terça-feira, 31 de maio de 2022
Nietzschiana
– Meu
pai, ah que me esmaga a sensação do nada!
– Já
sei, minha filha... É atavismo.
E
ela reluzia com as mil cintilações do Êxito intacto.
Manuel Bandeira, in Estrela da manhã
Calma, Cláudio
Calma,
Cláudio. Eu te amo do jeito que você é. Só queria que você fosse
um pouco mais parecido comigo. Eu sei que você é você e eu sou eu.
Mas eu preferia que você fosse um pouco mais eu e menos você. Seria
mais fácil pra mim. Já tô acostumada a lidar comigo. Quase não
brigo comigo mesma. Quando brigo, esqueço rápido. Eu me perdoo com
muita facilidade, Cláudio. Se você fosse eu, eu te perdoaria
rapidinho.
Calma,
Cláudio. Eu te amo do jeito que você é. Mas é que você ficou tão
igualzinho a mim. E de mim já basta eu. Eu já não tenho paciência
pra mim. Vou ter pra você? Eu sei que você também não prestava
quando você era aquela outra pessoa tão diferente de mim. O que eu
queria é que você fosse um meio-termo entre aquela outra pessoa que
você era e eu. Nem oito nem oitenta, Cláudio.
Calma,
Cláudio. É que assim ficou meio meio-termo demais. Eu só queria
que você fosse uma pessoa menos meia-terma, uma pessoa menos menas,
e fosse uma pessoa mais mais, mais muito, mais muito mais. Eu sei que
eu disse nem oito nem oitenta, Cláudio, mas eu estava pensando em
oitocentos. Oitocentos e oitenta e oito, Cláudio. Pode ser?
Calma,
Cláudio. Assim tá over. Baixa a bola, segura essa onda. Assim
parece que cheirou pó. Eu sei que fui eu que mandei você mudar. Mas
desse jeito que você tá mudando, dá pra ver que fui eu que mandei
você mudar. Queria que você mudasse porque você quis e não porque
fui eu que mandei. Eu sei que foi porque você quis mas você só
quis porque eu quis que você quisesse. Eu queria que você quisesse
ser o que eu queria antes de saber que era assim que eu queria que
você fosse. Eu só queria que você fosse uma pessoa que quisesse
coisas, Cláudio.
Calma,
Cláudio. Estou falando de coisas. Lá foi você querer pessoas. Quem
diria, Cláudio. Até você. Correndo atrás de pessoas. Eu sei que
eu falei. Mas para de me ouvir. Eu só queria que você fosse uma
pessoa que não se importasse tanto em ser a pessoa que eu queria que
você fosse. É difícil gostar de uma pessoa que quer tanto ser a
pessoa que você gostaria que ela fosse, Cláudio. Calma, Cláudio.
Não deixa de se importar comigo assim. Eu só queria que você não
deixasse de gostar de mim só porque descobriu que eu não gostava de
você do jeito que você era e continuasse gostando igual você
gostava antes. O problema é que agora eu comecei a gostar tanto de
você, Cláudio. Assim mesmo, do jeito que você é. Volta, Cláudio.
Gregório Duvivier, in Put some farofa
O açougue do outro lado da rua
No
que pensa o açougueiro enquanto corta a carne, no açougue do outro
lado da rua?
É
o que tentam adivinhar, concentrados, os alunos de filosofia, através
da janela aberta da sala de aula.
O
aluno sentimental responde à pergunta do professor: pensa na mulher
e nos filhos.
O
aluno rebelde propõe com ironia: pensa nos cães e nos gatos que não
têm nada para comer.
O
aluno ambicioso encolhe os ombros e, pragmático, afirma: pensa no
lucro com a carne dos animais ainda não abatidos.
E
o aluno romântico dispara, sem enganos: pensa nas flores e no
mar!...
O
professor enfileira as respostas e todos os alunos engordam com a
certeza: agora sabem no que pensa o açougueiro enquanto corta a
carne!
Radomir Andric, in Exceto uma coisa
Copacabana | Braguinha e Alberto Ribeiro, 1946
Muito
antes de Tom e Vinicius apresentarem a vizinha Ipanema ao mundo,
Braguinha (ou João de Barro) e Alberto Ribeiro (1902-1971) criaram
este hino de louvor para a “Princesinha do Mar”. Lançado em
disco por Dick Farney, em 1946, com arranjo para orquestra de Radamés
Gnattali, “Copacabana” era um samba diferente, moderno para a
época, ganhando um tratamento sofisticado, que, somado ao canto cool
de Farney, em muitos aspectos antecipou a estética minimalista da
bossa nova.
O
grande sucesso, dominando as paradas brasileiras por mais de um ano,
veio acompanhado de acusações de plágio. A melodia do samba-canção
lembra vagamente o início de “I’ll remember April” (Gene de
Paul, Patricia Johnston e Don Raye), lançada na trilha sonora de um
filme de 1942 da dupla de comediantes Abbott & Costello, Ride
‘em Cowboy (que no Brasil ganhou o título de Cavaleiros da
galhofa). Braguinha não seria estúpido de “plagiary” logo
um popularíssimo standard americano. Coincidência ou não,
“Copacabana” foi escrita em 1944, para um musical que não chegou
a ser montado, e teve como ponto de partida outra composição da
dupla Braguinha e Ribeiro. É um samba curto, com apenas 12 versos
que exaltam as belezas da praia carioca: “Nenhuma tem o encanto /
que tu possuis.”
O
impacto inicial de “Copacabana” deve ser creditado também à
interpretação magistral do pianista e cantor Dick Farney
(1921-1987). Nascido no Rio de Janeiro como Farnésio Dutra e Silva,
ele teve formação clássica e era apaixonado pelo jazz. Até gravar
este samba-canção, após muita insistência de Braguinha, Farney só
cantava em inglês. Entre os anos de 1947 e 1948, ele chegou a viver
e trabalhar nos Estados Unidos, onde, entre outros compromissos, foi
contratado como cantor fixo no programa de rádio do comediante
Milton Berle. Com os sucessos de “Copacabana” e “Marina”
(esta de Dorival Caymmi), que ele tinha gravado para a Continental
antes de se radicar nos EUA, Farney voltou ao Brasil, ajudando a
plantar as sementes da bossa nova.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
Uma estranha charada
— E
esta — disse Jane Helier, completando suas apresentações — é
miss Marple!
Como
atriz, ela conseguiu atingir seu intento. Era claramente o clímax, o
gran finale triunfal! Seu tom era uma mistura de admiração
reverente e triunfo.
O
estranho é que o objeto tão orgulhosamente proclamado era apenas
uma velhota solteirona, afável, detalhista. Os olhos dos dois jovens
que haviam sido recém-apresentados a ela pelos bons ofícios de
Jane, mostraram incredulidade e um traço de desalento.
Eram
pessoas de boa aparência; a moça, Charmian Stroud, esbelta e
morena; o homem, Edward Rossiter, um jovem gigante, amável e de
cabelos loiros.
— Oh!
Estamos muito felizes de conhecê-la! — Charmian disse de um
fôlego.
Mas
havia dúvida em seus olhos. Ela lançou um olhar rápido e
inquiridor a Jane Helier.
