Natureza viva

A vida brota. E é toda olhos. Cada gota contém a luz do mundo. E cada cálice é uma boca ávida. A tua mão — fechada em maldição — abre-se em concha, agora…

Mário Quintana, in Caderno H

Paixão


Encolhida no chão, você parece uma trouxa que algum mendigo largou aí, sem temer que o roubassem porque não há nada de valor nesse saco sujo. É você. O pó que se levanta das sandálias da multidão — a multidão que corre para ver o espetáculo — cobre-a por completo. Sua boca está cheia de areia e uma pedra pontiaguda é cravada em seu esterno. Alguém a pisoteia. Você continua imóvel. Um cachorro faminto, selvagem, vem cheirá-la. Você continua imóvel. Você pensa em veneno, em raízes amargas assassinas, nas presas afiadas das serpentes do deserto que tantas vezes você segurou, pensa em acabar com tudo rápido.
Você sabe, a única coisa que sabe, é que não poderá viver sem ele. O que não sabe, e nunca saberá, é se ele a amou. Isso é algo que só sabe quem foi amado algum dia. Você não é uma dessas pessoas. Sua mãe foi embora deixando-a catarrenta, magra e nua. Um animalzinho molhado na porta da casa de seus avós.
Ela foi embora procurar homens, diziam eles, dizia a gente da aldeia cobrindo o canto da boca. Usavam para falar dela essa palavra que depois, não muito mais tarde, foi sua, coube em você como um vestido justo, contagiou-a como uma doença.
Você não sabe, também, que sua mãe queria que você se salvasse dela, disso que você herdou e que se parece tanto com uma graça quanto com uma maldição.
A primeira profecia que você cumpriu foi a de “você é igual à sua mãe”. Batiam em você para que não fosse igual à sua mãe enquanto gritavam você é igual à sua mãe. Certa noite, por volta dos seus doze, treze anos, você se atrasou na volta de sua ocupação favorita: recolher raízes, ervas e flores para depois, em casa, fervê-las, amassá-las, misturá-las e ver o que acontecia. Você voltou correndo com o alforje cheio, levantando poeira com suas sandálias, sujando a barra da saia e as pessoas, ao verem-na passar toda suada, ofegando, balançavam a cabeça como dizendo “pobrezinha”, como dizendo “outra como a mãe”.
Ela, sua avó, ele, seu avô, lhe bateram tanto que você perdeu para sempre a audição do ouvido direito e agora manca de uma das pernas. Com uma vara de loureiro — aquela vara de loureiro — rasgaram suas costas, as nádegas, o peito diminuto, até deixar tiras de pele penduradas, como uma laranja meio descascada.
Gritavam, gritavam, e açoitavam, açoitavam. À luz do fogo, suas sombras pareciam gigantes furiosos. Você fechou os olhos. Você se enrodilhou no chão, apertou a pedra cinza que sua mãe atara ao seu pescoço e disse para si mesma “que eles me matem, ou então vão ver”.
Mas eles não te mataram.
Você despertou de madrugada quase se afogando com seu próprio sangue. Você cuspiu, vomitou e, com uma dor agonizante, conseguiu se erguer. Devagar, muito devagar, cobriu com um de seus emplastros cada ferida e as envolveu com panos. Você foi até seu alforje, procurou um recipiente e ali, no escuro, misturou com o almofariz várias ervas e raízes, acrescentou algumas gotas de um líquido que brilhou — amarelo — à luz da lua. Seus olhos, também amarelos, se iluminaram como os de um gato.
Isso ninguém viu.
Você pôs o recipiente com a mistura no fogo, sussurrou algumas palavras — que soaram como um cântico, uma reza, um feitiço —, cobriu com a palma da mão sua pedra cinza, pegou suas coisas e foi embora dali.
Quando encontraram seus avós, eles estavam secos, desidratados, esticados como as cobras ocas que às vezes aparecem nas veredas.
Diziam, aqueles que os encontraram, que estavam marrons e que tinham os olhos saltados das órbitas e as mandíbulas inumanamente abertas.
Diziam, aqueles que os encontraram, que pareciam ter morrido de terror.
Seu paradeiro se perdeu durante muitos anos. Mais uma menina perdida num mundo de meninas perdidas. Alguns diziam que você havia se unido aos nômades e percorria as aldeias dançando e mostrando os peitos por algumas moedas. Outros asseguravam que você tinha matado uns homens que queriam roubar o pingente — a pedra — de sua mãe. Outros ainda estavam convencidos de que você havia morrido leprosa, destroçada e sozinha. Que alguém que conhecia alguém que conhecia alguém a tinha visto agonizante num leprosário, trancada numa masmorra com outros assassinos, dançando sem roupa diante de homens excitados.
Na verdade, ninguém se importava com sua vida e a única coisa que queriam saber era que diabos você tinha feito com seus avós para que amanhecessem secos como galhos.
Começaram a chamá-la também de outra coisa, como sua mãe, e a usavam, usavam seu nome, para assustar as crianças.
Um dia lhe disseram que ali, naquela terra maldita que você tinha jurado não voltar a pôr os pés, havia um homem especial e que você devia conhecê-lo. Você nunca poderá dizer claramente por quê, mas desfez o caminho percorrido durante tantos anos. Você andou por quilômetros e quilômetros, despedaçou suas sandálias e chegou certa manhã, descalça, o cabelo emaranhado, a pele queimada.
Ele parecia estar esperando por você. Pediu uma tina de água limpa e se ajoelhou para lavar, com uma delicadeza quase feminina, seus pés sujos e cheios de chagas. Você nunca poderá dizer claramente por quê, talvez porque esse tenha sido o único ato de ternura que já lhe haviam dedicado — a você, criatura das surras, filha da brutalidade, princesa das noites que terminam com as mulheres sangrando —, mas naquele instante você tomou a decisão de oferecer sua vida a ele, de fazer o que ele quisesse, o que fosse, de ser barro nas mãos dele, ser sua, sua escrava.
