coração Valente, que, se eles
não achassem o flagrante, não haveria prisão, porque só pode
haver prisão com flagrante. E que nós éramos menores de idade e
não iríamos pra Bangu.
Mas
esta última frase eu não cheguei a dizer, porque o PM mau me deu um
soco no peito e eu fui parar no chão. Se eu fosse Mel Gibson, teria
revidado. Se eu fosse Mel Gibson, eu estava morto. A sorte é que eu
não sou Mel Gibson e a garganta apertou. Comecei a chorar. Bruno,
Marcio e Antonio, que tampouco eram Mel Gibson, começaram a procurar
o flagrante no chão, de quatro. Acharam. Pronto, não tinha mais o
que fazer. Ou melhor: tinha. Esvaziamos nossas carteiras, que,
juntas, deram dez reais. Naquela época, o ônibus custava noventa
centavos. Achamos dez reais, era uma fortuna. O PM mau não achou.
Marcio disse que morava ali perto.
Eles
ficaram com a nossa carteira de identidade, pra gente não sumir
(“Retenção de documentos não é crime?”, teria dito Mel
Gibson). A mãe do Marcio estava vendo TV na sala da casa dele.
Atravessamos cabisbaixos. “Boa noite, mãe.” Saímos do quarto
dele com uma mochila pesada, e dentro dela tudo o que o Marcio tinha
de mais valioso na vida: uma nota de cinquenta reais, um PlayStation
velho, meia dúzia de jogos de PlayStation, um videocassete, algumas
fitas de VHS, os controles do PlayStation. “A gente já volta,
mãe.” Deixamos a mochila na viatura, com muita dor e vergonha. No
dia seguinte, rachamos o prejuízo: uns duzentos reais pra cada um. E
uma raiva que eu iria levar pra vida.
Gregório Duvivier, in Put some farofa
Eu te amo, Albert
Louie
estava sentado no Red Peacock, de ressaca. Quando o garçom do balcão
lhe trouxe o drinque, disse:
– Só
conheço outra pessoa nesta cidade tão doida quanto você.
– É?
– disse Louie. – Isso é legal. É legal pra caralho.
– E
ela está aqui agora mesmo – continuou o garçom.
– É?
– disse Louie.
– É
aquela ali de vestido azul e belo corpo. Mas ninguém chega perto,
porque ela é doida.
Louie
pegou seu drinque, foi até lá e sentou-se no banquinho junto da
garota.
– Oi
– disse.
– Oi
– ela disse.
Depois
ficaram sentados lado a lado bastante tempo sem dizer mais uma
palavra um ao outro.
Myra
(era o nome dela) acabou estendendo o braço por trás do balcão e
puxou uma coqueteleira cheia. Ergueu-a acima da cabeça e fez como se
fosse atirá-la no espelho atrás do balcão. Louie pegou o braço
dela e disse:
– Não,
não, não, não, minha querida!
Depois
disso o garçom sugeriu que Myra fosse embora, e quando ela foi Louie
acompanhou-a.
Myra
e Louie pegaram três garrafas de uísque barato e entraram num
ônibus que ia para a casa dele, o Delsey Arms Apartments. Myra tirou
um dos sapatos (de saltos altos) e tentou assassinar o motorista do
ônibus. Louie conteve-a com um braço, segurando as três garrafas
de uísque com a outra. Saltaram do ônibus e foram a pé para a casa
dele.
Entraram
no elevador e Myra se pôs a apertar os botões. O elevador subiu,
desceu, subiu, parou, e ela não parava de perguntar:
– Onde
você mora?
E
Louie repetia:
– Quarto
andar, apartamento número quatro.
Myra
continuou apertando os botões, e o elevador subindo e descendo.
– Escuta
– ela disse por fim –, estamos nisso há anos. Desculpe, mas
preciso fazer xixi.
– Tudo
bem – disse Louie –, vamos fazer um acordo. Você deixa os botões
comigo e eu deixo você fazer xixi.
– Feito
– ela disse, e baixou a calcinha, agachou-se e praticou o ato.
