Uma história sutil

Beleza, a sua cozinha.
Obrigado, eu...
E você quem cozinha sempre ou...
Não, não. Tem uma senhora que vem arrumar o apartamento sempre e deixa um prato feito na geladeira. Sou cozinheiro de fim de semana. Marinheiro de... Como é mesmo que se diz?
O quê?
Doce.
Eu?
Água doce. Marinheiro de água doce. Você quer esperar na sala, enquanto eu...
Fico aqui com você. A menos que...
Não, pode ficar. Quem sabe a gente já abre o vinho e fica bebericando, enquanto eu...
Adoro bebericar. Uma beleza, o seu abridor.
Obrigado. Este vinho precisa respirar um pouco antes de ser servido. Pode parecer bobagem mas...
Não, não. Respirar é uma das coisas mais importantes que existem.
Ele precisa estar na temperatura ambiente.
Adoro a temperatura ambiente.
Você está disposta a experimentar o meu bobó?
O seu...
Bobó de camarão. Minha especialidade.
Ah, claro. Não foi para isso que você me convidou? Adoro bobó...
Você já comeu alguma vez?
Nunca. Mas adoro.
Olha o vinho.
Mmmmm.
Hein?
Eu disse “Mmmmm”... Epa!
Desculpe. Estou um pouco nervoso. Sabe como é, a responsabilidade. Você pode não gostar do meu...
Bobo.
Bobó.
Bobo é você. Vou adorar o seu bobó.
Será que o vinho vai manchar o seu vestido?
Não. Em todo o caso...
Quem sabe um pano com água quente? E só esquentar a água e...
Adoro tudo o que é quente. Uma beleza a sua chaleira.
Enquanto isto, vou preparando os ingredientes. Deixa ver. Pimen tinha...
Sim?
Não, eu disse “pimentinha”.
Não me diz que leva pimenta!
Leva. Você não gosta?
Adoro!
E da braba.
Ui! Você, hein? Com esse jeito tímido... Só de ouvir falar em pimenta, fiquei toda arrepiada. Passa a mão aqui...
É mesmo. Que estranho. Só de ouvir falar em pimenta...
Mal posso esperar o seu bobó.
Calma, calma.
Demora muito?
Se você me der uma mão... Na geladeira na parte de baixo, estão os camarões... Você vai ter que se abaixar um pouco e...
Beleza a sua geladeira. Foi você que assobiou?
Não, foi a minha chaleira. Mas..
Sim?
Eu concordo com ela. Mmmmm…

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

Quando for crescido quero ser como Rita

Esta Rita a quem quero parecer-me quando for crescido é Rita Levi-Montalcini, ganhadora do Prêmio Nobel de Medicina em 1984 pelas suas investigações sobre o desenvolvimento das células neurológicas. Ora, Prêmio Nobel é coisa que já tenho, logo não seria por ambição dessa grande ou pequena glória, as opiniões dos entendidos divergem, que estou disposto a deixar de ser quem tenho sido para tornar-me em Rita. De mais a mais estando eu numa idade em que qualquer mudança, mesmo quando prometedora, sempre se nos afigura um sacrifício das rotinas em que, mais ou menos, acabamos por nos acomodar.
E por que quero eu parecer-me a Rita? É simples. No ato do seu investimento como Doutora Honoris Causa na aula magna da Universidade Complutense, de Madrid, esta mulher, que em Abril completará cem anos, fez umas quantas declarações (pena que não tenhamos conseguido a transcrição completa do seu improvisado discurso) que me deixaram ora assombrado ora agradecido, posto que não é fácil imaginar juntos e unidos estes dois sentimentos extremos. Disse ela: “Nunca pensei em mim mesma. Viver ou morrer é a mesma coisa. Porque, naturalmente, a vida não está neste pequeno corpo. O importante é a maneira como vivemos e a mensagem que deixamos. Isso é o que nos sobrevive. Isso é a imortalidade”. E disse mais: “É ridícula a obsessão do envelhecimento. O meu cérebro é melhor agora do que foi quando eu era jovem. É verdade que vejo mal e oiço pior, mas a minha cabeça sempre funcionou bem. O fundamental é manter ativo o cérebro, tentar ajudar os outros e conservar a curiosidade pelo mundo”. E estas palavras que me fizeram sentir que havia encontrado uma alma gêmea: “Sou contra a reforma ou qualquer outro tipo de subsídio. Vivo sem isso. Em 2001 não cobrava nada e tive problemas econômicos até que o presidente Ciampi me nomeou senadora vitalícia”.
Nem toda a gente estará de acordo com este radicalismo. Mas aposto que muitos dos que me leem vão também querer ser como Rita quando crescerem. Que assim seja. Se o fizerem tenhamos a certeza de que o mundo mudará logo para melhor. Não é isso o que andamos a dizer que queremos? Rita é o caminho.
27 de outubro de 2008