Ele perguntou seu nome e o repetiu com uma doçura que fez com que você chorasse as primeiras lágrimas, suas lágrimas, menina, que se tornariam lenda. Então ele estendeu a mão e secou-lhe as lágrimas e disse — sim, você não está inventando, ele disse — que a amava.
Disse: eu te amo.
Já não havia como voltar atrás. A órfã, a humilhada, a maltratada, a aleijada, a meio surda, a puta, a assassina, a leprosa já não existiam — nunca mais existiriam.
Era você diante dele.
E você diante dele era uma mulher extraordinária. A melhor das mulheres.
E se um cachorro, que é um ser de pouco entendimento, segue fielmente a quem lhe acaricia a cabeça e o lombo, como você não ia segui-lo até mesmo ao inferno? Como não faria até o impossível para fazê-lo feliz, para ajudá-lo a cumprir suas promessas? Assim, como um cachorro agradecido, você se sentava aos pés dele e ficava observando-o, escutando-o enlevada, louca de amor, como se da boca dele saíssem uvas, mel, jasmim, pássaros.
Às vezes, enquanto ele contava suas doces histórias de pescadores e pastores, você apertava a pedra cinza de seu peito e apareciam mais vinte, trinta, quarenta pessoas a escutá-lo como você: com devoção infantil, como se ele fosse um mago, como se de sua boca saíssem pássaros e mel.
Você sabia que isso o fazia feliz.
E então, muita gente começou a segui-lo. Ele mudou. As histórias se tornaram receitas; os relatos, ordens. Ele começou a falar de coisas que você não entendia, que na verdade ninguém entendia, coisas mágicas, santas, talvez sacrilégios. Para você, nada disso importava.
Os outros já não deixavam que você o tocasse — com exceção da túnica, das sandálias —, e ele já não visitava sua tenda com tanta frequência, com tanta urgência. Restava a lembrança de seu cheiro de homem do deserto que não saía de suas narinas, de seu corpo, de seu vestido. Um cheiro que nunca desapareceu, que até o último instante de sua vida a fazia tremer. Ele era seu, agora um enviado dos céus, dizia, mas seu. E você era dele. Por isso você apertou a pedra em seu pescoço quando ficaram sem vinho naquelas bodas e você fez aparecer peixe e pão onde não havia nada mais que pedras e areia — porque em sua solidão, você aprendeu que a água, as pedras, a areia lhe obedeciam.
Por isso você também aplicou, sem que ninguém a visse, sem que ninguém quisesse vê-la, seu unguento nos olhos brancos do mendigo, que os abriu e disse “milagre”, e você se escondeu no sepulcro daquele homem para inflar seus pulmões mortos com o sopro da vida — na ocasião você invocou forças que não devia, a morte é a morte, mas é muito tarde para se arrepender — e conseguiu que o cadáver se levantasse, que andasse e que ele se preenchesse — mais, cada dia mais — de glória.
Mas isto você não ia permitir. Que ele morresse. Não: que se deixasse matar. Isso você não ia permitir. Você tentou impedir, falou-lhe do unguento, das pedras que se tornaram alimento, do vinho que era água, dos olhos brancos, vazios, daquele mendigo, do cadáver que andou, da pedra que você carrega no pescoço, das forças que você invocou, infinitamente mais poderosas que você e ele. Mas ele não acreditou em você. Ele a pôs de lado com violência — ele, com violência —, e você caiu, e ali do chão, você olhou para ele e viu deus. Esse homem era seu deus. E ele disse que você era mentirosa, disse que você era impostora, disse que você era louca, e ele falou:
Afaste-se das minhas vistas, mulher.
Se um cachorro permanece na porta daquele que lhe dá migalhas de pão e mostra as presas, disposto a despedaçar qualquer um para protegê-lo, como você não ia defendê-lo até mesmo de si mesmo, de sua própria convicção? Por isso, no dia em que o levaram e lhe fizeram todos aqueles horrores, você apertou a pedra e o céu se carregou até se converter numa massa de lava cinzenta, e seu pranto — ai, seu pranto — fez com que as pessoas há milhares de quilômetros começassem a chorar, fazendo amor, lavrando a terra, lavando a roupa num rio, em sonhos.
Quando a cabeça dele pendeu sobre o peito, inerte, você se enrodilhou toda e as pessoas pisotearam-na e um cachorro selvagem a farejou e você pensou em venenos e quis morrer ali mesmo, mas então você começou a chorar. E seu pranto, mulher de lágrima viva, fez uma poça na qual você molhou seu vestido como se fosse um sudário, e nua, sem que ninguém a visse, sem que ninguém quisesse vê-la, você se enfiou no sepulcro no qual, horas depois, o depositariam: esquelético, ensanguentado, mortíssimo.
Com suas costas pregadas na pedra fria, seu corpo pálido, de moribunda, você o viu se levantar e sorriu para ele. Usava no pescoço a pedra cinza, ou seja, usava sua força, seu sangue, sua seiva. A luz que entrou no sepulcro quando ele mexeu a pedra lhe permitiu vê-lo pela última vez: belo, divino, sobrenaturalmente amado.
Ele olhou para você, você está quase certa de que ele olhou para você, e com seu último alento — você estava morrendo — você disse algo a ele, você o chamou, estendeu a mão. A palavra amor pendia no teto como uma estalactite. Mas ele continuou andando ao encontro de seus fanáticos que gritavam, que se jogavam na areia de joelhos, que cobriam o rosto com as mãos.
E não voltou os olhos para trás.

