Da cor

Há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefinível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: — a cor do tempo…

Mário Quintana, in Sapato florido

Palavras

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.

Manoel de Barros, in Meu quintal é maior do que o mundo

À beira da morte

Está à beira da morte. Entretanto, ainda não é simples, imperturbável e gentil com todos, desconfia que coisas externas são capazes de o ferir e não julga sábias somente as ações justas.

Marco Aurélio, in Meditações do Imperador Marco Aurélio: Uma Nova Tradução

O dia em que ele nasceu


Ele nasceu no verão mais seco dos últimos quarenta anos. O sol cozinhava a argila vermelha do Alabama, transformando-a em pó, e não havia água por quilômetros ao redor. A comida também era escassa. Não havia milho nem tomates e nem mesmo abóbora naquele verão, tudo tinha secado sob o céu branco e enevoado. Tudo morreu, ao que parecia: primeiro as galinhas, depois os gatos, depois os porcos e depois os cachorros. Foram todos para a panela, com ossos e tudo.
Um homem enlouqueceu, comeu pedras e morreu. Foram precisos dez homens para carregá-lo até o túmulo de tanto que ele pesava, e mais dez para cavar, tamanha a seca.
Olhando para leste, as pessoas diziam: Lembra aquele rio correndo?
Olhando para oeste, Lembra do lago Talbert?
O dia em que ele nasceu começou como qualquer outro. O sol surgiu, espiou para dentro da casinha de madeira onde uma mulher, com a barriga do tamanho do mundo, mexia o último ovo que havia para o café da manhã do marido. O homem já estava no campo, revirando a terra com sua enxada ao redor das raízes pretas e retorcidas de algum vegetal misterioso. O sol brilhava forte. Quando ele entrou para comer o ovo, enxugou o suor da testa com um lenço azul rasgado. Depois torceu-o em uma velha caneca de lata. Para ter algo para beber mais tarde.
No dia em que ele nasceu o coração da mulher parou por um momento, e ela morreu. Depois voltou à vida. Vira a si mesma suspensa no ar. Viu o filho também — disse que ele brilhava. Quando retornou ao seu corpo, disse que sentiu um calor lá dentro.
Logo. Logo ele vai estar aqui — disse ela.
A mulher tinha razão.
No dia em que ele nasceu, alguém avistou uma nuvem lá adiante, um pouco mais escura. As pessoas se juntaram para olhar. Uma, duas, duas vezes duas, de repente cinquenta ou mais, todas olhando para o céu, para aquela nuvenzinha que se aproximava do seu lugarejo esgotado e ressecado. O marido também saiu para olhar. E lá estava ela: uma nuvem. A primeira nuvem de verdade em muitas semanas.
A única pessoa de toda a cidade que não estava olhando a nuvem era a mulher. Ela tinha caído no chão, sem ar de tanta dor. Tão sem fôlego que não conseguiu gritar. Achou que estivesse gritando — estava com a boca aberta —, mas nenhum som saía de lá. De sua boca. Em outro lugar, porém, ela estava ocupada. Com ele. Ele estava chegando. E onde estava seu marido?
Lá fora olhando para uma nuvem.
Era uma senhora nuvem. Nada pequena, na verdade, uma nuvem respeitável, pairando, grande e negra, sobre acres de terra ressecada. O marido tirou o chapéu e apertou os olhos, descendo um degrau da varanda para ver melhor.
A nuvem trouxe consigo um pouco de vento. Foi agradável sentir um ventinho acariciar-lhes o rosto. E então o marido ouviu um trovão — bum! —, ou ao menos achou que tivesse ouvido. Mas o que ouviu foi a mulher derrubando a mesa com um chute. Pareceu mesmo um trovão. Foi isso que pareceu.
Ele deu mais um passo na direção do campo.
Marido! — a mulher berrou a plenos pulmões. Mas era tarde demais. O marido estava longe demais para ouvir. Não dava para o homem ouvir nada.
No dia em que ele nasceu, todas as pessoas da cidade juntaram-se no campo do lado de fora de sua casa, observando a nuvem. Pequena a princípio, depois apenas respeitável, a nuvem logo se tornou enorme, do tamanho de uma baleia pelo menos, revolvendo lampejos de luz branca dentro de si e, de repente, rompendo e queimando os topos dos pinheiros e deixando preocupados alguns dos homens mais altos de lá. Observando, eles se agacharam e esperaram.
No dia em que ele nasceu, as coisas mudaram.
Marido se tornou Pai, Mulher se tornou Mãe.
No dia em que Edward Bloom nasceu, choveu.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

O universo de um navio de guerra numa casquinha de noz

Foi preciso encontrar alguém que ocupasse o lugar do tanoeiro; desse modo, comunicou-se àqueles que se mostravam aptos ao ofício que se reunissem à volta do mastro principal para que um deles pudesse ser escolhido. Treze homens atenderam ao chamado — circunstância ilustrativa do fato de que muitos bons artesãos abandonam seus ofícios e o mundo para servir num navio de guerra. De fato, da tripulação de uma fragata podem-se destacar homens de todos os ofícios e vocações, de um pároco pecador a um ator arruinado. A Marinha é asilo para o pervertido, lar para o desafortunado. Aqui, os filhos da adversidade encontram a prole da calamidade, e aqui a prole da calamidade encontra o rebento do pecado. Reúnem-se aqui corretores falidos, engraxates, fura-greves e ferreiros; enquanto funileiros, relojoeiros, copistas, sapateiros, doutores, agricultores e advogados, todos perdidos de suas próprias vidas, comparam experiências e conversam sobre os velhos tempos. Náufragos de uma praia deserta, os homens da tripulação de um navio de guerra poderiam rapidamente erguer e fundar uma Alexandria por si próprios e provê-la de tudo quanto concorra à invenção de uma capital.
Com muita frequência, veem-se na coberta dos canhões todos os ofícios em ação ao mesmo tempo — tanoagem, carpintaria, alfaiataria, funilaria, ferragem, cordoaria, pregação, jogatina e quiromancia.
A bem da verdade, um navio de guerra é uma cidade flutuante, com longas avenidas onde se veem canhões no lugar das árvores e inúmeras vias umbrosas, gramados e trilhas desusadas. O convés principal é uma grande praça, parque ou campo de marte, com um enorme olmo, como o de Pittsfield, sob a forma do mastro principal, numa ponta, e o palácio da cabine do comodoro, na outra.
Ou ainda, um navio de guerra é uma cidade elevada, cercada de muralhas e ocupada por exércitos, como Quebec, onde os passeios públicos são em sua maioria trincheiras, e os pacíficos cidadãos cruzam sentinelas armadas a cada esquina.
Ou ainda é como um prédio de apartamentos em Paris, porém de cabeça para baixo — sendo o primeiro andar, ou convés, alugado por um lorde; o segundo, por um seleto grupo de cavalheiros; o terceiro, por multidões de artesãos; e o quarto, por uma turba de gente comum.
Pois é exatamente assim uma fragata, onde o comandante tem uma cabine inteira e o espardeque para si, os lugares-tenentes têm a praça-d’armas logo abaixo, e a massa de marinheiros balança em suas macas abaixo de todos.
E com suas longas fileiras de portinholas, cada qual revelando o focinho de um canhão, um navio de guerra lembra uma casa de três andares nalguma parte mal-afamada da cidade, com um porão de profundidade indefinida e sujeitos mal-encarados à espreita nas janelas.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Câmara de ecos

Cresci sob um teto sossegado,
meu sonho era um pequenino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado.

