Aos que vierem depois de nós

I
Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

II
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

III
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais frequentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

Bertolt Brecht (Tradução Manuel Bandeira)

A flor e o espinho | Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha, 1957

Sucesso no disco Elizeth sobe o morro, de 1965, o samba “A flor e o espinho” tinha sido gravado (e ignorado pelo público) oito anos antes pelo hoje esquecido cantor Raul Moreno. Na voz de Elizeth Cardoso se tornou um dos maiores clássicos do gênero, com a marca registrada da dupla Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, que, nesta música, contou com o auxílio luxuoso de Alcides Caminha.
Foi nesse tempo que, já cinquentão, Nelson Cavaquinho começou a sair das sombras e a ser reconhecido. Não só pelos sambas que vinha compondo desde a década de 1930, mas também como cantor de voz rouca e violonista originalíssimo. Uma das atrações do Zicartola, o misto de restaurante e casa de samba que o casal Dona Zica e Cartola manteve entre 1963 e 1965 no Centro do Rio, Nelson também foi gravado com sucesso por Nara Leão, Elis Regina e Beth Carvalho, que se tornou a sua grande intérprete.
Apesar do sobrenome artístico, Nelson Antônio da Silva (1911-1986) trocou o cavaquinho pelo violão na juventude. Autodidata, desenvolveu um estilo inusitado e rústico, usando apenas o polegar e o indicador para tocar com vigor nas cordas do instrumento.
É difícil imaginar que esse arquétipo do sambista boêmio e bom de copo, vagando de bar em bar com seu violão, tenha sido soldado da Polícia Militar. Mas, nos anos 1930, após servir o Exército, ele se dividiu um bom tempo entre a PM e o samba, atuando na região do Morro da Mangueira, onde ficou amigo de Cartola, Carlos Cachaça e outros bambas, chamando a atenção de Noel Rosa. Acabou largando a farda, mas passou as décadas de 1940 e 1950 vivendo de bicos, muitas vezes vendendo seus sambas para “comprositores” ou cantores, prática comum na época.
Nelson teve duas dezenas de parceiros, mas o encontro com Guilherme de Brito (1922-2006), no início dos anos 1950, foi fundamental. Também o letrista de Nelson em clássicos como “Folhas secas”, “Quando eu me chamar saudade” e “Pranto de poeta”, num fim de noite na Praça Tiradentes, após uma festa, Guilherme teve a ideia para os versos de abertura de “A flor e o espinho”, que se tornaram clássicos na música brasileira:
Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor.”
No dia seguinte, mostrou para Nelson a letra amargurada, que foi completada por Alcides Caminha (1921-1992), um funcionário do Ministério do Trabalho que manteve por três décadas uma vida secreta como autor de quadrinhos eróticos e se celebrizou como Carlos Zéfiro.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Escrever

 “Não tenho por que não repetir, nesta carta, que a afirmação segundo a qual a preocupação com o momento estético da linguagem não pode afligir ao cientista, mas ao artista, é falsa. Escrever bonito é dever de quem escreve, sem importar o quê e sobre o quê.”

Paulo Freire, in Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis

O tintureiro mascarado Hákim de Merv

para Angélica Ocampo

Se não me engano, as fontes originais de informação acerca de Al Moqanna, o Profeta Velado (ou, mais estritamente, Mascarado) do Jorasán, reduzem-se a quatro: a) os excertos da História dos califas conservados por Baladhuri; b) o Manual do gigante ou Livro da precisão e da revisão, do historiador oficial dos abássidas, Ibn abi Tair Tarfur; c) o códice árabe intitulado A aniquilação da rosa, no qual se refutam as heresias abomináveis da Rosa escura ou Rosa escondida, que era o livro canônico do Profeta; d) moedas sem efígie desenterradas pelo engenheiro Andrusov numa demolição da Estrada de Ferro Transcaspiana. Essas moedas foram depositadas no Gabinete Numismático de Teerã e contêm dísticos persas que resumem ou corrigem passagens da Aniquilação. A Rosa original se perdeu, já que o manuscrito encontrado em 1899, publicado não sem leviandade pelo Morgenländisches Archiv, foi declarado apócrifo por Horn e depois por Sir Percy Sykes.
A fama ocidental do Profeta deve-se a um palavroso poema de Moore, carregado de suspiros e saudades de conspirador irlandês.

A PÚRPURA ESCARLATE

Aos 120 anos da Hégira e 736 da Cruz, o homem Hákim, que os homens daquele tempo e daquele espaço apelidariam logo de O Velado, nasceu no Turquestão. Sua pátria foi a antiga cidade de Merv, cujos jardins e vinhedos e campinas olham tristemente para o deserto. O meio-dia é branco e deslumbrante, quando não obscurecido pelas nuvens de pó que sufocam os homens e deixam uma lâmina esbranquiçada nos cachos negros.
Hákim foi criado nessa cidade cansada. Sabemos que um irmão de seu pai o adestrou no ofício de tintureiro: arte de ímpios, de falsários e de inconstantes que inspirou os primeiros anátemas de sua pródiga carreira.

Meu rosto é de ouro”, declara numa página da Aniquilação, “mas macerei a púrpura e mergulhei na segunda noite a lã não cardada e embebi na terceira noite a lã preparada, e os imperadores das ilhas disputam entre si ainda aquela roupa sangrenta. Assim pequei nos anos de juventude e transtornei as verdadeiras cores das criaturas. O Anjo dizia-me que os carneiros não eram da cor dos tigres; Satã dizia-me que o Poderoso queria que o fossem e se valia de minha astúcia e minha púrpura. Agora sei que o Anjo e Satã se desviavam da verdade e que toda cor é abominável.”

No ano 146 da Hégira, Hákim desapareceu de sua pátria. Encontraram destruídas as caldeiras e cubas de imersão, assim como um alfanje de Chiraz e um espelho de bronze.