María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos

Asa branca | Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1947


Maior sucesso do Rei do Baião e um dos nossos “hinos nacionais populares”, “Asa branca” foi composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, em 1947, a partir de um tema folclórico que o sanfoneiro conhecia desde a infância. Após uma década e meia longe, Luiz Gonzaga (1912-1989) tinha visitado a cidade de Exu, no sertão pernambucano, onde nasceu, e, ao retornar ao Rio, mostrou ao parceiro a canção. Teixeira mexeu em alguns versos, acrescentou outros, consolidando o lirismo e as fortes imagens da seca que castigava sem tréguas a região e forçava a imigração de seu povo para o Sul. Em ritmo de toada, a música tocou fundo no coração dos brasileiros. Além das muitas gravações de Gonzaga, foi adotada por intérpretes de diferentes estilos e gerações, ganhou até versões sinfônicas, virando um hino do Nordeste e de sua gente.
Radicado no Rio de Janeiro desde 1940, Gonzagão sobrevivia a duras penas, tocando valsas, polcas, tangos, foxtrotes e boleros em bares da zona de prostituição. Na época, os ritmos nordestinos que tinham feito tanto sucesso nas duas primeiras décadas do século XX estavam relegados à sua região, eram vistos como cafonas no Sudeste brasileiro. Até que, uma noite, atendendo aos pedidos de um grupo de estudantes nordestinos de passagem pela então capital federal, Gonzaga voltou aos sons de pé de serra que seu pai Januário tocava. Para sua surpresa, conseguiu empolgar a plateia e percebeu que aquele diferencial era um filão a ser explorado. Já em 1941 compôs os chamegos “Pé de serra” e “Vira e mexe” – tendo, este último, lhe rendido o primeiro prêmio no programa de calouros de Ary Barroso e um contrato para gravar na RCA Victor.
Nos anos seguintes, com seu repertório de chamegos, xotes e baiões, adotou um visual próprio, com roupas de couro, adereços de boiadeiro e chapéu de cangaceiro, que, segundo um de seus fãs, Gilberto Gil, fez dele o primeiro popstar brasileiro. Essa metamorfose se completou em fins de 1945, quando conheceu o seu principal letrista, o advogado cearense Humberto Teixeira (1915-1979). No ano seguinte, a dupla fez “Baião”, lançada pelo grupo vocal Quatro Ases e Um Coringa, com Gonzagão tocando sanfona. A canção popularizou um ritmo e uma dança que faziam sucesso no Nordeste desde o fim do século XIX. O Brasil inteiro aprendeu como se dança o baião, e Luiz Gonzaga virou rei de vez em 1947, nas asas de “Asa branca”.

Nélson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…

O porvir…
Sim, o porvir…

Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

Capítulo 1 | Óbito do Autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: – “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, – minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, – a filha, um lírio-do-vale, – e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
Morto! morto! dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, – a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade.
Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

quarta-feira, 29 de junho de 2022

As mãos de meu filho

Todos aqueles homens e mulheres ali na plateia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros. Beethoven.
Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado.
Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.
Adágio. O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda. Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol... A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma história diferente.
Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor. O pianista está agora voltado para a plateia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos.
Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.
Suggestion Diabolique.

D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos. Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.
Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho... Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho!
D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo.
D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos... Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos...
De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado... Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. “Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?” Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. “Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!” Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava para a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia...
De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para o público, sorri, alisa os cabelos. (“Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito.”)
A escuridão torna a submergir a plateia. A luz fantástica envolve pianista piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros.
Navarra.
Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado.
Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo... — Inocêncio, quando é que tu crias juízo?
O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho. Um dia Inocêncio fez uma proposta:
Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras... 
— Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões? 
— Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita. 
Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou... No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que conseguira cobrar.
Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora... E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam... Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos... o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada Militar…
De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: “Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!”
A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.
No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu... Mas não tem direito de se queixar... O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinquenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinquenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista.
Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! As vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranquilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam... No fim de contas ele não era nenhum santo.
Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la... adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos... É capaz até de ficar por lá... esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim... E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo. Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais alegre.
No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura: — Margarida...
A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada. 
— Chit!
Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho, Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugentá-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.
Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade: 
— Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!
Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.

No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda: — Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe:
Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite... Tudo que sou, devo a ela.
Não diga isso, Betinho!
D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam.
Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.
Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores paradas... Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias...
O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise.
Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa.
O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando.
Linda mesmo.
Pausa curta.
Não vê que sou o pai do moço do concerto...
Pai? Do pianista?
O porteiro para, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz: 
— O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.
Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.
Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres... Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia... o Betinho tinha seis meses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas... Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis... Não podia ser o artista que é.
Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinquenta mil-réis e mete-a na mão do mulato.
— Para tomar um traguinho — cochicha.
E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.