Agora, entre meu ser e o ser alheio
a linha de fronteira se rompeu.

Waly Salomão

Charlatões

Um amigo meu diz que em todos nós existe o charlatão. Concordei. Sinto em mim a charlatã me espreitando. Só não vence, primeiro porque não é realmente verdade, segundo porque minha honestidade básica até me enjoa. Há outra coisa que me espreita e que me faz sorrir: o mau gosto. Ah, a vontade que tenho de ceder ao mau gosto. Em quê? Ora, o campo é ilimitado, simplesmente ilimitado. Vai desde o instante em que se pode dizer a palavra errada exatamente quando ela cairia pior – até o instante em que se diriam palavras de grande beleza e verdade quando o interlocutor está desprevenido e levaria um susto de constrangimento, e haveria o silêncio depois. Em que mais? Em se vestir, por exemplo. Não necessariamente o óbvio do equivalente a plumas. Não sei descrever, mas saberia usar um mau gosto perfeito. E em escrever? A tentação é grande, pois a linha divisória é quase invisível entre o mau gosto e a verdade. E mesmo porque, pior que o mau gosto em matéria de escrever, é um certo tipo horrível de bom gosto. Às vezes, de puro prazer, de pura pesquisa simples, ando sobre linha bamba.
Como é que eu seria charlatã? Eu fui, e com toda a sinceridade, pensando que acertava. Sou, por exemplo, formada em direito, e com isso enganei a mim e aos outros. Não, mais a mim que a todos. No entanto, como eu era sincera: fui estudar direito porque desejava reformar as penitenciárias no Brasil.
O charlatão é um contrabandista de si mesmo. Que é mesmo o que estou dizendo? Era uma coisa, mas já me escapou. O charlatão se prejudica? Não sei, mas sei que às vezes a charlatanice dói e muito. Imiscui-se nos momentos mais graves. Dá uma vontade de não ser, exatamente quando se é com toda a força. Não posso infelizmente me alongar mais nesse assunto.
Disseram-me que um crítico teria escrito que Guimarães Rosa e eu éramos dois embustes, o que vale dizer charlatões. Esse crítico não vai entender nada do que estou dizendo aqui. É outra coisa. Estou falando de algo muito profundo, embora não pareça, embora eu mesma esteja um pouco tristemente brincando com o assunto.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Experiências inesquecíveis

Para nós, meninos daqueles tempos, duas eram as experiências inesquecíveis. A primeira delas era fazer o pião rodar pela primeira vez. Eu olhava os craques, observava como eles faziam, o jeito de enrolar a fieira, o jeito de segurar o pião, o movimento do braço para lançá-lo. Tentava fazer do jeito como eles faziam. Mas não acontecia. O pião não rodava. Até que um dia, por puro acidente, o pião rodou.
A segunda é empinar o papagaio. Lembro-me como se fosse hoje. Era uma manhã limpa e fresca. Eu estava lutando com o meu papagaio, correndo para cima e para baixo no pastinho à frente da minha casa. Ele ameaçava subir mas logo descia balançando o rabo. Eu tinha o papagaio, tinha a linha, mas ainda não havia aprendido a sentir o vento. Quem leva o papagaio às nuvens não é o menino que o solta. É o vento. Não é preciso correr. Vindo o vento, é só soltá-lo e dar linha. Tendo vento, ele vai até as nuvens. O papagaio se tornou para mim um símbolo de liberdade. Até escrevi um livro para crianças sobre o papagaio e a liberdade. Para subir às alturas é preciso que o papagaio tenha alguém que o segure na terra. Sem essa âncora ele cai.
Agosto era mês de seca, mês de frio, mês de ipê amarelo, mês de capim-gordura florido, mês de céu azul, mês de vento, mês de papagaio. No largo do virador, de tarde, juntavam-se meninos e grandes com os seus papagaios. De todos os tipos. Em duas dimensões, os quadrados, losangos, octógonos, com rabo, sem rabo, estrelas. Os em três dimensões só os adultos sabiam fazer, caixas, aviões. Era bom olhar pra cima e ver todos aqueles papagaios de cores diferentes contra o céu azul, conversando uns com os outros. Alguns eram seguros de si mesmos, voavam tranquilos quase sem se mexer. Outros eram nervosos, não paravam, e de vez em quando davam cabeçadas. O Sebinho fazia papagaios enormes, tão grandes que em vez de varetas ele usava bambus. Subiam com a mesma brisa suave que fazia voar os pequenos. Em vez de linha 24 ele usava um barbante grosso. A gente pedia pra segurar o barbante, pra sentir a força. Um navio a vela é um barco que fez amizade com um papagaio.

Rubem Alves, in O Velho que Acordou Menino

O Impressionismo de Guignard

Ouro Preto: Véspera de São João (1942), de Alberto da Veiga Guignard 

Vovó Cochise

Todas as manhãs, mamãe me confiava a minha avó, que na adolescência apelidei de Cochise, em homenagem a um célebre chefe indígena.
A avó, portanto.
Era ela o chefe supremo da família. Como uma guerreira apache, fazia valer a lei de ferro sobre suas tropas dispersas. Quase cega, vovó Cochise se quedava ereta e imóvel, atrás de um véu invisível para os outros. Era uma mulher robusta de traços finos, mirrada pela velhice. Tinha a audição, o paladar e o olfato melhores que os de todo mundo. Sua testa era devastada por rugas, sua face mais amarrotada que a pele de um camaleão. Suas sobrancelhas se franziam assim que ela escutava minha voz fina. Tinha o faro de um cão perdigueiro e me farejava antes de me reconhecer. Bastava ela estender os braços e me agarrar pela pele da nuca como uma gata faz com seu gatinho. Sem esforço, ela me punha no colo. E eu só podia fazer uma coisa: agarrar-me a ela para me acalmar. Não devia me mexer nem derramar uma lágrima. Mas era impossível. Eu havia nascido com os olhos úmidos e vermelhos. Não resistia muito tempo. Implacável, a sanção caía sobre meus ombros.
Cada fungado era seguido de um olhar sombrio e ameaçador. Cada choro, de uma reprimenda. Depois, de golpes de bengala na cabeça, nas clavículas, nos calcanhares. Com um golpe seco, ela sabia me fazer gritar de dor. Eu soluçava, soluçava até sufocar. Os dias se sucediam e eram iguais, naquela época. Eu continha a respiração. Eu lançava meu espírito bem longe como um laço. De cansaço, caía no meio da manhã e enfim adormecia. Os olhos da avó se fixavam nos raros transeuntes cujos passos ela intuía muito antes de eles chegarem até nós. Aqueles homens e mulheres não deixavam de cumprimentar a matrona, que balançava a cabeça depois de cada saudação.
O passante: Como vai o pequeno?
Ela: O Clemente vela por ele; hoje não temos do que nos queixar.
O passante: E os seus velhos ossos?
Ela: Se eles estalam é porque estão vivos.
O passante: Pelos Anjos do Céu, a senhora vai enterrar a todos nós, não é verdade?
Ela: Pode contar com isso.