— Querida
— disse Jane respondendo ao olhar —, ela é absolutamente
maravilhosa. Deixe tudo com ela. Eu lhe disse que a traria
aqui e trouxe — e acrescentou para miss Marple: — Você vai
resolver para eles, eu sei. Vai ser fácil para você.
Miss
Marple virou seus plácidos olhos azul-turquesa para mr. Rossiter.
— Poderia
me dizer — ela perguntou — do que se trata tudo isso?
— Jane
é uma amiga nossa — interrompeu Charmian ardendo de impaciência.
— Edward e eu estamos numa encrenca. A Jane disse que se pudéssemos
vir à sua festa, ela nos apresentaria a alguém que ia... que
iria... que poderia...
Edward
veio em seu socorro:
— A
Jane nos contou que a senhora é a fina flor dos detetives, miss
Marple!
Os
olhos da velha senhora reluziram, mas ela protestou modestamente:
— Oh,
não, não! Nada disso. Ocorre que vivendo numa cidadezinha como a
que eu vivo, a gente acaba conhecendo bem a natureza humana. Mas
vocês me deixaram realmente curiosa. Contem-me qual é o problema de
vocês.
— Temo
que seja terrivelmente banal... apenas um tesouro enterrado — disse
Edward.
— Mesmo?
Mas isso parece muito excitante!
— Eu
sei. Como A Ilha do Tesouro. Mas nosso problema não tem os toques
românticos usuais. Nenhum ponto num mapa indicado por uma caveira e
ossos cruzados, nenhuma orientação como “quatro passos para a
esquerda, oeste por norte”. É terrivelmente prosaico... indica
apenas onde nós devemos cavar.
— Vocês
já tentaram?
— Posso
dizer que cavamos cerca de oito quilômetros quadrados! O local está
pronto para virar uma horta comercial. Só estamos discutindo se
vamos plantar abobrinhas ou batatas.
Charmian
o cortou bruscamente:
— Que
acha de lhe contar logo tudo sobre o caso?
— Mas,
claro, minha querida.
— Então
vamos encontrar um lugar calmo. Venha, Edward.
Ela
abriu caminho pela sala apinhada de gente e repleta de fumaça, e
eles subiram a escada até uma saleta de estar no segundo andar.
Mal
eles se sentaram, Charmian começou intempestivamente:
— Bem,
aí vai! A história começa com o tio Mathew, tio, ou melhor,
tio-avô de nós dois. Ele era muito velho. Edward e eu éramos seus
únicos parentes. Ele gostava de nós e sempre declarou que quando
morresse deixaria seu dinheiro para nós dois. Bem, ele morreu em
março passado e deixou tudo que tinha para ser dividido igualmente
entre Edward e eu. O que acabei de dizer parece rude... não quis
dizer que foi bom que ele tenha morrido... na verdade, nós éramos
muito afeiçoados a ele, mas já fazia algum tempo que ele estava
doente.
— A
questão é que o “tudo” que ele deixou se revelou, na prática,
absolutamente nada. E isso, francamente, foi um pequeno golpe para
nós dois, não foi, Edward?
O
amável Edward concordou.
— Sabe
— ele disse —, nós contávamos um bocado com isso. Isto é,
quando a gente sabe que vai receber uma bolada de dinheiro, a
gente... bem... não se empenha para ganhar a vida por conta própria.
Eu estou no Exército e não recebo nada além do meu soldo, a
Charmian não tem um tostão. Trabalha como contrarregra num teatro
de repertório. Muito interessante, e ela gosta, mas dinheiro que é
bom, nada. Nós contávamos em nos casar, mas não estávamos
preocupados com o lado pecuniário porque sabíamos que ficaríamos
muito bem de vida algum dia.
— E
agora, como vê, não ficamos! — disse Charmian. — Além disso,
Ansteys é a propriedade da família, e Edward e eu a amamos, e
provavelmente teremos que vendê-la. E Edward e eu sentimos que não
conseguiremos suportar isso! Mas se não acharmos o dinheiro do tio
Mathew, teremos de vender.
— Sabe,
Charmian, ainda não chegamos ao ponto vital — disse Edward.
— Bem,
fale você, então.
Edward
virou-se para miss Marple.
— É
o seguinte. À medida que envelhecia, o tio Mathew foi ficando cada
vez mais cismado. Ele não confiava em ninguém.
— Muito
sábio da parte dele — disse miss Marple. — A depravação da
natureza humana é inacreditável.
— Bem,
a senhora pode ter razão. Seja como for, o tio Mathew pensava assim.
Ele tinha um amigo que perdeu todo seu dinheiro em um banco, e outro
que foi arruinado por um advogado fujão, e ele próprio perdeu algum
dinheiro numa companhia fraudulenta. Ele chegou ao ponto de
sustentar, durante muito tempo, que a única coisa segura a fazer era
converter seu dinheiro em lingotes sólidos e enterrá-lo.
— Ah
— exclamou miss Marple —, começo a entender.
— Sim.
Amigos discutiram com ele, apontaram que ele não receberia nenhum
juro dessa maneira, mas ele sustentava que isso realmente não tinha
importância. O grosso do seu dinheiro, ele dizia, deveria ser
“mantido numa caixa debaixo da cama ou enterrado no jardim”.
Essas foram suas palavras.
— E
quando ele morreu — Charmian prosseguiu —, não deixou quase nada
em ações, embora fosse muito rico. De modo que nós pensamos que
foi isso que ele deve ter feito.
— Descobrimos
que ele tinha vendido ações e sacado grandes somas de dinheiro de
tempos em tempos, e ninguém sabe o que fez com elas. Mas parece
provável que ele tenha vivido de acordo com seus princípios,
comprado ouro e o enterrado — Edward explicou.
— Ele
não disse nada antes de morrer? Deixou algum papel? Alguma carta?
— Essa
é a parte desesperadora da coisa. Não deixou. Ficou inconsciente
por alguns dias, mas se reanimou antes de morrer. Ele olhou para nós
e deu uma risadinha... uma risadinha fraca, apagada. Ele disse “Vocês
ficarão bem, meu lindo casal de pombinhos”. E aí ele deu um
tapinha no olho, seu olho direito, e piscou para nós. E logo em
seguida... morreu. Pobre tio Mathew.
— Ele
deu um tapinha no olho — disse miss Marple pensativa.
Edward
disse ansiosamente:
— Isso
faz algum sentido para a senhora? Me fez lembrar uma história de
Arsène Lupin em que havia alguma coisa oculta no olho de vidro de um
homem. Mas o tio Mathew não tinha um olho de vidro.
Miss
Marple abanou a cabeça.
— Não...
não consigo pensar em nada por enquanto.
— A
Jane nos disse que a senhora indicaria na hora onde cavar! —
Charmian disse, decepcionada.
Miss
Marple sorriu.
— Não
sou tão feiticeira, sabe. Não conheci o seu tio, ou que tipo de
homem ele era, e não conheço a casa ou o terreno.
— E
se os conhecesse? — Charmian disse.
— Bem,
deve ser bem simples, de fato, não deve? — disse miss Marple.
— Simples!