Érico Veríssimo, in Os cem melhores contos brasileiros do século

Deus e Ratzinger

Que pensará Deus de Ratzinger? Que pensará Deus da Igreja Católica Apostólica Romana de que este Ratzinger é soberano papa? Que eu saiba (e escusado será dizer que sei bastante pouco), até hoje ninguém se atreveu a formular estas heréticas perguntas, talvez por saber-se, de antemão, que não há nem haverá nunca resposta para elas. Como escrevi em horas de vã interrogação metafísica, há uns bons quinze anos, Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Está nos Cadernos de Lanzarote e tem sido frequentemente citado por teólogos do país vizinho que tiveram a bondade de me ler. Claro que para que Deus pense alguma coisa de Ratzinger ou da igreja que o papa anda a querer salvar de uma morte mais do que previsível, seja por inanição seja por não encontrar ouvidos que a escutem nem fé que lhe reforce os alicerces, será necessário demonstrar a existência do dito Deus, tarefa entre todas impossível, não obstante as supostas provas arquitectadas por Santo Anselmo ou aquele exemplo de Santo Agostinho, de esvaziar os oceanos com um balde furado ou mesmo sem furo nenhum. Do que Deus, caso exista, deve estar agradecido a Ratzinger é pela preocupação que este tem manifestado nos últimos tempos sobre o delicado estado da fé católica. A gente não vai à missa, deixou de acreditar nos dogmas e cumprir preceitos que para os seus antepassados, na maior parte dos casos, constituíram a base da própria vida espiritual, senão também da vida material, como sucedeu, por exemplo, com muitos dos banqueiros dos primórdios do capitalismo, severos calvinistas, e, tanto quanto é possível supor, de uma honestidade pessoal e profissional à prova de qualquer tentação demoníaca em forma de subprime. O leitor estará talvez a pensar que esta súbita inflexão no transcendente assunto que me havia proposto abordar, o sínodo episcopal reunido em Roma, se destinaria, afinal, a introduzir, com mais ou menos jeito dialéctico, uma crítica ao comportamento irregular (é o mínimo que se pode dizer) dos banqueiros nossos contemporâneos. Não foi essa a minha intenção nem essa é a minha competência, se alguma tenho.
Voltemos então a Ratzinger. A este homem, decerto inteligente e informado, com uma vida activíssima nos âmbitos vaticanais e adjacentes (baste dizer que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, continuadora, por outros métodos, do ominoso Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido por Inquisição), ocorreu-lhe algo que não se esperaria de alguém com a sua responsabilidade, cuja fé devemos respeitar, mas não a expressão do seu pensamento medieval. Escandalizado com os laicismos, frustrado pelo abandono dos fiéis, abriu a boca na missa com que iniciou o sínodo para soltar enormidades como esta: “Se olhamos a História, vemo-nos obrigados a admitir que não são únicos este distanciamento e esta rebelião dos cristãos incoerentes. Em consequência disso, Deus, embora não faltando nunca à sua promessa de salvação, teve de recorrer amiúde ao castigo”. Na minha aldeia dizia-se que Deus castiga sem pau nem pedra, por isso é de temer que venha por aí outro dilúvio que afogue de uma vez os ateus, os agnósticos, os laicos em geral e outros fautores de desordem espiritual. A não ser, sendo os desígnios de Deus infinitos e ignotos, que o actual presidente dos Estados Unidos já tenha sido parte do castigo que nos está reservado. Tudo é possível se o quer Deus. Com a imprescindível condição de que exista, claro está. Se não existe (pelo menos nunca falou com Ratzinger), então tudo isto são histórias que já não assustam ninguém. Que Deus é eterno, dizem, e tem tempo para tudo. Eterno será, admitamo-lo para não contrariar o papa, mas a sua eternidade é só a de um eterno não-ser.

José Saramago, in O Caderno

A explicação que não explica

Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um romance. Depois que se despegam de mim, também eu os estranho. Não se trata de transe, mas a concentração no escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente dito. Alguma coisa, porém, posso tentar reconstituir, se é que importa, e se responde ao que me foi perguntado.
O que me lembro do conto “Feliz aniversário”, por exemplo, é da impressão de uma festa que não foi diferente de outras diferentes de aniversário; mas aquele era um dia pesado de verão, e acho até que nem pus a ideia de verão no conto. Tive uma impressão, de onde resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e necessidade de aprofundar o que se sente. Anos depois, ao deparar com essas linhas, a história inteira nasceu, com uma rapidez de quem estivesse transcrevendo cena já vista – e no entanto nada do que escrevi aconteceu naquela ou em outra festa. Muito tempo depois um amigo perguntou-me de quem era aquela avó. Respondi que era a avó dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio espontânea, e com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e dela eu só conhecera, em criança, um retrato, nada mais.