A tigela de mingau que eu havia ignorado ficava de lado ainda por algum tempo. Quinze minutos depois, fazia a felicidade de algum menininho ou de alguma menininha da vizinhança. Por essa vez, a Avó, solicitada por uns e outros, não me repreendia. Aproximadamente às dez da manhã, a agitação no bairro mudava de patamar. Mamãe chegava do mercado. Ela pegava um tamborete e se aproximava da velha para lhe dar notícias de um parente convalescente, transmitir um recado do imã do bairro ou se queixar do aumento do preço da carne. Vovó a escutava. Nada parecia afetá-la.
Eu não tinha direito a um só olhar de minha mãe. Encolhido aos pés de Vovó Cochise, eu tremia de febre. Sentia rancor daquela mãe que mantinha distância de meu pequeno corpo raquítico na esteira. Tentava me acalmar para dar razão a minha avó e perturbar ainda mais mamãe. Contemplava de um ponto de vista próprio os passantes na rua. Tinha uma vista incrível de uma paisagem singular: as unhas atrofiadas dos dedos dos pés de minha avó.
Eu estava com 45 anos quando você entrou na minha vida, Béa. Filha do desejo, você esperou o tempo necessário antes de vir ao mundo com grande fanfarra.
Quando criança, eu jamais havia tido animal de pelúcia, de palha ou de papelão. Não era um bebê sadio, forte e bem nutrido como você. Era magro e doentio. Para que eu parasse de chorar, só havia uma solução. Minha mãe fez esta descoberta por um acaso extraordinário. As grandes descobertas científicas, como a aspirina ou a pasteurização, são filhas do acaso, sabe-se lá por quê. Uma noite em que estava cansada de me ouvir gemer, minha mãe me imergiu na água fria de uma bacia branca na varanda. Hoje revejo a cena com certa emoção. Ao relatá-la, calafrios agitam meu corpo todo. As lágrimas quase me vêm aos olhos.
Antes de ser posto na bacia, eu havia tido a impressão de sufocar, a garganta fechada. O que se seguia terminava sempre da mesma maneira: eu tremia de frio, a água fresca amaciava minha pele. Se minha mãe havia chegado a essa solução radical, é que ela recorrera a todos os estratagemas possíveis sem conseguir acalmar o bebê chorão que eu era. À noite, antes de me deitar na minha pequena esteira, ela me contava toda sorte de histórias. Contos sobre meninos obedientes, outros sobre animais dóceis ou plantas afetuosas. As histórias se encadeavam. Nós éramos os dois únicos seres a se agitar enquanto toda a cidade dormia à solta.

Quando você nasceu, Béa, um detalhe me chamou a atenção: você tinha orelhas grandes, um pouco como Barack Obama. Seu pequeno rosto era marcado por seus grandes cílios. Você se mexia muito. Tremendo, examinei seus membros. Graças a Deus você era saudável.
Sob o efeito da dor, ainda meio inconsciente, sua mãe rompe enfim as brumas que a envolviam para me perguntar o sexo do bebê.
Eu, orgulhoso como um pavão: “É uma menina!”.
E você gritou pela segunda vez.
Você se esgoelava por qualquer motivo.
Fazia questão de que sua mãe e eu comêssemos na palma da sua mão. Em matéria de mistura explosiva, você é campeã em todas as categorias. Ao sangue suíço-milanês de sua mãe, acrescente-se meu sangue africano, que não é nada preguiçoso, porque todos os meus antepassados eram nômades e, ainda hoje, eles continuam a ganhar de todo mundo na corrida a pé.

Abdourahman A. Waberi, in Por que você dança quando anda?

Magush


Uma bruxa tessálica leu o destino de Polícrates nos desenhos deixados pelas ondas na praia ao regressarem ao mar; uma vestal romana adivinhou o de César em um montinho de areia em torno de uma planta; o alemão Cornélio Agrippa usou um espelho para ler seu futuro. Alguns bruxos da atualidade leem o destino nas folhas de chá ou na borra de café no fundo de uma xícara, alguns em árvores, na chuva, nas manchas de tinta ou na clara do ovo, outros nas linhas das mãos, simplesmente; outros em bolas de cristal. Magush lê o destino no edifício desabitado que fica em frente à carvoaria onde vive. Os seis enormes janelões e as doze janelinhas do edifício vizinho são, para ele, como um baralho de cartas. Magush jamais pensou em associar janelas a cartas: eu é que pensei nisso. Seus métodos são misteriosos e só admitem uma explicação relativa. Ele me disse que, durante o dia, dificilmente consegue tirar conclusões, porque a luz atrapalha as imagens. O momento propício para realizar o trabalho é ao cair do sol, quando, pelas gelosias das janelas interiores, são filtrados certos raios oblíquos, que reverberam sobre os vidros das janelas da frente. Por causa disso, ele sempre marca seus clientes para a mesma hora. Eu sei, soube depois de muitas averiguações, que a parte mais alta do edifício revela assuntos do coração, a parte baixa, as questões de dinheiro e de trabalho, e a parte central, os problemas de família e o estado de saúde.
Magush, apesar de ter apenas catorze anos, é meu amigo. Eu o conheci por acaso, num dia em que fui comprar um saco de carvão. Não demorei para intuir seu gênio adivinho. Depois de algumas conversas no pátio da carvoaria (rodeados de sacos de carvão, nós dois morrendo de frio), ele me encaminhou para o cômodo onde trabalha. O cômodo é uma espécie de corredor, tão frio quanto o pátio; de lá, confortavelmente, através de uma combinação de claraboias com vidros coloridos e de uma janela estreita e alta, como se fosse para hospedar uma girafa, pode-se divisar o edifício da frente, com sua fachada amarelada, marcada por chuvas e pelo sol. Depois de ficar um pouco nesse cômodo, comprovei que o frio desaparecia, substituído por uma agradável sensação de calor. Magush me disse que aquele fenômeno se produz nos momentos de adivinhação e que o cômodo não é outra coisa senão um corpo que absorve aquelas irradiações tão benéficas.
Magush me cobriu de extraordinárias deferências. Deixou que eu olhasse, pessoalmente, na hora propícia, as janelas do edifício, uma por uma. (Às vezes as cenas vistas eram indecifráveis; nesse sentido, no começo tive sorte.) Em uma delas vi, para mal dos meus pecados, aquela que depois se tornou minha namorada com meu rival. Ela usava o vestido vermelho que me deixou deslumbrado e os cabelos soltos na frente, presos com um pequeno coque na nuca. Para ter visto esse detalhe, eu tinha que ter olhos de lince, mas a clareza da imagem se deve à magia que a rodeia, e não à minha vista. (A esta mesma distância consegui ler cartas e recortes de jornal.) Lá vi a cena pesarosa que depois tive que sofrer na própria carne. Lá vi aquele leito coberto de colchas rosadas e as senhoras horríveis que entravam e saíam com pacotes. Lá, nos vidros que refletiam o pôr do sol, vi os passeios no rio Tigre e no rio Luján. Lá estive a ponto de estrangular alguém. Depois, quando fui ao encontro desses acontecimentos, a realidade me pareceu um tanto desbotada e minha namorada talvez menos bonita.
Passadas aquelas experiências, meu interesse por alcançar meu destino diminuiu. Consultei-me com Magush. Era possível evitá-lo? Magush, que é inteligente, pensou se convinha tentar fazer isso. Por alguns dias não saí de seu lado. Me distraí vendo imagens, abrindo mão de buscá-las e de vivê-las. Magush me disse que, por se tratar de nossa amizade, que era de tantos anos, faria uma exceção: nunca tinha permitido a ninguém esse comportamento. Me entretive vendo meu destino naquelas janelas e as artimanhas que ele empregava com os clientes a quem enganava, entregando a eles o meu destino como se fosse o deles.
É mais prudente que alguém viva seu destino imediatamente, à medida que vai aparecendo nas janelas. Senão ele pode vir atrás de você: o destino é como um tigre impiedoso, que espreita seu dono — me dizia Magush, e para me tranquilizar acrescentava: — Um dia, talvez, não haja mais nada para você nessas janelas.
Vou morrer? — eu perguntava com certa inquietação.
Não necessariamente — respondia Magush. — Você pode viver sem destino.
Mas até os cães têm um destino — protestei.
Os cães não podem evitá-lo: são obedientes.
Aconteceu, em parte, o que Magush tinha pressagiado, e vivi por um tempo entediado e tranquilo, devotado a meu trabalho, mas a vida me atraía e eu sentia falta de, ao lado de Magush, contemplá-la no edifício. Ainda não tinham se extinguido as figuras dedicadas a esclarecer meu destino. Em cada uma das janelas, inextricáveis novas composições às vezes nos surpreendiam. Luzes tétricas, fantasmas com caras de cachorro, criminosos, tudo indicava que não era bom que aqueles quadros que eu estava vendo chegassem a ser reais.
Quem iria gostar de viver esses infortúnios? — eu disse a Magush, que resolveu, naquele dia, para me divertir, dar uma de consulente e de vidente ao mesmo tempo. Comecei a ver luzes de Bengala, títeres, lanterninhas japonesas, anões, pessoas vestidas de urso e de gato. Hipocritamente, eu disse: — Tenho inveja de você. Eu bem queria ter catorze anos.
Mudo seu destino — me disse Magush.
Aceitei, embora sua proposta me parecesse ousada. O que eu faria com esses anõezinhos? Falamos por bastante tempo das dificuldades que podiam acarretar as diferenças de nossa idade. Talvez tenha nos faltado a fé de que precisávamos.
Nosso projeto não se cumpriu. Nós dois perdemos a chance de satisfazer nossa curiosidade.
Às vezes reincidimos na tentação de trocar o destino de um pelo de outro; fizemos algumas tentativas, mas sempre volta a acontecer o mesmo impedimento: quando se pensa nas dificuldades que Magush venceu, a ideia acaba sendo absurda. Não faz muito tempo, quase fui embora. Fiz minhas malas. Despedimo-nos. As imagens nas janelas eram tentadoras. Algo me deteve no último instante. A mesma coisa aconteceu com Magush; ele não teve coragem de escapar da carvoaria.
Sempre fico fascinado com o destino de Magush, e ele sente o mesmo diante do meu (por pior que seja), mas no fundo a única coisa que desejamos, eu e ele, é continuar contemplando as janelas dessa construção e presentear aos outros nosso destino, desde que ele não nos pareça extraordinário.