Vendo
o fio escorrer no chão, Louie apertou o botão “4”. Chegaram. A
essa altura, Myra havia-se levantado, puxado a calcinha para cima, e
estava pronta para sair.
Entraram
no apartamento de Louie e começaram a abrir garrafas. Myra era
melhor nisso. Os dois sentaram-se um diante do outro com uns três ou
quatro metros de espaço. Louie sentou-se na poltrona junto à janela
e Myra no sofá. Myra tinha uma garrafa, Louie outra, e começaram.
Passaram-se
quinze ou vinte minutos, e então Myra notou algumas garrafas vazias
no chão perto do sofá. Começou a recolhê-las, entrecerrando os
olhos, e a jogá-las na cabeça de Louie. Errou todas. Algumas
passaram pela janela aberta atrás de Louie, outras bateram na parede
e quebraram-se, outras ricochetearam da parede, milagrosamente
intactas. Essas Myra recuperou e tornou a jogar nele. Em breve ficou
sem garrafas.
Louie
saltou de sua poltrona e saiu para o telhado além da janela. Saiu
catando as garrafas. Quando já tinha uma braçada delas, tornou a
passar pela janela e levou-as de volta a Myra, colocando-as aos pés
dela. Depois sentou-se, ergueu sua garrafa e continuou a beber. As
garrafas recomeçaram a vir em sua direção. Ele tomou outro
drinque, depois outro, e depois não se lembrou mais...
Pela
manhã, Myra acordou primeiro, saltou da cama, fez café e trouxe um
coffee royal para Louie.
– Vamos
– disse a ele. – Quero lhe apresentar meu amigo Albert. É uma
pessoa muito especial.
Louie
tomou o seu coffee royal, e os dois fizeram amor. Foi bom.
Louie tinha um grande calombo no olho esquerdo. Saltou da cama e
vestiu-se.
– Tudo
bem – disse –, vamos lá.
Desceram
pelo elevador, foram a pé até a Rua Alvarado e tomaram o ônibus
para o norte. Seguiram em silêncio por cinco minutos, e aí Myra
ergueu o braço e puxou a cordinha. Saltaram, andaram meia quadra e
entraram num velho prédio de apartamentos marrom. Subiram um lance
de escada, dobraram uma curva para o corredor, e Myra parou no Quarto
203. Ela bateu. Ouviram-se passos e a porta abriu-se.
– Oi,
Albert.
– Oi,
Myra.
– Albert,
quero lhe apresentar Louie. Louie, este é Albert.
Apertaram-se
as mãos.
Albert
tinha quatro mãos. Também tinha quatro braços para acompanhá-las.
Os dois braços de cima tinham mangas, e os de baixo saíam por
buracos abertos na camisa.
– Vão
entrando – disse Albert.
Numa
das mãos, segurava um drinque, um uísque com água. Em outra mão,
tinha um cigarro. Na terceira mão, trazia um jornal. A quarta,
aquela com a qual ele apertara a de Louie, não se ocupava com nada.
Myra foi à cozinha, pegou um copo, serviu uma dose para Louie da
garrafa que trazia na bolsa. Depois sentou-se e passou a beber direto
da garrafa.
– Que
está pensando? – ela perguntou.
– Às
vezes, a gente acha que atingiu o fundo do terror, desiste, e mesmo
assim não morre – disse Louie.
– Albert
estuprou a gorda – explicou Myra. – Devia ter visto ele com esses
braços todos em volta dela. Você era uma coisa, Albert. Albert
gemeu e pareceu deprimido.
– Albert
saiu do circo de tanto beber, saiu da porra do circo de tanto
estuprar e beber. Agora está no seguro-desemprego.
– De
alguma forma, nunca consegui me ajustar na sociedade. Não gosto da
humanidade. Não tenho o menor desejo de me ajustar, nenhum senso de
lealdade, nenhum objetivo de fato.
Albert
aproximou-se do telefone. Segurou o fone com uma mão, a Cartela de
Corrida Diária na segunda mão, um cigarro na terceira e um drinque
na quarta.
– Jack?