— disse Charmian. — Venha até Ansteys e veja se é simples!
É
possível que ela não tenha feito o convite a sério, mas miss
Marple disse prontamente:
— Bem,
minha querida, é muita gentileza sua. Eu sempre quis ter a chance de
procurar um tesouro escondido. E — acrescentou, olhando para eles
com um sorriso pudico radiante — com um interesse amoroso, também!
— Viu
só! — disse Charmian, gesticulando dramaticamente.
Eles
haviam terminado um grande giro por Ansteys. Haviam contornado a
horta, totalmente revirada. Haviam atravessado os pequenos bosques,
onde o entorno de cada árvore importante fora escavado, e observado
entristecidos a superfície esburacada do antes liso gramado. Haviam
subido até o sótão, onde velhos baús e arcas haviam sido pilhados
de seus conteúdos. Haviam descido aos porões, onde ladrilhos do
piso haviam sido arrancados deliberadamente de seus encaixes. Haviam
feito medições e dado pancadinhas em paredes, e haviam mostrado a
miss Marple cada peça de mobília antiga que continha ou poderia ser
suspeita de conter uma gaveta secreta.
Sobre
uma mesa na sala de desjejum havia uma pilha de papéis, todos os
papéis que o falecido Mathew Stroud havia deixado. Nenhum fora
destruído, e Charmian e Edward criaram o hábito de voltar a eles a
todo momento, vasculhando atentamente contas, convites e
correspondência comercial na esperança de topar com uma pista que
passara despercebida.
— Consegue
pensar em algum lugar que não olhamos? — perguntou Charmian,
esperançosa.
Miss
Marple abanou a cabeça.
— Parece
que vocês foram muito meticulosos, minha querida. Talvez, se posso
dizer, um tantinho meticulosos demais. Sabem, eu sempre penso
que é preciso ter um plano. É como minha amiga, mrs. Eldritch, ela
tinha uma ótima criadinha que lustrava lindamente o linóleo, mas
ela era tão meticulosa que lustrava demais o piso do banheiro, e, um
dia, quando mrs. Eldritch estava saindo do banho o capacho de cortiça
escorregou sob seus pés, e ela teve uma queda muito feia, aliás,
quebrou a perna! Muito embaraçoso, porque a porta do banheiro estava
trancada, é claro, e o jardineiro teve de pegar uma escada e entrar
pela janela... terrivelmente angustiante para mrs. Eldritch, que
sempre foi uma mulher muito recatada.
Edward
se remexia sem parar.
— Por
favor, me perdoe — miss Marple disse rapidamente. — Tenho a
mania, eu sei, de sair pela tangente. Mas uma coisa puxa outra. E às
vezes isto é útil. O que eu estava tentando dizer é que talvez se
nós tentássemos aguçar nossa sagacidade e pensar num lugar
provável...
Edward
cortou sua fala:
— Pense
em um, miss Marple. Os cérebros da Charmian e o meu agora são
lindos vazios!
— Querido,
querida. É claro... é estafante para vocês. Se não se importam,
vou dar uma espiada em tudo isso — ela apontou para os papéis
sobre a mesa. — Isto é, se não houver nada privado... não quero
parecer uma bisbilhoteira.
— Oh,
tudo bem. Mas temo que não encontrará nada.
Ela
sentou-se à mesa e examinou metodicamente o maço de documentos. Ao
recolocar cada um no lugar, ela os separava automaticamente em
montículos. Quando terminou, ficou sentada olhando para frente por
alguns minutos.
Edward
perguntou, não sem um traço de malícia:
— E
então, miss Marple?
Miss
Marple voltou a si com um pequeno sobressalto.
— Desculpe-me.
Muito proveitoso.
— Descobriu
alguma coisa relevante?
— Oh,
não, nada disso, mas acredito que sei que tipo de homem era seu tio
Mathew. Muito parecido com meu próprio tio Henry, eu creio. Gosta de
piadas bem óbvias. Um solteiro, evidentemente... me pergunto por
quê... talvez uma decepção antiga? Metódico até certo ponto, mas
não muito afeito a se amarrar... poucos solteiros são assim!
Pelas
costas de miss Marple, Charmian fez um sinal para Edward. O sinal
dizia: Ela está gagá.
Miss
Marple continuara a falar alegremente de seu falecido tio Henry.
— Gostava
muito de trocadilhos, e como. E, para algumas pessoas, trocadilhos
são uma chatice. Um mero jogo de palavras pode ser muito irritante.
Era um homem desconfiado, também. Estava sempre convencido de que a
criadagem o estava roubando. E, às vezes, é claro, ela estava, mas
não sempre. A coisa se apoderou dele, pobre homem. Perto do fim, ele
suspeitava que estivessem adulterando a sua comida, e finalmente se
recusou a comer qualquer coisa exceto ovos cozidos! Querido tio
Henry, ele foi uma alma tão alegre numa época. Gostava muito de seu
café após o jantar. Ele sempre dizia “Este café é bem
mourisco”, querendo dizer, entendem, que gostaria de um pouco mais.
Edward
sentiu que se ouvisse mais alguma coisa sobre o tio Henry ficaria
louco.
— Gostava
de pessoas jovens também — prosseguiu miss Marple —, mas tendia
a arreliá-las um pouco, se entendem o que eu digo. Costumava pôr
sacos de doces onde uma criança simplesmente não conseguiria
alcançá-los.
Deixando
a polidez de lado, Charmian disse:
— Ele
me parece horrível!
— Oh,
não, querida, apenas um velho solteirão, sabe, e pouco acostumado
com crianças. E ele não era nada estúpido, aliás. Costumava
guardar uma boa quantia de dinheiro na casa, e tinha um cofre para
colocá-lo. Fazia um estardalhaço sobre ele... sobre como ele era
seguro. De tanto ele falar, ladrões entraram uma noite e abriram um
buraco no cofre com um dispositivo químico.
— Bem
feito para ele — disse Edward.
— Oh,
mas não havia nada no cofre — disse miss Marple. — Percebem, ele
na verdade guardava o dinheiro em alguma outra parte... atrás de
alguns volumes de sermões na biblioteca, aliás. Dizia que as
pessoas jamais tiravam um livro daquele tipo da estante!
Edward
a interrompeu excitadamente:
— Eu
digo, é uma ideia e tanto. Que tal a biblioteca?
Mas
Charmian abanou a cabeça com desdém.
— Acha
que não pensei nisso? Verifiquei todos os livros na terça-feira da
semana passada, quando você foi a Portsmouth. Tirei-os para fora,
sacudi cada um. Nada ali.
Edward
suspirou. Depois, levantando-se, ele tratou de se livrar
diplomaticamente de sua decepcionante convidada.
— Foi
extrema bondade sua ter vindo como veio e tentado nos ajudar. Pena
que tenha sido tudo um fracasso. Sinto termos tomado tanto tempo seu.
Mas... vou tirar o carro, e a senhora poderá pegar o trem das três
e meia...
— Oh
— disse miss Marple —, mas nós precisamos encontrar o dinheiro,
não é? Não deve desistir, mr. Rossiter. “Se de inicio não
consegues, tenta, tenta, tenta de novo.”