O TOURO

No fim da lua de xabã do ano de 158, o ar do deserto estava muito claro e os homens olhavam para o poente em busca da lua de ramadã, que promove a mortificação e o jejum. Eram escravos, esmoleres, negociantes de cavalos, ladrões de camelos e magarefes. Gravemente sentados na terra, junto do portão de uma pousada de caravanas da rota de Merv, aguardavam o sinal. Olhavam para o ocaso, e a cor do ocaso era a da areia.
Do fundo do deserto vertiginoso (cujo sol dá febre, assim como a lua, o estupor) viram se adiantar três figuras, que lhes pareceram altíssimas. As três eram humanas e a do meio tinha cabeça de touro. Quando se aproximaram, viram que esta usava uma máscara e que os outros dois eram cegos.
Alguém (como nos contos d’As mil e uma noites) indagou a razão daquela maravilha. “São cegos”, o homem da máscara declarou, “porque viram meu rosto.”

O LEOPARDO

O cronista dos abássidas relata que o homem do deserto (cuja voz era singularmente doce, ou assim pareceu por diferir da brutalidade de sua máscara) lhes disse que eles aguardavam o sinal de um mês de penitência, mas que ele pregava um sinal melhor: o de toda uma vida de penitência e de uma morte infamante. Disse-lhes que era Hákim filho de Osman, e que, no ano 146 da Hégira, entrara um homem em sua casa e, após se purificar e rezar, tinha lhe cortado a cabeça com um alfanje e levara-a para o céu. Sobre a mão direita do homem (que era o anjo Gabriel) sua cabeça estivera perante o Senhor, que lhe deu a missão de profetizar e inculcou nele palavras tão antigas que sua repetição queimava as bocas e lhe infundiu um glorioso resplendor que os olhos mortais não toleravam. Tal era a justificação da Máscara. Quando todos os homens da Terra professassem a nova lei, o Rosto seria descoberto e eles poderiam adorá-lo sem risco — como já os anjos o adoravam. Proclamada sua mensagem, Hákim exortou-os a uma guerra santa — um jihad — e a seu conveniente martírio.
Os escravos, esmoleres, negociantes de cavalos, ladrões de camelos e magarefes negaram-lhe sua fé: uma voz gritou bruxo, e outra, impostor.
Alguém havia trazido um leopardo — talvez um exemplar daquela raça esbelta e sangrenta que os monteiros persas educam. A verdade é que rompeu sua prisão. Excetuando-se o profeta mascarado e os dois acólitos, o povo se atropelou para fugir. Quando voltou, a fera tinha ficado cega. Diante dos olhos luminosos e mortos, os homens adoraram Hákim e admitiram sua virtude sobrenatural.

O PROFETA VELADO

O historiador oficial dos abássidas narra sem maior entusiasmo os progressos de Hákim, o Velado, no Kurassan. Essa província — muito comovida pela desventura e pela crucificação de seu mais famoso caudilho — abraçou com desesperado fervor a doutrina do Rosto Resplandecente, e tributou-lhe seu sangue e seu ouro. (Hákim, naquele momento, descartou sua efígie brutal por um quádruplo véu de seda branca recamado de pedras. A cor emblemática dos Banu Abbas era o preto; Hákim escolheu a cor branca — a mais contraditória — para o Véu Resguardador, os pendões e os turbantes.) A campanha começou bem. É verdade que no Livro da precisão as bandeiras do califa são vitoriosas em todo lugar, mas, como o resultado mais frequente dessas vitórias é a destituição de generais e o abandono de castelos inexpugnáveis, o avisado leitor sabe a que se ater. No final da lua de rejeb do ano de 161, a famosa cidade de Nixapur abriu suas portas de metal para o Mascarado; em princípios de 162, a de Astarabad. A atuação militar de Hákim (como a de outro profeta mais afortunado) reduzia-se à oração em voz de tenor, mas elevada à Divindade a partir de um lombo de camelo avermelhado, no coração agitado das batalhas. A seu redor, silvavam as setas, sem nunca feri-lo. Parecia buscar o perigo: na noite em que alguns leprosos detestados rondaram seu palácio, ordenou que se apresentassem, beijou-os e ofertou-lhes prata e ouro.
Delegava as fadigas de governar a seis ou sete adeptos. Era dado à meditação e à paz: um harém de cento e catorze mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades de seu corpo divino.

OS ESPELHOS ABOMINÁVEIS

Desde que suas palavras não invalidem a fé ortodoxa, o islã tolera a aparição de amigos confidenciais de Deus, por indiscretos ou ameaçadores que sejam. O profeta talvez não tivesse desdenhado os favores daquele desdém, mas seus partidários, suas vitórias e a cólera pública do califa — que era Mohamed Al Mahdi — forçaram-no à heresia. Essa dissensão arruinou-o, mas antes o obrigou a definir os artigos de uma religião pessoal, ainda que com evidentes infiltrações das pré-histórias gnósticas.
No princípio da cosmogonia de Hákim há um Deus espectral. Essa divindade carece majestosamente de origem, assim como de nome e de rosto. É um Deus imutável, mas sua imagem projetou nove sombras que, condescendendo à ação, dotaram e presidiram um primeiro céu. Dessa primeira coroa demiúrgica procedeu uma segunda, também com anjos, potestades e tronos, e estes fundaram outro céu mais abaixo, que era a duplicação simétrica do inicial. Esse segundo conclave se viu reproduzido num terceiro e esse, noutro inferior, e assim até novecentos e noventa e nove. O senhor do céu do fundo é quem rege — sombra de sombras de outras sombras — e sua fração de divindade tende a zero.
A Terra que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam. O asco é a virtude fundamental. Duas disciplinas (cuja escolha o profeta deixava livre) podem nos conduzir a ela: a abstinência e o excesso, o exercício da carne ou a castidade.
O paraíso e o inferno de Hákim não eram menos desesperados. “Aos que negam a Palavra, aos que negam o Véu Adornado de Joias e o Rosto”, diz uma imprecação que se conserva da Rosa escondida, “prometo-lhes um inferno maravilhoso, porque cada um deles reinará sobre novecentos e noventa e nove impérios de fogo, e, em cada império, sobre novecentos e noventa e nove montes de fogo, e, em cada monte, sobre novecentos e noventa e nove torres de fogo, e, em cada torre, sobre novecentos e noventa e nove andares de fogo, e, em cada andar, sobre novecentos e noventa e nove leitos de fogo, e, em cada leito, estará ele, e novecentos e noventa e nove formas de fogo (que terão cara e voz) o torturarão para sempre.” Noutro lugar corrobora: “Aqui na vida padeceis num só corpo; na morte e na Retribuição, em inumeráveis”. O paraíso é menos concreto: “Sempre é noite e há piscinas de pedra, e a felicidade desse paraíso é a felicidade peculiar das despedidas, da renúncia e dos que sabem que dormem”.