Silvina Ocampo, in A fúria

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Versos à boca da noite

Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva…
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome… Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a ideia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, aonde, quando?
seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo

Carro elétrico, El Paso

A sra. Snowden esperou que a minha avó e eu entrássemos no carro elétrico dela. Era igual a qualquer outro carro, salvo pelo fato de que era muito alto e curto, como um carro de desenho animado quando bate numa parede. Um carro de cabelo em pé. Mamie se sentou no banco da frente e eu no de trás.
Era como unhas arranhando um quadro-negro. As janelas estavam cobertas de uma camada de poeira amarela. As paredes e os bancos eram de veludo bolorento e empoeirado. Marrom-escuro. Eu roía muito as unhas nessa época, e a sensação do veludo mofado e poeirento nas pontas em carne viva dos meus dedos, nos meus cotovelos e joelhos esfolados era… uma agonia. Meus dentes doíam, meu cabelo doía. Eu estremecia como se tivesse tocado acidentalmente num gato morto de pelo duro. Dando um impulso, estiquei o corpo pra cima e me agarrei aos pinos dourados em forma de vasos de planta que ficavam em cima das janelas sujas. As alças que serviam para o passageiro se segurar estavam podres e desfiadas, balançando feito perucas velhas embaixo dos vasos de planta. Agarrada desse jeito aos pinos, eu ficava suspensa no ar, balançando acima dos bancos traseiros dos outros carros, onde eu via bolsas de compras, bebês brincando com cinzeiros, caixas de lenços de papel.
O carro fazia um ruído tão baixo, feito um zumbido, que nem parecia que estávamos saindo do lugar. Será que estávamos? A sra. Snowden não passava, talvez não pudesse passar, de vinte e cinco quilômetros por hora. Andávamos tão devagar que eu via as coisas de um jeito que nunca tinha visto antes. Via tudo ao longo do tempo, como se estivesse observando alguém dormir, a noite inteira. Um homem na calçada decidiu entrar num café, mudou de ideia, foi andando até a esquina, depois voltou e entrou, estendeu o guardanapo no colo e fez uma cara de expectativa, tudo isso antes que nós chegássemos ao fim do quarteirão.
Se eu abaixasse a cabeça, fazendo dela um banco de balanço embaixo dos meus braços pendurados, quando olhava para cima só o que eu via de Mamie e da sra. Snowden, tão pequeninas, eram os chapéus de palha, como se elas fossem apenas dois chapéus de palha pousados no painel. Eu ria histericamente toda vez que fazia isso. Mamie virava para trás e sorria como se não tivesse notado. Nós não estávamos nem no centro ainda, nem na Plaza.
Ela e a sra. Snowden estavam falando de amigas que tinham morrido ou que estavam doentes ou que tinham perdido o marido. Concluíam tudo o que diziam com uma citação da Bíblia.
Bom, eu acho que ela foi muito tola de…”
Ah, sim, misericórdia! E como foi. ‘Todavia, não o considereis como inimigo, mas procurai corrigi-lo como irmão.’”
Tessalonicenses Três!”, disse Mamie. Era uma espécie de jogo.
Por fim, eu não aguentei mais ficar pendurada nos vasos de planta e me deitei no chão. Borracha mofada. Poeira. Mamie virou para trás e sorriu. Misericórdia! A sra. Snowden parou o carro na beira da calçada. Elas acharam que eu tinha caído. Bem mais tarde, horas depois, fiquei com vontade de ir ao banheiro. Todos os banheiros limpos ficavam do outro lado da rua, o lado esquerdo. A sra. Snowden não podia fazer curvas à esquerda. Tivemos que fazer umas dez curvas à direita e percorrer uns dez quarteirões de ruas de mão única até chegar a um banheiro. Eu já tinha feito xixi na calça a essa altura, mas não disse nada para elas. Tomei a água fria da bica do posto Texaco. Levamos mais tempo ainda para voltar para o lado direito, porque tivemos que retornar até o viaduto da Wyoming Avenue.
Estava seco no aeroporto, carros entrando e saindo da pista de cascalho. Novelos de barrilha presos na cerca. Asfalto, metal, uma névoa poeirenta de átomos dançantes que se refletia, ofuscante, das asas e janelas dos aviões. Dentro dos carros à nossa volta, pessoas comiam coisas melequentas. Melancias, romãs, bananas machucadas. Garrafas de cerveja esguichavam nos tetos, espuma cascateava nas laterais dos carros. Eu queria chupar uma laranja. Estou com fome, choraminguei.
A sra. Snowden tinha previsto isso. Sua mão enluvada me passou biscoitos recheados embrulhados num lenço de papel sujo de talco. O biscoito se expandiu na minha boca como flores japonesas, como um travesseiro estourado. Eu engasguei e chorei. Mamie sorriu e me passou um lenço de pano cheio de pó de sachê, depois sussurrou para a sra. Snowden, que estava balançando a cabeça:
Não ligue… ela só está querendo chamar atenção.”
Pois o Senhor educa a quem ama.”
João?”
Hebreus, Onze.”
Alguns aviões decolaram e um pousou. Bem, é melhor tratarmos de voltar para casa. Ela não enxergava tão bem à noite, com os faróis e tudo o mais, então dirigiu mais devagar no caminho para casa, mantendo distância dos carros estacionados no meio-fio. Todos os motoristas de domingo estavam buzinando para nós. Eu me levantei do banco, apoiei as duas mãos no vidro de trás e, sustentando o corpo bem longe do veludo, fiquei vendo o colar de faróis emperrado atrás de nós até o aeroporto.
A polícia!”, gritei. Uma luz vermelha, uma sirene. A sra. Snowden ligou a seta e foi encostando lentamente para deixar o carro de polícia passar, mas ele parou do nosso lado. Ela abaixou a janela até o meio para ouvir o que o guarda tinha a dizer.
Senhora, os sinais estão ajustados para um fluxo de sessenta quilômetros por hora. Além disso, a senhora está dirigindo no meio da estrada.”
Sessenta é rápido demais.”
Se a senhora não aumentar a velocidade, eu vou ser obrigado a multá-la.”
Eles podem me contornar simplesmente.”
Minha querida, eles não ousariam!”
Ora!”
Ela acionou a janela elétrica na cara do guarda. Ele bateu na janela com o punho fechado, o rosto vermelho. Buzinas baliam atrás de nós, e as pessoas do carro logo atrás do nosso estavam rindo. Furioso, o guarda saiu pisando firme e entrou no carro de patrulha. Engatou a marcha e arrancou, a sirene aos brados enquanto ele ultrapassava um sinal vermelho, batia na traseira bronzeada de um Oldsmobile e depois batia de novo, na dianteira de uma picape. Vidros se estilhaçaram. A sra. Snowden abaixou sua janela. Seguiu adiante, contornando com cuidado a traseira da picape arrebentada.
Aquele que julga estar em pé tome cuidado para não cair.”
Coríntios!”, disse Mamie.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