José Saramago, in O caderno

– Vem, galano. Volta outra vez



Estás cansado, velho – disse. – Estás cansado de todo.
Os tubarões não voltaram a atacar antes do pôr do sol.
O velho viu as barbatanas castanhas avançando pelo largo rasto que o peixe devia deixar nas águas. Nem sequer vinham farejando. Vinham enfiados ao esquife, nadando lado a lado.
Prendeu a cana, amarrou a ponta da vela, e estendeu a mão para o cacete, debaixo da popa. Era um remo partido e serrado depois, com quase um metro. Só podia ser manejado eficazmente com uma das mãos, por causa do chanfro do punho, e segurou-o com a mão direita, bem fechada nele, ao ver chegar os tubarões. Ambos eram galanos.
Devo deixar o primeiro morder bem, e dar-lhe depois uma pancada na ponta do nariz ou mesmo no alto da cabeça”, pensou.
Os dois tubarões chegaram juntos, e, quando o mais próximo abriu a goela e enterrou as queixadas no flanco prateado do peixe, ele levantou o cacete ao alto e deixou-o cair pesadamente no cimo da larga cabeça do tubarão. No cair do cacete, sentiu a elástica solidez dela. Mas sentiu também a rigidez do osso, e tornou a bater com força, mas na ponta do nariz, quando o tubarão já se soltava do peixe.
O outro tubarão andara cá e lá, e aí vinha ele de goela escancarada. O velho bem via pedaços da carne do peixe a saltarem-lhe do canto da boca, ao atacar o peixe e fechar as queixadas. Voltou-se a ele e acertou-lhe na cabeça, e o tubarão fitou-o e arrancou a carne. O velho deu-lhe outra vez, já ele se afastava para engolir, e acertou apenas na elasticidade sólida e maciça.
Vem, galano. Volta outra vez.
O tubarão veio de carreira, e o velho acertou-lhe, fechava ele a boca. Acertou-lhe em cheio e de tão alto quanto podia levantar o cacete. Desta vez, sentiu o osso na base do crânio e tornou a dar-lhe no mesmo sítio, enquanto o tubarão molemente arrancava a carne e se sumia do peixe.
O velho ficou a ver se ele voltava, mas nenhum voltou.
Tempo depois, um deles apareceu à superfície, nadando em círculo. Não viu mais a barbatana do outro.
Não podia esperar matá-los, pensou. No meu tempo, sim. Mas magoei-os de verdade, e nenhum deles se deve sentir muito bem. Se tivesse um pau com duas pegas, matava de certeza o primeiro. Até agora”.
Para o peixe não queria olhar. Sabia que metade dele fora destruída. O sol desaparecera, enquanto durara a luta com os tubarões.
Não tarda que seja noite – disse. – Hei-de ver então o clarão de Havana. E, se estiver muito para leste, verei as luzes de uma das praias novas.
Já não posso estar muito ao largo. Espero que ninguém se tenha afligido. Claro que o rapaz se aflige. Mas estou certo de que terá confiado. Muitos pescadores mais velhos se afligirão. E muitos outros também. Vivo numa boa terra”.
Com o peixe não podia falar, porque o peixe estava todo estragado. Veio-lhe então uma ideia à cabeça.
Semipeixe! – exclamou. – α peixe que tu eras! Desculpa ter vindo tão para o largo. Dei cabo de nós ambos. Mas matamos muitos tubarões, tu e eu, e demos cabo de muitos outros. Quantos mataste tu, meu velho peixe? Não tens para nada essa lança na cabeça.
Gostou de pensar no peixe e no que este faria a um tubarão, se nadasse em liberdade. “Devia ter-lhe cortado a lança para lutar com ele”, pensou. Mas machado não havia, e agora nem sequer a faca.
Se tivesse, e amarrasse a lança ao remo... que arma! E é que havíamos então lutado juntos. Que farás, se eles voltam de noite? Que podes tu fazer?” Lutar – respondeu. – Lutar até morrer.
Na treva, porém, sem clarão fulgindo, nem luzes, só com o vento e o firme impulso da vela, sentiu-se como se já estivesse morto. Juntou as mãos para sentir as palmas. Não estavam mortas, e era capaz de sentir a dor da vida, apenas com abri-las e fechá-las. Encostou as costas à popa, e reconheceu que não estava morto. Os ombros lho disseram.
Tenho para rezar todas as orações que prometi, se apanhasse o peixe, pensou. Mas estou muito cansado para as rezar agora. É melhor pegar no saco e pô-lo pelos ombros”.
Deitado na popa, governava o barco e esperava que a claridade surgisse no céu. “Talvez eu tenha a sorte de chegar com a metade dianteira. Devia caber-me alguma sorte. Não. Violaste a sorte, quando saíste para o largo demais”!.
Não sejas tolo! – exclamou. – E não adormeças e governa. Ainda podes ter muita sorte.
Gostava de comprar alguma, se há sítio onde se venda”.
Com que havia de comprá-la? Perguntou a si próprio. Havia de comprá-la com um arpão perdido, uma faca partida e duas mãos desfeitas?”
E podias – disse. – Querias comprá-la com oitenta e quatro dias no mar. E quase te venderam.
Não devo pensar em tolices. A sorte é coisa que vem de muitas formas. Quem sabe reconhecê-la? No entanto, eu aceitava alguma em qualquer forma, e pagava o que me pedissem. Quem me dera ver o clarão das luzes. Quem me dera tanta coisa! Mas é isto o que eu quero agora”. Procurou instalar-se mais confortavelmente ao leme, e pela dor sabia que não estava morto.
Viu o reflexo das luzes da cidade, por volta do que seriam as dez horas da noite. Era perceptível apenas, a princípio, como a claridade no céu antes de a lua nascer. Depois, viu as luzes firmes no oceano que engrossava com o refrescar da brisa. Navegava dentro do clarão e pensou que não tardaria a passar a borda da corrente.
Agora, acabou-se. Se calhar, atacam-me outra vez. Mas que pode um homem contra eles, no escuro, sem armas?”
Sentia-se dormente, dorido, e as feridas e as partes mais esforçadas do corpo doíam-lhe com o frio da noite. “Espero não ter de lutar mais, pensou. Tanto espero não ter de lutar outra vez!”
Mas, por volta da meia-noite, lutou e dessa vez sabia que era inútil. Vieram em massa, e apenas via as linhas que as barbatanas abriam na água e a fosforescência deles ao atirarem-se ao peixe. Batia-lhes na cabeça, ouvia o estalo das queixadas, sentia o tremer do esquife quando eles mordiam por baixo. Batia-lhes desesperadamente no que apenas sentia e ouvia, e sentiu que alguém lhe agarrava no cacete, que se sumiu.
Arrancou a cana do leme, e bateu e feriu com ela, segurando-a com ambas as mãos, abatendo-a vezes seguidas.
Mas vinham pela proa, um após outro, juntos, arrancando pedaços de carne, que brilhavam dentro do mar quando eles se voltavam para um novo ataque.
Veio, por fim, um, que se atirou à cabeça, e o velho viu que tudo acabara. Acertou com a cana na cabeça do tubarão, cujas maxilas estavam presas na dureza da cabeça do peixe, que se não rasgava. Vibrou a pancada uma, duas, três vezes.
Ouvia a cana partir-se, e espicaçou o tubarão com a ponta estilhaçada. Sentiu-a penetrar e, ciente de que era aguçada, enterrou-a mais. O tubarão soltou-se e rolou para longe. Era o último tubarão do bando que aparecera. Nada mais havia de comer.
O velho mal podia respirar, e sentia na boca um sabor estranho, adocicado, metálico, e por instantes teve medo. Mas não durou muito.
Cuspiu para o oceano e disse: – Comam isso, galanos. E fiquem a julgar que mataram um homem.
Sabia-se irremediavelmente derrotado e voltou à popa e verificou que a ponta partida da cana encaixava no olhal do leme o suficiente para ele poder governar. Compôs o saco pelos ombros e repôs o esquife no rumo. Vogava ligeiro, e o velho não tinha pensamentos ou sentimentos nenhuns. Passara por tudo, e limitava-se a dirigir o barco para o porto, tão bem e tão inteligentemente quanto podia. Pela noite, tubarões atacaram a carcaça, como alguém pode apanhar migalhas da mesa. O velho não lhes prestou atenção e a nada prestava atenção senão ao leme. Apenas reparava em como o barco singrava bem, muito ligeiro, agora que não levava grande peso na borda.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