O ROSTO

No ano 163 da Hégira e quinto do Rosto Resplandecente, Hákim foi cercado em Sanam pelo exército do califa. Provisões e mártires não faltavam, e aguardava-se o iminente socorro de uma coorte de anjos de luz. Assim estava quando um espantoso boato atravessou o castelo. Contava-se que uma mulher adúltera do harém, ao ser estrangulada pelos eunucos, tinha gritado que faltava o dedo anular na mão direita do profeta e que os demais careciam de unhas. O rumor grassou entre os fiéis. Em pleno sol, num terraço elevado, Hákim pedia uma vitória ou sinal à divindade familiar. Com a cabeça inclinada, servil — como se corressem contra a chuva —, dois capitães arrancaram-lhe o Véu recamado de pedras.
Primeiro, houve um tremor. O prometido rosto do Apóstolo, o rosto que havia estado nos céus, era de fato branco, mas com a brancura peculiar da lepra manchada. Era tão avantajado ou incrível que lhes pareceu uma máscara carnavalesca. Não tinha sobrancelhas; a pálpebra inferior do olho direito pendia sobre o pômulo senil; um pesado cacho de tubérculos comia seus lábios; o nariz inumano e achatado era como o de um leão.
A voz de Hákim ensaiou um engano final: “Vosso pecado abominável vos proíbe de perceber meu esplendor…”, começou a dizer.
Não o escutaram; transpassaram-no com lanças.

Jorge Luís Borges, in História universal da infâmia

Preguiça

Certa vez abalancei-me a um trabalho intitulado “Preguiça”. Constava do título e duas belas colunas em branco, com a minha assinatura no fim. Infelizmente não foi aceito pelo supercilioso coordenador da página literária.
Já viram desconfiança igual?
Censurar uma página em branco é o cúmulo da censura.

Mário Quintana, in Caderno H

Se eu conversasse com Deus...

Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que a gente tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?

Leandro Gomes de Barros (1865/1918), poeta paraibano de Pombal. Em 19 de novembro é comemorado o “Dia do Cordelista”, em homenagem ao nascimento de Leandro Gomes de Barros. 

Eva

Na velha questão sobre a origem da humanidade, eu defendo o meio-termo. Um empate entre Darwin e Deus. Aceito a tese darwiniana de que o Homem descende do macaco, mas acho que Deus criou a mulher. E nós somos a consequência daquele momento mágico em que o proto-homem, deslocando-se de galho em galho pela floresta primeva, chegou à planície do Éden e viu a mulher pela primeira vez.
Imagine a cena. O homem-macaco de boca aberta, escondido pela folhagem, olhando aquela maravilha: uma mulher recém-feita. Como Vênus recém-pintada por Botticelli, com a tinta fresca. Eva espreguiçando-se à beira do Tigre. Ou era o Eufrates? Enfim, Eva no seu jardim, ainda úmida da criação. Eva esfregando os olhos. Eva examinando o próprio corpo. Eva retorcendo-se para olhar-se atrás e alisando as próprias ancas, satisfeita. Eva olhando-se no rio, ajeitando os longos cabelos, depois sorrindo para a própria imagem. Seus dentes perfeitos faiscando ao sol do Paraíso. E o quase-homem babando no seu galho. E, com muito esforço, formulando um pensamento no seu cérebro primitivo.
Fêmea é isso, não aquela macaca que eu tenho em casa.” Há controvérsias a respeito, mas os teólogos acreditam que quando Eva foi criada por Deus tinha entre 19 e 23 anos. E ela reinou sozinha no Paraíso por duas luas. E, instruída por Deus, deu nome às coisas e aos bichos. E chamou o rio de rio e a grama de grama, e a árvore de árvore, e aquele estranho ser que desceu da árvore e ficou olhando para ela como um cachorro, de Homem. E quando o Homem sugeriu que coabitassem no Paraíso e começassem outra espécie, Eva riu, concordou só para ter o que fazer, mas disse que ele ainda precisaria evoluir muito para chegar aos pés dela. E desde então temos tentado. Ninguém pode dizer que não temos tentado.