É. Aqui é Albert. Escuta, quero Crunchy Main, dois na cabeça no
primeiro. Me dê Blazing Lord, dois cruzados no quarto. Hammerhead
Justice, cinco no sétimo. E Noble Flake, cinco na cabeça e cinco
placê no nono.
Desligou.
– Meu
corpo me rói de um lado e meu espírito do outro.
– Como
vai indo nos cavalinhos, Albert? – perguntou Myra.
– Estou
quarenta paus na frente. Tenho um novo jogo. Bolei numa noite em que
não conseguia dormir. A coisa toda se abriu para mim como um livro.
Se eu melhorar mais, não vão aceitar meu jogo. Claro que eu podia
ir no hipódromo e fazer as apostas lá, mas...
– Mas
o quê, Albert?
– Ah,
pelo amor de deus...
– Que
quer dizer, Albert?
– QUERO
DIZER QUE AS PESSOAS FICAM OLHANDO! PELO AMOR DE DEUS, SERÁ QUE NÃO
ENTENDE?
– Sinto
muito, Albert.
– Não
sinta. Não quero sua piedade!
– Tudo
bem. Nada de piedade.
– Eu
devia lhe dar umas porradas por ser tão burra.
– Aposto
que você podia me bater pra valer mesmo, Albert. Com todas essas
mãos.
– Não
me tente – disse Albert.
Acabou
o seu drinque, afastou-se e preparou outro. Depois sentou-se. Louie
não tinha dito nada. Achava que devia dizer alguma coisa.
– Você
devia entrar no boxe, Albert. Essas duas mãos extras... você seria
um terror.
– Não
seja engraçadinho, babaca.
Myra
serviu outro drinque para Louie. Ficaram sentados calados. Então
Albert ergueu o olhar. Olhou para Myra.
– Está
fodendo com esse cara?
– Não,
não estou, Albert. Eu te amo, você sabe disso.
– Eu
não sei de nada.
– Você
sabe que eu te amo, Albert. – Ela levantou-se e sentou-se no colo
dele. – Você é tão sensível. Eu não tenho pena de você,
Albert, eu te amo.
Beijou-o.
– Também
te amo, boneca – disse Albert.
– Mais
do que a qualquer outra mulher?
– Mais
do que todas as outras mulheres!
Tornaram
a beijar-se. Um beijo terrivelmente longo. Quer dizer, terrivelmente
longo para Louie, que ficou ali sentado com seu drinque. Ele ergueu a
mão e tocou o enorme calombo acima de seu olho esquerdo. Depois as
tripas deram uma volta e ele foi ao banheiro e deu uma longa e
demorada cagada.
Quando
saiu, Myra e Albert estavam de pé no centro da sala, beijando-se.
Louie sentou-se e pegou a garrafa de Myra e ficou olhando. Enquanto
os dois braços de cima seguravam Myra num abraço, as duas de baixo
levantavam o vestido dela até a cintura e enfiavam-se dentro da
calcinha. Quando a calcinha desceu, Louie tomou outro gole da
garrafa, colocou-a no chão, levantou-se, foi até a porta e saiu.
De
novo no Red Peacock, Louie foi ao banquinho favorito e sentou-se. O
garçom do balcão aproximou-se.
– Bem,
Louie, como se saiu?
– Se
saiu?
– Com
a dona.
– Com
a dona?
– Vocês
saíram juntos, cara. Você comeu ela?
– Não,
na verdade, não...
– Que
foi que houve?
– Que
foi que houve?
– É,
que foi que houve?
– Me
dá um whiskey sour, Billy.
Billy
afastou-se e preparou o drinque. Trouxe-o para Louie. Nenhum dos dois
disse nada. Billy foi até a outra ponta do balcão e ficou lá
parado. Louie ergueu o drinque e bebeu metade dele. Estava bom. Ele
acendeu um cigarro e segurou-o numa mão. Segurava o drinque na
outra. O sol entrava pela porta da rua. Não havia nevoeiro do lado
de fora. Ia ser um belo dia. Ia ser um dia mais belo do que ontem.
Charles Bukowski, in Numa Fria