Terra

Atravesso os acontecimentos proporcionais à natureza até cair e descansar, devolvendo meu fôlego ao elemento do qual o inspiro diariamente e me estirando sobre a terra.
Terra da qual meu pai coletou a semente, minha mãe, o sangue, e minha ama, o leite. Ademais, a qual, durante tantos anos, supriu-me com comida e bebida e me sustenta quando piso sobre e me aproveito dela para tantos propósitos.

Marco Aurélio, in Meditações

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 4




Há um momento em que o pântano ganha vida. Eu gostaria que você visse, mas, de algum modo, sempre que caminhávamos juntos pelo campo, perdíamos esses preciosos e escassos momentos de revelação. Em vez disso, o céu tem ficado bastante nublado, da cor das pedras sob ele, ou a seca transforma a terra num lugar marrom, empoeirado e espinhoso, ou teve aquela vez em que nevou tanto que a porta da cozinha ficou presa por fora e eu precisei sair pela janela e, com uma pá, abrir caminho para a nossa liberdade, e, durante uma viagem em 1949, choveu sem parar, acho que por cinco dias ininterruptos. Você nunca viu o pântano logo depois da chuva, quando fica tudo púrpura e amarelo e cheira a solo negro e fértil.
Estava correta a dedução que você fez logo no começo da nossa amizade, de que eu havia nascido no norte da Inglaterra, apesar de todas as afetações e manias que adquiri ao longo de tantas vidas, e meu pai adotivo, Patrick August, nunca me deixou esquecer minhas raízes. Ele era o único capataz do patrimônio dos Hulne, e havia sido durante toda a sua vida. Assim como seu pai, e o pai dele, remontando a 1834, quando a recém-enriquecida família Hulne comprou a terra para dar forma a seu sonho de cidadãos da classe alta. Plantaram árvores, abriram estradas no pântano, construíram torres e arcos ridículos — construções extravagantes de donos extravagantes — que, na época do meu nascimento, já se encontravam tomados pelos musgos que evidenciavam sua decadência. Não era para eles o sórdido matagal que cercava a propriedade, com seus dentes de pedra e suas gengivas pegajosas de carne viva da terra. Mais vigorosas, as gerações anteriores da família criavam ovelhas, ou talvez seja mais justo dizer que as ovelhas se criavam sozinhas, nos prados que se estendiam até os muros de pedra, mas o século XX não foi generoso com a sorte dos Hulne, e o terreno, embora ainda de propriedade da família, encontra-se negligenciado, selvagem — o lugar perfeito para um garoto correr livre enquanto seus pais cumprem os afazeres. Curiosamente, ao viver minha infância novamente, fui bem menos intrépido. Meu conservador cérebro de idoso passou a considerar perigosos os buracos e penhascos que eu pulava e escalava durante a primeira vida, e usei meu corpo infantil como uma idosa talvez use um biquíni atrevido presenteado por uma amiga esguia.
Como o suicídio falhou espetacularmente na tarefa de terminar o ciclo dos meus dias, decidi dedicar a terceira vida à busca das respostas que pareciam tão distantes. Acredito que seja um pequeno ato de misericórdia o fato de que nossas memórias voltem aos poucos, conforme avançamos na infância; por isso, a lembrança de ter me atirado para a morte surgiu, por assim dizer, como um resfriado que chega aos poucos, sem causar surpresa, apenas a confirmação de que aquilo acontecera e de fato não servira para nada.
Se considerarmos a ignorância uma forma de inocência e a solidão uma forma de se distanciar das preocupações, minha primeira vida teve um tipo de felicidade, por mais que não tivesse um objetivo concreto. Mas, já sabendo de tudo o que havia vivido antes, eu não poderia viver aquela nova vida da mesma forma. Não só por já saber os eventos que estavam por vir, mas principalmente por causa da nova forma de perceber a realidade ao meu redor, e, tendo sido exposto a essa realidade na minha primeira vida, nunca cheguei a pensar na possibilidade de que fosse uma mentira. Outra vez um garoto e ao menos temporariamente em comando de todas as minhas faculdades como adulto, percebi a realidade que muitas vezes é encenada na frente de uma criança na crença de que ela não será capaz de compreendê-la. Acredito que meus pais adotivos me amaram — ela, muito antes dele —, mas, para Patrick August, eu nunca fui carne de sua carne até que minha mãe adotiva morresse.
Há um estudo médico sobre esse fenômeno, mas minha mãe adotiva nunca morre exatamente no mesmo dia em cada vida. A causa é sempre a mesma — a menos que fatores externos intervenham violentamente. Perto do meu aniversário de seis anos, ela começa a tossir, e, perto de eu completar sete, a tosse vem com sangue. Meus pais não podem pagar os honorários do médico, mas por fim minha tia Alexandra fornece a moeda para que a minha mãe vá ao hospital de Newcastle e volte com o diagnóstico de câncer de pulmão. (Acredito que sejam carcinomas de células não pequenas, confinadas primeiro ao pulmão esquerdo; frustrantemente tratável quarenta anos após esse diagnóstico, mas, na época, absolutamente fora do alcance da ciência.) O médico prescreve tabaco e láudano, mas a morte chega depressa em 1927. Após o falecimento, meu pai para de falar por completo e começa a fazer passeios pelas colinas, às vezes sumindo durante dias. Eu cuido de mim mesmo com total competência, e a partir de então, na expectativa da morte da minha mãe, estoco comida para me alimentar durante as longas ausências de meu pai. Quando volta, ele permanece calado e distante, e, embora não responda com raiva a nenhuma das abordagens do meu eu infantil, isso se dá, em suma, porque ele não responde a absolutamente nada. Durante a minha primeira vida, eu não entendia seu sofrimento nem sua forma de manifestá-lo, pois eu mesmo me via sofrendo com a mudez exacerbada própria de uma criança que precisava de ajuda, ajuda essa que não tive dele. Na segunda vida, a morte da minha mãe se deu quando eu ainda estava no hospício, e eu me via concentrado demais na minha própria loucura para processar o fato, mas na terceira vida tudo veio como um trem que se aproxima devagar de um homem amarrado aos trilhos; inevitável, irrefreável, visto de longe à noite, e, para mim, saber de antemão o que vai acontecer era pior do que o acontecimento em si. Eu sabia o que estava por vir, e, de certa forma, quando ela morreu, foi um alívio, o fim de uma expectativa e portanto, um evento menos traumático.