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

Carcará | Um


1

Há seis meses passados, tarde da noite, seu sono fora interrompido por batidas secas na janela e, depois, na porta da frente.
Avivou o candeeiro de querosene, logo que se levantou da rede; vestiu as calças largas, enfiando o camisão dentro delas e, já bem desperto, perguntou:
Quem é?
Alguém com a voz abafada, mas audível, esclareceu:
É Laurindo, Anastácio.
A cabeça ficou dando voltas: Laurindo... Laurindo... ah! Era um cabra de Lampião. Aquilo cheirava a encrenca. E se dessem notícia de um cangaceiro entrando em sua casa àquela hora da noite? Devia abrir? Resolveu perguntar:
Que é que o amigo quer?
Laurindo foi incisivo, mas suave:
Sou de paz. Preciso falar com você. É da parte de Sabino, do tenente Sabino Gomes. Conversa ligeira.
Você está só?
Vira, pela fresta da janela, que havia dois vultos, pelo menos. O cabra não mentiu:
Tou eu e Bem-te-vi, companheiro. Gente minha.
Quando abriu a porta, os dois homens entraram com rapidez e o seguraram, tomando o candeeiro que erguera com a mão esquerda. Diante do ar doméstico e da serenidade de Raimundo Anastácio, ficaram sem jeito, largando-o. Laurindo quase se desculpou:
Não é nada, seu Raimundo; o Chefe quer falar com você, hoje. Está esperando. Arrume-se para viajar.
Raimundo, calmo, indagou:
O Chefe? Quem é o Chefe? É o Capitão Virgolino?
Não, homem. O Chefe é o Tenente Sabino, que tem, como o Capitão, patente oficial dada pelo meu Padim Pade Cisso. A gente vai agora e bem cedinho você está de volta.
Onde é que ele está? – perguntou Anastácio.
Você é besta, homem? Porque é que vamos lhe dizer onde o homem está? Deixe de conversa e venha com a gente.
Bem-te-vi, até então calado, mas segurando, por hábito, o cabo longo do punhal, que alisava com o polegar da mão direita, dirigiu-se a Laurindo:
Tá ficando tarde. Já devia estar voltando.
Raimundo tinha receio que a mulher acordasse. A sorte é que Dorinha tinha o um sono de pedra. Se se levantasse, ia fazer uma confusão danada. Para sair da confusão era preciso arriscar. E ponderou, com tranquilidade:
Hoje não pode ser. Amanhã sim.
Por que não agora?
Quero pedir a vocês que falem mais baixo. É que o Cabo Zé Gonçalves, primo e irmão de criação da minha mulher, está dormindo no quarto dos fundos do quintal. Se ele me pegar encilhando o animal a essa hora, vai fazer perguntas. É desconfiado como os seiscentos diabos.
Podemos acabar com ele – alvitrou Bem-te-vi.
Laurindo olhou com ar de espanto para o lado do seu companheiro e não disse nada. Raimundo aproveitou o momento da dúvida e falou, como coisa assentada:
Vocês me esperam, amanhã, na Rodagem, e de lá a gente vai junto. Tenho negócios para as bandas de Alagoinha e Baixio; ninguém vai estranhar mais uma viagem minha. Agora, sair nas barbas de Cabo Zé, que é esperto, me parece arriscado tanto para mim como para vocês.
Laurindo demorou um pouco, mas, afinal, concordou:
Amanhã, não. Depois de amanhã, quinta-feira. Espero você no sítio Remédios. Coisa certa. O Chefe não brinca.
Raimundo Anastácio se fez de distraído:
É o Capitão Virgolino Ferreira?
Não, homem – esclareceu, ríspido, o cangaceiro Laurindo. – O Capitão Virgolino não está nessa. O Chefe do Grupo é o tenente Sabino, entendeu?
Entendi. Pois digam ao Tenente Sabino que quinta-feira vou falar com ele,
Laurindo recomendou:
Essa conversa fica entre nós, ouviu?
Não sou menino. Passei minha vida na vida que vocês estão começando agora.
Depois de amanhã no sítio Remédios.
Certo, Laurindo.
Nem sua mulher precisa saber disso.
Fique descansado. Confie na minha experiência.
Laurindo foi saindo, parou na soleira da porta, ia dizer alguma coisa, mas não disse. O olhar duro de gavião fixou-se nos olhos de Raimundo Anastácio, como se fosse uma espécie de última advertência. Raimundo sabia que estava falando com um homem frio, decidido, acostumado a matar. Apesar de estar vestido como um matuto, não disfarçava, de forma nenhuma, os gestos medidos e cautelosos do caçador. Ouviu, distintamente, ainda na calçada de sua casa, Bem-te-vi, o cangaceiro mais novo, dizer ao outro:
Não confio nesse sujeito. Ou ele é muito esperto, ou já está meio besta. Foi preciso você dizer duas vezes que o Chefe era Sabino e não o Capitão. Sei não...
Como ia sair dessa? Estava em papos de aranha. O perigo imediato era os bandidos descobrirem sua mentira sobre o Cabo Zé Gonçalves, que não dormia no fundo do quintal e só era parente de sua mulher por parte de Adão. Fechou a porta com um suspiro de alívio. Entrou no quarto onde a mulher dormia, apanhou o rifle 44, papo amarelo, e ficou na porta da cozinha à espera. Passou, ali, até ouvir, lá pelas cinco horas da madrugada, os galos começarem a cantar, desanimadamente.
Pensou em contar a visita ao Delegado de então, Sargento Inaldo Pedrosa, mas não o fez: ia aumentar a desconfiança da cidade contra a sua pessoa e comprar, para toda a vida, o ódio de Sabino. Decisão que lhe parecera menos ruim: não ir ao encontro marcado com Sabino e não falar no assunto com ninguém.

Os cangaceiros continuaram de forma intermitente, realizando pequenos assaltos nas fazendas e povoações. O Sargento Pedrosa, vermelho e atrabiliário, fora substituído pelo Tenente Elino Fernando. Ouvira dizer que era um homem educado e calmo. Boas qualidades para um oficial residente na Capital; no sertão brabo, o posto reclamava o contrário: um homem duro, valente, com experiência de luta.
Quanto a ele, Raimundo Anastácio, a posição era inalterada, pois era objeto de desconfiança de algumas pessoas da cidade e, ainda, mal visto pelos bandoleiros...
Romeu Menandro Cruz, seu amigo, foi quem lhe falou, primeiro, sobre o novo Delegado, cobrindo-o de elogios. Um dia, levou-o à presença do Tenente Elino. Conversaram bastante, falando Raimundo do tempo em que estivera no cangaço. Aproveitou para queixar-se de ter sido durante muito tempo bode expiatório de tudo o que era autoridade policial que passava pela cidade. O Tenente repetiu a pergunta:
Você conheceu Lampião?
Sim, senhor. Vi Lampião muitas vezes, mas nunca pertenci ao bando dele.
Ele é valente, seu Raimundo?
É, Tenente. É muito esperto, muito matreiro, dá a alma por uma boa fuga, mas é cabra valente, destemido, perigoso.
Acha que ele está por perto? E que é capaz de assaltar a cidade?
Pode ser, Tenente; mas é homem cauteloso, esperto, não se metendo em coisas complicadas, difíceis, incertas.