Mistério em São Cristóvão” é mistério para mim: fui escrevendo tranquilamente como quem desenrola um novelo de linha. Não encontrei a menor dificuldade. Creio que a ausência de dificuldade veio da própria concepção do conto: sua atmosfera talvez precisasse dessa minha atitude de isenção, de certa não participação. A falta de dificuldade é capaz de ter sido técnica interna, modo de abordar, delicadeza, distração fingida.
De “Devaneio e embriaguez duma rapariga” sei que me diverti tanto que foi mesmo um prazer escrever. Enquanto durou o trabalho, estava sempre de um bom humor diferente do diário e, apesar de os outros não chegarem a notar, eu falava à moda portuguesa, fazendo, ao que me parece, experiência de linguagem. Foi ótimo escrever sobre a portuguesa.
De “Os laços de família” não gravei nada.
Do conto “Amor” lembro duas coisas: uma, ao escrever da intensidade com que inesperadamente caí com o personagem dentro de um Jardim Botânico não calculado, e de onde quase não conseguimos sair, de tão encipoados e meio hipnotizados – a ponto de eu ter que fazer meu personagem chamar o guarda para abrir os portões já fechados, senão passaríamos a morar ali mesmo até hoje. A segunda coisa de que me lembro é de um amigo lendo a história datilografada para criticá-la, e eu, ao ouvi-lo em voz humana e familiar, tendo de súbito a impressão de que só naquele instante ela nascia, e nascia já feita, como criança nasce. Este momento foi o melhor de todos: o conto ali me foi dado, e eu o recebi, ou ali eu o dei e ele foi recebido, ou as duas coisas que são uma só.
De “O jantar” nada sei.
Uma galinha” foi escrito em cerca de meia hora. Haviam me encomendado uma crônica, eu estava tentando sem tentar propriamente, e terminei não entregando; até que um dia notei que aquela era uma história inteiramente redonda, e senti com que amor a escrevera. Vi também que escrevera um conto, e que ali estava o gosto que sempre tivera por bichos, uma das formas acessíveis de gente.
Começos de uma fortuna” foi escrito mais para ver no que daria tentar uma técnica tão leve que apenas se entremeasse na história. Foi construído meio a frio, e eu guiada apenas pela curiosidade. Mais um exercício de escalas.
Preciosidade” é um pouco irritante, terminei antipatizando com a menina, e depois, pedindo-lhe desculpas por antipatizar, e na hora de pedir desculpas tendo vontade de não pedir mesmo. Terminei arrumando a vida dela mais por desencargo de consciência e por responsabilidade que por amor. Escrever assim não vale a pena, envolve de um modo errado, tira a paciência. Tenho a impressão de que, mesmo se eu pudesse fazer desse conto um conto bom, ele intrinsecamente não prestaria.
Imitação da rosa” usou vários pais e mães para nascer. Houve o choque inicial da notícia de alguém que adoecera, sem eu entender por quê. Houve nesse mesmo dia rosas que me mandaram, e que reparti com uma amiga. Houve essa constante na vida de todos, que é a rosa como flor. E houve tudo o mais que não sei, e que é o caldo de cultura de qualquer história. “Imitação” me deu a chance de usar um tom monótono que me satisfaz muito: a repetição me é agradável, e repetição acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a pouco, cantilena enjoada diz alguma coisa.
O crime do professor de matemática” chamava-se antes “O crime”, e foi publicado. Anos depois entendi que o conto simplesmente não fora escrito. Então escrevi-o. Permanece no entanto a impressão de que continua não escrito. Ainda não entendo o professor de matemática, embora saiba que ele é o que eu disse.
A menor mulher do mundo” me lembra domingo, primavera em Washington, criança adormecendo no colo no meio de um passeio, primeiros calores de maio – enquanto a menor mulher do mundo (uma notícia lida no jornal) intensificava tudo isso num lugar que me parece o nascedouro do mundo: África. Creio que também este conto vem de meu amor por bichos; parece-me que sinto os bichos como uma das coisas ainda muito próximas de Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda quente do próprio nascimento; e, no entanto, coisa já se pondo imediatamente de pé, e já vivendo toda, e em cada minuto vivendo de uma vez, nunca aos poucos apenas, nunca se poupando, nunca se gastando.
O búfalo” me lembra muito vagamente um rosto que vi numa mulher ou em várias, ou em homens; e uma das mil visitas que fiz a jardins zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu olhei para ele, ele sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje. O conto nada tem a ver com isso, foi escrito e deixado de lado. Um dia reli-o e senti um choque de mal-estar e horror.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Quando li o livro