A morte iminente da minha mãe também me proporcionou uma espécie de ocupação durante a minha terceira vida. A prevenção, ou pelo menos o gerenciamento da situação, havia se tornado minha principal preocupação. Como não encontrava explicação para o que vivia, salvo, talvez, que um deus do Antigo Testamento tivesse me lançado uma maldição, eu acreditava que, ao realizar atos de caridade ou tentar afetar os grandes eventos da minha vida, talvez quebrasse esse ciclo de morte-nascimento-morte que parecia ter se abatido sobre mim. Pensando não ter cometido crimes que precisassem de redenção e sem eventos maiores por desfazer na vida, eu me apeguei ao bem-estar de Harriet como minha primeira e mais evidente cruzada, e nela embarquei com toda a sabedoria que a minha mente de uma criança de 5 anos (já chegando aos 97) seria capaz de reunir.
Usei a ajuda que servia como desculpa para evitar o tédio da escola, e meu pai estava preocupado demais para prestar atenção ao que eu fazia; assim, eu me dediquei a cuidar da minha mãe e descobri como nunca antes o modo como ela vivia quando meu pai não se encontrava por perto. Acho que se pode pensar nisso como uma chance de conhecer, com a mentalidade de um adulto, uma mulher que conheci apenas brevemente quando criança. E foi então que suspeitei pela primeira vez que Patrick não era meu pai verdadeiro.
Toda a família Hulne foi ao funeral da minha mãe adotiva, quando enfim ela morreu na minha terceira vida. Meu pai entoou um breve discurso, e eu fiquei ao lado dele, um menino de 7 anos usando calça e paletó pretos emprestados de Clement Hulne, o primo três anos mais velho que, na minha vida anterior, implicava comigo, quando lembrava que eu estava lá para sofrer com seus maus-tratos. Apoiada na bengala com cabo de marfim talhado no formato de uma cabeça de elefante, Constance Hulne disse algumas poucas palavras sobre a lealdade e a força de Harriet, além da família que ela deixava. Alexandra Hulne me disse que eu deveria ser forte; Victoria Hulne se curvou e beliscou minhas bochechas, provocando em mim um estranho impulso infantil de morder os dedos enluvados que haviam profanado meu rosto. Rory Hulne não disse nada e ficou me encarando. Ele havia feito isso antes, na primeira vez em que eu pegara roupas emprestadas para enterrar minha mãe, mas eu, tomado de uma tristeza inexprimível, não compreendera a intensidade daquele olhar. Dessa vez, nós nos encaramos, e pela primeira vez vi refletida a minha imagem, a imagem do que eu me tornaria.
Você não me conheceu em todos os estágios da vida, então me permita descrevê-los aqui.
Quando criança, eu nasço com o cabelo quase vermelho, tom que, com o tempo desvanece e os caridosos diriam que se torna castanho-avermelhado, mas que francamente parece mais a cor de uma cenoura. A cor vem da família da minha mãe verdadeira, assim como a propensão a ter bons dentes e à hipermetropia. Quando criança sou pequeno, um pouco mais baixo do que a média, e magro, embora isso se dê tanto pela má alimentação quanto pela predisposição genética. Meu estirão começa quando faço 11 anos e continua até os 15, quando, felizmente, posso fingir que sou um garoto de 18 anos que parece mais novo e, portanto, pular três anos entediantes e ir direto para a vida adulta.
Quando jovem, eu deixava a barba crescer desgrenhada, tal qual meu pai adotivo, Patrick; mas ela não me cai bem, e, quando a deixo descuidada, fico parecido com um conjunto de órgãos sensoriais perdido num arbusto de framboesa. Quando tomei consciência disso, comecei a fazer a barba com regularidade, revelando assim a face do meu pai verdadeiro. Temos os mesmos olhos acinzentados, as mesmas orelhas diminutas, o cabelo levemente ondulado e um nariz que, junto com a tendência a ter doenças ósseas quando idoso, provavelmente é a pior herança genética que ele me legou. Não que o nariz seja especialmente grande — não é; mas ele é tão inegavelmente arrebitado que se encaixaria bem no rosto do rei dos duendes, e em vez de ser delineado na minha face e traçar um ângulo com meu rosto, parece homogeneizado, fundido com a minha pele, como se fosse um apêndice moldado em argila, não em osso. As pessoas são educadas demais para comentar, mas vez ou outra, quando uma criança menos comedida e dona de um melhor material genético o vê, começa a chorar. Quando idoso, meu cabelo fica tão branco que parece um flash de fotografia; o estresse pode adiantar a descoloração, e nem a medicina nem a psicologia são capazes de preveni-la. Preciso de óculos para ler aos 51 anos; lamentavelmente chego a essa idade durante a década de 1970, época ruim para a moda, portanto, assim como quase todos que chegam a certa idade, eu recorro ao estilo com que me sentia mais à vontade quando jovem e escolho uma armação discreta e antiquada. Com eles na frente dos meus olhos, que são mais juntos do que o normal, eu me olho no espelho do banheiro e percebo que fico igual a um acadêmico idoso; era um rosto ao qual, no momento de enterrar Harriet pela terceira vez, eu já tivera quase cem anos para me familiarizar. É o rosto de Rory Edmond Hulne, encarando-me do outro lado do caixão da mulher que não poderia ser minha mãe verdadeira.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

As três perguntas

Certa vez, ocorreu a um imperador que, se soubesse responder apenas às seguintes perguntas, nada jamais o afastaria do caminho justo:
Qual é o melhor momento para qualquer coisa?
Quais são as pessoas mais importantes em qualquer trabalho?
Qual é a coisa mais importante a fazer em qualquer momento?