— Quer
dizer que vai... continuar tentando?
— Estritamente
falando — disse miss Marple —, ainda não comecei. “Primeiro
pegue sua lebre...”, como diz mrs. Beaton em seu livro de
culinária... um livro maravilhoso, mas extremamente caro; a maioria
das receitas começa com “Pegue um quarto de creme de leite e uma
dúzia de ovos”. Deixe-me ver, onde é que eu estava? Oh, sim. Bem,
por assim dizer, nós pegamos nossa lebre, sendo a lebre, é claro,
seu tio Mathew, só nos restando decidir agora onde ele teria
escondido o dinheiro. Deve ser bem simples.
— Simples?
— perguntou Charmian.
— Oh,
sim, querida. Estou certa de que ele teria feito a coisa óbvia. Uma
gaveta secreta, esta é a minha solução.
Edward
disse secamente:
— Não
se podem pôr barras de ouro numa gaveta secreta.
— Não,
não, claro que não. Mas não há razão para acreditar que o
dinheiro esteja em barras de ouro.
— Ele
sempre costumava dizer...
— O
mesmo fazia meu tio Henry sobre o seu cofre! De modo que eu deveria
suspeitar fortemente de que isso era apenas um subterfúgio.
Diamantes... estes sim poderiam estar facilmente numa gaveta secreta.
— Mas
nós olhamos em todas as gavetas secretas. Chamamos um carpinteiro
para examinar os móveis.
— Chamaram,
querida? Foi muito inteligente da sua parte. Eu sugeriria que a
escrivaninha pessoal de seu tio seria o mais provável. Seria aquela
alta encostada lá na parede?
— Sim.
E vou lhe mostrar — Charmian foi até o móvel e abriu o tampo.
Dentro havia escaninhos e pequenas gavetas. Ela abriu então uma
portinhola no centro e tocou numa mola dentro da gaveta da esquerda.
O fundo do recesso central deu um estalo e deslizou para frente.
Charmian o puxou para fora, revelando um pequeno espaço oco embaixo.
Ele
estava vazio.
— Mas
não é uma coincidência? — exclamou miss Marple. — O tio Henry
tinha uma escrivaninha igualzinha a essa, só que a dele era de
nogueira e esta é de mogno.
— Seja
como for — disse Charmian —, não há nada ali, como pode ver.
— Imagino
— disse miss Marple — que seu carpinteiro era um jovem. Ele não
sabia tudo. As pessoas eram muito habilidosas quando faziam
esconderijos naqueles tempos. Havia como que um segredo dentro de um
segredo.
Ela
tirou um grampo de seu coque bem arrumado de cabelos grisalhos.
Endireitando-o, ela enfiou a ponta no que parecia um minúsculo
buraco de cupim em um lado do recesso secreto. Com alguma
dificuldade, ela puxou uma gavetinha. Nela havia um maço de cartas
desbotadas e um papel dobrado.
Edward
e Charmian saltaram juntos sobre o achado. Com os dedos tremendo,
Edward desdobrou o papel. Ele o deixou cair com uma exclamação de
desgosto.
— Uma
droga de receita de culinária. Presunto assado!
Charmian
estava desatando uma fita que amarrava o maço de cartas.
Ela
tirou uma e deu uma olhada. — Cartas de amor!
Miss
Marple reagiu com entusiasmo vitoriano:
— Que
coisa interessante! Talvez a razão porque seu tio nunca se casou.
Charmian
leu em voz alta:
Meu
sempre querido Mathew, devo confessar que parece que faz muito tempo
que recebi sua última carta. Tento me ocupar com as várias tarefas
que me foram conferidas, e amiúde digo a mim que sou mesmo uma
afortunada de ver tanta coisa do globo, embora tivesse pouca ideia de
que quando fosse para a América viajaria para estas ilhas distantes!
Charmian
fez uma pausa:
— De
onde ela veio? Oh! Havaí! — e prosseguiu:
Estes
nativos, coitados, ainda estão longe de ver a luz. Ainda vivem num
estado selvagem e despidos, e passam a maior parte do tempo nadando e
dançando, adornando-se com guirlandas de flores. Mr. Gray fez
algumas conversões, mas é um trabalho árduo, e ele e mrs. Gray
ficam tristemente desencorajados. Tento fazer tudo que posso para
animá-lo e encorajá-lo, mas eu também fico com frequência triste
por uma razão que você pode imaginar, querido Mathew. A ausência é
uma provação severa para um coração que ama. Seus renovados votos
e protestos de afeição me alegraram enormemente. Agora e sempre
você tem meu fiel e devotado coração, querido Mathew, e eu
continuo sendo o seu sincero amor, Betty Martin.
PS
— Endereço minha carta protegida para nossa amiga mútua, Matilda
Graves, como sempre. Espero que Deus me perdoe esse pequeno
subterfúgio.
Edward
assobiou:
— Uma
missionária! Então era esse o romance do tio Mathew. Fico tentando
imaginar por que eles nunca se casaram.
— Ela
parece ter viajado pelo mundo todo — disse Charmian, examinando as
cartas. — Ilha Maurício... toda sorte de lugares. Provavelmente
morreu de febre amarela ou algo assim.
Uma
risadinha suave os sobressaltou. Miss Marple estava aparentemente se
divertindo muito.
— Bem,
bem — disse ela. — Quem diria!
Ela
estava lendo a receita de presunto assado. Ao notar seus olhares
curiosos, ela leu em voz alta:
— Presunto
assado com espinafre. Pegue uma bonita peça de presunto, recheie-a
com cravos, e cubra com açúcar mascavo. Asse em forno baixo. Sirva
rodeado por purê de espinafre. O que acham disso, agora?
— Penso
que parece horrível — disse Edward.
— Não,
não, na verdade seria muito bom... mas o que pensam da coisa
toda?
Um
súbito raio de luz iluminou a face de Edward.
— Acha
que é um código... algum tipo de criptograma? — ele comprou a
ideia. — Sabe, Charmian, poderia ser, não é? Se não, por que
colocar uma receita de culinária numa gaveta secreta?
— Exatamente
— disse miss Marple. — Muito, muito significativo.
— Eu
sei o que pode ser — disse Charmian. — Tinta invisível! Vamos
aquecê-lo. Ligue o fogão elétrico.
Edward
assim fez, mas não surgiram sinais de escrita com o tratamento.
Miss
Marple tossiu.
— O
que eu realmente penso, sabem, é que vocês estão complicando
demais a coisa. A receita é apenas um indício, por assim dizer.
Creio que as cartas é que são mais significativas.
— As
cartas?
— Em
especial — disse miss Marple —, a assinatura.
Mas
Edward mal a ouviu e chamou cheio de excitação:
— Charmian!
Venha aqui! Ela está certa. Veja... os envelopes são velhos, isso é
fato, mas as cartas foram escritas muito depois.
— Exatamente
— disse miss Marple.
— Elas
são falsamente velhas apenas. Aposto qualquer coisa que o velho tio
Mat as falsificou pessoalmente...
— Exatamente
— disse miss Marple.
— A
coisa toda é um embuste. Nunca existiu uma missionária. Deve ser um
código.