O som do rugido da onça | XVI

É fato que reis constroem castelos, além de pontes. O castelo está para o rei como os afogados estão para os rios. Entretanto, os rios não necessitam de afogados em suas torrentes para que tenha sentido sua existência; os afogados lhes são indiferentes, é a verdade, ao contrário dos reis, que, sem castelo, parecem ter diminuída sua potência. Assim, quanto mais castelos e pontes e mesmo conventos em pilares sólidos e alicerces estruturados, tanto maior o poder do rei, tenha ele qual nome tiver. Ah, e as guerras, é claro! E a ciência, que coloca as guerras em movimento, com suas sempre novas tecnologias de matar. O poder de um rei, embora dito natural, não é fluido; necessita de mecanismos, arruelas e encaixes. Nada é simples.
O castelo, embora possa ser lar e fortificação, casa e posto de combate, universo que se ergue para fora da caixa de mogno talhada com adornos de marfim da rainha, ou, o contrário, ajuntamento de pedra e carne que penetra em dobras e quinas no interior aveludado e rubro da mesma caixa, é, também e sobretudo, a marca da ruína. O castelo de Chillinghan, por exemplo, na fronteira entre Inglaterra e Escócia, a meio caminho dos dois territórios, se um dia se torna risível em portais de notícias como um dos lugares mais assombrados do mundo, é porque ainda ontem, ou centenas de anos atrás, como queira, foi palco de torturas de combatentes das duas nações, iniquidades contra as vítimas de sempre, pobres em geral, mulheres, crianças, soldados caídos em desgraça. Ou o palacete da ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, que, depois do baile de 9 de novembro de 1889, 250 contos de réis gastos, quase uma tonelada de camarões, meia tonelada de perus e pouco menos que uma centena de faisões, revela sua natureza de palco para o tombo do imperador Pedro II, incidente que lhe machuca as ancas e que de quebra faz com que perca o império. Após o baile, o espólio: 37 lenços, 24 cartolas e chapéus de senhoras, treze coletes femininos, dezessete cintas-ligas, oito raminhos de corpete e militares com espadas em punho sobre seus cavalos brancos e pardos, assumindo o poder dali em diante, e, mesmo quando fora do poder, suas lâminas e armas de fogo sempre a postos, pairando ao longo dos tempos sobre a cabeça do povo. A ruína tem muitas configurações. Ademais, todo castelo guarda em si túmulo e prisão.
Iñe-e e o menino Juri são levados em comitiva a uma grande e compacta construção, o castelo em que mora aquele rei que encomendara aos cientistas todo um pedaço, um recorte de sua terra, o mesmo que lhes deu ordens e meios para saírem a saquear a terra alheia. Como que brotado do chão da cidade, o castelo se ergue denso, prepotente. Seus aposentos resplandecem ouro, rubis e uma longa história de conquistas e sangue. Nesse dezembro, a boa nova anunciada pelas inúmeras portas e janelas da casa do rei é menos o menino Jesus a ser celebrado em data próxima que essas outras crianças vindas da inaudita floresta, singulares, desconhecidas, anômalas em sua simplicidade.
A imensa construção parece aos olhos de Iñe-e um lugar que guarda muitas espécies de erro. Os brancos, presentes em todos os lugares, ora caminhando de um lado para o outro, ora paralisados em pedra muito polida e até mesmo em metal. Há ainda as gentes presas em quadros nas paredes e as que surgem ameaçadoras nos afrescos, brotando de paredes e teto. A lâmina translúcida dos espelhos a multiplicar os corpos avisa do perigo de lhes reter a alma. Tapetes, estofados, almofadas, o ruído dos saltos dos sapatos contra o piso, os poucos animais que transitam com alguma liberdade, cães e gatos, toda a solenidade daquele mundo guardando enorme risco.
Apartados de Martius e Spix, Iñe-e e o menino são conduzidos a um aposento sombrio por uma mulher de bochechas coradas e cabelo entre o branco e o amarelo. Ali, são limpos rapidamente com um pano áspero e úmido e têm suas roupas trocadas. Uma mulher os leva a uma cozinha e tenta fazer com que comam um mingau grosso e um tanto repugnante. Tanto Iñe-e quanto o menino Juri recusam o que lhes é oferecido. Estão enjoados. Depois de algum tempo de sossego e vigilância, são conduzidos à sala do trono, onde um ajuntamento de gente os olha com curiosidade ou ferocidade, Iñe-e não consegue distinguir o que os move exatamente. Mas lhe parece que todas aquelas pessoas se agregam em uma única e gigantesca cabeça de boca aberta a fazer um ruído que ela mesma não sabia até ali que pudesse ser feito por gente, articulando uma boca faminta por engolir a ela, ao menino, aos bichos e às plantas ali colocados em exibição. Uma boca ansiosa por saber deles a fibra e a consistência, e que, possuindo muitos e dessemelhantes olhos que variam de cor, ora azuis, ora verdes, e também escuros e amarelados, tem o poder de devassar todos os corpos, deixando à mostra estômagos, corações, tripas, sem, no entanto, devorá-los como deveriam. Só desperdício. Era um festejo bárbaro, e ela e os outros, o butim.
Ao contrário do menino, naturalmente curioso e vivaz, Iñe-e evita olhar os brancos diretamente. Espreita-os de soslaio, o suficiente para intuir quem são. Um homem de casaca negra berra algo para os cientistas, e é extremamente desagradável. De sua boca respinga cuspe, e seus dedos pegajosos como o caucho ora tocam a mão de Spix, ora tocam o ombro de Martius e, ao tocá-los, seus dedos se desmancham, elásticos, em uma calda grossa. Para seu horror, o homem se aproxima dela e, então, ela sente as mãos dele primeiro em seu cabelo, depois escorrendo para o queixo, abrindo sua boca, enquanto os olhos como uma luz maligna examinam-lhe os dentes. Relembra o dia no navio em que acordara com as mãos do capitão entre suas pernas. Depois o homem toca seus ombros, bate em suas costas e por fim lhe golpeia as pernas como se quisesse saber se são firmes. Essa coreografia de gestos ela já conhece e detesta, porque a machuca de muitas maneiras. Quando o homem termina de examiná-la e passa a investigar o menino, Iñe-e sente ainda o visgo dos seus dedos moles em cada lugar dela que ele tocou.
Quando finalmente o rei aparece, vem acompanhado da rainha e dos filhos. O rei tem o péssimo hábito dos brancos de deixar cabelo crescer na cara, o que a enoja. Talvez entre eles seja sinal de que é um grande chefe, mas, para ela, trata-se de um sintoma de fraqueza de caráter. A mulher tem olhos muito penetrantes, e acima deles suas sobrancelhas são como duas lagartas escuras que, embora muito próximas, parecem prestes a se arrastar em diferentes direções. Ela olha para Iñe-e com curiosidade, talvez algum horror, e diz algo ao ouvido do marido sem desviar os olhos da menina. Os filhos maiores também comentam coisas entre si e as filhas pequenas saltitam como macaquinhos. Logo cercam Iñe-e e o menino Juri, e Iñe-e pensa que, se tivesse, poderia lhes oferecer um punhado de tucumãs, que elas se afastariam aos pulos, contentes, satisfeitas. Toda aquela festa e ajuntamento de curiosidades a enfadam. O cansaço que sente tem o peso de muitos fardos.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