O imperador promulgou um decreto para todo o seu império, anunciando que quem soubesse responder às três perguntas receberia uma grande recompensa. Depois de ler este decreto, muitos se dirigiram ao palácio com as suas diferentes respostas.
Respondendo à primeira pergunta, alguém sugeriu ao imperador que estabelecesse uma ocupação total do tempo, com as horas, dias, meses, anos e as tarefas a realizar. Se seguisse isso à letra, o imperador poderia então vir a fazer cada coisa em seu devido tempo. Uma outra pessoa retorquiu que era impossível prever tudo, que o imperador devia pôr todas as distrações inúteis à parte e manter-se atento a todas as coisas, para saber quando e como agir. Uma outra insistiu que o imperador sozinho não podia possuir a clarividência e a competência necessárias para decidir quando fazer algo. Parecia-lhe que o mais importante era nomear um Conselho de Sábios e agir de acordo com as suas recomendações. Uma outra pessoa disse que certas questões necessitavam de uma decisão imediata e não podiam esperar por uma consulta. Contudo, se o soberano desejasse conhecer com antecedência o que ia acontecer, ser-lhe-ia possível interrogar os adivinhos e os magos.
As respostas à segunda pergunta também divergiram muito entre si. Alguém disse que o imperador devia colocar toda a sua confiança nos seus ministros; um outro recomendou que fosse aos padres e aos monges; outros, ainda, aos médicos e mesmo aos militares.
À terceira pergunta foram dadas respostas igualmente variadas. Alguns afirmaram que a procura mais importante era a ciência, outros insistiram que era a religião e outros, ainda, a arte da guerra. O imperador não ficou satisfeito com nenhuma das repostas e não atribuiu a ninguém a recompensa.
Depois de várias noites de reflexão, o soberano decidiu visitar um eremita que vivia na montanha e que era tido por ser iluminado. O imperador desejava encontrar o santo homem para lhe fazer as três perguntas, mas sabia muito bem que o eremita nunca deixava as montanhas e que era conhecido por não receber senão pessoas pobres e por recusar qualquer contato com ricos e poderosos. Por esta razão, o soberano disfarçou-se como um pobre camponês e ordenou à sua escolta que esperasse por ele aos pés da montanha, enquanto sozinho procurava o eremita.
Ao chegar à morada do homem santo, o imperador avistou-o a cavar o jardim diante da sua cabana. Ao ver o estrangeiro, o eremita saudou-o com a cabeça e continuou a cavar. Era um trabalho aparentemente muito penoso para um velho: ele ofegava ruidosamente a cada vez que enterrava a enxada no solo para revolver a terra. O imperador aproximou-se dele e disse: “Vim pedir a vossa ajuda. São estas as minhas perguntas”:
Qual é o melhor momento para qualquer coisa?”
“Quais são as pessoas mais importantes em qualquer trabalho?” “Qual é a coisa mais importante a fazer em qualquer momento?”
O eremita escutou-o atentamente e retomou o trabalho depois de dar uma pequena palmada no ombro do imperador. O monarca disse então: “Deveis estar cansado. Deixai-me ajudar-vos”.
O velho homem agradeceu-lhe, entregou-lhe a enxada e sentou-se no chão para descansar. Depois de ter cavado duas fileiras, o imperador parou, voltou-se para o eremita e repetiu-lhe as suas três perguntas. De novo, o velho homem não respondeu, mas levantou- se e disse-lhe, mostrando a enxada: “Porque não descansais um pouco? Eu continuo”. Mas o imperador continuou a cavar a terra. Passaram uma e outra hora. Por fim, o sol pôs-se atrás da montanha. O soberano pousou a enxada e disse ao eremita: “Escutai-me, eu vim até aqui para vos perguntar se sabeis responder às minhas três perguntas. Mas se não souberdes, dizei-mo para eu regressar à minha casa”.
O eremita levantou a cabeça e perguntou ao imperador: “Ouvis alguém a correr na nossa direção?”. O imperador virou a cabeça e ambos viram surgir do bosque um homem com uma longa barba branca. Corria tropegamente, com as mãos a pressionar uma ferida no ventre, que sangrava. O homem correu em direção ao soberano até cair sem sentidos no chão. Gemia. Ao abrir a sua camisa, o imperador e o eremita viram que ele tinha uma ferida profunda. O monarca limpou-a totalmente e, a seguir, fez-lhe um curativo com a sua própria camisa. Visto que o sangue corria abundantemente, teve de enxaguar e enfaixar várias vezes a sua camisa até conseguir estancar o sangue da ferida.
Finalmente, o homem ferido retomou a consciência e pediu água. O imperador correu até ao rio e trouxe consigo uma bilha de água fresca. Ao longo de todo este tempo, o sol pusera-se e o frio da noite viera. O eremita ajudou o imperador a levar o homem para a cabana, onde o deitaram sobre a cama. Aí, ele fechou os olhos e adormeceu sossegadamente. O soberano estava esgotado pela longa jornada que fizera, por caminhar na montanha e cavar o jardim. Apoiando-se à porta, adormeceu. Por um momento, esqueceu-se de onde estava e o que ali tinha ido fazer. Quando acordou, olhou para a cama e viu o homem ferido, que também se perguntava o que fazia ali naquela cabana. Quando este viu o imperador, olhou-o atentamente nos olhos e disse num murmúrio dificilmente perceptível: “Por favor, perdoai-me”.
Mas o que fizestes para merecerdes ser perdoado?”, perguntou o soberano.
Vossa Majestade não me conhece, mas eu vos conheço. Eu fui vosso inimigo e fiz o voto de me vingar por terdes morto o meu irmão na última guerra e por terdes se apoderado de todos os meus bens. Quando soube que vínheis sozinho a esta montanha para vos encontrardes com o eremita, decidi montar-vos uma cilada e matar-vos. Esperei durante muito tempo, mas vendo que não vínheis, deixei o meu esconderijo para vos procurar. Foi assim que acabei por dar com os soldados da vossa guarda que, ao reconhecerem-me, infligiram-me esta ferida. Felizmente, consegui fugir e correr até aqui. Se não vos tivésseis encontrado, teria, com certeza, morrido na hora. Eu tinha a intenção de vos matar e vós salvastes-me a vida! Sinto uma enorme vergonha, mas também um reconhecimento infinito. Se viver, faço o voto de vos servir até ao meu derradeiro sopro e ordenarei aos meus filhos e aos meus netos que sigam o meu exemplo. Suplico-vos, Majestade, concedei-me o vosso perdão!”.
O imperador encheu-se de alegria ao ver com que facilidade se havia reconciliado com um antigo inimigo. Não apenas o perdoou, mas prometeu também restituir-lhe todos os seus bens e enviar o seu próprio médico e os seus servidores para se ocuparem dele até se curar completamente. Após ter dado ordem à sua escolta de reconduzir o homem a sua casa, o imperador regressou para se encontrar com o eremita. Antes de regressar ao seu palácio, o soberano desejava, por uma última vez, fazer as três perguntas ao velho homem. Encontrou o eremita a semear os grãos nas fileiras cavadas na véspera. O velho homem levantou-se e olhou-o: “Mas já tendes a resposta a essas perguntas”.
Como assim?”, disse o imperador intrigado.
“Ontem, se não tivésseis tido piedade da minha velhice e não me tivésseis ajudado a cavar a terra, teríeis sido atacado por este homem quando regressásseis. Teríeis então lamentado profundamente não terdes ficado comigo. Por consequência, o momento mais importante foi o tempo passado a cavar o jardim, a pessoa mais importante fui eu e a coisa mais importante foi ajudares-me. Mais tarde, depois da chegada do homem ferido, o momento mais importante foi aquele que passastes a tratar da ferida, porque se o não tivésseis feito, ele teria morrido e vós teríeis desperdiçado a ocasião de vos reconciliar com um inimigo. Do mesmo modo, ele foi a pessoa mais importante, e cuidar da ferida foi a tarefa mais importante. Lembrai-vos que não existe senão um único momento importante, que é agora. Este instante presente é o único momento sobre o qual podemos exercer o nosso magistério. A pessoa mais importante é sempre a pessoa com a qual se está, aquela que está diante de vós, porque quem sabe se vireis a estar ocupado com uma outra no futuro? A tarefa mais importante é fazer feliz a pessoa que está ao vosso lado, porque a procura da vida é apenas isso”.