— Minhas
caras, caras crianças... não há mesmo nenhuma necessidade de
tornar tudo tão difícil. Seu tio era de fato um homem muito
simples. Ele teve de fazer sua piadinha, apenas isso.
Pela
primeira vez eles lhe prestaram inteira atenção.
— O
que exatamente quer dizer, miss Marple? — perguntou Charmian.
— Quero
dizer, querida, que você está segurando o dinheiro em sua mão
neste minuto.
Charmian
olhou para baixo.
— A
assinatura, querida. Isso revela tudo. A receita é apenas um
indício. Retire todos os cravos, o açúcar mascavo e o resto todo.
O que ela é de fato? Ora, presunto e espinafre, é claro! Presunto e
espinafre! Significando... bobagem! Então está claro que as cartas
é que são importantes. E aí se você levar em consideração o que
seu tio fez pouco antes de morrer. Ele deu uma batidinha no olho,
você disse. Bem, aí está... isso lhe dá a pista, percebe.
— Nós
estamos loucos, ou a senhora está? — Charmian disse.
— Seguramente,
minha querida, você deve ter ouvido a expressão “por fora bela
viola, por dentro pão bolorente”, ou ela já terá caído em
desuso? Que incrível!
Edward
arquejou, seus olhos fitavam a carta em sua mão:
— Betty
Martin...
— Claro,
mr. Rossiter. Como disse agora há pouco... não havia tal pessoa. As
cartas foram escritas por seu tio, e eu imagino que ele se divertiu
um bocado ao escrevê-las! Como diz, a escrita nos envelopes é muito
mais antiga... aliás, o envelope não poderia pertencer às cartas,
de todo modo, porque o carimbo postal da que você está segurando é
de 1851 — ela fez uma pausa. E prosseguiu enfaticamente: — Mil
oitocentos e cinquenta e um. E isso explica tudo, não é?
— Não
para mim — disse Edward.
— Bem,
é claro — disse miss Marple. — Ouso dizer que não significaria
para mim não fosse meu sobrinho-neto Lionel. Um garotinho tão
querido e um apaixonado colecionador de selos. Sabe tudo sobre selos.
Foi ele que me contou sobre os selos raros e caros e que uma
maravilhosa nova descoberta fora colocada em leilão. E eu me lembro
de ele mencionar um selo — um azul de dois cents de mil oitocentos
e cinquenta e um. Ele saiu por algo em torno de vinte e cinco mil
dólares, creio. Caramba! Eu devia imaginar que os outros selos são
também raros e valiosos. Seu tio seguramente os comprou por meio de
intermediários e cuidadosamente “encobriu suas pegadas” como
dizem em histórias policiais.
Edward
gemeu e enterrou o rosto nas mãos.
— O
que foi? — perguntou Charmian.
— Nada.
Foi só o pensamento horrível de que, não fosse por miss Marple,
nós poderíamos ter queimado estas cartas por decente cavalheirismo.
— Ah
— disse miss Marple —, é precisamente isso que esses velhos
cavalheiros piadistas não percebem. O tio Henry, lembram, enviou a
sua sobrinha favorita uma nota de cinco libras de presente de Natal.
Ele a colocou num cartão de Natal, selou o cartão com goma, e
escreveu nele “Amor e boas festas. Lamento que isso seja tudo que
posso lhe dar este ano”. Ela, pobre menina, ficou aborrecida com o
que achou que fosse sovinice da parte dele e o atirou direto no fogo;
aí, é claro, ele teve de dar-lhe outra.
Os
sentimentos de Edward para com o tio Henry haviam sofrido uma brusca
e completa mudança.
— Miss
Marple — disse. — Vou buscar uma garrafa de champanhe. Beberemos
à saúde do seu tio Henry.
Agatha Christie, in Três ratos cegos e outros contos
segunda-feira, 30 de maio de 2022
Inimigos em casa
Que
a família está em crise ninguém se atreverá a negá-lo, por muito
que a Igreja Católica tente disfarçar o desastre sob a capa de uma
retórica melíflua que já nem a ela própria engana, que muitos dos
denominados valores tradicionais de convivência familiar e social se
foram pelo cano abaixo arrastando consigo até aqueles que deveriam
ter sido defendidos dos contínuos ataques desferidos pela sociedade
altamente conflitiva em que vivemos, que a escola moderna,
continuadora da escola velha, aquela que, durante sucessivas
gerações, foi tacitamente encarregada, à falta de melhor, de
suprir as falhas educacionais dos agregados familiares, está
paralisada, acumulando contradições, erros, desorientada entre
métodos pedagógicos que em realidade não o são, e que, demasiadas
vezes, não passam de modas passageiras ou de experimentos
voluntaristas condenados ao fracasso pela própria ausência de
madurez intelectual e pela dificuldade de formular e responder à
pergunta, essencial em minha opinião: que cidadão estamos a querer
formar? O panorama não é agradável à vista. Singularmente, os
nossos mais ou menos dignos governantes não parecem preocupar-se com
estes problemas tanto quanto deveriam, talvez porque pensam que,
sendo os ditos problemas universais, a solução, quando vier a ser
encontrada, será automática, para toda a gente.
Não
estou de acordo. Vivemos numa sociedade que parece ter feito da
violência um sistema de relações. A manifestação de uma
agressividade que é inerente à espécie que somos, e que em tempos
pensámos, pela educação, haver controlado, irrompeu brutalmente
das profundidades nos últimos vinte anos em todo o espaço social,
estimulada por modalidades de ócio que viraram as costas ao já
simples hedonismo para se transformarem em agentes condicionadores da
própria mentalidade do consumidor: a televisão, em primeiro lugar,
onde imitações de sangue, cada vez mais perfeitas, saltam em jorros
a todas as horas do dia e da noite, os vídeo-jogos que são como
manuais de instruções para alcançar a perfeita intolerância e a
perfeita crueldade, e, porque tudo isto está ligado, as avalanchas
de publicidade de serviços eróticos a que os jornais, incluindo os
mais bem-pensantes, dão as boas-vindas, enquanto nas páginas sérias
(são-no algumas?) abundam hipocritamente em lições de boa conduta
à sociedade. Que estou a exagerar? Expliquem-me então como foi que
chegámos à situação de muitos pais terem medo dos filhos, desses
gentis adolescentes, esperanças do amanhã, em quem um “não” do
pai ou da mãe, cansados de exigências irracionais, instantaneamente
desencadeia uma fúria de insultos, de vexames, de agressões.
Físicas, para que não fiquem dúvidas. Muitos pais têm os seus
piores inimigos em casa: são os seus próprios filhos. Ingenuamente,
Ruben Darío escreveu aquilo da “juventud, divino tesoro”. Não o
escreveria hoje.
José Saramago, in O caderno
O provedor de iniquidades Monk Eastman
OS
DESTA AMÉRICA
Bem
perfilados diante de um fundo de paredes azul-celeste ou do céu
aberto, dois compadritos resguardados em séria roupa negra
dançam com sapatos de mulher uma dança gravíssima, que é a das
facas parecidas, até que de uma orelha salta um cravo porque o
punhal penetrou num homem que encerra com sua morte horizontal o
baile sem música. Resignado, o outro acomoda o chapéu e consagra a
velhice à narração daquele duelo tão limpo. Essa é a história
detalhada e completa de nossa canalha. A dos valentões de Nova York
é mais vertiginosa e mais desastrada.