Ivan Bichara, in Carcará

Velhas cartas

Você nunca saberá o bem que sua carta me fez...” Sinto um choque ao ler esta carta antiga que encontro em um maço de outras.
Vejo a data, e então me lembro onde estava quando a recebi. Não me lembro é do que escrevi que fez tanto bem a uma pessoa. Passo os olhos por essas linhas antigas, elas dão notícias de amigos, contam uma ou outra coisa do Rio, e tenho curiosidade de ver como ela se despedia de mim. É do jeito mais simples: “A saudade de...”
Agora folheio outras cartas de amigos e amigas; são quase todas de apenas dois ou três anos atrás. Mas, como isso está longe! Sinto-me um pouco humilhado pensando como certas pessoas me eram necessárias e agora nem existiriam mais na minha lembrança se eu não encontrasse essas linhas rabiscadas em Londres ou na Suíça. “Cheguei neste instante; é a primeira coisa que faço, como prometi, escrever para você, mesmo porque durante a viagem pensei demais em você...”
Isto soa absurdo a dois anos e meio de distância. Não faço a menor ideia do paradeiro dessa mulher de letra redonda; ela, com certeza, mal se lembrará do meu nome. E esse casal, santo Deus, como era amigo: fazíamos planos de viajar juntos pela Itália; os dias que tínhamos passado juntos eram “inesquecíveis”.
E esse amigo como era amigo! Entretanto, nenhum de nós dois se lembrou mais de procurar o outro.
Essa que se acusa e se desculpa de me haver maltratado — “mais pourquoi alors ai-je été si méchante... j'ai dû te blesser, pardon... oh, j'étais vraiment stupide et tu dois l'oublier... je veux te revoir...”, mas eu não me lembro de mágoa nenhuma, seu nome é apenas para mim uma doçura distante.
E que terríveis negócios planejava esse meu amigo de sempre!
Sem dúvida iríamos ficar ricos, o negócio era fácil e não podia falhar, ele me escrevia contente de eu ter topado com entusiasmo a ideia, achava a sugestão que eu fizera “batatal”, dizia que era preciso “agir imediatamente”. É extraordinário que nunca mais tenhamos falado de um negócio tão maravilhoso.
Aqui, outro amigo escreve do Rio para Paris me pedindo um artigo urgente e grande “sobre a situação atual da literatura francesa, pelo menos dez páginas, nossa revista vai sair dia 15, faça isso com urgência, estamos com quase toda a matéria pronta”. Não fiz o artigo, a revista não saiu, a literatura francesa não perdeu nada com isso, a brasileira, muito menos.
As cartas mais queridas, as que eram boas ou ruins demais, eu as rasguei há muito. Não guardo um documento sequer das pessoas que mais me afligiram e mais me fizeram feliz. Ficaram apenas, dessa época, essas cartas que na ocasião tive pena de rasgar e depois não me lembrei de deitar fora. A maioria eu guardei para responder depois, e nunca o fiz. Mas também escrevi muitas cartas e nem todas tiveram resposta.
Imagino que em algum lugar do mundo há alguém que neste momento remexe, por acaso, uma gaveta qualquer, encontra uma velha carta minha, passa os olhos por curiosidade no que escrevi, hesita um instante em rasgar, e depois a devolve à gaveta com um gesto de displicência, pensando, talvez: “é mesmo, esse sujeito onde andará? Eu nem me lembrava mais dele...”
E agradeço a esse alguém por não ter rasgado a minha carta: cada um de nós morre um pouco quando alguém, na distância e no tempo, rasga alguma carta nossa, e não tem esse gesto de deixá-la em algum canto, essa carta que perdeu todo o sentido, mas que foi um instante de ternura, de tristeza, de desejo, de amizade, de vida — essa carta que não diz mais nada e apenas tem força ainda para dar uma pequena e absurda pena de rasgá-la.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

Um momento de desânimo

Em algum ponto deve estar havendo um erro: é que ao escrever, por mais que me expresse, tenho a sensação de nunca na verdade ter-me expressado. A tal ponto isso me desola que me parece, agora, ter passado a me concentrar mais em querer me expressar do que na expressão ela mesma. Sei que é uma mania muito passageira. Mas, de qualquer forma, tentarei o seguinte: uma espécie de silêncio. Mesmo continuando a escrever, usarei o silêncio. E, se houver o que se chama de expressão, que se exale do que sou. Não vai mais ser: “Eu me exprimo, logo sou.” Será: “Eu sou; logo sou.”

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

A Ideia Fixa | Capítulo 4

A minha ideia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa. Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um “verdadeiro banana”, – ou “uma abóbora” como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que ambos esses conceitos eram errôneos e abstrusos, e que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi o “abóbora” de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tomando à ideia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos; a ideia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, – formula Suetônio.
Era fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto.
Deixemos a história com os seus caprichos de dama elegante.
Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina; nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, com ela caem e não poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Bela mãe