Quando li o livro, a biografia famosa,
E é isto então (disse eu) o que o autor denomina a vida de um homem?
E assim irá alguém quando eu estiver morto escrever minha vida?

(Como se alguém realmente soubesse algo de minha vida,
Ora até eu mesmo frequentemente penso que pouco ou nada sei de minha vida real,
Só algumas dicas, alguns sinais tênues difusos e dissimulações Busco traçar aqui para meu próprio uso.)

Walt Whitman, in Folhas de Relva

Capítulo 18º | A lua vem da Ásia

Chuva, chuva, chuva.
É a primeira chuva a que assisto da minha janela de hóspede — neste verão que bem pode ser a primavera, pois não tenho noção do tempo nem disponho de bússola para me guiar entre as horas do dia e da noite. Ontem o deputado que se senta ao meu lado na mesa garantiu-me que estávamos em agosto, e até fez o sinal da cruz sobre o peito para demonstrar que não estava mentindo; mas eu tenho minhas dúvidas a respeito e continuo acreditando que não estamos sequer em janeiro ou em março, pois o rio que ouço a distância continua a caminhar para a direita e só com a chegada da primavera é que ele se volta para a esquerda e se torna realmente belo.
Presumo que aqui me encontro aproximadamente há uns vinte anos, ou uns cinco pelo menos, pois já me habituei com a cama, as cadeiras e a mesinha de cabeceira, e não sou de me habituar muito depressa com as coisas. Eu poderia, bem sei, perguntar ao criado ou à criada que me servem todos os dias, ou mesmo ao próprio gerente do hotel, ou ainda à sua jovem esposa tão louçã e já tão vesga, o tempo exato em que aqui me encontro e o mês e o ano em que porventura estamos vivendo nesta fria noite de chuva; mas tenho receio de que eles me tomem por um maníaco que está sempre a querer saber as coisas, eu que tenho fama de tão discreto e de tão educado, e prefiro morrer sem saber o dia da minha morte a ter que causar-lhes tamanha decepção.
De resto, a noite não é tão triste assim, e eu bem posso, querendo, sentar-me à beira da cama, colocar as duas mãos na fronte como o faria qualquer sujeito de bom senso, e distrair-me assim com o espetáculo da parede sempre branca e sempre imóvel, a dois palmos do meu nariz. Livros eu não tenho para ler no momento, nem eles dão coisa que preste e que me faça mais sábio do que sou, pelas amostras que já tive nestes últimos tempos (À Bíblia que me deram a ler era exatamente igual a todas as Bíblias que eu já conhecia antes de vir para cá, e o romance policial que de certa feita me emprestou a empregada trazia uma história ingênua e fácil de ser desvendada, como pude verificar logo pelas últimas páginas.) Violão também não tenho, nem piano, nem saxofone, de maneira que a chuva ainda é a melhor coisa que me poderia acontecer nesta noite sem mês e sem ano, já que as paredes brancas e iguais já não me oferecem segredo nenhum, à força de eu me postar diante delas como diante de um espelho.
Exatamente: a noite foi feita para os galos dormirem e os insones roerem a sua insônia. Roerem — não disse bem?
Assombra-me (sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se se houvessem suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. Parecem bonecos de corda a que de repente faltasse a corda, e a sua consciência é também uma simples questão de corda a mais ou a menos, como o é também a sua voz, em tudo igual à de um boneco que fala mamãe. Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre me pareceu mais penosa e meritória do que a do Himalaia ou mesmo a do monte Everest.
Agora a chuva baila em torno da minha cabeça, e no hotel todos dormem ou fingem que dormem pelo menos, num silêncio que marca com exatidão o barulho da chuva sobre o telhado. Seu eu gritasse é possível que a chuva continuasse caindo, mas o silêncio pelo menos deixaria de existir dentro do meu quarto e dentro dos quartos vizinhos, e a chuva já não teria a marcá-la o compasso unânime do sono de todos os imbecis da terra. Vou gritar, espera!... — Não, é melhor eu deixar para gritar amanhã, ou num domingo, que é dia de júbilo universal e é quando todos gritam sem motivo ou pelos motivos mais tolos. Agora vou pentear o cabelo com a água da chuva, olhar um pouco mais o céu indevassável através das grades da janela (por causa dos ladrões) e depois recolher-me ao leito, como uma criança de dois anos. Nos meus bons tempos esta era a hora exatamente de eu sair à rua, de guarda-chuva aberto e a alma escancarada, até que encontrasse um bar simpático que me acolhesse e ao guarda-chuva e nos deixasse ficar a sós até alta madrugada. (Neste hotel, não sei por que, o regime é mais severo do que nos outros, e o hóspede não tem direito de pôr o pé na rua sem falar com o gerente ou com o subgerente, que geralmente lhe negam autorização. Coisas da nova democracia, parece-me.)
Outra coisa que a chuva me faz lembrar sempre são os mortos. Tive um amigo que de certa feita escreveu esta frase lapidar: A chuva dá de beber aos mortos, e talvez por isso eu não possa sentir a chuva sem sentir a presença dos mortos ao meu lado, e até mesmo dentro de mim.
Por outro lado, não é verdade que os mortos hão de sentir-se apavorados dentro da terra encharcada e gotejante, sobretudo os mortos recentes e que ainda não estão acostumados com a sua solidão? Eu, depois de morto, tanto se me dá que chova ou que deixe de chover, mas aquela frase do meu amigo não deixa de ser bela e profundamente inspiradora. Não acredito que a sede seja o que mais importune os mortos no seu silêncio, mas a poesia é sempre necessária e é bom que os poetas estejam lembrando-se dos mortos nos dias de chuva, como uma mãe dos seus filhos.
Agora que já olhei a chuva mais uma vez, e que o silêncio persiste dentro deste hotel mal-assombrado (mudar-me-ei amanhã) — o que me resta a fazer é não fazer nada, como sempre, e esperar que as horas escoem lentamente e que o meu corpo durma antes de mim, ao peso do cansaço e da mais absoluta monotonia. Deitar-me-ei como um faquir sobre os espinhos do meu leito — bela imagem, sem dúvida — apagarei a luz, rezarei um padre-nosso (eu que não creio em Deus nem creio que ele possa crer em mim) e fingirei de morto por algum tempo, só respirando e deixando que me bata o coração, por via das dúvidas. No escuro a noite é completamente escura, como o podem atestar todos os insones da terra, e o jeito que resta é a gente esperar que, mesmo com chuva, a alvorada volte a raiar no vidro da janela, e com ela de novo as esperanças e as ideias felizes, que são sempre as mesmas sempre, apesar de todas as decepções ou talvez por isso mesmo.

Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia

O incivil mestre de cerimônias Kotsuké no Suké

O infame deste capítulo é o incivil mestre de cerimônias Kotsuké no Suké, aziago funcionário que motivou a degradação e a morte do senhor da Torre de Ako e não quis se matar como um cavalheiro quando a vingança apropriada o cominou. É homem que merece a gratidão de todos os homens, porque despertou preciosas lealdades e foi a negra e necessária ocasião de uma empresa imortal. Uma centena de romances, de monografias, de teses doutorais e de óperas comemoram o fato — para não falar das efusões em porcelana, em lápis-lazúli estriado e em laca. Até o versátil celuloide serve para isso, já que a História Doutrinal dos Quarenta e Sete Capitães — tal é o seu nome — é a mais repetida inspiração do cinema japonês. A minuciosa glória que essas ardentes atenções afirmam é algo mais que justificável: é imediatamente justa para qualquer um.
Sigo a redação de A. B. Mitford, que omite as contínuas distrações que a cor local produz, e prefere dar atenção ao movimento do glorioso episódio. Essa boa falta de “orientalismo” permite suspeitar que se trata de uma versão direta do japonês.