OS
DA OUTRA
A
história das gangues de Nova York (revelada em 1928 por Herbert
Asbury num decoroso volume de quatrocentas páginas in-oitavo) tem a
confusão e a crueldade das cosmogonias bárbaras, e muito de sua
gigantesca inépcia: porões de antigas cervejarias habilitados para
cortiços de negros, uma raquítica Nova York de três andares,
bandos de pilantras como os Anjos do Pântano (Swamp Angels) que
andavam à espreita entre labirintos de cloacas, bandos de
delinquentes como os Daybreak Boys (Garotos da Alvorada) que
recrutavam assassinos precoces de dez e onze anos, gigantes
solitários e descarados Cartolas Ferozes (Plug Uglies) que buscavam
o inverossímil riso do próximo com o firme chapéu de copa alta
cheio de lã e as fraldas da camisa ondeantes no vento do subúrbio,
mas com um porrete na mão direita e um pau de fogo enorme; bandos de
marginais como os Coelhos Mortos (Dead Rabbits) que iam para a briga
sob a insígnia de um coelho morto na ponta de um pau; homens como
Johnny Dolan, o Dândi, famoso pelo topete besuntado sobre a testa,
pelas bengalas com cabeça de macaco e pelo fino apetrecho de cobre
que costumava usar no polegar para vazar os olhos do adversário;
homens como Kit Burns, capaz de decapitar com uma única mordida um
rato vivo; homens como Blind Danny Lyons, rapaz loiro de imensos
olhos mortos, rufião de três rameiras que circulavam com orgulho
por ele; filas de casas com lampião vermelho, como as dirigidas
pelas sete irmãs da Nova Inglaterra, que destinavam os ganhos da
noite de Natal à caridade; rinhas de ratos famélicos e de cães;
casas de jogo chinesas; mulheres como as várias vezes viúva Red
Norah, amada e ostentada por todos os varões que dirigiram a gangue
dos Gophers; mulheres como Lizzie the Dove, que ficou de luto quando
executaram Danny Lyons e morreu degolada por Gentle Maggie, que
disputou com ela a antiga paixão do finado homem cego; motins como o
de uma semana selvagem de 1863, quando foram incendiados cem
edifícios e que quase tomam conta da cidade; combates de rua nos
quais um homem se perdia como no mar porque o pisoteavam até a
morte; ladrões e envenenadores de cavalo como Yoske Nigger — tecem
aquela caótica história. Seu herói mais famoso é Edward Delaney,
aliás, William Delaney, aliás, Joseph Marvin, aliás, Joseph
Morris, aliás, Monk Eastman, chefe de mil e duzentos homens.
O
HERÓI
Esses
disfarces graduais (penosos como um jogo de máscaras em que não se
sabe ao certo quem é quem) omitem seu nome verdadeiro — se é que
nos atrevemos a pensar que haja tal coisa no mundo. A verdade é que
no registro civil de Williamsburg, Brooklyn, o nome é Edward
Ostermann, americanizado em Eastman mais tarde. Coisa estranha,
aquele bandido tempestuoso era judeu. Descendia de um dono de
restaurante dos que anunciam kosher, onde varões de barbas
rabínicas podem assimilar sem perigo a carne dessangrada e três
vezes limpa de vitelas degoladas com retidão. Aos dezenove anos, por
volta de 1892, abriu com auxílio do pai uma loja de pássaros.
Investigar a vida dos animais, observar suas pequenas decisões e sua
inescrutável inocência, foi uma paixão que o acompanhou até o
final. Em épocas de esplendor posteriores, quando recusava com
desdém os charutos de folha dos sardentos sachems de Tammany ou
visitava os melhores prostíbulos num coche, espécie precoce de
automóvel que parecia o filho natural de uma gôndola, abriu uma
segunda e falsa casa de comércio que hospedava cem gatos finos e
mais de quatrocentas pombas que não estavam à venda para qualquer
um. Gostava deles individualmente e costumava percorrer a pé seu
território com um gato feliz no braço, e outros que o seguiam
enciumados.
Era
um homem em ruínas e monumental. O pescoço era curto, como de
touro, o peito inexpugnável, os braços lutadores e longos, o nariz
quebrado, o rosto embora marcado de cicatrizes menos importante que o
corpo, as pernas arqueadas como as de ginete ou de marinheiro. Podia
prescindir de camisa como também de paletó, mas não de uma
cartolinha de abas curtas sobre a cabeça ciclópica. Os homens
cuidam de sua memória. Fisicamente, o pistoleiro convencional dos
filmes é um arremedo dele, não do ambivalente e balofo Capone. De
Wolheim dizem que o empregaram em Hollywood porque seus traços
aludiam diretamente ao do deplorado Monk Eastman… Este saía para
percorrer seu império celerado com uma pomba de penas azuis no
ombro, feito um touro com um bem-te-vi no lombo.
Por
volta de 1894, eram numerosos os salões de baile público na cidade
de Nova York. Eastman foi encarregado de manter a ordem num deles.
Conta a lenda que o empresário não o quis receber e que Monk
demonstrou sua capacidade demolindo com fragor o par de gigantes que
detinham o emprego. Exerceu-o até 1899, temido e só.
Para
cada arruaceiro que ele serenava, fazia com a faca uma marca no
brutal porrete. Certa noite, uma calva resplandecente que se
inclinava sobre um bock de cerveja chamou sua atenção, e
desfaleceu-a com uma cacetada. “Me faltava uma marca para
cinquenta!”, exclamou depois.
O
MANDO
Desde
1899, Eastman não era apenas famoso. Era mandachuva eleitoral de uma
zona importante, e recebia fortes subsídios das casas de lampião
vermelho, das casas de jogo, de mulheres da rua e de ladrões daquele
sórdido feudo. Os comitês consultavam-no para organizar diretórios,
e também os particulares. Eis aqui seus honorários: quinze dólares
por uma orelha arrancada; dezenove por uma perna quebrada; vinte e
cinco por um tiro numa perna; vinte e cinco por uma punhalada; cem
pelo negócio todo. Às vezes, para não perder o costume, Eastman
executava pessoalmente uma encomenda.
Uma
questão de limites (sutil e enfezada como as outras que o direito
internacional posterga) colocou-o diante de Paul Kelly, famoso
capitão de outro bando. Tiros e entreveros das patrulhas tinham
determinado uma fronteira. Eastman atravessou-a num amanhecer e foi
acometido por cinco homens. Com aqueles braços vertiginosos de
macaco e com o porrete fez dançar três, mas lhe meteram duas balas
no abdômen e abandonaram-no como morto. Eastman segurou a ferida
quente com o polegar e o índice e caminhou com passos de bêbado até
o hospital. A vida, a febre alta e a morte disputaram-no por várias
semanas, mas seus lábios não se rebaixaram a delatar ninguém.
Quando saiu, a guerra era um fato e floresceu em contínuos tiroteios
até 19 de agosto de 1903.