Cartas para minha avó | 4

Apesar das durezas reproduzidas e reforçadas pelo racismo, você sabe que vivíamos momentos felizes lá em casa, vó. Meu pai lia pra gente, nós brincávamos na rua e minha mãe, quando não estava exaurida pelos trabalhos domésticos, era bem-humorada. A vida era simples, mas não nos faltava nada. Você sabe como eu era falante e inteligente, como meus pais gostavam de me exibir para parentes e amigos.
Ir pra escola, porém, foi como desaprender a ter um espaço seguro. Mesmo estudando no Colégio Moderno dos Estivadores, destinado aos filhos e netos de trabalhadores, os xingamentos eram constantes e as professoras nunca me escolhiam para protagonizar nada. Aos poucos, fui criando proteções.
As educadoras e os educadores não tinham o mínimo preparo para lidar com questões raciais. Quando eu reclamava para a professora sobre alguma ofensa, ela dizia para eu não ligar. Se eu respondia, as ofensas se multiplicavam. Na segunda série, havia uma menina de nome Sabrina que adorava implicar comigo. Ela fazia piadas durante a aula, me perseguia no recreio. Sabrina era daquelas loiras com estojo automático, canetas coloridas com cheiro de chiclete e caixa grande com vinte e quatro canetinhas. Seus cadernos eram bem encapados, sua mochila era grande e rosa e seu uniforme engomado. O sonho das minhas professoras e dos meus professores, a pequena musa dos meninos em seus namoros imaginários.
Você dizia que eu era uma menina linda, meus pais também, mas quando se tem oito anos isso não basta. Como nós éramos em quatro irmãos, o meu pai comprava os materiais mais simples, para que todos tivessem o seu. Eu sonhava com o estojo que Sabrina e as outras meninas brancas tinham, e agradecia quando alguma delas, em raros atos de gentileza, me deixavam brincar com eles. Mas Sabrina, não, ela nunca emprestava seu material. Mesmo seu pai sendo estivador, como o meu, ela se gabava de ser a “mais rica”, porque era descendente de italianos e seu avô, ao morrer, deixou bens para a família.
Meu pai, que ficou órfão de pai aos seis meses e morava com a mãe e a irmã “numa maloca no morro da Penha” — como ele gostava de dizer quando nos dava aquelas broncas intermináveis —, não teve a mesma “sorte”. Morou em cortiços com minha mãe, depois numa casa de madeira no Guarujá — lá, quando chovia, “até cobra entrava”, ela sempre lembrava. Os três primeiros filhos nasceram nessa casa. Eu, por conta do bolão da loteria esportiva, já nasci no apartamento de dois quartos entre os canais 4 e 5, em Santos. Graças ao empenho da minha mãe em ir à Caixa Econômica Federal para renegociar as parcelas do financiamento, meus pais conseguiram quitar o apartamento quando eu ainda era adolescente. Foi lá que vivi os primeiros vinte e dois anos da minha vida, vó, sem regalias.
Sabrina podia não entender nada de teorias racistas, mas sabia aproveitar seus privilégios para sempre se colocar à frente e tentar controlar e comandar tudo. Ela era como a líder da turma. Uma vez eu pedi uma canetinha emprestada para uma colega, a Ana Carolina, uma garota branca e loira — outra princesa da escola. Antes que ela pudesse responder, Sabrina interveio: “Djamila é preta, então empresta só a canetinha preta pra ela”. Ana Carolina hesitou, mas riu, e as outras crianças da sala também. Era sempre assim, elas nunca me defendiam ou recriminavam o que ouviam, era quase intuitivo o desprezo que sentiam.
Cansada daquelas humilhações, respondi sem pensar para Sabrina: “Na hora do recreio eu vou te pegar”. O que eu havia dito somente para me defender, virou uma sentença. No recreio, enquanto eu conversava com uma colega da outra sala, Sabrina se aproximou: “Você não disse que ia me pegar?”. E logo uma rodinha se formou, incentivando o espetáculo.
Senti que não tinha opção e bati em Sabrina. Conforme batia, a roda gritava, se comprazendo com algo que poderia ter sido evitado. Ao ouvir a gritaria, dona Assunção, inspetora da escola, apareceu. Assim que a avistei, com seus braços fortes e avental azul, congelei e me afastei da minha adversária. Eu havia ganhado a briga, então sabia que não apanharia em casa. Meu medo era, na verdade, de levar bronca da diretora, famosa por ser linha dura.
Eu sabia que todas as crianças negras que revidavam eram advertidas, suspensas ou passavam horas na diretoria. As professoras nunca nos defendiam, então que opções tínhamos? Mesmo ganhando a briga, se eu fosse suspensa ou algo do tipo, a punição lá em casa seria dura. Com um frio na barriga, imaginei o pior. Foi Sabrina que, sabendo o quanto a escola era devota de meninas como ela, quebrou o silêncio que se formou no pátio: “Dona Assunção, a Djamila me bateu”, e desabou a chorar. Eu, sabendo o quanto aquela escola repudiava meninas como eu, já tinha dado como certa a surra que levaria em casa após ficar horas ouvindo broncas da diretora. É a dupla violência: somos violentados pelo racismo e por enfrentá-lo. Porém, para minha surpresa, dona Assunção respondeu: “Bem feito, Sabrina, quem mandou você mexer com ela?”.
Naquele momento, vó, sem saber racionalizar direito, eu me senti em casa, segura. Além disso, ganhei o respeito de algumas crianças que também não gostavam de Sabrina, e essa foi uma das raras vezes em que fui vista como uma vencedora — e não como a “neguinha feia do cabelo duro”. Sem saber, dona Assunção me mostrou que era importante lutar para ser respeitada. Ela foi, por um breve momento, a música que me livrou da náusea. Ali, sem saber, ela me fez perceber que a sensação de direito adquirido era melhor que a sensação de dever cumprido.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Criação humana