A mãe de Eddie tinha dentes de cavalo e eu também, e me lembro de uma vez em que subimos o morro juntos a caminho da loja e ela disse: – Henry, nós dois precisamos de braçadeiras nos dentes. Temos uma aparência pavorosa! Eu subia orgulhoso o morro com ela, e ela usava um vestido justo amarelo, estampado com flores, saltos altos, e rebolava e os saltos faziam clique, clique, clique no cimento. Eu pensava: estou andando com a mãe de Eddie e ela comigo, e estamos subindo o morro juntos. Foi só isso – eu entrei na loja e comprei pão para meus pais, e ela as coisas dela. Só isso.
Eu gostava de ir à casa de Eddie. A mãe dele estava sempre sentada numa cadeira com uma bebida, e cruzava as pernas bem alto e a gente podia ver onde terminavam as meias e começava a carne. Eu gostava da mãe de Eddie, era uma verdadeira dama. Quando eu entrava, ela dizia: “Olá, Henry!” E sorria e baixava a saia. O pai de Eddie também dizia olá. Era um cara grandão, e também ficava ali sentado com uma bebida na mão. Não era fácil arranjar emprego em 1933, e além disso o pai de Eddie não podia trabalhar. Tinha sido aviador na Primeira Guerra Mundial e derrubado. Tinha arames nos braços em vez de ossos, e por isso ficava ali sentado bebendo com a mãe de Eddie. Era escuro ali dentro, quando os dois bebiam, mas a mãe de Eddie ria muito.
Eddie e eu fazíamos aeromodelos, coisas baratas de madeira balsa. Eles não voavam, a gente apenas os movia no ar com as mãos. Eddie tinha um Spad e eu um Fokker. Tínhamos visto “Anjos do Inferno”, com Jean Harlow. Eu não via em que Jean Harlow era mais sexy que a mãe de Eddie. Claro que não falava da mãe de Eddie com ele. Então notei que Eugene começou a aparecer. Era outro cara que tinha um Spad, mas com ele eu podia falar da mãe de Eddie. Quando a gente tinha oportunidade. Fazíamos bons combates aéreos – dois Spads contra um Fokker. Eu fazia o melhor possível, mas em geral era derrubado. Sempre que me metia em apertos, eu puxava um Immelman. Nós líamos as velhas revistas de aviação, Flying Aces era a melhor. Cheguei a escrever algumas cartas para o editor, que respondeu. O Immelman, ele me escreveu, era quase impossível. A tensão sobre as asas era demasiada. Mas às vezes eu tinha de usar um Immelman, especialmente com o cara na minha cauda. Geralmente perdia as asas, mas tinha de escapar.
Quando a gente tinha uma oportunidade longe de Eddie, falava da mãe dele.
Nossa, que pernas ela tem.
E gosta de mostrar.
Cuidado, aí vem Eddie.
Eddie não tinha ideia de que a gente falava assim da mãe dele. Eu sentia um pouco de vergonha, mas não podia evitar. Certamente não queria que ele pensasse na minha mãe daquele jeito. Claro, minha mãe não tinha aquela aparência. A mãe de ninguém tinha. Talvez tivesse alguma coisa a ver com aqueles dentes de cavalo. Quer dizer, a gente olhava e via aqueles dentes de cavalo, meio amarelados, e depois baixava os olhos e via aquelas pernas cruzadas alto, um pé virando e chutando. É, eu também tinha dentes de cavalo.
Bem, Eugene e eu continuamos indo lá para as batalhas aéreas, e eu usava meu Immelman e minhas asas eram arrancadas fora. Embora tivéssemos outra brincadeira e Eddie participasse dessa também. Éramos dublês de pilotos de avião e carro de corrida. A gente ia lá e corria grandes riscos, mas de algum modo sempre voltávamos. Muitas vezes pousávamos no pátio à frente de nossas casas. Cada um tinha uma casa e uma esposa, e as esposas estavam à nossa espera. Descrevíamos como elas se vestiam. Não usavam muita coisa. A de Eugene era a que usava menos. Na verdade, tinha um vestido com um grande buraco cortado na frente. Ela recebia Eugene na porta assim. Minha esposa não era tão ousada, mas também não usava muita coisa. A gente fazia amor o tempo todo. Fazia amor com as esposas o tempo todo. Nunca era bastante para elas. Enquanto estávamos fora, trabalhando como dublês e arriscando nossas vidas, elas ficavam em casa esperando e esperando por nós. E elas amavam só a nós, ninguém mais. Às vezes a gente tentava esquecê-las e voltar às escaramuças. Era como Eddie dizia: quando falávamos de mulheres tudo que fazíamos era deitar na grama e não fazer nada mais. O máximo que fazíamos é que Eddie dizia: “Olha, eu tenho um!” E aí eu rolava de barriga para cima e mostrava o meu e depois Eugene mostrava o dele. Era assim que a gente passava a maioria das tardes. A mãe e o pai de Eddie ficavam lá bebendo e de vez em quando ouvíamos a mãe de Eddie rir.

Um dia, Eugene e eu fomos lá, berramos por Eddie e ele não saiu.
Ei, Eddie, pelo amor de deus, saia daí!
Eddie não saiu.
Tem alguma coisa errada lá dentro – disse Eugene. – Eu sei que tem alguma coisa errada lá dentro.
Talvez alguém tenha sido assassinado.
É melhor a gente dar uma olhada lá dentro.
Acha que a gente deve?
É melhor.
A porta de tela abriu-se e entramos. Estava escuro como de hábito. Aí ouvimos uma única palavra:
Merda!
A mãe de Eddie estava deitada na cama, bêbada. As pernas para cima e o vestido levantado. Eugene agarrou meu braço:
Nossa, olha só aquilo!
Era lindo, deus, era lindo, mas eu estava assustado demais para apreciar direito. E se alguém entrasse e nos pegasse ali olhando? O vestido dela estava bem levantado, e ela bêbada.
Vamos, Eugene, vamos dar o fora daqui!
Não, vamos ver. Eu quero olhar ela. Olha só aquilo tudo aparecendo!
Eu me lembrei de uma vez que pedi carona e uma mulher me deu. Tinha a saia erguida acima da cintura, bem, quase até a cintura. Eu desviei os olhos, baixei os olhos, com medo. Ela simplesmente conversava comigo, enquanto eu olhava pelo para-brisa e respondia às perguntas. “Aonde está indo?” “Belo dia, não?” Mas eu estava com medo. Não sabia o que fazer, mas tinha medo de que, se fizesse, haveria encrenca, ela gritaria ou chamaria a polícia. Por isso de vez em quando furtava uma olhada e desviava os olhos. Ela acabou me deixando saltar.
Eu estava com medo em relação à mãe de Eddie também.
Escuta, Eugene, eu vou embora.
Ela está bêbada, nem sabe que a gente está aqui.
O filho da puta foi embora – ela disse da cama. – Foi embora e levou meu filho, meu bebê...
Está falando – eu disse.
Está arriada – disse Eugene –, não sabe de nada.
Aproximou-se da cama.
Veja isso.
Pegou a saia dela e puxou mais para cima. Puxou mais para cima até a gente ver a calcinha. Era cor-de-rosa.
Eugene, eu vou embora.
Covarde!
Eugene ficou simplesmente parado ali, olhando as coxas e a calcinha dela. Ficou ali parado um longo tempo. Depois tirou o pau para fora. Ouvi a mãe de Eddie gemer. Mexeu-se um pouco na cama. Eugene chegou mais perto. Tocou a coxa dela com a ponta do pau. Ela tornou a gemer. Então Eugene gozou. Esguichou o esperma pela coxa dela toda, e parecia muito. Aí a mãe de Eddie disse “Merda!” e de repente se sentou na cama. Eugene passou correndo por mim na porta e eu me virei e corri também. Eugene bateu na geladeira na cozinha, voltou e saltou pela porta de tela afora. Eu o segui e descemos a rua correndo. Corremos até minha casa, lá na estrada, descemos a estradinha de acesso, entramos na garagem e fechamos a porta.
Acha que ela viu a gente? – perguntei.
Não sei. Eu esporrei toda a calcinha cor-de-rosa dela.
Você é louco. Por que fez isso?
Fiquei excitado. Não pude evitar. Não pude me conter.
A gente vai pra cadeia.
Você não fez nada. Eu esporrei na perna dela toda.
Eu estava olhando.
Escuta – disse Eugene –, acho que vou pra casa.
Tudo bem, vá.
Fiquei olhando-o subir a estradinha de acesso e depois atravessar a rua para sua casa. Saí da garagem. Atravessei o quintal, entrei em meu quarto e fiquei lá sentado esperando. Não havia ninguém em casa. Fui ao banheiro, tranquei a porta e pensei na mãe de Eddie deitada na cama daquele jeito. Só que imaginei que tirava a calcinha cor-de-rosa dela e metia. E ela gostava...
Esperei o resto da tarde e durante todo o jantar que alguma coisa acontecesse, mas nada aconteceu. Fui para meu quarto depois do jantar e fiquei lá sentado esperando. Então chegou a hora de dormir e eu me deitei na cama esperando. Ouvi meu pai roncando no quarto ao lado, e ainda esperava. Aí dormi.