O CORDÃO DESATADO

Na esmaecida primavera de 1702, o ilustre senhor da Torre de Ako teve de receber e agasalhar um emissário imperial. Dois mil e trezentos anos de cortesia (alguns mitológicos) tinham complicado angustiosamente o cerimonial da recepção. O emissário representava o imperador, mas à maneira de alusão ou de símbolo: matiz que não era menos improcedente acentuar que atenuar. Para impedir erros muito facilmente fatais, um funcionário da corte de Yedo precedia-o na qualidade de mestre de cerimônias. Longe da comodidade cortesã e condenado a uma villégiature nas montanhas, que deve ter lhe parecido um desterro, Kira Kotsuké no Suké dava, sem graça, as instruções. Às vezes, aumentava até a insolência o tom magistral. Seu discípulo, o senhor da Torre, procurava dissimular essas chacotas. Não sabia revidar e a disciplina lhe vedava toda violência. Uma manhã, porém, o cordão do sapato do mestre se desatou e este lhe pediu que o reatasse. Foi o que fez o cavalheiro com humildade, mas com indignação interior. O incivil mestre de cerimônias disse-lhe que, na verdade, ele era incorrigível, e que só um grosseiro era capaz de dar um nó tão desajeitado. O senhor da Torre sacou a espada e lhe desferiu um golpe. O outro fugiu, apenas com a testa rubricada por um tênue fio de sangue… Dias depois o tribunal militar proferia sentença contra o agressor, condenando-o ao suicídio. No pátio central da Torre de Ako ergueram um estrado de feltro vermelho e nele se mostrou o condenado: entregaram-lhe um punhal de ouro e pedras, e ele confessou publicamente sua culpa e foi se despindo até a cintura e abriu a própria barriga com duas feridas rituais e morreu como um samurai; os espectadores mais distantes não viram sangue porque o feltro era vermelho. Um homem encanecido e cuidadoso decapitou-o com a espada: o conselheiro Kuranosuké, seu padrinho.

O SIMULADOR DA INFÂMIA

A Torre de Takumi no Kami foi confiscada; seus capitães, debandados; sua família, arruinada e obscurecida; seu nome, exposto à execração. Um boato quer que, na mesma noite em que se matou, quarenta e sete de seus capitães deliberaram no cume de uma montanha e planejaram, com toda a precisão, o que se produziu um ano mais tarde. A verdade é que devem ter procedido entre demoras justificadas e que alguns daqueles concílios teve lugar, não no cume difícil de uma montanha, mas numa capela num bosque, medíocre pavilhão de madeira branca, sem outro adorno a não ser a caixa retangular que contém um espelho. Tinham sede de vingança e a vingança deve ter lhes parecido inalcançável.
Kira Kotsuké no Suké, o odiado mestre de cerimônias, fortificara sua casa, e uma nuvem de arqueiros e de esgrimistas custodiava seu palanquim. Contava com espias incorruptíveis, pontuais e secretos. Mais do que a ninguém, espreitavam e vigiavam o pretenso capitão dos vingadores: Kuranosuké, o conselheiro. Este se deu conta por acaso e fundou o projeto de vingança sobre esse dado.
Mudou-se para Kyoto, cidade insuperável em todo o império pela cor de seus outonos.
Deixou-se arrebatar pelos lupanares, pelas casas de jogo e pelas tabernas. Apesar das cãs, acotovelou-se com rameiras e com poetas, e até com gente pior. Uma vez o expulsaram de uma taberna e amanheceu adormecido no umbral, a cabeça estatelada num vômito.
Um homem de Satsuma reconheceu-o e disse com tristeza e com ira: “Não é este, porventura, aquele conselheiro de Asano Takumi no Kami, que o ajudou a morrer e que, em vez de vingar seu senhor, se entrega a deleites e à vergonha? Oh, tu, indigno do nome de Samurai!”.
Pisou-lhe o rosto adormecido e cuspiu nele. Quando os espias denunciaram aquela passividade, Kotsuké no Suké sentiu um grande alívio.
Os fatos não pararam aí. O conselheiro despediu a mulher e o filho mais novo, e comprou uma amante num lupanar, famosa infâmia que alegrou o coração e relaxou a temerosa prudência do inimigo. Este acabou por despachar a metade de seus guardas.
Numa das noites atrozes do inverno de 1703, os quarenta e sete capitães encontraram-se num jardim abandonado dos arredores de Yedo, perto de uma ponte e da fábrica de baralhos. Iam com as bandeiras de seu senhor. Antes de empreender o assalto, avisaram os vizinhos que não se tratava de um atentado, mas de uma operação militar de estrita justiça.

A CICATRIZ

Dois bandos atacaram o palácio de Kira Kotsuké no Suké. O conselheiro comandou o primeiro, que atacou a porta da frente; o segundo, seu filho mais velho, que ia completar dezesseis anos e que morreu naquela noite. A história sabe os diversos momentos daquele pesadelo tão lúcido: a descida arriscada e pendular pelas escadas de corda, o tambor do ataque, a precipitação dos defensores, os arqueiros postados no terraço, o reto destino das flechas rumo aos órgãos vitais do homem, as porcelanas infamadas pelo sangue, a morte ardente que depois é glacial; os impudores e as desordens da morte. Nove capitães morreram; os defensores não eram menos valentes e não quiseram se render. Pouco depois da meia-noite toda a resistência cessou.
Kira Kotsuké no Suké, razão ignominiosa daquelas lealdades, não aparecia. Procuraram-no por todos os cantos daquele comovido palácio e já desesperavam de encontrá-lo quando o conselheiro notou que os lençóis estavam ainda mornos. Voltaram a procurar e descobriram uma janela estreita, dissimulada por um espelho de bronze. Embaixo, de um patiozinho sombrio, olhava para eles um homem de branco. Uma espada trêmula estava em sua direita. Quando desceram, o homem entregou-se sem lutar. Riscava-lhe a testa uma cicatriz: velho desenho do aço de Takumi no Kami.
Então, os sangrentos capitães lançaram-se aos pés do homem execrado e disseram-lhe que eram os oficiais do senhor da Torre, de cuja perdição e de cujo fim ele era o culpado, e pediram-lhe que se suicidasse, como um samurai deve fazê-lo.
Em vão propuseram aquele decoro a seu espírito servil. Era varão inacessível à honra; de madrugada tiveram de degolá-lo.