 Deus é uma criação humana e, como muitas outras criações humanas, a certa altura toma o freio nos dentes e passa a condicionar os seres que criaram essa ideia.”

José Saramago, in As palavras de Saramago

Um feliz aniversário e que você vá à merda

Raquel: Alô?
Breno: Tudo bem?
Raquel: Tudo, e você?
Breno: Também. Parabéns. Tudo de bom.
Raquel: Obrigada. Obrigada por ligar.
Breno: Já que você não ligou no meu…
Raquel: …você sabe. Era muito recente.
Breno: E você “não quis me aborrecer”.
Raquel: Já tínhamos conversado sobre isso. Ligou para ficar me culpando?
Breno: Tem razão. Não liguei para te culpar. Liguei para te desejar um feliz aniversário. E pra te mandar à merda.
Raquel: Oi?
Breno: À merda.
Raquel: Tá falando sério?
Breno: Depois de oito meses, estou.
Raquel: Não entendi. Achei que estava tudo bem.
Breno: Está tudo ótimo. Tudo perfeito. Do jeito que VOCÊ decidiu. VOCÊ quis. VOCÊ impôs.
Raquel: …realmente achei que você estava ok com isso.
Breno: E estou. Tô na boa. Tô okzaço. Só ficou faltando dizer isso.
Raquel: Isso?
Breno: Isso. Que eu fui muito gente fina. Falei que entendia, que tudo bem, que esperava que pudéssemos manter uma relação decente, que o tempo cuidaria de mim. Essa baboseira toda. Mas esqueci de te mandar à merda. Então aproveitei a ligação para mandar.
Raquel: Pra me mandar à merda?
Breno: É.
Raquel: Tá certo. Se sente melhor?
Breno: Não. Não é para me sentir melhor. É só pra te mandar à merda mesmo.
Raquel: Ok.
Breno: Então aproveite seu dia.
Raquel: Obrigada.
Breno: De nada. Falou.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

― Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta...


[…] E dizendo vou. No mais, que quando se alcançou o nosso bom esconder, num boqueirãozinho, já achamos companheiros outros, diversos, vindos de armas, e que chegavam separadamente, naquela satisfação de vida salva. Um era o Feijó. Será, se tinha avistado o Reinaldo sem perigo? A meio perguntei. Por causa que só em Diadorim era que eu pensava. O Feijó em tanto tinha notado: Diadorim, na retirada, bem conseguido; depois se retrasou, por uma cacimba de grota. ― ...Estava com sangue numa perna de calça. Para mim, foi nada, arranho à-tôa... O que me ensombreceu ― então Diadorim estava ferido. Aí, eu mesmo esbarrei, beirávamos o riachinho do Jio, eu quis lavar os pés, que muito me doíam. Acho que, de cansado, estava também com dôres redondas de cabeça, molhei minhas fontes. Cansaço faz tristeza, em quem dela carece. Diadorim estivesse ali, somentemente, espaço disso me alegrava, eu não havia de querer conversar reportório de tiros e combates, eu queria calado a consequência dele. Ao modo que eu nem conhecia bem o estôrvo que eu sentia. Pena. Dos homens que incerto matei, ou do sujeito altão e madrugador ― quem sabe era o pobre do cozinheiro deles ― na primeira mão de hora varado retombado? Em tenho que não. Dó que me dava era do Garanço, e o Montesclarense. Quase com um peso, por minha culpa dos dois ― eles eu era quem tinha escolhido, para conduzir, e depois tudo. Logo esses ― o senhor sabe, o senhor segue comigo. Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, daqui, vereda abaixo, tigre cangussú estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, um que foi desse rio de São Francisco, foguista de vapor; depois cá herdou uns alqueires. Comprou-se para ele, então, uma boa perna-de-pau. Mas, assim, talvez por se ter sacolejado um pouco do juizo, ele nunca mais quer sair de casa, nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo: ― Ai, quem tem dois tem um, quem tem um não tem nenhum... Todo o mundo ri. E isso é remorso? Desgraça a mando era que eu cumpria, azo de que tivesse perdi do alguma coisa. Porque dó de amizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era. E cheguei no Cansanção-Velho, chamado também o Jio, dito.
Lá, com pouco, a gente era doze. Os alguns faltavam, dos que eram para se reunir ali, mas decerto ainda vinham vir. Num ponto me agradei! então, em guerra, quase não se morre? E, mesmo, nas más horas é que vem bom consolo! para o Jio tinha tocado, de antevéspera, o Braz, nessa antecedência em dois jumentos ele tinha trazido mantimento de feijão e arroz, e toucinho para torresmos, e pratos e panela, se cozinhou um jantar. Tanto que comi, deitei. Dormi impado. Que caso que eu carecia de pensar, que não fosse que na morte do Garanço e do Montesclarense eu não devia nenhum dolo; e que Diadorim ia chegar a vir também, aonde estávamos, mais tardar no romper da aurora? Dormi. Mas daí a logo acordei, mão no rifle, como se vez fosse. E não havia a coisa nenhuma, nem vulto nem barulho. Os outros no estar, pesados no sono, cada um em seu recanto, estufando suas redes penduradas de árvore em árvore.
Só vi um, o Jõe Bexiguento, sobrechamado o Alpercatas! esse era homem de estranhez em muitos seus costumes, conforme se dizia e era notado. Jõe Bexiguento parecia não estar querendo ir dormir, tinha ficado na beira do fogo, remexendo as brasas; num fusco em vermelho, dava para a cara dele se divulgar. E ele pitava. Meigo repus o rifle, virei para o outro lado. Adormecer, pude; mas, com outros minutos, tornei naquele mau susto de acordar. Isso aconteceu três vezes, reformadas. Jõe Bexiguento reparou em meu dessossego, veio para o pé de minha rede, sentou no chão. ― Horas destas, tem galo já cantando, noutros lugares... ― ele falou. Não sei se dei alguma resposta. Agora eu estava cismado.
Ou se fosse que algum perigo se produzia por ali, e eu colhia o aviso? Não é que, com muitos, dose disso sucedesse? Eu sabia, tinha ouvido falar: jagunços que pegam esse condão, adivinham o invento de qualquer sobrevir, por isso em boa hora escapam. O Hermógenes. João Goanhá, mais do que todos, era atreito a esses palpites de fino ar, coraçãoados. Atual isso comigo? Que os bebelos rodeavam para ali, quem sabe perto já rastejavam. Zé Bebelo mandava neles. Em todos o momentos, em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheia de passagens emendadas. Eu, na Nhanva, ensinando lição a ele, ditado e leitura, as contas de juros; depois, de noite, na sala grande, na mesa grande, se comia canjica temperada com leite, queijo, coco-da-bahia, amendoím, açúcar, canela e manteiga-de-vaca. ― Fofo faço, e em prazo, siô Baldo: acabar para uma vez com essa cambada canalha de jagunços! ― ele referia, com rompante e festa no dizer, bebendo seu coité de chá-de-congonha, que de tão quente pelava. Então, agora, era eu também ― Zé Bebelo vinha de lá, comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha jurado, naquela ocasião, ficava sendo também de acabar comigo, com minha vida. Mas eu prezava Zé Bebelo, minha simpatia é uma só, dada definitiva às altas, sempre fui assim. Sendo que não fosse ele em sua pessoa, se ele no meio não estivesse, tudo tinha outra ordem: eu podia pôr meu afinco o-farto destravado, no querer combater. Mas, brigar, cruzando morte, com Zé Bebelo, eu vi que era isso que me dava uma repugnância, em minha inteligência. Levantei da rede, e convidei Jõe Bexiguento para se botar mais lenha no fogo. Ele disse: ― Convém não. Ocasiões assim, convém acender nem vela de cera preta... Enrolei um cigarro.
Contei ao Jõe o que eu estava sentindo estúrdio; se não era agouramento? E ele me apaziguou: que anjo aviso não vinha desse jeito, antes era uma certeza que minava fininha, de dentro da ideia da gente, sem razoado nem discussão. O que eu purgava era ranço nervoso, sobra da esquentação curtida nas horas de tiroteio. ― Comigo, assim, depois de cada forte fogo, me dá esse porém. E uma coceira na mente, comparando mal. Faz regular uns seis anos, que estou na jagunçagem, medo de guerra não conheço; mas, na noite, passado cada fogo, não me livro disso, essa desinquietação me vem...
Pela causa, me disse, era que ele não vencia dormir nem um pisco, naquela comprida noite, e nem experimentava. Jõe Bexiguento achava que não tinha mais sustância para ser jagunço; duns meses, disse, andava padecendo da saúde, erisipelava e asmava. ― Cedo aprendi a viver sozinho. Pra o Riachão vou, derrubo lá um bom mato... Era o projeto em tal, que ele formava vez em quando. ― Trabalhar de amassar as mãos... Que isso é que sertanejo pode, mesmo na barra da velhice...
Você era amigo do Garanço, Jõe? ― em manso perguntei. ― Assim, o dito, pela rama. Que foi com ele? Deu o fim, mesmo, legal? Acho que esse sempre se esteve meio caipora... Ele mesmo sabia que era... Ainda ouvindo as palavras, conheci que tinha perguntado pelo Garanço só para depois perguntar por Diadorim, digo! o Reinaldo. Mas outra coragem não tive. Faltou razão para mim. Que desconversei! ― Caipora se cura, Jõe? Você sabe rezas fortes? ― por aí devo que indaguei; bobeia minha, assunto. ― A que cujo, se caipora não curasse? Todo o mundo dela tem, nos tempos... ― ele me repositou. ― ... Mas desses ensalmos quis aprender não. Memória que Deus me deu não foi para palavrear avesso nele, com feitas ofensas...
Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço ― criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente.
Uai?! Nós vive... ― foi o respondido que ele me deu.
Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele, duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede, sem fome, sem querer nenhum, sem paciência de estimar um bom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse, aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça, depois do antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um, que estava com sua rede ali a próximo, decerto acordou com meu vozeio, e xingou xíu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...
Mas Jõe Bexiguento não se importava. Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a ideia dele era curta, não variava. ― Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jaguncêio... ― ele falasse. Tudo poitava simples. Então ― eu pensei ― por que era que eu também não podia ser assim, como o Jõe? Porque, veja o senhor o que eu vi: para o Jõe Bexiguento, no sentir da natureza dele, não reinava mistura nenhuma neste mundo ― as coisas eram bem divididas, separadas. ― De Deus? Do demo? ― foi o respondido por ele ― Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta... Quem é que pode ir divulgar o corisco de raio do bôrro da chuva, no grosso das nuvens altas? E por aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, ele era engraçado. Naquele tempo, também, eu não tinha tanto o estrito e precisão, nestes assuntos.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Coisa de mãe

Vez por outra ela duvida
até do nosso amor,
fazendo drama e falando
como quem sente uma dor:
– “Um dia, quando eu morrer,
é que tu vai aprender
e talvez me dar valor.”

Por mais que exista amor,
por mais que exista afeto,
um fato que deixa a gente
preocupado e inquieto
é quando a mãe pronuncia
sem nenhuma alegria
o nosso nome completo!

Quando a gente quer sair,
bate um receio profundo.
Pede à mãe cheio de medo
e nesse exato segundo
diz que “todo mundo vai”
e a resposta dela sai:
– “Você não é todo mundo!”

Tem outra situação
difícil e muito adversa.
Às vezes no mei da rua
a mãe também é perversa
quando ela aponta o dedinho
e diz assim bem baixinho:
– “Em casa a gente conversa.”

Por mais que a gente estude,
que tenha dedicação,
o boletim todo azul
ela olha com atenção
e fala sem gaguejar:
– “Tem mesmo é que estudar.
Não fez mais que a obrigação!”

Se acaso a gente perder
coisa boba ou coisa rara,
ela ativa um radar
potente que nunca para
e diz: – “Se eu for procurar,
garanto que vou achar
e esfregar na sua cara.”

Quando a gente chega perto,
faz um carinho qualquer,
e diz: – “Mãe, vou te amar
enquanto vida tiver!”
Ela responde ligeiro:
– “Hoje eu não tenho dinheiro.
Diga logo o que tu quer!”

Coisa de mãe é dizer:
Você vai se machucar.
Cadê o troco, menino?
Mais tarde vai esfriar.
Só vou contar até três!
Bagunçou, vai arrumar.

Já pegou o guarda-chuva?
Eu não sou sua empregada.
Engole esse choro agora!
Eu nunca estou enganada.
Na volta a gente compra.
Você não ajuda em nada!

Coisa de mãe é ser cura
pra aliviar qualquer dor.
Coisa de mãe é o abraço
mais forte e mais protetor.
Coisa de mãe é cuidar,
coisa de mãe é amor.

Bráulio Bessa, in Um carinho na alma