León Tolstói, in Os últimos dias de Tolstói

O que eu sei?

Sei poucas coisas sei que ler
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido as coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o marque só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo de vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas.

Ana Martins Marques, in O livro das dessemelhanças

O autor invisível

Certa vez, quando se realizava um garden-party num dos castelos da Inglaterra, compareceu um distinto ancião, muito bem-posto e apoiado na sua bengala. E, para constrangimento de todos, olhava detidamente na cara de cada um, como se se tratasse de um bicho ou de uma coisa. E como alguém indagasse quem era, respondeu o anfitrião que se tratava do romancista Sir Bulwer-Lytton, já completamente gagá e que se considerava invisível.
Gagá? Mas o que ele estava realizando era o ideal de todo verdadeiro romancista: ser isento de quaisquer inibições, de respeitos de qualquer ordem, e ver portanto imparcialmente o mundo. Não embelezar, não reformar, não polemizar: — ver!

Mário Quintana, in Caderno H

Fazendo a barba

O barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão:
Ele está quente ainda...
Que hora que foi? — perguntou o rapazinho.
O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele.
Que hora que ele morreu? — o rapazinho tornou a perguntar.
De madrugada — disse o barbeiro; — ele morreu de madrugada.
Estendeu a mão:
O pincel e o creme.
O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mesinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma.
O rapazinho era sempre rápido no serviço mas aquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda.
Não foi nada — disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça; — isso acontece...
O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida. Antes de começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz:
Você acharia melhor esperar lá fora? — perguntou, de um modo muito educado.
Não, senhor.
A morte não é um espetáculo agradável para os jovens — disse. — Aliás, para ninguém...
Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada.
Através da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto.
O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a vasilhinha com o pincel.
O barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre.
É tão esquisito — disse o rapazinho.
Esquisito? — o barbeiro parou de afiar. — A gente fazer a barba dele...
O barbeiro olhou para o morto:
O que não é esquisito? — disse. — Ele, nós, a morte, a vida, o que não é esquisito?
Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a direita ia raspando.
Deus me ajude a morrer com a barba feita— disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. — Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. É tão esquisito...
O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto — mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho.
Será que ele está vendo a gente de algum lugar? — perguntou o rapazinho.
Olhou para o alto — o teto ainda de luz acesa —, como se a alma do morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia como se a alma estivesse por ali.
A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais um morto.
Por que a gente morre? — perguntou. — Por que a gente tem de morrer?
O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando-a na beirada da cama.
Me dá a outra toalha — pediu; — e molhe o paninho.
O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então entregou ao barbeiro, junto com a toalha.
O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido.
Por que será que a gente não acostuma com a morte? — perguntou o rapazinho. — A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma?
O barbeiro fixou-o um segundo:
É — disse, e se voltou para o morto.
Começou a fazer o bigode.
Não é esquisito? — perguntou o rapazinho. — Eu não entendo.
Há muita coisa que a gente não entende — disse o barbeiro.
Estendeu a mão:
A tesourinha.
Na casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã.
O pente — disse o barbeiro. — Pode ir guardando as coisas.
Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto.
A tesourinha de novo — pediu.
O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha.
O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode. Os dois ficaram olhando.
A morte é uma coisa muito estranha — disse o barbeiro.
Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando.
Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou:
Vamos tomar uma pinguinha?
O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não sabia o que responder.
Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos — disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso.
Bem... — disse o rapaz.
O barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco.