A
BATALHA DE RIVINGTON
Uns
cem heróis vagamente diferentes das fotografias que esmaecerão nos
prontuários, uns cem heróis saturados de fumaça de tabaco e
álcool, uns cem heróis de chapéu de palha com fita colorida, uns
cem heróis afetados uns mais que outros por doenças vergonhosas,
cáries, males das vias respiratórias ou do rim, uns cem heróis tão
insignificantes ou esplêndidos como os de Troia ou Junín, travaram
esse denigrido feito de armas à sombra dos arcos do Elevated. A
causa foi o tributo exigido pelos pistoleiros de Kelly ao empresário
de uma casa de jogo, compadre de Monk Eastman. Um dos pistoleiros foi
morto, e o tiroteio subsequente cresceu numa batalha de incontáveis
revólveres. Do abrigo dos altos pilares, homens de queixo raspado
atiravam em silêncio e eram o centro de um apavorado horizonte de
coches de aluguel carregados de impacientes reforços, com artilharia
Colt nos punhos. Que sentiram os protagonistas daquela batalha?
Primeiro (creio) a brutal convicção de que o estrépito insensato
segurança de que, se a descarga inicial não os derrubara, seriam
invulneráveis. A verdade é que lutaram com fervor, escorados pelo
parapeito do ferro e da noite. Duas vezes a polícia interveio e duas
vezes foi rechaçada. Ao primeiro vislumbre do amanhecer, o combate
morreu, como se fosse obsceno ou espectral. Debaixo dos grandes arcos
de engenharia ficaram sete gravemente feridos, quatro cadáveres e
uma pomba morta.
OS
RANGIDOS
Os
políticos paroquiais, a cujo serviço estava Monk Eastman, sempre
desmentiram publicamente que houvesse tais gangues, ou esclareceram
que se tratava de meras sociedades recreativas. A indiscreta batalha
de Rivington alarmou-os. Convocaram os dois capitães para
persuadi-los da necessidade de uma trégua. Kelly (bem sabendo que os
políticos eram mais aptos que os revólveres Colt para arrefecer a
ação da polícia) disse, ato contínuo, que sim; Eastman (com a
soberba de seu corpo grande e bruto) ansiava por mais detonações e
mais refregas. Começou por recusar e tiveram de ameaçá-lo com a
prisão. Afinal os dois ilustres malfeitores conferenciaram num bar,
cada um com seu charuto de folha na boca, a direita no revólver e a
vigilante nuvem de pistoleiros ao redor. Chegaram a uma decisão
muito americana: confiar a uma luta de boxe a disputa. Kelly era um
boxeador habilíssimo. Realizou-se o duelo num galpão e foi
extravagante. Cento e quarenta espectadores viram-no, entre compadres
de cartola torta e mulheres de frágil penteado monumental. Durou
duas horas e terminou numa completa exaustão. Na semana seguinte
pipocaram os tiroteios. Monk foi preso, pela enésima vez. Os
protetores desinteressaram-se dele com alívio; o juiz vaticinou-lhe,
com toda a justiça, dez anos de cárcere.
EASTMAN
CONTRA A ALEMANHA
Quando
o ainda perplexo Monk saiu de Sing Sing, os mil e duzentos gângsteres
sob seu comando estavam desgarrados. Não soube juntá-los e se
resignou a operar por sua própria conta. No dia 8 de setembro de
1917, promoveu desordem na via pública. No dia 9, resolveu
participar noutra desordem e alistou-se num regimento de infantaria.
Sabemos
vários traços de sua campanha. Sabemos que desaprovou com fervor a
captura de prisioneiros e que certa vez (com apenas a culatra do
fuzil) impediu essa prática deplorável. Sabemos que conseguiu
evadir-se do hospital para voltar às trincheiras. Sabemos que se
distinguiu nos combates perto de Montfaucon. Sabemos que depois
opinou que muitos bailinhos do Bowery eram mais brutos que a guerra
europeia.
MISTERIOSO,
LÓGICO FIM
No
dia 25 de dezembro de 1920, o corpo de Monk Eastman amanheceu numa
das ruas centrais de Nova York. Recebera cinco balaços.
Desconhecedor feliz da morte, um gato dos mais ordinários rondava-o
com certa perplexidade.
Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia
Seminal
Você existe como componente. Desaparecerá naquilo que o produziu. Ou melhor, transmutará e regressará à sua razão seminal.
Marco Aurélio, in Meditações do Imperador Marco Aurélio: Uma Nova Tradução
Bocó
Quando
o moço estava a catar caracóis e pedrinhas
na
beira do rio até duas horas da tarde, ali
também
Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de
ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio
até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de
um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com
pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu
a palavra bocó e foi para casa correndo
a
ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era
ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam
símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou
para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre
alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma
exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar
bobagens profundas com as águas. Bocó
é
aquele que fala sempre com com sotaque das suas
origens.
É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém
que constrói sua casa com pouco cisco.
É
um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver
beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando
para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó
é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o
que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários.
E ele se estimou.
o
que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários.
E ele se estimou.
Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância
É um mundo sujo
Eu
dirigia pelo Sunset, no fim de uma tarde, parei num sinal, e num
ponto de ônibus vi uma ruiva tingida com um rosto brutal e
destroçado, empoado, pintado, que dizia “isto é o que a vida faz
com a gente”. Eu podia imaginá-la bêbada, gritando com algum
homem do outro lado da sala, e fiquei feliz por esse homem não ser
eu. Ela me viu olhando-a e acenou: – Ei, que tal um passeio? –
Tudo bem – eu disse, e ela atravessou correndo as duas pistas de
tráfego e entrou. Partimos e ela mostrou uma abundância de coxa.
Nada mal. Eu dirigia sem dizer nada. – Quero ir à Rua Alvarado –
ela disse. Era o que eu imaginava. É onde elas fazem ponto. Da
Oitava e da Alvarado para cima, nos bares do outro lado do parque e
dobrando as esquinas, até o pé do morro. Eu frequentara aqueles
bares muitos anos e conhecia o babado. A maioria das garotas queria
apenas um drinque e um lugar para ficar. Naqueles bares escuros, não
pareciam demasiado mal. Chegávamos perto da Rua Alvarado. – Pode
me dar cinquenta centavos? – ela pediu. – Enfiei a mão no bolso
e dei-lhe duas moedas de vinte e cinco. – Eu devia poder dar uma
apalpada por isso. – Ela riu. – Vá em frente. – Eu suspendi o
vestido dela e belisquei-a suavemente onde terminava a meia. Quase
disse “Merda, vamos pegar uma garrafa e ir lá pra casa”. Podia
me ver entrando naquele corpo magro, quase ouvia as molas da cama.
Depois podia vê-la sentada numa cadeira, xingando, falando e rindo.
Deixei passar. Ela saltou na Alvarado e a vi atravessar a rua,
tentando parecer gostosa. Segui em frente. Devia ao estado 606
dólares de imposto de renda. Tinha de abrir mão de um belo rabo de
vez em quando.
Estacionei
diante do China, entrei e peguei uma tigela de frango won ton. O cara
sentado à minha direita não tinha uma orelha. Só um buraco na
cabeça, um buraco sujo com um monte de pelos brancos em redor.