O TESTEMUNHO

Já satisfeita sua vingança (mas sem ira e sem agitação e sem dó), os capitães dirigiram-se ao templo que guarda as relíquias de seu senhor.
Num caldeirão levam a incrível cabeça de Kira Kotsuké no Suké e se revezam para cuidar dela. Atravessam os campos e as províncias, à luz sincera do dia. Os homens os bendizem e choram. O príncipe de Sendai quer hospedá-los, mas respondem que já faz dois anos que seu senhor os aguarda. Chegam ao obscuro sepulcro e oferecem a cabeça do inimigo.
A Suprema Corte emite seu veredicto. É o esperado: foi-lhes outorgado o privilégio do suicídio. Todos o cumprem, alguns com ardente serenidade, e repousam ao lado de seu senhor. Homens e crianças vêm rezar ao pé do sepulcro daqueles homens tão fiéis.

O HOMEM DE SATSUMA

Entre os peregrinos que acodem, há um rapaz poeirento e cansado que deve ter vindo de longe. Prosterna-se diante do monumento de Oishi Kuranosuké, o conselheiro, e diz em voz alta: “Eu te vi estendido na porta de um lupanar de Kyoto e não pensei que estavas meditando a vingança de teu senhor, e te julguei um soldado sem fé e te cuspi no rosto. Vim dar-te satisfação”. Disse isso e cometeu harakiri.
O prior condoeu-se de sua valentia e deu-lhe sepultura no lugar onde os capitães repousam.
Esse é o fim da história dos quarenta e sete homens leais — salvo que não tem fim, porque os outros homens, nós que não somos talvez leais mas que jamais vamos perder de todo a esperança de sê-lo, continuaremos a honrá-los com palavras.

Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia

O jardim abandonado

Guimarães Rosa escreveu sobre um jardim abandonado. “Sem gente, virara-se em matagalzinho, sílvula, pequena brenha. À expansa, nos canteiros surgiam bruscas espécies, viajadas no ar: a daninha formosa, a meiga praga, os capins que entrementes pululam...”.
Lembrei-me então de um haicai de Bashô, também sobre um jardim abandonado:

Na velha casa
que abandonei
as cerejeiras florescem.

Era assunto de uma conversa com uma amiga, quando ela se lembrou do filme O jardim secreto. Fiquei com vontade de contá-lo por ser muito bonito, baseado em um clássico da literatura inglesa.
São quatro os personagens principais: uma menina que fica órfã e vai morar na casa do tio, uma daquelas casas de campo inglesas que mais se parecem com palácios, cercada por uma infinidade de jardins floridos; um menino que nascera lá mesmo e conhecia todos os segredos do lugar; um outro menino que era mantido na cama – dizia-se que era doente e que, para curar-se, deveria ficar na cama, sem fazer esforço, num quarto escuro e de janelas fechadas, para o vento não entrar; e, como não poderia deixar de ser, uma governanta truculenta encarregada de tomar conta do menino supostamente doente.
O menino que ali nascera levou sua amiguinha para conhecer tudo que havia, mas encontraram uma coisa misteriosa para a qual ele não teve explicações. Era um muro alto, de forma circular, fechado em si mesmo, que não tinha porta de entrada. Toda a parede do muro estava coberta de hera, sinal de que fazia muito tempo que ninguém entrava lá.
Lá dentro, depois se soube, havia um jardim selvagem que em outros tempos havia sido o mais belo jardim da propriedade. Era o jardim do dono da casa, que passava longos tempos ali com a esposa a quem muito amava, no meio das flores e dos perfumes. Num canto do jardim havia um balanço, brinquedo de que todo mundo gosta.
Aconteceu, entretanto, uma tragédia (não me lembro bem o que foi) que tirou a vida da esposa amada. O marido, dilacerado pela dor, trancou o jardim para que ninguém entrasse e o abandonou. Haverá melhor símbolo para um coração dilacerado que um jardim abandonado e selvagem?
Mas o menino e a menina ficaram mordidos de curiosidade e começaram e explorar a hera que cobria o muro, até que encontraram uma porta com uma fechadura. Mas eles não tinham a chave! Puseram-se então numa atividade de detetives, examinando todas as gavetas, todas as caixas da casa, todos os chaveiros, até que a encontraram. Tinham em mãos a chave que lhes abriria o jardim secreto! E foi o que fizeram.
Selvagem, abandonado – mas absolutamente maravilhoso. Passaram, secretamente, a cuidar do jardim. Havia todo tipo de espinhos e de ervas daninhas, mas havia também árvores gigantescas que se alongavam para os céus.
Foi então, e só então, que começaram a ouvir gemidos num quarto da casa, um quarto em que lhes era vedado entrar. Aproveitando-se da ausência da governanta, esgueiraram-se para dentro do quarto e conheceram um menino magro, triste, esquálido, no escuro, longe do vento. Bolaram então um plano: sequestrar o menino e levá-lo para visitar o jardim secreto. E esse foi o início da cura do menino, da restauração do jardim e do retorno da alegria para aquele espaço fechado, que desde então ficou aberto.
O jardim fechado e abandonado é símbolo da tristeza, da morte do amor. As plantas selvagens, as pragas, os animais peçonhentos tomam conta de tudo. E aquele menino doente era um jardim fechado, doente pela ausência da beleza. A beleza dá vida. O jardim é o símbolo da vida e do amor. Foi por isso que o primeiro ato de Deus foi plantar um jardim.
Lá, no alto de uma montanha de Minas, há um jardim. Quem o visse teria de dizer: “Que belo!”. Porém agora está meio abandonado, do jeito que Guimarães Rosa descreveu. Mas não tem importância, não. Vou procurar a chave que deixei não sei onde. E, enquanto procuro, olho para as árvores. E, à semelhança de Bashô, escrevo o meu haicai:

E no jardim que abandonei
um pinheiro e um jequitibá
fazem cócegas nas nuvens…

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado