quinta-feira, 30 de junho de 2022
Natureza viva
A vida brota. E é toda olhos. Cada gota contém a luz do mundo. E cada cálice é uma boca ávida. A tua mão — fechada em maldição — abre-se em concha, agora…
Mário Quintana, in Caderno H
Paixão
Encolhida
no chão, você parece uma trouxa que algum mendigo largou aí, sem
temer que o roubassem porque não há nada de valor nesse saco sujo.
É você. O pó que se levanta das sandálias da multidão — a
multidão que corre para ver o espetáculo — cobre-a por completo.
Sua boca está cheia de areia e uma pedra pontiaguda é cravada em
seu esterno. Alguém a pisoteia. Você continua imóvel. Um cachorro
faminto, selvagem, vem cheirá-la. Você continua imóvel. Você
pensa em veneno, em raízes amargas assassinas, nas presas afiadas
das serpentes do deserto que tantas vezes você segurou, pensa em
acabar com tudo rápido.
Você
sabe, a única coisa que sabe, é que não poderá viver sem ele. O
que não sabe, e nunca saberá, é se ele a amou. Isso é algo que só
sabe quem foi amado algum dia. Você não é uma dessas pessoas. Sua
mãe foi embora deixando-a catarrenta, magra e nua. Um animalzinho
molhado na porta da casa de seus avós.
Ela
foi embora procurar homens, diziam eles, dizia a gente da aldeia
cobrindo o canto da boca. Usavam para falar dela essa palavra que
depois, não muito mais tarde, foi sua, coube em você como um
vestido justo, contagiou-a como uma doença.
Você
não sabe, também, que sua mãe queria que você se salvasse dela,
disso que você herdou e que se parece tanto com uma graça quanto
com uma maldição.
A
primeira profecia que você cumpriu foi a de “você é igual à sua
mãe”. Batiam em você para que não fosse igual à sua mãe
enquanto gritavam você é igual à sua mãe. Certa noite, por volta
dos seus doze, treze anos, você se atrasou na volta de sua ocupação
favorita: recolher raízes, ervas e flores para depois, em casa,
fervê-las, amassá-las, misturá-las e ver o que acontecia. Você
voltou correndo com o alforje cheio, levantando poeira com suas
sandálias, sujando a barra da saia e as pessoas, ao verem-na passar
toda suada, ofegando, balançavam a cabeça como dizendo
“pobrezinha”, como dizendo “outra como a mãe”.
Ela,
sua avó, ele, seu avô, lhe bateram tanto que você perdeu para
sempre a audição do ouvido direito e agora manca de uma das pernas.
Com uma vara de loureiro — aquela vara de loureiro — rasgaram
suas costas, as nádegas, o peito diminuto, até deixar tiras de pele
penduradas, como uma laranja meio descascada.
Gritavam,
gritavam, e açoitavam, açoitavam. À luz do fogo, suas sombras
pareciam gigantes furiosos. Você fechou os olhos. Você se
enrodilhou no chão, apertou a pedra cinza que sua mãe atara ao seu
pescoço e disse para si mesma “que eles me matem, ou então vão
ver”.
Mas
eles não te mataram.
Você
despertou de madrugada quase se afogando com seu próprio sangue.
Você cuspiu, vomitou e, com uma dor agonizante, conseguiu se erguer.
Devagar, muito devagar, cobriu com um de seus emplastros cada ferida
e as envolveu com panos. Você foi até seu alforje, procurou um
recipiente e ali, no escuro, misturou com o almofariz várias ervas e
raízes, acrescentou algumas gotas de um líquido que brilhou —
amarelo — à luz da lua. Seus olhos, também amarelos, se
iluminaram como os de um gato.
Isso
ninguém viu.
Você
pôs o recipiente com a mistura no fogo, sussurrou algumas palavras —
que soaram como um cântico, uma reza, um feitiço —, cobriu com a
palma da mão sua pedra cinza, pegou suas coisas e foi embora dali.
Quando
encontraram seus avós, eles estavam secos, desidratados, esticados
como as cobras ocas que às vezes aparecem nas veredas.
Diziam,
aqueles que os encontraram, que estavam marrons e que tinham os olhos
saltados das órbitas e as mandíbulas inumanamente abertas.
Diziam,
aqueles que os encontraram, que pareciam ter morrido de terror.
Seu
paradeiro se perdeu durante muitos anos. Mais uma menina perdida num
mundo de meninas perdidas. Alguns diziam que você havia se unido aos
nômades e percorria as aldeias dançando e mostrando os peitos por
algumas moedas. Outros asseguravam que você tinha matado uns homens
que queriam roubar o pingente — a pedra — de sua mãe. Outros
ainda estavam convencidos de que você havia morrido leprosa,
destroçada e sozinha. Que alguém que conhecia alguém que conhecia
alguém a tinha visto agonizante num leprosário, trancada numa
masmorra com outros assassinos, dançando sem roupa diante de homens
excitados.
Na
verdade, ninguém se importava com sua vida e a única coisa que
queriam saber era que diabos você tinha feito com seus avós para
que amanhecessem secos como galhos.
Começaram
a chamá-la também de outra coisa, como sua mãe, e a usavam, usavam
seu nome, para assustar as crianças.
Um
dia lhe disseram que ali, naquela terra maldita que você tinha
jurado não voltar a pôr os pés, havia um homem especial e que você
devia conhecê-lo. Você nunca poderá dizer claramente por quê, mas
desfez o caminho percorrido durante tantos anos. Você andou por
quilômetros e quilômetros, despedaçou suas sandálias e chegou
certa manhã, descalça, o cabelo emaranhado, a pele queimada.
Ele
parecia estar esperando por você. Pediu uma tina de água limpa e se
ajoelhou para lavar, com uma delicadeza quase feminina, seus pés
sujos e cheios de chagas. Você nunca poderá dizer claramente por
quê, talvez porque esse tenha sido o único ato de ternura que já
lhe haviam dedicado — a você, criatura das surras, filha da
brutalidade, princesa das noites que terminam com as mulheres
sangrando —, mas naquele instante você tomou a decisão de
oferecer sua vida a ele, de fazer o que ele quisesse, o que fosse, de
ser barro nas mãos dele, ser sua, sua escrava.
Ele
perguntou seu nome e o repetiu com uma doçura que fez com que você
chorasse as primeiras lágrimas, suas lágrimas, menina, que se
tornariam lenda. Então ele estendeu a mão e secou-lhe as lágrimas
e disse — sim, você não está inventando, ele disse — que a
amava.
Disse:
eu te amo.
Já
não havia como voltar atrás. A órfã, a humilhada, a maltratada, a
aleijada, a meio surda, a puta, a assassina, a leprosa já não
existiam — nunca mais existiriam.
Era
você diante dele.
E
você diante dele era uma mulher extraordinária. A melhor das
mulheres.
E
se um cachorro, que é um ser de pouco entendimento, segue fielmente
a quem lhe acaricia a cabeça e o lombo, como você não ia segui-lo
até mesmo ao inferno? Como não faria até o impossível para
fazê-lo feliz, para ajudá-lo a cumprir suas promessas? Assim, como
um cachorro agradecido, você se sentava aos pés dele e ficava
observando-o, escutando-o enlevada, louca de amor, como se da boca
dele saíssem uvas, mel, jasmim, pássaros.
Às
vezes, enquanto ele contava suas doces histórias de pescadores e
pastores, você apertava a pedra cinza de seu peito e apareciam mais
vinte, trinta, quarenta pessoas a escutá-lo como você: com devoção
infantil, como se ele fosse um mago, como se de sua boca saíssem
pássaros e mel.
Você
sabia que isso o fazia feliz.
E
então, muita gente começou a segui-lo. Ele mudou. As histórias se
tornaram receitas; os relatos, ordens. Ele começou a falar de coisas
que você não entendia, que na verdade ninguém entendia, coisas
mágicas, santas, talvez sacrilégios. Para você, nada disso
importava.
Os
outros já não deixavam que você o tocasse — com exceção da
túnica, das sandálias —, e ele já não visitava sua tenda com
tanta frequência, com tanta urgência. Restava a lembrança de seu
cheiro de homem do deserto que não saía de suas narinas, de seu
corpo, de seu vestido. Um cheiro que nunca desapareceu, que até o
último instante de sua vida a fazia tremer. Ele era seu, agora um
enviado dos céus, dizia, mas seu. E você era dele. Por isso você
apertou a pedra em seu pescoço quando ficaram sem vinho naquelas
bodas e você fez aparecer peixe e pão onde não havia nada mais que
pedras e areia — porque em sua solidão, você aprendeu que a água,
as pedras, a areia lhe obedeciam.
Por
isso você também aplicou, sem que ninguém a visse, sem que ninguém
quisesse vê-la, seu unguento nos olhos brancos do mendigo, que os
abriu e disse “milagre”, e você se escondeu no sepulcro daquele
homem para inflar seus pulmões mortos com o sopro da vida — na
ocasião você invocou forças que não devia, a morte é a morte,
mas é muito tarde para se arrepender — e conseguiu que o cadáver
se levantasse, que andasse e que ele se preenchesse — mais, cada
dia mais — de glória.
Mas
isto você não ia permitir. Que ele morresse. Não: que se deixasse
matar. Isso você não ia permitir. Você tentou impedir, falou-lhe
do unguento, das pedras que se tornaram alimento, do vinho que era
água, dos olhos brancos, vazios, daquele mendigo, do cadáver que
andou, da pedra que você carrega no pescoço, das forças que você
invocou, infinitamente mais poderosas que você e ele. Mas ele não
acreditou em você. Ele a pôs de lado com violência — ele, com
violência —, e você caiu, e ali do chão, você olhou para ele e
viu deus. Esse homem era seu deus. E ele disse que você era
mentirosa, disse que você era impostora, disse que você era louca,
e ele falou:
— Afaste-se
das minhas vistas, mulher.
Se
um cachorro permanece na porta daquele que lhe dá migalhas de pão e
mostra as presas, disposto a despedaçar qualquer um para protegê-lo,
como você não ia defendê-lo até mesmo de si mesmo, de sua própria
convicção? Por isso, no dia em que o levaram e lhe fizeram todos
aqueles horrores, você apertou a pedra e o céu se carregou até se
converter numa massa de lava cinzenta, e seu pranto — ai, seu
pranto — fez com que as pessoas há milhares de quilômetros
começassem a chorar, fazendo amor, lavrando a terra, lavando a roupa
num rio, em sonhos.
Quando
a cabeça dele pendeu sobre o peito, inerte, você se enrodilhou toda
e as pessoas pisotearam-na e um cachorro selvagem a farejou e você
pensou em venenos e quis morrer ali mesmo, mas então você começou
a chorar. E seu pranto, mulher de lágrima viva, fez uma poça na
qual você molhou seu vestido como se fosse um sudário, e nua, sem
que ninguém a visse, sem que ninguém quisesse vê-la, você se
enfiou no sepulcro no qual, horas depois, o depositariam:
esquelético, ensanguentado, mortíssimo.
Com
suas costas pregadas na pedra fria, seu corpo pálido, de moribunda,
você o viu se levantar e sorriu para ele. Usava no pescoço a pedra
cinza, ou seja, usava sua força, seu sangue, sua seiva. A luz que
entrou no sepulcro quando ele mexeu a pedra lhe permitiu vê-lo pela
última vez: belo, divino, sobrenaturalmente amado.
Ele
olhou para você, você está quase certa de que ele olhou para você,
e com seu último alento — você estava morrendo — você disse
algo a ele, você o chamou, estendeu a mão. A palavra amor pendia no
teto como uma estalactite. Mas ele continuou andando ao encontro de
seus fanáticos que gritavam, que se jogavam na areia de joelhos, que
cobriam o rosto com as mãos.
E
não voltou os olhos para trás.
María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos
Asa branca | Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1947
Maior
sucesso do Rei do Baião e um dos nossos “hinos nacionais
populares”, “Asa branca” foi composta por Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira, em 1947, a partir de um tema folclórico que o
sanfoneiro conhecia desde a infância. Após uma década e meia
longe, Luiz Gonzaga (1912-1989) tinha visitado a cidade de Exu, no
sertão pernambucano, onde nasceu, e, ao retornar ao Rio, mostrou ao
parceiro a canção. Teixeira mexeu em alguns versos, acrescentou
outros, consolidando o lirismo e as fortes imagens da seca que
castigava sem tréguas a região e forçava a imigração de seu povo
para o Sul. Em ritmo de toada, a música tocou fundo no coração dos
brasileiros. Além das muitas gravações de Gonzaga, foi adotada por
intérpretes de diferentes estilos e gerações, ganhou até versões
sinfônicas, virando um hino do Nordeste e de sua gente.
Radicado
no Rio de Janeiro desde 1940, Gonzagão sobrevivia a duras penas,
tocando valsas, polcas, tangos, foxtrotes e boleros em bares da zona
de prostituição. Na época, os ritmos nordestinos que tinham feito
tanto sucesso nas duas primeiras décadas do século XX estavam
relegados à sua região, eram vistos como cafonas no Sudeste
brasileiro. Até que, uma noite, atendendo aos pedidos de um grupo de
estudantes nordestinos de passagem pela então capital federal,
Gonzaga voltou aos sons de pé de serra que seu pai Januário tocava.
Para sua surpresa, conseguiu empolgar a plateia e percebeu que aquele
diferencial era um filão a ser explorado. Já em 1941 compôs os
chamegos “Pé de serra” e “Vira e mexe” – tendo, este
último, lhe rendido o primeiro prêmio no programa de calouros de
Ary Barroso e um contrato para gravar na RCA Victor.
Nos
anos seguintes, com seu repertório de chamegos, xotes e baiões,
adotou um visual próprio, com roupas de couro, adereços de
boiadeiro e chapéu de cangaceiro, que, segundo um de seus fãs,
Gilberto Gil, fez dele o primeiro popstar brasileiro. Essa
metamorfose se completou em fins de 1945, quando conheceu o seu
principal letrista, o advogado cearense Humberto Teixeira
(1915-1979). No ano seguinte, a dupla fez “Baião”, lançada pelo
grupo vocal Quatro Ases e Um Coringa, com Gonzagão tocando sanfona.
A canção popularizou um ritmo e uma dança que faziam sucesso no
Nordeste desde o fim do século XIX. O Brasil inteiro aprendeu como
se dança o baião, e Luiz Gonzaga virou rei de vez em 1947, nas asas
de “Asa branca”.
Nélson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
Adiamento
Depois
de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)
Capítulo 1 | Óbito do Autor
Algum
tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha
morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é
que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor,
para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito
ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a
sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical
entre este livro e o Pentateuco.
Dito
isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de
agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta
e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de
trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce
que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante,
tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última
hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à
beira de minha cova: – “Vós, que o conhecestes, meus senhores,
vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda
irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a
humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens
escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor
crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo
isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom
e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim
que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem
as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego,
como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido.
Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, –
minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, – a filha, um
lírio-do-vale, – e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi
quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima,
ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade,
padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse
rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente
dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos,
não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E
dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo.
De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca
entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
– Morto!
morto! dizia consigo.
E
a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu
desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das
ruínas e dos tempos, – a imaginação dessa senhora também voou
por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África
juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu
me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente,
metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos
homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e
o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá
fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte
foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante
chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns
ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à
imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e
lodo, e coisa nenhuma.
Morri
de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que
uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que
o leitor me não creia, e todavia é verdade.
Vou
expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
quarta-feira, 29 de junho de 2022
As mãos de meu filho
Todos
aqueles homens e mulheres ali na plateia sombria parecem apagados
habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento,
prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão
fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o
pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um
monstro todo feito de nervos sonoros. Beethoven.
Há
momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade
profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio.
Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de
melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico.
Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado.
Beethoven
lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A
música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho.
Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais
profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e
para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em
mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não
encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa
espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração.
Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há
felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo.
Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.
Adágio.
O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os
envolve parece participar daquela mágoa profunda. Num dado momento
as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas
cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no
teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a
mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol... A melodia, no
entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o
desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo
continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e
ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de
repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por
diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam
numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas
mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos
selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma
daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial,
contam uma história diferente.
Quando
o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns
rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações
param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida.
Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor.
O pianista está agora voltado para a plateia, sorrindo lividamente,
como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem
os aplausos.
Dentro
de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo
mágico.
Suggestion
Diabolique.
D.
Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os
calos. Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.
Mexe
os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele
está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho... Um teatro
deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas,
os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos
parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho!
D.
Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a
seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra,
a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking!
O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro,
lembra um palhaço de circo.
D.
Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe
as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música
que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua
atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na
cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes
legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus
pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo
Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta
maravilhosa: as suas mãos... Deitado no berço, com os dedinhos meio
murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa
misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os
olhos sempre fitos nas mãos...
De
novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível
quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o
Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado
estava desempregado... Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava
caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. “Ó Inocêncio,
vamos tomar um traguinho?” Lá se iam, entravam no primeiro boteco.
E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado
para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o
cheiro de caninha. “Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo
outra vez!” Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se
ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café
bem forte sem açúcar, voltava para a Singer, e ficava pedalando
horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar,
com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia...
De
súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D.
Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas,
sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço
vermelho e pregueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para o
público, sorri, alisa os cabelos. (“Que lindos cabelos tem o meu
filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um
rapagão bonito.”)
A
escuridão torna a submergir a plateia. A luz fantástica envolve
pianista piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros.
Navarra.
Embalada
pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta
ao passado.
Como
foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau
caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os
olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos
de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava
interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era
andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias,
mentindo... — Inocêncio, quando é que tu crias juízo?
O
pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele
homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem
jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do
marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa,
pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer
funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho. Um
dia Inocêncio fez uma proposta:
— Escuta
aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras...
— Minha Nossa!
Será que tu queres fazer casas ou pregar botões?
— Olha, mulher.
(Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar
a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita.
Ela
desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu
cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo
mês o homem relaxou... No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta
que conseguira cobrar.
Mas
D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto
está tocando agora... E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai
sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam... Quem diria que
aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda
esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos... o diabo!
— é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando
na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada
Militar…
De
novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da
mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se
alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada
de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro
contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o
povo: “Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe
dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa,
pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam!
Vejam!”
A
luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas
de Chopin.
No
fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só
para a mãe. Ele viu... Mas não tem direito de se queixar... O rapaz
não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude
Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinquenta por
cento das palmas devem vir para ela. Cinquenta ou sessenta? Talvez
sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse
para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de
Margarida que fizeram dele um grande pianista.
Na
sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve
participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu
na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas
como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! As vezes,
quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão
confiado, tão tranquilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar.
Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo
emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir
aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava
com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de
estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O
José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam... No fim de contas
ele não era nenhum santo.
Inocêncio
contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é
bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que
belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir.
A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue
abri-la... adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos... É
capaz até de ficar por lá... esquecer os pais. Não. Gilberto nunca
esquecerá a mãe. O pai, sim... E é bem-feito. O pai nunca teve
vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo. Lágrimas brotam nos
olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia
escolher um repertório mais alegre.