Luiz Vilela, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

História real (Outubro de 2013)

A primeira vez que eu fumei maconha foi no aterro do Flamengo, depois de uma pelada. Éramos quatro pernas de pau do liceu francês. Perdemos de muito a zero. Sentamos debaixo de uma árvore e o Marcio apertou (mal) um baseado pra atenuar a derrota. “Tomamos um esculacho.” O esculacho maior estava por vir. O beque mal apertado ainda não tinha dado uma volta completa quando brotaram, do nada, dois PMs trincados: “Cadê o flagrante?”. O flagrante, a essas alturas, estava longe. Bruno tinha isolado o beque pro mato. O PM bom disse que se a gente não achasse o tal flagrante eles levariam a gente para Bangu 2, onde “bandidos comeriam o nosso cu”. Argumentei, me sentindo Mel Gibson em Coração Valente, que, se eles não achassem o flagrante, não haveria prisão, porque só pode haver prisão com flagrante. E que nós éramos menores de idade e não iríamos pra Bangu.
Mas esta última frase eu não cheguei a dizer, porque o PM mau me deu um soco no peito e eu fui parar no chão. Se eu fosse Mel Gibson, teria revidado. Se eu fosse Mel Gibson, eu estava morto. A sorte é que eu não sou Mel Gibson e a garganta apertou. Comecei a chorar. Bruno, Marcio e Antonio, que tampouco eram Mel Gibson, começaram a procurar o flagrante no chão, de quatro. Acharam. Pronto, não tinha mais o que fazer. Ou melhor: tinha. Esvaziamos nossas carteiras, que, juntas, deram dez reais. Naquela época, o ônibus custava noventa centavos. Achamos dez reais, era uma fortuna. O PM mau não achou. Marcio disse que morava ali perto.
Eles ficaram com a nossa carteira de identidade, pra gente não sumir (“Retenção de documentos não é crime?”, teria dito Mel Gibson). A mãe do Marcio estava vendo TV na sala da casa dele. Atravessamos cabisbaixos. “Boa noite, mãe.” Saímos do quarto dele com uma mochila pesada, e dentro dela tudo o que o Marcio tinha de mais valioso na vida: uma nota de cinquenta reais, um PlayStation velho, meia dúzia de jogos de PlayStation, um videocassete, algumas fitas de VHS, os controles do PlayStation. “A gente já volta, mãe.” Deixamos a mochila na viatura, com muita dor e vergonha. No dia seguinte, rachamos o prejuízo: uns duzentos reais pra cada um. E uma raiva que eu iria levar pra vida.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

Eu te amo, Albert

Louie estava sentado no Red Peacock, de ressaca. Quando o garçom do balcão lhe trouxe o drinque, disse:
Só conheço outra pessoa nesta cidade tão doida quanto você.
É? – disse Louie. – Isso é legal. É legal pra caralho.
E ela está aqui agora mesmo – continuou o garçom.
É? – disse Louie.
É aquela ali de vestido azul e belo corpo. Mas ninguém chega perto, porque ela é doida.
Louie pegou seu drinque, foi até lá e sentou-se no banquinho junto da garota.
Oi – disse.
Oi – ela disse.
Depois ficaram sentados lado a lado bastante tempo sem dizer mais uma palavra um ao outro.
Myra (era o nome dela) acabou estendendo o braço por trás do balcão e puxou uma coqueteleira cheia. Ergueu-a acima da cabeça e fez como se fosse atirá-la no espelho atrás do balcão. Louie pegou o braço dela e disse:
Não, não, não, não, minha querida!
Depois disso o garçom sugeriu que Myra fosse embora, e quando ela foi Louie acompanhou-a.
Myra e Louie pegaram três garrafas de uísque barato e entraram num ônibus que ia para a casa dele, o Delsey Arms Apartments. Myra tirou um dos sapatos (de saltos altos) e tentou assassinar o motorista do ônibus. Louie conteve-a com um braço, segurando as três garrafas de uísque com a outra. Saltaram do ônibus e foram a pé para a casa dele.
Entraram no elevador e Myra se pôs a apertar os botões. O elevador subiu, desceu, subiu, parou, e ela não parava de perguntar:
Onde você mora?
E Louie repetia:
Quarto andar, apartamento número quatro.
Myra continuou apertando os botões, e o elevador subindo e descendo.
Escuta – ela disse por fim –, estamos nisso há anos. Desculpe, mas preciso fazer xixi.
Tudo bem – disse Louie –, vamos fazer um acordo. Você deixa os botões comigo e eu deixo você fazer xixi.
Feito – ela disse, e baixou a calcinha, agachou-se e praticou o ato.
Vendo o fio escorrer no chão, Louie apertou o botão “4”. Chegaram. A essa altura, Myra havia-se levantado, puxado a calcinha para cima, e estava pronta para sair.
Entraram no apartamento de Louie e começaram a abrir garrafas. Myra era melhor nisso. Os dois sentaram-se um diante do outro com uns três ou quatro metros de espaço. Louie sentou-se na poltrona junto à janela e Myra no sofá. Myra tinha uma garrafa, Louie outra, e começaram.
Passaram-se quinze ou vinte minutos, e então Myra notou algumas garrafas vazias no chão perto do sofá. Começou a recolhê-las, entrecerrando os olhos, e a jogá-las na cabeça de Louie. Errou todas. Algumas passaram pela janela aberta atrás de Louie, outras bateram na parede e quebraram-se, outras ricochetearam da parede, milagrosamente intactas. Essas Myra recuperou e tornou a jogar nele. Em breve ficou sem garrafas.
Louie saltou de sua poltrona e saiu para o telhado além da janela. Saiu catando as garrafas. Quando já tinha uma braçada delas, tornou a passar pela janela e levou-as de volta a Myra, colocando-as aos pés dela. Depois sentou-se, ergueu sua garrafa e continuou a beber. As garrafas recomeçaram a vir em sua direção. Ele tomou outro drinque, depois outro, e depois não se lembrou mais...