No dia seguinte era domingo e eu vi Eugene no seu gramado da frente com uma espingarda de ar comprimido. Havia duas palmeiras na frente da casa e ele tentava matar alguns dos pardais que viviam lá em cima. Já tinha pegado dois. Eles tinham dois gatos, e toda vez que um dos pardais caía na grama, as asas batendo, um dos gatos corria e encaçapava.
Não aconteceu nada – eu disse a Eugene.
Se não aconteceu até agora, não vai acontecer – ele disse. – Eu devia ter comido ela. Me arrependo agora de não ter comido.
Pegou outro pardal e o bicho veio abaixo, e um gato cinza muito gordo, de olhos amarelo-esverdeados, pegou-o e correu com ele para trás da sebe. Eu atravessei a rua de volta à minha casa. Meu velho me esperava na varanda da frente. Parecia zangado.
Escuta, quero que você se ponha a trabalhar aparando a grama. Já!
Fui à garagem e peguei o aparador. Primeiro aparei a estradinha de acesso, depois passei para o gramado da frente. O aparador era duro, velho e difícil de manejar. Meu velho ficou lá de pé, com um ar zangado, me observando, enquanto eu passava o aparador pela grama embaraçada.

Charles Bukowski, in Numa Fria

O retrato

Eu quero a fotografia,
os olhos cheios d’água sob as lentes,
caminhando de terno e gravata,
o braço dado com a filha.
Eu quero a cada vez olhar e dizer:
estava chorando. E chorar.
Eu quero a dor do homem na festa de casamento,
seu passo guardado, quando pensou:
a vida é amarga e doce?
Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso,
os olhos cheios d’água sob as lentes.

Adélia Prado, in Bagagem

O Lobo do Mar | Capítulo 7

Enfim, depois de três dias de ventos inconstantes, pegamos os alísios de nordeste. Subi ao convés após uma noite bem-dormida, apesar do joelho machucado, e encontrei o Ghost fazendo espuma, navegando com a brisa à popa e todas as velas abertas, de lado a lado, exceto as bujarronas. Ah, a maravilha do vento alísio! Navegamos o dia e a noite inteiros, e o seguinte e o outro, dia após dia com o vento sempre à popa, firme e forte. A escuna navegava sozinha. Não havia necessidade de içar e descer os panos e talhas ou de ajustar os joanetes, e os marinheiros não precisavam fazer nada além de pilotar. Quando o sol se punha, as velas eram afrouxadas; pela manhã, assim que a umidade e o orvalho evaporavam e as velas relaxavam, eram novamente esticadas. E isso era tudo.
Dez nós, doze nós, onze nós(1), variando aqui e ali, é a velocidade que estamos fazendo. Com o vento impávido soprando sem parar do nordeste, vencemos quatrocentos e cinquenta quilômetros do trajeto entre uma alvorada e outra. A rapidez com que nos afastamos de São Francisco e singramos pelos trópicos me entristece e anima ao mesmo tempo. A cada dia sentimos o calor aumentar. No segundo quarto vespertino, os marujos despidos se reúnem no convés e jogam baldes de água do mar uns nos outros. Começaram a aparecer peixes-voadores, e durante a noite os marujos de guarda descem correndo até o convés para apanhar os que pulam a bordo. Pela manhã, depois que Thomas Mugridge foi devidamente subornado, a cozinha fica impregnada do cheiro de fritura; e quando Johnson consegue apanhar golfinhos da ponta do gurupés, a carne desses belos animais reluzentes é servida para toda a tripulação.
Johnson, ao que tudo indica, passa todo o tempo livre no gurupés ou no alto da plataforma da gávea, vendo o Ghost fender a água ao impulso das velas. Em seus olhos se vê paixão, adoração, e ele entra numa espécie de transe e fica contemplando em êxtase as velas infladas, a esteira espumosa, o barco arfando por cima das montanhas d’água que nos acompanham em procissão.
Os dias e noites são “puro deslumbre e selvagem deleite” (2), e, embora o trabalho penoso não me deixe muito tempo livre, aproveito os raros momentos para admirar a glória interminável do que eu nem sonhava existir no mundo. O céu acima é de um azul imaculado como o do próprio oceano, que por baixo do talha-mar tem a cor e o lustro do cetim azul-celeste. Nuvens alvas e felpudas pairam em toda a curva do horizonte, imóveis e imutáveis, como suportes de prata para o impecável céu turquesa.
Não esqueço de uma noite em que, em vez de ir dormir como devia, me deitei no castelo de proa e fiquei olhando o rastro espectral de espuma produzido mais abaixo pelo talha-mar do Ghost. O ruído lembrava o gorgolejo de um riacho a correr pelas pedras musgosas de um recanto sossegado, e essa melodia me fez divagar e esquecer que eu era Hump, o camaroteiro, ou Van Weyden, o homem que havia passado trinta e cinco anos sonhando em meio aos livros. Mas uma voz atrás de mim, a voz inconfundível de Wolf Larsen, com sua segurança invencível suavizada pelo apreço às palavras que ele citava, me tirou de meu devaneio.

O the blazing tropic night, when the wake’s a welt of light
That holds the hot sky tame,
And the steady forefoot snores through the planet-powdered floors
Where the scared whale flukes in flame.
Her plates are scarred by the sun, dear lass,
And her ropes are taut with dew,
For we’re booming down on the old trail, our own trail, the out trail,
We’re sagging south on the Long Trail — the trail that is always new.(3)

E então, Hump? O que lhe parece? — ele perguntou após a breve pausa que os versos e a ocasião exigiam.
Vi seu rosto. Estava iluminado como o mar, e os olhos piscavam na noite estrelada.
É no mínimo curioso que você seja capaz de manifestar esse entusiasmo — respondi com frieza.
Ora, homem, isso é viver! É a vida! — ele clamou.
Uma coisa barata e sem valor — devolvi-lhe suas palavras.
Ele riu, e foi a primeira vez que percebi uma alegria honesta em sua voz.
Ah, não consigo fazê-lo entender, não consigo meter na sua cabeça a coisa incrível que é a vida. É claro que ela não tem valor, exceto para si própria. E posso dizer que minha vida é muito valiosa neste exato momento. Para mim. Tem um preço incalculável, o que é um exagero imenso, você há de concordar, mas não posso evitá-lo porque é a vida dentro de mim que estipula o valor.
Tive a impressão de que ele procurava as palavras certas para expressar o que pensava, até que enfim prosseguiu.
Sabe, me sinto tomado por uma estranha exaltação. É como se o tempo ecoasse em mim, como se todos os poderes me pertencessem. Conheço a verdade, posso separar o bem e o mal, o certo e o errado. Minha visão é nítida e ampla. Quase consigo crer em Deus. Mas… — Sua voz mudou e a luz se apagou em seu rosto. — Que condição é essa em que me encontro? Essa alegria de viver, essa exultação da vida, essa inspiração, se posso chamá-la assim. É o que surge quando não há nada de errado com a digestão, quando o estômago funciona, o apetite está sob controle e tudo vai bem. É a gratificação da vida, o champanhe do sangue, a efervescência do fermento, o que leva certos homens a pensar em coisas sagradas, a ver Deus ou criá-lo, se não conseguem vê-lo. É apenas isso, a embriaguez da vida, o levedo fervilhando e rastejando, balbucios da vida levada à loucura pela consciência de que está viva. E… bah! Pagarei caro por isso amanhã, como acontece com os bêbados. E saberei que devo morrer, provavelmente no mar. Deixarei de rastejar por minha conta para rastejar na corrupção do mar inteiro, servirei de alimento, serei uma carcaça em decomposição, entregarei toda a força e movimento de meus músculos para que possam ser a força e o movimento de barbatanas, escamas e entranhas de peixes. Bah! E bah de novo! O champanhe já estragou. Perdeu as bolhas, ficou sem gosto.
Ele se retirou da mesma forma como havia aparecido, sem aviso, pulando no convés com o peso e a elegância de um tigre. O Ghost seguia abrindo caminho. Percebi que os gorgolejos do talha-mar lembravam um ronco, e voltando a escutá-lo me livrei aos poucos do efeito deixado em mim por Wolf Larsen e sua rápida transição do júbilo ao desespero. Nesse momento, um marinheiro que estava no poço do navio começou a entoar, com uma voz encorpada de tenor, a “Canção dos ventos alísios”:

Oh, I am the wind the seamen love —
I am steady, and strong, and true;
They follow my track by the clouds above,
O’er the fathomless tropic blue.
Through daylight and dark I follow the bark
I keep like a hound on her trail;
I’m strongest at noon, yet under the moon,
I stiffen the bunt of her sail.(4)

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(1) O nó é uma unidade de velocidade que corresponde a uma milha marítima (ou 1.853 metros) por hora. Assim, a velocidade da escuna nesse ponto da narrativa chegava a cerca de 20km/h.
(2) Citação imprecisa de London do poema “The Ring and the Book”, livro I, v.1391-92, de Robert Browning: “O lyric love, halfangel and half-bird/ And all of wonder and a wild desire” — em tradução livre, “Oh amor lírico, meio anjo e meio pássaro/ E todo deslumbre e um selvagem desejo.”
(3) Sétima estrofe do poema “The Long Trail”, constante da obra Barrack-Room Ballads (1892), do escritor inglês Rudyard Kipling. Tradução livre: “Oh, flamejantes noites tropicais, quando a esteira é uma faixa de luz/ Domesticando o céu ardente,/ E o talha-mar seguro ronca na superfície pontilhada de planetas/ Em que a baleia inquieta agita a cauda./ As tábuas estão feridas pelo sol, amada,/ E as cordas encolhidas pelo orvalho,/ Pois galgamos a velha trilha, nossa própria trilha, a trilha distante,/ Sotaventeamos ao sul na Longa Trilha, a trilha que sempre é nova.”
(4) Tradução livre: “Oh, sou o vento que os marujos amam —/ Sou forte, constante, confiável;/ Pelas nuvens acima me acompanham/ No trópico azul interminável.// Dia e noite persigo o barco/ Como o cão fiel na caçada/ No sol de rachar e no brilho do luar/ Mantenho a vela esticada.”

Jack London, in O Lobo do Mar