No
atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer
alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura: —
Margarida...
A
mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada.
— Chit!
Inocêncio
recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna
a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho,
Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer
afugentá-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo,
fazendo suas faces e suas orelhas arderem.
Ele
tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse
sem nenhuma piedade:
— Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!
Aquilo
lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes
como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.
No
saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos
dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor
gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda: — Estou
impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a
cintura da mãe:
— Reparto
com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite... Tudo que sou,
devo a ela.
— Não
diga isso, Betinho!
D.
Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de
novo a conversa. Novos admiradores chegam.
Inocêncio,
de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um
sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do
corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que
sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.
Afasta-se
na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as
estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores
paradas... Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não
poder voltar ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a
vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias...
O
porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado
para outro, sob a marquise.
— Linda
noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa.
O
outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando.
— Linda
mesmo.
Pausa
curta.
— Não
vê que sou o pai do moço do concerto...
— Pai?
Do pianista?
O
porteiro para, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz:
— O
menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.
Inocêncio
sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.
— Pois
imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor
sabe que nós fomos muito pobres... Pois é. Fomos. Roemos um osso
duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia... o Betinho tinha seis
meses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós botamos ele na
nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um
frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas
minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado,
com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O
senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o
mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir
no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto,
preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a
metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado,
com a cabeça pesada. Veja como são as coisas... Se eu tivesse
esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas
músicas difíceis... Não podia ser o artista que é.
Cala-se.
Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do
seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a
assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de
repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças
uma nota amarrotada de cinquenta mil-réis e mete-a na mão do
mulato.
— Para tomar um traguinho — cochicha.
E
fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.
Érico Veríssimo, in Os cem melhores contos brasileiros do século
Deus e Ratzinger
Que
pensará Deus de Ratzinger? Que pensará Deus da Igreja Católica
Apostólica Romana de que este Ratzinger é soberano papa? Que eu
saiba (e escusado será dizer que sei bastante pouco), até hoje
ninguém se atreveu a formular estas heréticas perguntas, talvez por
saber-se, de antemão, que não há nem haverá nunca resposta para
elas. Como escrevi em horas de vã interrogação metafísica, há
uns bons quinze anos, Deus é o silêncio do universo e o homem o
grito que dá sentido a esse silêncio. Está nos Cadernos de
Lanzarote e tem sido frequentemente citado por teólogos do país
vizinho que tiveram a bondade de me ler. Claro que para que Deus
pense alguma coisa de Ratzinger ou da igreja que o papa anda a querer
salvar de uma morte mais do que previsível, seja por inanição seja
por não encontrar ouvidos que a escutem nem fé que lhe reforce os
alicerces, será necessário demonstrar a existência do dito Deus,
tarefa entre todas impossível, não obstante as supostas provas
arquitectadas por Santo Anselmo ou aquele exemplo de Santo Agostinho,
de esvaziar os oceanos com um balde furado ou mesmo sem furo nenhum.
Do que Deus, caso exista, deve estar agradecido a Ratzinger é pela
preocupação que este tem manifestado nos últimos tempos sobre o
delicado estado da fé católica. A gente não vai à missa, deixou
de acreditar nos dogmas e cumprir preceitos que para os seus
antepassados, na maior parte dos casos, constituíram a base da
própria vida espiritual, senão também da vida material, como
sucedeu, por exemplo, com muitos dos banqueiros dos primórdios do
capitalismo, severos calvinistas, e, tanto quanto é possível supor,
de uma honestidade pessoal e profissional à prova de qualquer
tentação demoníaca em forma de subprime. O leitor estará
talvez a pensar que esta súbita inflexão no transcendente assunto
que me havia proposto abordar, o sínodo episcopal reunido em Roma,
se destinaria, afinal, a introduzir, com mais ou menos jeito
dialéctico, uma crítica ao comportamento irregular (é o mínimo
que se pode dizer) dos banqueiros nossos contemporâneos. Não foi
essa a minha intenção nem essa é a minha competência, se alguma
tenho.
Voltemos
então a Ratzinger. A este homem, decerto inteligente e informado,
com uma vida activíssima nos âmbitos vaticanais e adjacentes (baste
dizer que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
continuadora, por outros métodos, do ominoso Tribunal do Santo
Ofício, mais conhecido por Inquisição), ocorreu-lhe algo que não
se esperaria de alguém com a sua responsabilidade, cuja fé devemos
respeitar, mas não a expressão do seu pensamento medieval.
Escandalizado com os laicismos, frustrado pelo abandono dos fiéis,
abriu a boca na missa com que iniciou o sínodo para soltar
enormidades como esta: “Se olhamos a História, vemo-nos obrigados
a admitir que não são únicos este distanciamento e esta rebelião
dos cristãos incoerentes. Em consequência disso, Deus, embora não
faltando nunca à sua promessa de salvação, teve de recorrer amiúde
ao castigo”. Na minha aldeia dizia-se que Deus castiga sem pau nem
pedra, por isso é de temer que venha por aí outro dilúvio que
afogue de uma vez os ateus, os agnósticos, os laicos em geral e
outros fautores de desordem espiritual. A não ser, sendo os
desígnios de Deus infinitos e ignotos, que o actual presidente dos
Estados Unidos já tenha sido parte do castigo que nos está
reservado. Tudo é possível se o quer Deus. Com a imprescindível
condição de que exista, claro está. Se não existe (pelo menos
nunca falou com Ratzinger), então tudo isto são histórias que já
não assustam ninguém. Que Deus é eterno, dizem, e tem tempo para
tudo. Eterno será, admitamo-lo para não contrariar o papa, mas a
sua eternidade é só a de um eterno não-ser.
José Saramago, in O Caderno
A explicação que não explica
Não
é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um
romance. Depois que se despegam de mim, também eu os estranho. Não
se trata de transe, mas a concentração no escrever parece
tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente
dito. Alguma coisa, porém, posso tentar reconstituir, se é que
importa, e se responde ao que me foi perguntado.
O
que me lembro do conto “Feliz aniversário”, por exemplo, é da
impressão de uma festa que não foi diferente de outras diferentes
de aniversário; mas aquele era um dia pesado de verão, e acho até
que nem pus a ideia de verão no conto. Tive uma impressão, de onde
resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e
necessidade de aprofundar o que se sente. Anos depois, ao deparar com
essas linhas, a história inteira nasceu, com uma rapidez de quem
estivesse transcrevendo cena já vista – e no entanto nada do que
escrevi aconteceu naquela ou em outra festa. Muito tempo depois um
amigo perguntou-me de quem era aquela avó. Respondi que era a avó
dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio
espontânea, e com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e
dela eu só conhecera, em criança, um retrato, nada mais.