Pela manhã, Myra acordou primeiro, saltou da cama, fez café e trouxe um coffee royal para Louie.
Vamos – disse a ele. – Quero lhe apresentar meu amigo Albert. É uma pessoa muito especial.
Louie tomou o seu coffee royal, e os dois fizeram amor. Foi bom. Louie tinha um grande calombo no olho esquerdo. Saltou da cama e vestiu-se.
Tudo bem – disse –, vamos lá.
Desceram pelo elevador, foram a pé até a Rua Alvarado e tomaram o ônibus para o norte. Seguiram em silêncio por cinco minutos, e aí Myra ergueu o braço e puxou a cordinha. Saltaram, andaram meia quadra e entraram num velho prédio de apartamentos marrom. Subiram um lance de escada, dobraram uma curva para o corredor, e Myra parou no Quarto 203. Ela bateu. Ouviram-se passos e a porta abriu-se.
Oi, Albert.
Oi, Myra.
Albert, quero lhe apresentar Louie. Louie, este é Albert.
Apertaram-se as mãos.
Albert tinha quatro mãos. Também tinha quatro braços para acompanhá-las. Os dois braços de cima tinham mangas, e os de baixo saíam por buracos abertos na camisa.
Vão entrando – disse Albert.
Numa das mãos, segurava um drinque, um uísque com água. Em outra mão, tinha um cigarro. Na terceira mão, trazia um jornal. A quarta, aquela com a qual ele apertara a de Louie, não se ocupava com nada. Myra foi à cozinha, pegou um copo, serviu uma dose para Louie da garrafa que trazia na bolsa. Depois sentou-se e passou a beber direto da garrafa.
Que está pensando? – ela perguntou.
Às vezes, a gente acha que atingiu o fundo do terror, desiste, e mesmo assim não morre – disse Louie.
Albert estuprou a gorda – explicou Myra. – Devia ter visto ele com esses braços todos em volta dela. Você era uma coisa, Albert. Albert gemeu e pareceu deprimido.
Albert saiu do circo de tanto beber, saiu da porra do circo de tanto estuprar e beber. Agora está no seguro-desemprego.
De alguma forma, nunca consegui me ajustar na sociedade. Não gosto da humanidade. Não tenho o menor desejo de me ajustar, nenhum senso de lealdade, nenhum objetivo de fato.
Albert aproximou-se do telefone. Segurou o fone com uma mão, a Cartela de Corrida Diária na segunda mão, um cigarro na terceira e um drinque na quarta.
Jack? É. Aqui é Albert. Escuta, quero Crunchy Main, dois na cabeça no primeiro. Me dê Blazing Lord, dois cruzados no quarto. Hammerhead Justice, cinco no sétimo. E Noble Flake, cinco na cabeça e cinco placê no nono.
Desligou.
Meu corpo me rói de um lado e meu espírito do outro.
Como vai indo nos cavalinhos, Albert? – perguntou Myra.
Estou quarenta paus na frente. Tenho um novo jogo. Bolei numa noite em que não conseguia dormir. A coisa toda se abriu para mim como um livro. Se eu melhorar mais, não vão aceitar meu jogo. Claro que eu podia ir no hipódromo e fazer as apostas lá, mas...
Mas o quê, Albert?
Ah, pelo amor de deus...
Que quer dizer, Albert?
QUERO DIZER QUE AS PESSOAS FICAM OLHANDO! PELO AMOR DE DEUS, SERÁ QUE NÃO ENTENDE?
Sinto muito, Albert.
Não sinta. Não quero sua piedade!
Tudo bem. Nada de piedade.
Eu devia lhe dar umas porradas por ser tão burra.
Aposto que você podia me bater pra valer mesmo, Albert. Com todas essas mãos.
Não me tente – disse Albert.
Acabou o seu drinque, afastou-se e preparou outro. Depois sentou-se. Louie não tinha dito nada. Achava que devia dizer alguma coisa.
Você devia entrar no boxe, Albert. Essas duas mãos extras... você seria um terror.
Não seja engraçadinho, babaca.
Myra serviu outro drinque para Louie. Ficaram sentados calados. Então Albert ergueu o olhar. Olhou para Myra.
Está fodendo com esse cara?
Não, não estou, Albert. Eu te amo, você sabe disso.
Eu não sei de nada.
Você sabe que eu te amo, Albert. – Ela levantou-se e sentou-se no colo dele. – Você é tão sensível. Eu não tenho pena de você, Albert, eu te amo.
Beijou-o.
Também te amo, boneca – disse Albert.
Mais do que a qualquer outra mulher?
Mais do que todas as outras mulheres!
Tornaram a beijar-se. Um beijo terrivelmente longo. Quer dizer, terrivelmente longo para Louie, que ficou ali sentado com seu drinque. Ele ergueu a mão e tocou o enorme calombo acima de seu olho esquerdo. Depois as tripas deram uma volta e ele foi ao banheiro e deu uma longa e demorada cagada.
Quando saiu, Myra e Albert estavam de pé no centro da sala, beijando-se. Louie sentou-se e pegou a garrafa de Myra e ficou olhando. Enquanto os dois braços de cima seguravam Myra num abraço, as duas de baixo levantavam o vestido dela até a cintura e enfiavam-se dentro da calcinha. Quando a calcinha desceu, Louie tomou outro gole da garrafa, colocou-a no chão, levantou-se, foi até a porta e saiu.

De novo no Red Peacock, Louie foi ao banquinho favorito e sentou-se. O garçom do balcão aproximou-se.
Bem, Louie, como se saiu?
Se saiu?
Com a dona.
Com a dona?
Vocês saíram juntos, cara. Você comeu ela?
Não, na verdade, não...
Que foi que houve?
Que foi que houve?
É, que foi que houve?
Me dá um whiskey sour, Billy.
Billy afastou-se e preparou o drinque. Trouxe-o para Louie. Nenhum dos dois disse nada. Billy foi até a outra ponta do balcão e ficou lá parado. Louie ergueu o drinque e bebeu metade dele. Estava bom. Ele acendeu um cigarro e segurou-o numa mão. Segurava o drinque na outra. O sol entrava pela porta da rua. Não havia nevoeiro do lado de fora. Ia ser um belo dia. Ia ser um dia mais belo do que ontem.

Charles Bukowski, in Numa Fria