Orelha nenhuma. Olhei o buraco e depois voltei ao won ton de frango.
O gosto não estava mais tão bom. Depois veio outro cara e se sentou
à minha esquerda. Era um vagabundo. Pediu uma xícara de café.
Olhou pra mim:
– Oi,
bebum – disse.
– Oi
– respondi.
– Todo
mundo me chama de “bebum”, por isso pensei em chamar você.
– Tudo
bem. Eu já fui.
Ele
mexeu seu café.
– Essas
bolhinhas em cima do café. Olhe. Minha mãe dizia que isso
significava que eu ia ganhar dinheiro. Não foi assim.
Mãe?
Aquele homem um dia tivera mãe?
Acabei
minha tigela e deixei-os lá, o cara sem orelha e o vagabundo olhando
as bolhas de seu café.
Esta
está se revelando uma noite dos diabos, pensei. Acho que não pode
acontecer muito mais.
Estava
errado.
Decidi
atravessar a Alameda e comprar alguns selos. O trânsito estava
pesado e um jovem guarda orientava os carros. Alguma coisa acontecia.
Um rapaz à minha frente gritava para o guarda: – Vamos lá, deixa
a gente atravessar, que diabos! A gente já está aqui há tempo
bastante! – O guarda continuava mandando o trânsito passar. –
Vamos lá, que diabos há com você? – gritava o garoto. Esse
garoto deve ser maluco, pensei. Ele tinha boa aparência, jovem,
grande, seus um metro e noventa, cem quilos. Camiseta branca. Nariz
um pouco grande demais. Podia ter tomado algumas cervejas, mas não
estava bêbado. Então o tira apitou e mandou a multidão atravessar.
O garoto desceu para a rua. – Tudo bem, vamos lá todo mundo, agora
é seguro, agora é seguro atravessar! – É que você pensa,
garoto, foi o que eu pensei. O garoto agitava os braços. – Vamos
lá, todo mundo! – Eu andava bem atrás dele. Vi o rosto do guarda.
Ficou muito pálido. Vi os olhos reduzirem-se a fendas. Era um guarda
jovem, pequeno, parrudo. Ele veio em direção ao garoto. Oh, deus,
lá vem! O garoto viu o guarda aproximar-se dele. – Não me TOQUE!
Não se atreva a TOCAR em mim! – O guarda pegou-o pelo braço
esquerdo, disse-lhe alguma coisa, tentou conduzir o garoto de volta
ao meio-fio. O garoto soltou-se e afastou-se. O guarda correu atrás
dele, aplicou uma gravata no garoto. O garoto livrou-se e os dois
passaram a lutar, rodopiando. A gente ouvia os pés deles na rua. As
pessoas paravam e olhavam de longe. Eu estava bem em cima deles.
Várias vezes tive de recuar enquanto eles lutavam. Também eu não
tinha o mínimo de juízo. Aí eles subiram na calçada. O quepe do
guarda voou. Foi aí que comecei a ficar meio nervoso. O guarda não
parecia bem um guarda sem o quepe, mas ainda tinha o cassetete e a
arma. O garoto tornou a soltar-se e correu. O guarda saltou nele por
detrás, passou um braço pelo pescoço e tentou derrubá-lo, mas o
garoto ficou firme. E então se livrou. Finalmente, o guarda
segurou-o contra o corrimão de ferro de um estacionamento da
Standard Station. Um garoto branco e um guarda branco. Eu olhei para
o outro lado da rua e vi cinco jovens negros sorrindo e observando.
Eles estavam enfileirados contra uma parede. O guarda recuperara o
quepe e conduzia o garoto rua abaixo para uma cabine de telefone.
Fui
pegar meus selos na máquina. Era uma noite fodida. Eu quase esperava
que uma cobra caísse da máquina. Mas só recebi selos. Ergui os
olhos e vi meu amigo Benny.
– Viu
o barulho, Benny?
– É...,
quando levarem ele pra delegacia, vão calçar luvas de couro e dar
um pau daqueles.
– Você
acha?
– Claro.
A cidade é igual ao condado. Os caras batem pra valer. Acabei de
sair da nova cadeia do condado. Eles botam os novos tiras pra bater
nos presos lá, pra pegar experiência. A gente ouvia eles gritando e
os tiras batendo. Eles se gabam disso. Quando eu estava lá, um tira
passou e disse: “Dei um pau daqueles num bebum!”
– Ouvi
falar.
– Deixam
a gente dar um telefonema, e esse cara ficou no telefone muito tempo,
e os tiras mandando ele desligar. Ele ficava dizendo “só um
minuto, só um minuto!”, e finalmente um tira ficou puto e desligou
o telefone e o cara gritou: “Eu tenho meus direitos, você não
pode fazer isso!”
– Que
foi que houve?
– Uns
quatro tiras pegaram o cara. Levaram ele tão depressa que os pés
dele nem tocavam no chão. Levaram ele pra sala do lado. A gente
ouvia, fizeram um bom trabalho nele. Você sabe, eles botam a gente
lá, curvado, olham dentro do rabo da gente, dentro do sapato,
procurando droga, e trouxeram o garoto nu, e ele vinha tremendo com
arrepios. A gente via as marcas vermelhas no corpo todo. Deixaram ele
ali, tremendo contra a parede. O cara tinha apanhado mesmo.
– É...
– eu disse. – Eu passava de carro pela Union Rescue Mission uma
noite e dois tiras num carro-patrulha estavam pegando um bêbado. Um
deles se meteu no banco de trás com o bêbado, e eu ouvi o bêbado
dizer “seu tira filho da puta sujo!”, e vi o tira tirar o
cassetete e enfiar a ponta, com força, na barriga do cara. Foi uma
porrada dos diabos, que me deixou meio nauseado. Podia ter rompido o
estômago, ou causado hemorragia interna.
– É,
é um mundo sujo.
– É
isso aí, Benny. Vejo você por aí. Te cuida.
– Claro.
Você também.
Encontrei
o carro e voltei subindo o Sunset. Quando cheguei à Alvarado, dobrei
para o sul e desci até quase a Rua Oito. Parei, saltei, encontrei
uma loja de bebidas e comprei uma garrafa de uísque. Depois entrei
no bar mais próximo. Lá estava ela. Minha ruiva de rosto brutal.
Cheguei perto, bati na garrafa.
– Vamos
lá.
Ela
terminou sua bebida e saiu atrás de mim.
– Bela
noite – disse.
– Ah,
sim – respondi.
Quando
chegamos à minha casa, ela foi ao banheiro e eu lavei dois copos.
Não tem saída, pensei, não tem saída de nada.
Ela
entrou na cozinha, encostou-se em mim. Tinha renovado o batom. Me
beijou, mexendo a língua dentro de minha boca. Suspendi o vestido
dela e palmeei a calcinha. Ficamos debaixo da lâmpada, travados.
Bem, o estado ia ter de esperar mais um pouco por seu imposto de
renda. Talvez o Governador Deukmejian entendesse. Nós nos separamos,
eu servi dois drinques e entramos no outro quarto.
Charles Bukowski, in Numa Fria