“Mistério
em São Cristóvão” é mistério para mim: fui escrevendo
tranquilamente como quem desenrola um novelo de linha. Não encontrei
a menor dificuldade. Creio que a ausência de dificuldade veio da
própria concepção do conto: sua atmosfera talvez precisasse dessa
minha atitude de isenção, de certa não participação. A falta de
dificuldade é capaz de ter sido técnica interna, modo de abordar,
delicadeza, distração fingida.
De
“Devaneio e embriaguez duma rapariga” sei que me diverti tanto
que foi mesmo um prazer escrever. Enquanto durou o trabalho, estava
sempre de um bom humor diferente do diário e, apesar de os outros
não chegarem a notar, eu falava à moda portuguesa, fazendo, ao que
me parece, experiência de linguagem. Foi ótimo escrever sobre a
portuguesa.
De
“Os laços de família” não gravei nada.
Do
conto “Amor” lembro duas coisas: uma, ao escrever da intensidade
com que inesperadamente caí com o personagem dentro de um Jardim
Botânico não calculado, e de onde quase não conseguimos sair, de
tão encipoados e meio hipnotizados – a ponto de eu ter que fazer
meu personagem chamar o guarda para abrir os portões já fechados,
senão passaríamos a morar ali mesmo até hoje. A segunda coisa de
que me lembro é de um amigo lendo a história datilografada para
criticá-la, e eu, ao ouvi-lo em voz humana e familiar, tendo de
súbito a impressão de que só naquele instante ela nascia, e nascia
já feita, como criança nasce. Este momento foi o melhor de todos: o
conto ali me foi dado, e eu o recebi, ou ali eu o dei e ele foi
recebido, ou as duas coisas que são uma só.
De
“O jantar” nada sei.
“Uma
galinha” foi escrito em cerca de meia hora. Haviam me encomendado
uma crônica, eu estava tentando sem tentar propriamente, e terminei
não entregando; até que um dia notei que aquela era uma história
inteiramente redonda, e senti com que amor a escrevera. Vi também
que escrevera um conto, e que ali estava o gosto que sempre tivera
por bichos, uma das formas acessíveis de gente.
“Começos
de uma fortuna” foi escrito mais para ver no que daria tentar uma
técnica tão leve que apenas se entremeasse na história. Foi
construído meio a frio, e eu guiada apenas pela curiosidade. Mais um
exercício de escalas.
“Preciosidade”
é um pouco irritante, terminei antipatizando com a menina, e depois,
pedindo-lhe desculpas por antipatizar, e na hora de pedir desculpas
tendo vontade de não pedir mesmo. Terminei arrumando a vida dela
mais por desencargo de consciência e por responsabilidade que por
amor. Escrever assim não vale a pena, envolve de um modo errado,
tira a paciência. Tenho a impressão de que, mesmo se eu pudesse
fazer desse conto um conto bom, ele intrinsecamente não prestaria.
“Imitação
da rosa” usou vários pais e mães para nascer. Houve o choque
inicial da notícia de alguém que adoecera, sem eu entender por quê.
Houve nesse mesmo dia rosas que me mandaram, e que reparti com uma
amiga. Houve essa constante na vida de todos, que é a rosa como
flor. E houve tudo o mais que não sei, e que é o caldo de cultura
de qualquer história. “Imitação” me deu a chance de usar um
tom monótono que me satisfaz muito: a repetição me é agradável,
e repetição acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a
pouco, cantilena enjoada diz alguma coisa.
“O
crime do professor de matemática” chamava-se antes “O crime”,
e foi publicado. Anos depois entendi que o conto simplesmente não
fora escrito. Então escrevi-o. Permanece no entanto a impressão de
que continua não escrito. Ainda não entendo o professor de
matemática, embora saiba que ele é o que eu disse.
“A
menor mulher do mundo” me lembra domingo, primavera em Washington,
criança adormecendo no colo no meio de um passeio, primeiros calores
de maio – enquanto a menor mulher do mundo (uma notícia lida no
jornal) intensificava tudo isso num lugar que me parece o nascedouro
do mundo: África. Creio que também este conto vem de meu amor por
bichos; parece-me que sinto os bichos como uma das coisas ainda muito
próximas de Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda
quente do próprio nascimento; e, no entanto, coisa já se pondo
imediatamente de pé, e já vivendo toda, e em cada minuto vivendo de
uma vez, nunca aos poucos apenas, nunca se poupando, nunca se
gastando.
“O
búfalo” me lembra muito vagamente um rosto que vi numa mulher ou
em várias, ou em homens; e uma das mil visitas que fiz a jardins
zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu olhei para ele, ele
sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje. O conto nada tem
a ver com isso, foi escrito e deixado de lado. Um dia reli-o e senti
um choque de mal-estar e horror.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Quando li o livro
Quando
li o livro, a biografia famosa,
E
é isto então (disse eu) o que o autor denomina a vida de um homem?
E
assim irá alguém quando eu estiver morto escrever minha vida?
(Como
se alguém realmente soubesse algo de minha vida,
Ora
até eu mesmo frequentemente penso que pouco ou nada sei de minha
vida real,
Só
algumas dicas, alguns sinais tênues difusos e dissimulações Busco
traçar aqui para meu próprio uso.)
Walt Whitman, in Folhas de Relva
Capítulo 18º | A lua vem da Ásia
Chuva,
chuva, chuva.
É
a primeira chuva a que assisto da minha janela de hóspede — neste
verão que bem pode ser a primavera, pois não tenho noção do tempo
nem disponho de bússola para me guiar entre as horas do dia e da
noite. Ontem o deputado que se senta ao meu lado na mesa garantiu-me
que estávamos em agosto, e até fez o sinal da cruz sobre o peito
para demonstrar que não estava mentindo; mas eu tenho minhas dúvidas
a respeito e continuo acreditando que não estamos sequer em janeiro
ou em março, pois o rio que ouço a distância continua a caminhar
para a direita e só com a chegada da primavera é que ele se volta
para a esquerda e se torna realmente belo.
Presumo
que aqui me encontro aproximadamente há uns vinte anos, ou uns cinco
pelo menos, pois já me habituei com a cama, as cadeiras e a mesinha
de cabeceira, e não sou de me habituar muito depressa com as coisas.
Eu poderia, bem sei, perguntar ao criado ou à criada que me servem
todos os dias, ou mesmo ao próprio gerente do hotel, ou ainda à sua
jovem esposa tão louçã e já tão vesga, o tempo exato em que aqui
me encontro e o mês e o ano em que porventura estamos vivendo nesta
fria noite de chuva; mas tenho receio de que eles me tomem por um
maníaco que está sempre a querer saber as coisas, eu que tenho fama
de tão discreto e de tão educado, e prefiro morrer sem saber o dia
da minha morte a ter que causar-lhes tamanha decepção.
De
resto, a noite não é tão triste assim, e eu bem posso, querendo,
sentar-me à beira da cama, colocar as duas mãos na fronte como o
faria qualquer sujeito de bom senso, e distrair-me assim com o
espetáculo da parede sempre branca e sempre imóvel, a dois palmos
do meu nariz. Livros eu não tenho para ler no momento, nem eles dão
coisa que preste e que me faça mais sábio do que sou, pelas
amostras que já tive nestes últimos tempos (À Bíblia que me deram
a ler era exatamente igual a todas as Bíblias que eu já conhecia
antes de vir para cá, e o romance policial que de certa feita me
emprestou a empregada trazia uma história ingênua e fácil de ser
desvendada, como pude verificar logo pelas últimas páginas.) Violão
também não tenho, nem piano, nem saxofone, de maneira que a chuva
ainda é a melhor coisa que me poderia acontecer nesta noite sem mês
e sem ano, já que as paredes brancas e iguais já não me oferecem
segredo nenhum, à força de eu me postar diante delas como diante de
um espelho.
Exatamente:
a noite foi feita para os galos dormirem e os insones roerem a sua
insônia. Roerem — não disse bem?
Assombra-me
(sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se
recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se se
houvessem suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no
dia seguinte. Parecem bonecos de corda a que de repente faltasse a
corda, e a sua consciência é também uma simples questão de corda
a mais ou a menos, como o é também a sua voz, em tudo igual à de
um boneco que fala mamãe. Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre
uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre
me pareceu mais penosa e meritória do que a do Himalaia ou mesmo a
do monte Everest.
Agora
a chuva baila em torno da minha cabeça, e no hotel todos dormem ou
fingem que dormem pelo menos, num silêncio que marca com exatidão o
barulho da chuva sobre o telhado. Seu eu gritasse é possível que a
chuva continuasse caindo, mas o silêncio pelo menos deixaria de
existir dentro do meu quarto e dentro dos quartos vizinhos, e a chuva
já não teria a marcá-la o compasso unânime do sono de todos os
imbecis da terra. Vou gritar, espera!... — Não, é melhor eu
deixar para gritar amanhã, ou num domingo, que é dia de júbilo
universal e é quando todos gritam sem motivo ou pelos motivos mais
tolos. Agora vou pentear o cabelo com a água da chuva, olhar um
pouco mais o céu indevassável através das grades da janela (por
causa dos ladrões) e depois recolher-me ao leito, como uma criança
de dois anos. Nos meus bons tempos esta era a hora exatamente de eu
sair à rua, de guarda-chuva aberto e a alma escancarada, até que
encontrasse um bar simpático que me acolhesse e ao guarda-chuva e
nos deixasse ficar a sós até alta madrugada. (Neste hotel, não sei
por que, o regime é mais severo do que nos outros, e o hóspede não
tem direito de pôr o pé na rua sem falar com o gerente ou com o
subgerente, que geralmente lhe negam autorização. Coisas da nova
democracia, parece-me.)
Outra
coisa que a chuva me faz lembrar sempre são os mortos. Tive um amigo
que de certa feita escreveu esta frase lapidar: A chuva dá de beber
aos mortos, e talvez por isso eu não possa sentir a chuva sem sentir
a presença dos mortos ao meu lado, e até mesmo dentro de mim.
Por
outro lado, não é verdade que os mortos hão de sentir-se
apavorados dentro da terra encharcada e gotejante, sobretudo os
mortos recentes e que ainda não estão acostumados com a sua
solidão? Eu, depois de morto, tanto se me dá que chova ou que deixe
de chover, mas aquela frase do meu amigo não deixa de ser bela e
profundamente inspiradora. Não acredito que a sede seja o que mais
importune os mortos no seu silêncio, mas a poesia é sempre
necessária e é bom que os poetas estejam lembrando-se dos mortos
nos dias de chuva, como uma mãe dos seus filhos.
Agora
que já olhei a chuva mais uma vez, e que o silêncio persiste dentro
deste hotel mal-assombrado (mudar-me-ei amanhã) — o que me resta a
fazer é não fazer nada, como sempre, e esperar que as horas escoem
lentamente e que o meu corpo durma antes de mim, ao peso do cansaço
e da mais absoluta monotonia. Deitar-me-ei como um faquir sobre os
espinhos do meu leito — bela imagem, sem dúvida — apagarei a
luz, rezarei um padre-nosso (eu que não creio em Deus nem creio que
ele possa crer em mim) e fingirei de morto por algum tempo, só
respirando e deixando que me bata o coração, por via das dúvidas.
No escuro a noite é completamente escura, como o podem atestar todos
os insones da terra, e o jeito que resta é a gente esperar que,
mesmo com chuva, a alvorada volte a raiar no vidro da janela, e com
ela de novo as esperanças e as ideias felizes, que são sempre as
mesmas sempre, apesar de todas as decepções ou talvez por isso
mesmo.
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
O incivil mestre de cerimônias Kotsuké no Suké
O
infame deste capítulo é o incivil mestre de cerimônias Kotsuké no
Suké, aziago funcionário que motivou a degradação e a morte do
senhor da Torre de Ako e não quis se matar como um cavalheiro quando
a vingança apropriada o cominou. É homem que merece a gratidão de
todos os homens, porque despertou preciosas lealdades e foi a negra e
necessária ocasião de uma empresa imortal. Uma centena de romances,
de monografias, de teses doutorais e de óperas comemoram o fato —
para não falar das efusões em porcelana, em lápis-lazúli estriado
e em laca. Até o versátil celuloide serve para isso, já que a
História Doutrinal dos Quarenta e Sete Capitães — tal é o seu
nome — é a mais repetida inspiração do cinema japonês. A
minuciosa glória que essas ardentes atenções afirmam é algo mais
que justificável: é imediatamente justa para qualquer um.
Sigo
a redação de A. B. Mitford, que omite as contínuas distrações
que a cor local produz, e prefere dar atenção ao movimento do
glorioso episódio. Essa boa falta de “orientalismo” permite
suspeitar que se trata de uma versão direta do japonês.
O
CORDÃO DESATADO
Na
esmaecida primavera de 1702, o ilustre senhor da Torre de Ako teve de
receber e agasalhar um emissário imperial. Dois mil e trezentos anos
de cortesia (alguns mitológicos) tinham complicado angustiosamente o
cerimonial da recepção. O emissário representava o imperador, mas
à maneira de alusão ou de símbolo: matiz que não era menos
improcedente acentuar que atenuar. Para impedir erros muito
facilmente fatais, um funcionário da corte de Yedo precedia-o na
qualidade de mestre de cerimônias. Longe da comodidade cortesã e
condenado a uma villégiature nas montanhas, que deve ter lhe
parecido um desterro, Kira Kotsuké no Suké dava, sem graça, as
instruções. Às vezes, aumentava até a insolência o tom
magistral. Seu discípulo, o senhor da Torre, procurava dissimular
essas chacotas. Não sabia revidar e a disciplina lhe vedava toda
violência. Uma manhã, porém, o cordão do sapato do mestre se
desatou e este lhe pediu que o reatasse. Foi o que fez o cavalheiro
com humildade, mas com indignação interior. O incivil mestre de
cerimônias disse-lhe que, na verdade, ele era incorrigível, e que
só um grosseiro era capaz de dar um nó tão desajeitado. O senhor
da Torre sacou a espada e lhe desferiu um golpe. O outro fugiu,
apenas com a testa rubricada por um tênue fio de sangue… Dias
depois o tribunal militar proferia sentença contra o agressor,
condenando-o ao suicídio. No pátio central da Torre de Ako ergueram
um estrado de feltro vermelho e nele se mostrou o condenado:
entregaram-lhe um punhal de ouro e pedras, e ele confessou
publicamente sua culpa e foi se despindo até a cintura e abriu a
própria barriga com duas feridas rituais e morreu como um samurai;
os espectadores mais distantes não viram sangue porque o feltro era
vermelho. Um homem encanecido e cuidadoso decapitou-o com a espada: o
conselheiro Kuranosuké, seu padrinho.
O
SIMULADOR DA INFÂMIA
A
Torre de Takumi no Kami foi confiscada; seus capitães, debandados;
sua família, arruinada e obscurecida; seu nome, exposto à
execração. Um boato quer que, na mesma noite em que se matou,
quarenta e sete de seus capitães deliberaram no cume de uma montanha
e planejaram, com toda a precisão, o que se produziu um ano mais
tarde. A verdade é que devem ter procedido entre demoras
justificadas e que alguns daqueles concílios teve lugar, não no
cume difícil de uma montanha, mas numa capela num bosque, medíocre
pavilhão de madeira branca, sem outro adorno a não ser a caixa
retangular que contém um espelho. Tinham sede de vingança e a
vingança deve ter lhes parecido inalcançável.
Kira
Kotsuké no Suké, o odiado mestre de cerimônias, fortificara sua
casa, e uma nuvem de arqueiros e de esgrimistas custodiava seu
palanquim. Contava com espias incorruptíveis, pontuais e secretos.
Mais do que a ninguém, espreitavam e vigiavam o pretenso capitão
dos vingadores: Kuranosuké, o conselheiro. Este se deu conta por
acaso e fundou o projeto de vingança sobre esse dado.
Mudou-se
para Kyoto, cidade insuperável em todo o império pela cor de seus
outonos.
Deixou-se
arrebatar pelos lupanares, pelas casas de jogo e pelas tabernas.
Apesar das cãs, acotovelou-se com rameiras e com poetas, e até com
gente pior. Uma vez o expulsaram de uma taberna e amanheceu
adormecido no umbral, a cabeça estatelada num vômito.
Um
homem de Satsuma reconheceu-o e disse com tristeza e com ira: “Não
é este, porventura, aquele conselheiro de Asano Takumi no Kami, que
o ajudou a morrer e que, em vez de vingar seu senhor, se entrega a
deleites e à vergonha? Oh, tu, indigno do nome de Samurai!”.
Pisou-lhe
o rosto adormecido e cuspiu nele. Quando os espias denunciaram aquela
passividade, Kotsuké no Suké sentiu um grande alívio.
Os
fatos não pararam aí. O conselheiro despediu a mulher e o filho
mais novo, e comprou uma amante num lupanar, famosa infâmia que
alegrou o coração e relaxou a temerosa prudência do inimigo. Este
acabou por despachar a metade de seus guardas.
Numa
das noites atrozes do inverno de 1703, os quarenta e sete capitães
encontraram-se num jardim abandonado dos arredores de Yedo, perto de
uma ponte e da fábrica de baralhos. Iam com as bandeiras de seu
senhor. Antes de empreender o assalto, avisaram os vizinhos que não
se tratava de um atentado, mas de uma operação militar de estrita
justiça.
A
CICATRIZ
Dois
bandos atacaram o palácio de Kira Kotsuké no Suké. O conselheiro
comandou o primeiro, que atacou a porta da frente; o segundo, seu
filho mais velho, que ia completar dezesseis anos e que morreu
naquela noite. A história sabe os diversos momentos daquele pesadelo
tão lúcido: a descida arriscada e pendular pelas escadas de corda,
o tambor do ataque, a precipitação dos defensores, os arqueiros
postados no terraço, o reto destino das flechas rumo aos órgãos
vitais do homem, as porcelanas infamadas pelo sangue, a morte ardente
que depois é glacial; os impudores e as desordens da morte. Nove
capitães morreram; os defensores não eram menos valentes e não
quiseram se render. Pouco depois da meia-noite toda a resistência
cessou.
Kira
Kotsuké no Suké, razão ignominiosa daquelas lealdades, não
aparecia. Procuraram-no por todos os cantos daquele comovido palácio
e já desesperavam de encontrá-lo quando o conselheiro notou que os
lençóis estavam ainda mornos. Voltaram a procurar e descobriram uma
janela estreita, dissimulada por um espelho de bronze. Embaixo, de um
patiozinho sombrio, olhava para eles um homem de branco. Uma espada
trêmula estava em sua direita. Quando desceram, o homem entregou-se
sem lutar. Riscava-lhe a testa uma cicatriz: velho desenho do aço de
Takumi no Kami.
Então,
os sangrentos capitães lançaram-se aos pés do homem execrado e
disseram-lhe que eram os oficiais do senhor da Torre, de cuja
perdição e de cujo fim ele era o culpado, e pediram-lhe que se
suicidasse, como um samurai deve fazê-lo.
Em
vão propuseram aquele decoro a seu espírito servil. Era varão
inacessível à honra; de madrugada tiveram de degolá-lo.
O
TESTEMUNHO
Já
satisfeita sua vingança (mas sem ira e sem agitação e sem dó), os
capitães dirigiram-se ao templo que guarda as relíquias de seu
senhor.
Num
caldeirão levam a incrível cabeça de Kira Kotsuké no Suké e se
revezam para cuidar dela. Atravessam os campos e as províncias, à
luz sincera do dia. Os homens os bendizem e choram. O príncipe de
Sendai quer hospedá-los, mas respondem que já faz dois anos que seu
senhor os aguarda. Chegam ao obscuro sepulcro e oferecem a cabeça do
inimigo.
A
Suprema Corte emite seu veredicto. É o esperado: foi-lhes outorgado
o privilégio do suicídio. Todos o cumprem, alguns com ardente
serenidade, e repousam ao lado de seu senhor. Homens e crianças vêm
rezar ao pé do sepulcro daqueles homens tão fiéis.
O
HOMEM DE SATSUMA
Entre
os peregrinos que acodem, há um rapaz poeirento e cansado que deve
ter vindo de longe. Prosterna-se diante do monumento de Oishi
Kuranosuké, o conselheiro, e diz em voz alta: “Eu te vi estendido
na porta de um lupanar de Kyoto e não pensei que estavas meditando a
vingança de teu senhor, e te julguei um soldado sem fé e te cuspi
no rosto. Vim dar-te satisfação”. Disse isso e cometeu harakiri.
O
prior condoeu-se de sua valentia e deu-lhe sepultura no lugar onde os
capitães repousam.
Esse
é o fim da história dos quarenta e sete homens leais — salvo que
não tem fim, porque os outros homens, nós que não somos talvez
leais mas que jamais vamos perder de todo a esperança de sê-lo,
continuaremos a honrá-los com palavras.
Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia
segunda-feira, 27 de junho de 2022
O jardim abandonado
Guimarães
Rosa escreveu sobre um jardim abandonado. “Sem gente, virara-se em
matagalzinho, sílvula, pequena brenha. À expansa, nos canteiros
surgiam bruscas espécies, viajadas no ar: a daninha formosa, a meiga
praga, os capins que entrementes pululam...”.
Lembrei-me
então de um haicai de Bashô, também sobre um jardim abandonado:
Na
velha casa
que
abandonei
as
cerejeiras florescem.
Era
assunto de uma conversa com uma amiga, quando ela se lembrou do filme
O jardim secreto. Fiquei com vontade de contá-lo por ser
muito bonito, baseado em um clássico da literatura inglesa.
São
quatro os personagens principais: uma menina que fica órfã e vai
morar na casa do tio, uma daquelas casas de campo inglesas que mais
se parecem com palácios, cercada por uma infinidade de jardins
floridos; um menino que nascera lá mesmo e conhecia todos os
segredos do lugar; um outro menino que era mantido na cama –
dizia-se que era doente e que, para curar-se, deveria ficar na cama,
sem fazer esforço, num quarto escuro e de janelas fechadas, para o
vento não entrar; e, como não poderia deixar de ser, uma governanta
truculenta encarregada de tomar conta do menino supostamente doente.
O
menino que ali nascera levou sua amiguinha para conhecer tudo que
havia, mas encontraram uma coisa misteriosa para a qual ele não teve
explicações. Era um muro alto, de forma circular, fechado em si
mesmo, que não tinha porta de entrada. Toda a parede do muro estava
coberta de hera, sinal de que fazia muito tempo que ninguém entrava
lá.
Lá
dentro, depois se soube, havia um jardim selvagem que em outros
tempos havia sido o mais belo jardim da propriedade. Era o jardim do
dono da casa, que passava longos tempos ali com a esposa a quem muito
amava, no meio das flores e dos perfumes. Num canto do jardim havia
um balanço, brinquedo de que todo mundo gosta.
Aconteceu,
entretanto, uma tragédia (não me lembro bem o que foi) que tirou a
vida da esposa amada. O marido, dilacerado pela dor, trancou o jardim
para que ninguém entrasse e o abandonou. Haverá melhor símbolo
para um coração dilacerado que um jardim abandonado e selvagem?
Mas
o menino e a menina ficaram mordidos de curiosidade e começaram e
explorar a hera que cobria o muro, até que encontraram uma porta com
uma fechadura. Mas eles não tinham a chave! Puseram-se então numa
atividade de detetives, examinando todas as gavetas, todas as caixas
da casa, todos os chaveiros, até que a encontraram. Tinham em mãos
a chave que lhes abriria o jardim secreto! E foi o que fizeram.
Selvagem,
abandonado – mas absolutamente maravilhoso. Passaram, secretamente,
a cuidar do jardim. Havia todo tipo de espinhos e de ervas daninhas,
mas havia também árvores gigantescas que se alongavam para os céus.
Foi
então, e só então, que começaram a ouvir gemidos num quarto da
casa, um quarto em que lhes era vedado entrar. Aproveitando-se da
ausência da governanta, esgueiraram-se para dentro do quarto e
conheceram um menino magro, triste, esquálido, no escuro, longe do
vento. Bolaram então um plano: sequestrar o menino e levá-lo para
visitar o jardim secreto. E esse foi o início da cura do menino, da
restauração do jardim e do retorno da alegria para aquele espaço
fechado, que desde então ficou aberto.
O
jardim fechado e abandonado é símbolo da tristeza, da morte do
amor. As plantas selvagens, as pragas, os animais peçonhentos tomam
conta de tudo. E aquele menino doente era um jardim fechado, doente
pela ausência da beleza. A beleza dá vida. O jardim é o símbolo
da vida e do amor. Foi por isso que o primeiro ato de Deus foi
plantar um jardim.
Lá,
no alto de uma montanha de Minas, há um jardim. Quem o visse teria
de dizer: “Que belo!”. Porém agora está meio abandonado, do
jeito que Guimarães Rosa descreveu. Mas não tem importância, não.
Vou procurar a chave que deixei não sei onde. E, enquanto procuro,
olho para as árvores. E, à semelhança de Bashô, escrevo o meu
haicai:
E
no jardim que abandonei
um
pinheiro e um jequitibá
fazem
cócegas nas nuvens…
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado