sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
Para cantar com o saltério
Te espero desde o acre-mel de marimbondos
da minha juventude.
Desde quando falei, vou ser cruzado,
acompanhar bandeiras,
ser Maria Bonita no bando de Lampião,
Anita ou Joana,
desde as brutalidades da minha fé sem
dúvidas.
Te espero e não me canso, desde, até
agora e para sempre,
amado que virá para pôr sua mão na
minha testa
e inventar com sua boca de verdade
o meu nome para mim.
Adélia Prado
Aprendendo a viver
Thoreau era um filósofo americano que,
entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa
leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos
ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito,
menos angustiado.
Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo
seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo.
Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas “melhore o
momento presente”, exclamava. E acrescentava: “Estamos vivos
agora.” E comentava com desgosto: “Eles ficam juntando
tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões
roubar.”
A mensagem é clara: não sacrifique o
dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome
alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é
que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame
de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que
foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o
arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter
resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o
arrependimento é profundo como uma dor profunda.
Ele queria que fizéssemos agora o que
queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a
necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de
nós.
Por exemplo: para os jovens que queriam
tornar-se escritores, mas que contemporizavam – ou esperando uma
inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos
ou trabalhos – ele mandava ir agora para o quarto e começar
a escrever.
Impacientava-se também com os que gastam
tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. “É só
quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a
saber.”
E dizia esta coisa forte que nos enche de
coragem: “Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os
portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?” Só em
pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade
percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio
instante.
Thoreau achava que o medo era a causa da
ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras
opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: “A opinião
pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de
nós mesmos.” É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança
aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na
opinião de Thoreau, é grave, pois “o que um homem pensa a
respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.
E, por mais inesperado que isso seja, ele
dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de
desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza
para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia
desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si
próprio. “Creio”, escreveu, “que podemos confiar em nós
mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à
nossa fraqueza quanto à nossa força.” E repetia mil vezes aos que
complicavam inutilmente as coisas – e quem de nós não faz isso?
–, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as
coisas: simplifique! simplifique!
E um dia desses, abrindo um jornal e
lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei
com citações de Bernanos que na verdade vêm complementar Thoreau,
mesmo que aquele jamais tenha lido este.
Em determinado ponto do artigo (só
recortei esse trecho), o autor fala que a marca de Bernanos estava na
veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do “mundo
livre”. Além disso, procurava a salvação pelo risco – sem o
qual a vida para ele não valia a pena – “e não pelo
encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que
defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive
religiosas” (o grifo é meu).
Para Bernanos, dizia o artigo, o maior
pecado sobre a terra era a avareza, sob todas as formas. “A avareza
e o tédio danam o mundo.” “Dois ramos, enfim, do egoísmo”,
acrescenta o autor do artigo.
Repito por pura alegria de viver: a
salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Feliz Ano-Novo.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Te esperei a vida toda
E então ele disse:
– Hoje eu entendo. Tudo o que eu vivi,
tudo o que eu passei. Talvez tenham sido só caminhos. Porque na
verdade eu sonhei com você a vida toda. Seu jeito de falar, sua
risada, suas fragilidades e chatices, seu jeito desastrado. Com o seu
rosto, eu não sonhei. Não saberia te imaginar porque nunca vi nada
nem parecido. E as sardas nunca estariam nos planos. Foram muitos
anos, muitas mulheres, muitos erros e alguns acertos. E então você
apareceu. Não tenho nem idade nem tempo para fazer jogos ou para te
dizer meias palavras, deixar coisas no ar. Não. Eu te esperei a vida
toda. E agora eu estou aqui, você está aqui. E estou, enfim,
segurando a mão que durante anos me contentei em observar nos
sonhos. E só poder tocar em você já fez a vida valer a pena. Não
me ache perigoso, nem um babaca. É que eu sei que ninguém encontra
a pessoa que idealizou sem nenhum limite do concreto. Imagine então
a sorte do cara que encontrou ainda mais. Não estou dizendo tudo
isso por você nem por mim. Estou dizendo porque seria uma sacanagem
com a vida não dizer. Eu enchi essa mulher de requisitos
impossíveis, que nunca conviveriam juntos. E aí está você, num
conjunto descombinado de qualidades encantadoras. Eu não espero
nada. Te encontrar e te dizer tudo isso já foi tanto… Estou aqui,
princesa. Vou sempre estar.
Ela continua procurando as palavras até
hoje.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
O banho de música das 18 horas | Capítulo 9
Na manhã seguinte, o presidente Miruki e
a secretária Asari tomavam o café da manhã juntos.
Embora a secretária estivesse vestindo
um pijama, o presidente estava com roupas normais.
— Vossa Excelência, eu tenho o
conhecimento de que você deu uma escapada tarde da noite. Você não
pode ter segredos comigo. Onde você foi?
— Não, eu apenas, bem…
— Não adianta tentar esconder coisas
de mim. Um dos meus homens me disse que te avistou perto do setor
Alishia.
— Você está dizendo que alguém me
viu lá? — o presidente falou, seus olhos se abrindo.
— O que foi capaz de fazer você se
levantar da cama, no meio da noite, e ter todo esse trabalho?
— O quê? Oh, não era nada de
especial… Parece que você está confundindo as coisas, e eu não
gosto nada disso. Ontem nós descobrimos algo no setor Alishia, não
foi mesmo?
— Descobrimos o quê?
— Bem, foi mais ou menos… Hum, o que
foi mesmo?… Ontem nós fomos checar o setor Alishia, mas só
pudemos ver até a nona sala. Teve toda aquela confusão quando você
tentou forçosamente abrir a porta da décima sala, mais um pouco e
tudo explodiria. Mas não ser capaz de entrar nessas salas era uma
evidência desagradável de que existem lugares nesta nação onde
meu poder absoluto não se estende. Com esse fato incômodo em mente,
fui investigar se não havia mesmo nenhuma forma de abrir a porta.
— Nossa, você tem estado tão
corajoso, não é? Então você conseguiu entrar na décima sala,
como esperava?
— Não, eu falhei.
— Você deveria ter previsto que isso
aconteceria. De todo modo, por que você ficou no setor Alishia até
o amanhecer?
— O que você está insinuando? Eu
estava apenas dando o meu melhor para abrir a porta.
— Sim, aposto que sim. Apenas não sei
qual porta você estava tentando abrir.
Madame Asari virou-se em direção ao
papagaio azul, em um poleiro de metal, e segurou um pedaço de carne
em seu garfo.
Com uma velocidade cegante, o pássaro
faminto abriu seu bico e abocanhou a carne. Mas um instante depois
pôde-se ouvir o som de algo caindo no chão. O papagaio esfomeado
deixou cair o precioso pedaço de carne no piso, sem hesitar.
— Ei, Pinto — o presidente chamou o
pássaro pelo seu nome. — Você não está se sentindo bem?
Madame Asari respondeu no lugar do
papagaio. — Pinto está plenamente saudável. Ele está apenas
dizendo que a carne nojenta dos androides não é de seu agrado.
— Você disse carne de androide?
O presidente Miruki saltou de sua
cadeira, atordoado. Ele voltou seu olhar para os pés de madame
Asari, onde estava uma grande pilha de pedaços amontoados de carne
vermelha, em um grande prato de metal. O homem revelou um olhar
perturbado ao notar uma trilha de gotas de sangue, que iam do prato
até algum lugar atrás das cortinas internas.
— Não posso acreditar! Você foi mesmo
capaz?!
Miruki correu freneticamente até as
cortinas e, no lado mais distante, descobriu uma pilha de máquinas
complexas desmanteladas. Na beira da pilha havia o lindo rosto de uma
mulher. Apesar de estar um pouco sem cor, ainda mantinha um sorriso
brilhante, como se nada houvesse acontecido. Vendo isso, o presidente
logo irrompeu em raiva, como um vulcão em erupção.
— P-por que você a matou? Por que
matou Annette? Ah, sim, você devia estar com inveja da beleza dela,
sua vadia! Eu lhe dei a mais estrita ordem de não matar androides, e
você desobedeceu sem hesitar. Secretária ou não, você nunca será
perdoada por isso!
Madame Asari permaneceu sentada,
tranquila, bebendo de seu copo. E então falou:
— Você pode sossegar? Eu fiz isso
visando os interesses da nação. Pode imaginar que caos seria se a
população descobrisse que o seu presidente estava obcecado por um
androide, ainda mais em um momento tão importante quanto este? Como
eu disse antes, agora é a hora de tomar medidas emergenciais. Estou
certa de que Vossa Sábia-Excelência entende isso.
O presidente não refutou os argumentos
da madame Asari. Ele apenas se virou e resmungou em voz baixa para si
mesmo.
— Eu sou apenas um prisioneiro; em uma
cela sem grades, mas ainda assim um prisioneiro. Agora estou
condenado a eternidade sem uma bela mulher…
Madame Asari fingiu não ouvir os
resmungos do presidente. Casualmente ela o fez se sentar à mesa mais
uma vez, como antes, e com paciência começou a discutir estratégias
nacionais.
— A partir de hoje, presidente Miruki,
nossa nação começará a realizar manobras de emergência.
— Manobras de emergência, de fato. E o
que você sugere?
— Existe um suprimento ilimitado de
ouro enterrado debaixo da nossa nação. Nós iremos minerar aquilo
tudo em uma semana.
— Quem vai minerar? Minerar tudo aquilo
em apenas uma semana… Para começar, nós não temos pessoas
suficientes, nem mesmo a quantia necessária de máquinas.
— Isso não é desculpa. Apenas deixe
comigo.
— Deixar com você? — o presidente
fungou com desdém. — É óbvio que o seu plano irá falhar. Se o
professor Kohak ainda estivesse vivo, estou certo de que ele
conseguiria realizá-lo de um jeito magnífico. Você pode ser uma
política, mas não é nenhuma cientista.
— Cientistas só são necessários no
começo. Quando as coisas já se desenvolveram até certo ponto, a
execução é o que se torna importante. E executar uma grande
empreitada como essa exige ninguém menos do que políticos. A
ciência nunca poderá governar, sempre será governada.
— Eu costumava pensar da mesma maneira,
até ontem. Depois de encontrar Annette, a androide, comecei a
duvidar se era verdade. Oh, linda Annette… Nas profundezas da
décima sala do setor Alishia, talvez haja centenas, milhares de
androides ainda mais belas do que ela. O poder da ciência é
incomparável!
— Ouro reina sobre a ciência. Irei
desenterrar o ouro abaixo de nós em uma semana e reconstruir esta
nação com ele: estradas de ouro, salas de ouro, tetos de ouro,
paredes de ouro; tudo de ouro. Que plano fantástico, você não
acha? Nossa nação irá dominar o mundo com o ouro!
— Dominar o mundo? Para isso é preciso
de ferro, não de ouro. Ouro não pode vencer uma guerra.
— Eu discordo, com ouro suficiente
haverá inúmeros países se oferecendo para defender nossa nação
com ferro. Tudo o que é preciso é convidar o primeiro-ministro de
um país a tentar começar uma guerra conosco e prometer-lhe um
quarto construído com ouro puro, e então guerras se tornarão
coisas do passado.
— Duvido que seja tão simples. Estou
longe de ser tão otimista quanto você.
No meio da conversa, eles ouviram um som
delicado à distância — a melodia que já ouviram muitas vezes. O
banho de música havia começado.
— Banho de música? É o banho de
música das 18 horas — o presidente Miruki disse e piscou seus
olhos, surpreso. — Espere um minuto. Ainda são 8 horas. O banho de
música começou no horário errado. O que o responsável por isso
está fazendo?
Madame Asari, sem medo, falou com o
presidente como se estivesse dando bronca em uma criança pequena.
— Sim, é o banho de música. Eu mudei
suas regras, e começarão a valer a partir de hoje. A partir de
agora, ocorrerá a qualquer hora, doze vezes ao dia. Com isso, a
eficiência das pessoas será multiplicada por doze. Dormir e comer
não é mais necessário. Após o banho de música, as pessoas
estarão dispostas o suficiente para trabalhar por uma hora e meia
sem descanso, assim como cavalos de tração. Depois disso, nós
simplesmente lhes daremos um outro banho de música.
— Isso é muito imprudente. O professor
Kohak nunca tentaria fazer algo assim.
— O professor Kohak era ardiloso por
natureza, e foi por isso que ele, de propósito, limitou o banho de
música para apenas uma vez ao dia. Caso contrário, ele seria
forçado a trabalhar o dia inteiro. Eu já havia notado isso há um
bom tempo. Apenas um verdadeiro político pode aumentar a
produtividade em qualquer sentido real. É necessário políticos no
controle para trazer à tona o verdadeiro poder da ciência.
Naquele momento, o presidente Miruki
ouviu claramente seus cidadãos arfarem em angústia, o som aumentava
cada vez mais conforme o banho de música progredia.
Juza Unno, in A última transmissão
quinta-feira, 30 de dezembro de 2021
Coisas de graça
O anúncio dizia: “Amanhã você não
vai pagar o seu cafezinho”.
Certamente era um café que se
inaugurava, procurando cativar o público. Depois do famigerado Petit
Prince de Saint-Exupéry, cativar tornou-se palavra de consumo
geral. Como o cafezinho.
Pois não era. A casa fechava-se e, a
título de despedida sentimental, não cobraria o cafezinho que fora
objeto do seu comércio durante trinta anos.
O frequentador suspirou:
— Há vinte anos que tomo café nesta
casa, e logo quando ela vai acabar é que institui o fornecimento
gratuito.
Acrescentou:
— Não é pelo preço do cafezinho, que
eu sempre paguei sem sacrifício, e continuaria a pagar, se a casa
continuasse. É pela espécie de sonho acordado que isso me provoca,
sonho que dura um momento, e se esfarela: as coisas de graça. Elas
só ficam sendo de graça na hora em que deixam de ser coisas.
— Mas vem cá, você queria que tudo
fosse de graça a vida inteira? — perguntou o amigo.
— Queria. Por que não? Se este
cafezinho me é servido de graça neste instante, e se eu voltar
daqui a cinco minutos será servido outra vez de graça, e mais cinco
minutos depois, e mais cinco e mais cinco… até eu ficar entupido
de café e bradar: chega, não quero mais! por que não posso pensar
que uma sociedade bem organizada serviria tudo a todos, a troco de
sorriso?
O outro ia retrucar com as leis da
economia, as lições do dr. Gudin, o bom senso etc., mas o rêveur
éveillé não lhe deu folga:
— Saio daqui mal-acostumado, vou ao
Nino’s, janto uns camarões, retiro-me despreocupado, pois já não
se pagam camarões no Brasil. Nisso corre o garçom ao meu encalço:
“Doutor, o senhor se esqueceu da nota!”. “Que nota?”,
respondo. “Eu sorri para você e para o restaurante, não é esse o
pagamento?” Ele abana a cabeça, desolado: “Continuamos cobrando
em cruzeiros, doutor. E olhe que nos hotéis do seu Tjurs já se
calcula em dólar”. Veja no que dá a ilusão do cafezinho grátis.
No entanto, ao ler o anúncio, eu já estava inclinado a não cobrar
de ninguém os meus serviços.
— E mudar-se para o hospício.
— Todos se mudariam para o hospício,
isto é, não haveria hospício, pois ninguém mais ia enlouquecer
por falta ou excesso de dinheiro. Você chama a isso de sociedade
utópica, eu chamo simplesmente de sociedade, nome que anda
falsificadíssimo. Societas generis humani, para gastar o meu
Cícero, que nem de graça cai mais no vestibular. Repare que não
estou pedindo nada de graça no sentido comum, de alguém dar a
outrem um par de sapatos para sentir-se superior e tirar diploma de
generoso. O que eu proponho (proponho é modo de dizer, ninguém me
escutaria se eu propusesse isso ao Ministério do Planejamento ou aos
fabricantes de geleia) é dar de graça as coisas, retirando valor às
coisas, e valorizando o ato de se desfazer delas. Todos passariam a
oferecer serviços e bens, de que todos se utilizariam sem recorrer a
financiamento, pé-de-meia, desfalque, insônia, úlcera duodenal,
enfarte, assalto, homicídio etc. O trabalho deixaria de ser motivo
de injustiça, e a produção deixaria de ser causa de guerra. No
começo, a gente faria cara feia, depois se acostumava com esse
esporte de oferecer sem cobrar, já que a outra parte, de receber sem
pagar, não causaria a menor dificuldade. Como isto não é possível
agora, e suspeito que não o será nos anos que possivelmente ainda
terei de vida, que é que vou fazer com este cafezinho grátis de
última hora?
— Beber, uai.
— Solução de mineiro, está se vendo.
Nada disso. Trouxe esta garrafinha e vou derramar nela o cafezinho,
para guardar como lembrança. É o sinal de um mundo como poderia ser
e não é. Pode beber o seu, que o meu ficará guardado no aparador
lá de casa. Levei trinta anos para conquistar este troféu. O mundo
não é de graça porque não quer. Ou por burrice.
Disse, derramou, e saiu, portando com
unção a garrafinha de café gratuito.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
Darandina
De manhã, todos os gatos nítidos nas
pelagens, e eu em serviço formal, mas, contra o devido, cá fora do
portão, à espera do menino com os jornais, e eis que, saindo,
passa, por mim e duas ou três pessoas que perto e ali mais ou menos
ocasionais se achavam, aquele senhor, exato, rápido, podendo-se
dizer que provisoriamente impoluto. E, pronto, refez-se no mundo o
mito, dito que desataram a dar-se, para nós, urbanos, os portentosos
fatos, enchendo explodidamente o dia: de chinfrim, afã e lufa-lufa.
— “Ô, seô!...” — foi o
grito; senão se, de guerra: — “Ugh, sioux!...” —
também cabendo ser, por meu testemunho, já que com concentrada ou
distraída mente me encontrava, a repassar os próprios, íntimos
quiproquós, que a matéria da vida são. Mas: — “Oooh...” —
e o senhor tão bem passante algum quieto transeunte apunhalara?!
Isso em relance e instante visvi — vislumbrou-se-me. Não. Que só
o que tinha sido — vice-vi mais —: pouco certeiro e indiscreto no
golpe, um afanador de carteiras. Desde o qual, porém, irremediável,
ia-se o vagar interior da gente, roto, de imediato, para durante
contínuos episódios.
— “Sujeito de trato, tão
trajado...” — estranhava, surgindo do carro, dentr’onde até
então cochilara, o chofer do dr. Bilôlo. — “A
caneta-tinteiro foi que ele abafou, do outro, da lapela...” —
depunha o menino dos jornais, só no vivo da ocasião aparecendo.
Perseguido, entretanto, o homem corria que luzia, no diante do pé,
varava pela praça, dava que dava. — “Pega!” Ora, quase
no meio da praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a
maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido correto como
estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos,
atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao
incrível, ascensionalíssimo. — Uma palmeira é uma palmeira ou
uma palmeira ou uma palmeira? — inquiriria um filósofo. Nosso
homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se.
— Esta! — me mexi, repiscados os
olhos, em tento por me readquirir. Pois o nosso homem se fora, a
prumo, a pino, com donaires de pica-pau e nenhum deslize, e ao topo
se encarapitava, safado, sabiá, no páramo empíreo. Paravam os de
seu perséquito, não menos que eu surpresos, detidos, aqui em nível
térreo, ante a infinita palmeira — muralhavaz. O céu só safira.
No chão, já nem se contando o crescer do ajuntamento, dado que, de
toda a circunferência, acudiam pessoas e povo, que na praça se
emagotava. Tanto nunca pensei que uma multidão se gerasse, de graça,
assim e instantânea.
Nosso homem, diga-se que ostentoso, em
sua altura inopinada, floria e frutificava: nosso não era o nosso
homem. — “Tem arte...” — e quem o julgava já não
sendo o jornaleiro, mas o capelão da Casa, quase que com regozijo.
Os outros, acolá, de infra a supra, empinavam insultos, clamando do
demo e aqui-da-polícia, até se perguntava por arma de fogo. Além,
porém, muito a seu grado, ele imitativamente aleluiasse, garrida a
voz, tonifluente; porque mirável era que tanto se fizesse ouvir,
tudo apesar-de. Discursava sobre canetas-tinteiro? Um camelô,
portanto, atrevido na propaganda das ditas e estilógrafos. Em local
de má escolha, contudo, pensei; se é que, por descaridosa, não me
escandalizasse ainda a ideia de vir alguém produzir acrobacias e
dislativas peloticas, dessas, justo em frente de nosso Instituto.
Extremamente de arrojo era o sucesso, em todo o caso, e eu humano;
andei ver o reclamista.
Chamavam-me, porém, nesse entremenos, e
apenas o Adalgiso, sisudo ele, o de sempre, só que me pegando pelo
braço. Puxado e puxando, corre que apressei-me, mesmo assim, pela
praça, para o foco do sumo, central transtornamento. Com estarmos
ambos de avental, davam-nos alguma irregular passagem. — “Como
foi que fugiu?” — todo o mundo perguntando, do populacho, que
nunca é muito tolo por muito tempo. Tive então enfim de entender,
ai-me, mísero. — “Como o recapturar?” Pois éramos, o
Adalgiso e eu, os internos de plantão, no dia infausto’
fantástico.
Vindo o que o Adalgiso, com de-curtas,
não urgira em cochichar-me: nosso homem não era nosso hóspede.
Instantes antes, espontâneo, só, dera ali o ar de sua desgraça. —
“Aspecto e facies nada anormais, mesmo a forma e conteúdo da
elocução a princípio denotando fundo mental razoável...”
Grave, grave, o caso. Premia-nos a multidão, e estava-se na área de
baixa pressão do ciclone. — “Disse que era são, mas que,
vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais
tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário:
assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já
garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que, à maioria, cá
fora, viriam a fazer falta...” — e o Adalgiso, a seguir, nem
se culpava de venial descuido, quando no ir querer preencher-lhe a
ficha.
— “Você se espanta?” —
esquivei-me. De fato, o homem exagerara somente uma teoria antiga: a
do professor Dartanhã, que, mesmo a nós, seus alunos, declarava-nos
em quarenta-por-cento casos típicos, larvados; e, ainda, dos
restantes, outra boa parte, apenas de mais puxado diagnóstico... Mas
o Adalgiso, mas ao meu estarrecido ouvido: — “Sabe quem é?
Deu nome e cargo. Sandoval o reconheceu. É o Secretário das
Finanças Públicas...” — assim baixinho, e choco, o
Adalgiso.
Ao que, quase de propósito, a turba
calou-se e enervou-nos, à estupefatura. Desolávamo-nos de mais
acima olhar, aonde evidentemente o céu era um desprezo de alto, o
azul antepassado. De qualquer modo, porém, o homem, aquém, em torre
de marfim, entre as verdes, hirtas palmas, e ao cabo de sua
diligência de veloz como um foguete, realizava-se, comensurado com o
absurdo. Sei-me atreito a vertigens. E quem não, então, sob e
perante aquilo, para nós um deu-nos-sacuda, de arrepiar perucas,
semelhante e rigorosa coisa? Mas um super-humano ato pessoal, transe
hiperbólico, incidente hercúleo. — “Sandoval vai chamar o dr.
Diretor, a Polícia, o Palácio de Governo...” — assegurou o
Adalgiso.
Uma palmeira não é uma mangueira, em
sua frondosura, sequer uma aroeira, quanto a condições de
fixibilidade e conforto, acontece-que. Que modo e como, então,
aguentava de reter-se tanto ali, estadista ou não, são ou doente?
Ele lá não estava desequilibrado; ao contrário. O repimpado, no
apogeu, e rematado velhaco, além de dar em doido, sem fazer por
quando. A única coisa que fazia era sombra. Pois, no justo momento,
gritou, introduziu-se a delirar, ele mais em si, satisfatível: —
“Eu nunca me entendi por gente!...” — de nós
desdenhava. Pausou e repetiu. Daí e mais: — “Vocês me sabem
é de mentira!” Respondendo-me? Riu, ri, riu-se, rimo-nos. O
povo ria.
Adalgiso, não: — “Ia adivinhar?
Não entendo de política.” — inconcluía. — “Excitação
maníaca, estado demencial... Mania aguda, delirante... E o contraste
não é tudo, para se acertarem os sintomas?” — ele, contra
si consigo, opunha. Psiu, porém, quem, assado e assim, a mundos e
resmungos, sua total presença anunciava? Vê-se que o dr. Diretor:
que, chegando, sobrechegado. Para arredar caminho, por império, os
da Polícia — tiras, beleguins, guardas, delegado, comissário —
para prevenir desordem. Também, cândidos, com o dr. Diretor, os
enfermeiros, padioleiros, Sandoval, o Capelão, o dr. Enéias e o dr.
Bilôlo. Traziam a camisa-de-força. Fitava-se o nosso homem
empalmeirado. E o dr. Diretor, dono: — “Há de ser nada!”
Contestando-o, diametral, o professor
Dartanhã, de contrária banda aportado: — “Psicose paranóide
hebefrênica, dementia praecox, se vejo claro!” —; e não só
especulativo-teorético, mas por picuinha, tanto o outro e ele se
ojerizavam; além de que rivais, coincidentemente, se bem que calvo e
não calvo. Toante que o dr. Diretor ripostou, incientífico, em
atitude de autoridade: — “Sabe quem aquele cavalheiro é?”
— e o título declinou, voz vedada; ouvindo-o, do povo, mesmo
assim, alguns, os adjacentes sagazes. Emendou o mote o professor
Dartanhã: — “... mas transitória perturbação, a qual, a
capacidade civil, em nada lhe deixará afetada...” — versando
o de intoxicação-ou-infecção, a ponto falara. Mesmo um sábio se
engana quanto ao em que crê —; cremos, nós outros, que nossos
límpidos óculos limpávamos. Assim cada qual um asno prepalatino,
ou, melhor, apud o vulgo: pessoa bestificada. E, pois que há razões
e rasões, os padioleiros não depunham no chão a padiola.
Porque, o nosso, o excelso homem,
regritou: — “Viver é impossível!...” — um slogan; e,
sempre que ele se prometia para falar, conseguia-se, cá, o
multitudinal silêncio — das pessoas de milhares. Nem esquecera-lhe
o elemento mímico: fez gesto — de que empunhasse um guarda-chuva.
Ameaçava o quê a quem, com seu estro catastrófico? — “Viver
é impossível!” — o dito declarado assim, tão empírico e
anermenêutico, só através do egoísmo da lógica. Mas, menos como
um galhofeiro estapafúrdio, ou alucinado burlão, pendo a ouvir,
antes em leal tom e generoso. E era um revelar em favor de todos,
instruía-nos de verdadeira verdade. A nós — substantes seres
sub-aéreos — de cujo meio ele a si mesmo se raptara. Fato, fato, a
vida se dizia, em si, impossível. Já assim me pareceu. Então,
ingente, universalmente, era preciso, sem cessar, um milagre; que é
o que sempre há, a fundo, de fato. De mim, não pude negar-lhe,
incerta, a simpatia intelectual, a ele, abstrato — vitorioso ao
anular-se — chegado ao píncaro de um axioma.
Sete peritos, oficiais pares de olhos, do
espaço inferior o estudavam. — “Que ver: que fazer?” —
agora. Pois o dr. Diretor comandava-nos em conselho, aqui, onde,
prestimosa para nós, dilatava a Polícia, a proêmios de casse-têtes
e blasfemos rogos, uma clareira precária. Para embaraços nossos,
entretanto, portava-se árduo o ilustre homem, que ora encarnava a
alma de tudo: inacessível. E — portanto — imedicável. Havia e
haja que reduzi-lo a baixar, valha que por condigno meio
desguindá-lo. Apenas, não estando à mão de colher, nem sendo de
se atrair com afagos e morangos. — “Fazer o quê?” —
unânimes, ora tardávamos em atinar. Com o que o dr. Diretor, como
quem saca e desfecha, prometeu: — “Vêm aí os bombeiros!”
Ponto. Depunham os padioleiros no chão a padiola.
O que vinha, era a vaia. Que não em nós,
bem felizmente, mas no nosso guardião do erário. Ele estava na
ponta. Conforme quanto, rápida, no chacoalhar da massa, difundira-se
a identificação do herói. Donde, de início, de bufos avulsos
gritos, daqui, aqui, um que outro, comicamente, a atoarda pronta
borbotava. E bradou aos céus, formidável, una, a versão
voxpopular: — “Demagogo! Demagogo!...” — avessa
ressonância. —
“Demagôoogo!...” — a belo e
bom, safa, santos meus, que corrimaça. O ultravociferado halali, a
extrair-se de imensidão: apinhada, em pé, impiedosa — aferventada
ao calor do dia de março. Tenho que mesmo uns de nós, e eu, no
conjunto conclamávamos. Sandoval, certo, sim; ele, na vida, pela
primeira vez, ainda que em esboço, a revoltar-se. Reprovando-nos o
professor Dartanhã: — “Não tem um político direito às suas
moléstias mentais?” — magistralmente enfadado. Tão certo
que até o dr. Diretor em seus créditos e respeitos vacilasse —
psiquiatrista. Vendo-se, via-se que o nosso pobre homem perdia a
partida, agora, desde que não conseguindo juntar o prestígio ao
fastígio. Demagogo...
Conseguiu-o — de truz, tredo. Em suave
e súbito, deu-se que deu que se mexera, a marombar, e por causas.
Daí, deixando cair... um sapato! Perfeito, um pé de sapato — não
mais — e tão condescendentemente. Mas o que era o teatral golpe,
menos amedrontador que de efeito burlesco vasto. Claro que no vivo
popular houve refluxos e fluxos, quando a mera peça demitiu-se de
lá, vindo ao chão, e gravitacional se exibiu no ar. Aquele homem: —
“É um gênio!” — positivou o dr. Bilôlo. Porque o povo
o sentia e aplaudia, danado de redobrado: — “Viva! Viva!...”
— vibraram, reviraram. — “Um gênio!” — notando-se,
elegiam-no, ofertavam-lhe oceânicas palmas. Por São Simeão! E sem
dúvida o era, personagente, em sua sicofância, conforme confere e
confirmava: com extraordinária acuidade de percepção e alto senso
de oportunidade. Porque houve também o outro pé, que não menos se
desabou, após pausa. Só que, para variar, este, reto, presto, se
riscou — não parabolava. Eram uns sapatos amarelados. O nosso
homem, em festival — autor, alcandorado, alvo: desta e elétrica
aclamação, adequada.
Estragou-a a sirene dos bombeiros: que
eis que vencendo a custo o acesso e despontando, com esses
tintinábulos sons e estardalho. E ancoravam, isto é — rubro de
lagosta ou arrebol — cujo carro. Para eles se ampliava lugar,
estricto espaço de manobra; com sua forte nota belígera, colheram
sobeja sobra dos aplausos. Aí já seu Comandante se entendendo com a
Polícia e pois conosco, ora. Tinham seu segundo, comprido caminhão,
que se fazia base da escada: andante apetrecho, para o
empreendimento, desdobrável altaneiramente, essencial, muito
máquina. Ia-se já agir. Manejando-se marciais tempos e movimentos,
à corneta e apito dados. Começou-se. Ante tanto, que diria o nosso
paciente — exposto cínico insigne?
Disse. — “O feio está ficando
coisa...” — entendendo de nossos planos, vivaldamente
constatava; e nisso indocilizava-se, com mímica defensiva, arguto
além de alienado. A solução parecendo inconvir-lhe. — “Nada
de cavalo-de-pau!” — vendo-se que de fresco humor e troiano,
suspeitoso de Palas Atenéia. E: — “Querem comer-me ainda
verde?!” — o que, por mero mimético e sintomático, apenas,
não destoava nem jubilava. À arte que, mesmo escada à parte, os
bons bombeiros, muito homens seriam para de assalto tomar a
palmeira-real e superá-la: o uso avulso de um deles, tão bem em
técnicas, sabe-se lá, quanto um antilhano ou canaca. A poder de
cordas, ganchos, espeques, pedais postiços e poiais fincáveis.
Houve nem mais, das grandes expectações, a conversa entrecortada. O
silêncio timbrava-se.
Isto é, o homem, o prócer, protestou. —
“Pára!...” Gesticulou que ia protestar mais. — “Só
morto me arriam, me apeiam!” — e não à-toa, augural, tinha
ele o verbo bem adestrado. Hesitou-se, de cá para cá, hesitávamos.
— “Se vierem, me vou, eu... Eu me vomito daqui!...” —
pronunciou. Declamara em demorado, quase quite eufórico, enquanto
que nas viçosas palmas se retouçando, desvárias vezes a menear-se,
oscilante por um fio. À coaxa acrescentou: — “Cão que ladra,
não é mudo...” — e já que só faltava mesmo o triz, para
passar-se do aviso à lástima. Parecia prender-se apenas pelos
joelhos, a qualquer simples e insuportável finura: sua palma, sua
alma. Ah... e quase, quasinho... quasezinho, quase... Era de
horrir-me o pêlo. Nanja. — “É de circo...” — alguém
sus sussurrou-me, o dr. Enéias ou Sandoval. O homem tudo podia, a
gente sem certeza disso. Seja se com simulagens e fictâncias? Seja
se capaz de elidir-se, largar-se e se levar do diabo. No finório,
descabelado propósito, perpendurou-se um pouco mais, resoluto
rematado. A morte tocando, paralela conosco — seu tênue tambor
taquigráfico. Deu-nos a tensão pânica: gelou-se-me. Já aí,
ferozes, em favor do homem: — “Não! Não!” — a
gritamulta — “Não! Não! Não!” — tumultroada. A
praça reclamava, clamava. Tinha-se de protelar. Ou produzir um
suicídio reflexivo — e o desmoronamento do problema? O dr. Diretor
citava Empedocles. Foi o em que os chefes terrestres concordaram:
apertava a urgência de não se fazer nada. Das operações de
salvamento, interrompeu-se o primeiro ensaio. O homem parara de
balançar-se — irrealmente na ponta da situação. Ele dependia
dele, ele, dele, ele, sujeito. Ou de outro qualquer evento, o qual,
imediatamente, e muito aliás, seguiu-se.
De um — dois. Despontando, com o
Chefe-de-Polícia, o Chefe-de-Gabinete do Secretário. Passou-se-lhe
um binóculo e ele enfiava olho, palmeira-real avante-acima,
detendo-se, no titular. Para com respeito humano renegá-lo: — “Não
o estou bem reconhecendo...” Entre, porém, o que com mais
decoro lhe conviesse, optava pela solicitude, pálido. Tomava o ar um
ar de antecâmara, tudo ali aumentava de grave. A família já fora
avisada? Não, e melhor, nada: família vexa e vencilha. Querendo-se
conquanto as verticais providências, o que ficava por nossa má-arte.
Tinha-se de parlamentar com o demente, em não havendo outro meio nem
termo. Falar para fazer momento; era o caso. E, em menos desniveladas
relações, como entrosar-se, físico, o diálogo?
Se era preciso um palanque? — disse-se.
Com que, então sem mais, já aparecia — o cônico cartucho ou
cumbuca — um alto-falante dos bombeiros. O dr. Diretor ia razoar a
causa: penetrar em o labirinto de um espírito, e — a marretadas do
intelecto — baqueá-lo, com doutoridade. Toques, crebros, curtos,
de sirene, o incerto silêncio geraram. O dr. Diretor, mestre do urso
e da dança empunhava o preto cornetão, embocava-o. Visava-o para o
alto, circense, e nele trombeteiro soprava. — “Excelência!...”
— começou, sutil, persuasivo; mal. — “Excelência...” —
e tenha-se, mesmo, que com tresincondigna mesura. Sua calva foi que
se luziu, de metalóide ou metal; o dr. Diretor gordo e baixo.
Infundado, o povo o apupou: — “Vergonha, velho!” — e —
“larga, larga!...” Deste modo, só estorva, a leiga
opinião, quaisquer clérigas ardilidades.
Todo abdicativo, o dr. Diretor, perdido o
comando do tom, cuspiu e se enxaguava de suor, soltado da boca o
instrumento. Mas não passou o megafone ao professor Dartanhã, o que
claro. Nem a Sandoval, prestante, nem ao Adalgiso, a cujos lábios.
Nem ao dr. Bilôlo, que o querendo, nem ao dr. Enéias, sem voz
usual. A quem, então pois? A mim, mi, me, se vos parece; mas só
enfim. Temi quando obedeci, e muito siso havia mister. Já o dr.
Diretor me ditava:
— “Amigo, vamos fazer-lhe um
favor, queremos cordialmente ajudá-lo...” — produzi, pelo
conduto; e houve eco. — “Favor? De baixo para cima?...”
— veio a resposta, assaz sonora. Estava ele em fase de aguda
agulha. Havia que o questionar. E, a novo mando do dr. Diretor,
chamei-o, minha boca, com intimativa: — “Psiu! Ei! Escute!
Olhe!...” — altiloqüei. — “Vou falir de bens?”
— ele altitonava. Deixava que eu prosseguisse; a sua devendo de ser
uma compreensão entediada. Se lhe de deveres e afetos falei! — “O
amor é uma estupefação...” — respondeu-me. (Aplausos.)
Para tanto tinha poder: de fazer, vezes, um oah-oa-oah! — mão na
boca — cavernoso. Intimou ainda: — “Tenha-se paciência!...”
E: — “Hem? Quem? Hem?” —
fez, pessoalmente, o dr. Diretor, que o aparelho, sôfrego, me
arrebatara. — “Você, eu, e os neutros...” — retrucou
o homem; naquele elevado incongruir, sua imaginação não se
entorpecia. De nada, esse ineficaz paralaparacaparlar, razões de
quiquiriqui, a boa nossa verbosia; a não ser a atiçar-lhe mais a
mioleira, para uma verve endiabrada. Desistiu-se, vem que bem ou mal,
do que era querer-se amimar a murros um porco-espinho. Do qual, de
tão de cima, ainda se ouviu, a final, pérfida pergunta: — “Foram
às últimas hipóteses?”
Não. Restava o que se inesperava,
dando-se como sucesso de ipso-facto. Chegava... O quê? O que crer? O
próprio! O vero e são, existente, Secretário das Finanças
Públicas — ipso. Posto que bem de terra surgia, e
desembarafustadamente. Opresso. Opaco. Abraçava-nos, a cada um de
nós se dava, e aliás o adulávamos, reconhecentemente, como ao
Pródigo o pai ou o cão a Ulisses. Quis falar, voz inarmônica;
apontou causas; temia um sósia? Subiam-no ao carro dos bombeiros, e,
aprumado, primeiro perfez um giro sobre si, em tablado, completo,
adequando-se à expositura. O público lhe devia. — “Concidadãos!”
— ponta dos pés. — “Eu estou aqui, vós me vêdes. Eu não
sou aquele! Suspeito exploração, calúnia, embuste, de inimigos e
adversários...” De rouco, à força, calou-se, não se sabe se
mais com bens ou que males. O outro, já agora ex-pseudo, destituído,
escutou-o com ociosidade. De seu conquistado poleiro, não parava de
dizer que “sim”, acenado.
Era meio-dia em mármore. Em que
curiosamente não se tinha fome nem sede, de demais coisas qual que
me lembrava. Súbita voz: — “Vi a Quimera!” — bradou o
homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e que era? Por ora,
agora, ninguém, nulo, joão, nada, sacripante, qüídam.
Desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo: o que
provou, por sinais muito claros. Desadorava. Todavia, ao jeito
jocoso, fazia-se de castelo-no-ar. Ou era pelo épico epidérmico?
Mostrou — o que havia entre a pele e a camisa.
Pois, de repente, sem espera, enquanto o
outro perorava, ele se despia. Deu-se à luz, o fato sendo, pingo por
pingo. Sobre nós, sucessivos, esvoaçantes — paletó, cueca,
calças — tudo a bandeiras despregadas. Retombando-lhe a camisa,
por fim, panda, aérea, aeriforme, alva. E feito o forró! — foi —
balbúrdias. Na multidão havia mulheres, velhas, moças, gritos,
mouxe-trouxe, e trouxe-mouxe, desmaios. Era, no levantar os olhos, e
o desrespeitável público assistia — a ele in puris naturalibus.
De quase alvura enxuta de aipim, na verde coma e fronde da palmeira,
um lídimo desenroupado. Sabia que estava a transparecer, apalpava
seus membros corporais. — “O síndrome...” — o
Adalgiso observou; de novo nos confusionávamos. — “Síndrome
exofrênico de Bleuler...” — pausado, exarou o Adalgiso.
Simplificava-se o homem em escândalo e emblema, e franciscano
magnifício, à força de sumo contraste. Mas se repousava, já de
humor benigno, em condições de primitividade.
Com o que — e tanta folia — em meio
ao acrisolado calor, suavam e zangavam-se as autoridades. Não se
podendo com o desordeiro, tão subversor e anônimo? Que havia que
iterar, decidiram, confabulados: arcar com os cornos do caso. Tudo se
pôs em movimento, troada a ordem outra vez, breve e bélica, à
fanfarra — para o cometimento dos bombeiros. Nosso rancho e adro,
agora de uma largura, rodeado de cordas e polícias; já ali se
mexendo os jornalistas, repórteres e fotógrafos, um punhado; e
filmavam.
O homem, porém, atento, além de
persistir em seus altos intentos, guisava-se também em trabalho
muito ativo. Contara, decerto, com isso, de maquinar-se-lhe outra
esparrela. Tomou cautela. Contra-atacava. Atirou-se acima, mal e mais
arriba, desde que tendo início o salvatério: contra a vontade, não
o salvavam! Até; se até. A erguer-se das palmas movediças, até ao
sumo vértice; ia já atingir o espique, ver e ver que com grande
risco de precipitar-se. O exato era ter de falhar — com uma
evidência de cachoeira. — “É hora!” — foi nossa
interjeição golpeada; que, agora, o que se sentia é que era o
contrário do sono. Irrespirava-se. Naquela porção de silêncios,
avançavam os bombeiros, bravos? Solerte, o homem, ao último ponto,
sacudiu-se, se balançava, eis: misantropóide gracioso, em
artificioso equilíbrio, mas em seu eixo extraordinário. Disparatou
mais: — “Minha natureza não pode dar saltos?...” — e,
à pompa, ele primava.
Tanto é certo que também divertia-nos.
Como se ainda carecendo de patentear otimismo, mostrava-nos
insuspeitado estilo. Dandinava. Recomplicou-se, piorou, a pausa. Sua
queda e morte, incertas, sobre nós pairando, altanadas. Mas, nem
caindo e morrendo, dele ninguém nada entenderia. Estacavam, os
bombeiros. Os bombeiros recuavam. E a alta escada desandou,
desarquitetou-se, encaixava-se. Derrotadas as autoridades, de novo,
diligentes, a repartir-se entre cuidados. Descobri, o que nos
faltava. Ali, uma forte banda-de-música, briosa, à dobrada. Do alto
daquela palmeira, um ser, só, nos contemplava.
Dizendo sorrindo o Capelão: —
“Endemoninhado...”
Endemoninhados, sim, os estudantes,
legião, que do sul da praça arrancavam? — de onde se haviam
concentrado. Dado que roda-viveu um rebuliço, de estrépito, de
assaltada. Em torrente, agora, empurravam passagem. Ideavam ser o
homem um dos seus, errado ou certo, pelo que juravam resgatá-lo. Era
um custo, a duro, contê-los, à estudantada. Traziam invisa
bandeira, além de fervor hereditário. Embestavam. Entrariam em ato
os cavalarianos, esquadrões rompentes, para a luta com o nobre e
jovem povo. Carregavam? Pois, depois. Maior a atrapalhação. Tudo
tentava evoluir, em tempo mais vertiginoso e revelado. Virou a ser
que se pediam reforços, com vistas a pôr-se a praça esvaziada; o
que vinha a ponto. Porém, também entoavam-se inacionais hinos,
contagiando a multaturba. E paz?
De ás e roque e rei, atendeu a isso,
trepado no carro dos bombeiros, o Secretário da Segurança e
Justiça. Canoro, grosso, não gracejou: —“Rapazes! Sei que
gostam de me ouvir. Prometo, tudo...” — e verdade. Do que,
aplaudiram-no, em sarabando, de seus antecedentes se fiavam. Deu-se
logo uma remissão, e alguma calma. Na confusão, pelo sim pelo não,
escapou-se, aí, o das-Finanças-Públicas Secretário. Em fato, meio
quebrado de emoções, ia-se para a vida privada.
Outra coisa nenhuma aconteceu. O homem,
entre o que, entreaparecendo, se ajeitara, em berço, em seus
palmares. Dormindo ou afrouxando de se segurar, se ele desse de
torpefazer-se, e enfim, à espatifação, malhar abaixo? De como
podendo manter-se rijo incontável tempo assim, aos circunstantes o
professor Dartanhã explicava. Abusava de nossa paciência — um
catatônico-hebefrênico — em estereotipia de atitude. — “A
frechadas logo o depunham, entre os parecis e nhambiquaras...” —
inteirou o dr. Bilôlo; contente de que a civilização prospere a
solidariedade humana. Porque, sinceros, sensatos, por essa altura,
também o dr. Diretor e o professor Dartanhã congraçavam-se.
Sugeriu-se nova expediência, da velha
necessidade. Se, por treslouco, não condescendesse, a apelo de algum
argumento próximo e discreto? Ele não ia ressabiar; conforme
concordou, consultado. E a ação armou-se e alou-se: a escada
exploradora — que nem que canguru, um, ou louva-a-deus enorme
vermelho — se desdobrou, em engenhingonça, até a mais de meio
caminho no vácuo. Subia-a o dr. Diretor, impertérrito ousadamente,
ele que naturalizava-se heróico. Após, subia eu descendo, feito
Dante atrás de Virgílio. Ajudavam-nos os bombeiros. Ao outro, lá,
no galarim, dirigíamo-nos, sem a própria orientação no espaço. A
de nós ainda muitos metros, atendia-nos, e ao nosso latim perdido.
Por que, brusco, então, bradou por: –“Socorro!...” —?
Tão então outro tresbulício — e o
mundo inferior estalava. Em fúria, arruaça e frenesis, ali a
população, que a insanar-se e insanir-se, comandando-a seus mil
motivos, numa alucinação de manicomiáveis. Depreque-se! — não
fossem derrubar caminhão e escada. E tudo por causa do
sobredito-cujo: como se tivesse ele instilado veneno nos
reservatórios da cidade.
Reaparecendo o humano e estranho. O
homem. Vejo que ele se vê, tive de notá-lo. E algo de terrível de
repente se passava. Ele queria falar, mas a voz esmorecida; e
embrulhou-se-lhe a fala. Estava em equilíbrio de razão: isto é,
lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado; com a cabeça
comportada. Acordava! Seu acesso, pois, tivera termo, e, da idéia
delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído, desinfluído — se
não se quando — soprado. Em doente consciência, apenas,
detumescera-se, recuando ao real e autônomo, a seu mau pedaço de
espaço e tempo, ao sem-fim do comedido. Aquele pobre homem
descoroçoava. E tinha medo e tinha horror — de tão novamente
humano. Teria o susto reminiscente — do que, recém, até ali,
pudera fazer, com perigo e preço, em descompasso, sua inteligência
em calmaria. Sendo agora para desempenhar-se, de um momento para
nenhum outro. Tremi, eu, comiserável. Vertia-se, caía? Tiritávamos.
E era o impasse da mágica. É que ele estava em si; e pensava.
Penava — de vexame e acrofobia. Lá, ínfima, louca, em mar, a
multidão: infernal, ululava.
Daí, como sair-se, do lance, desmanchado
o firme burgo? Entendi-o. Não tinha rosto com que aparecer, nem
roupas — bufão, truão, tranca — para enfrentar as razões
finais. Ele hesitava, electrochocado. Preferiria, então, não
salvar-se? Ao drama no catafalco, emborcava-se a taça da altura. Um
homem é, antes de tudo, irreversível. Todo pontilhado na esfera de
dúvida, propunha-se em outra e imensurável distância, de milhões
e trilhões de palmeiras. Desprojetava-se, coitado, e tentava
agarrar-se, inapto, à Razão Absoluta? Adivinhava isso o desvairar
da multidão espaventosa — enlouquecida. Contra ele, que, de algum
modo, de alguma maravilhosa continuação, de repente nos frustrava.
Portanto, em baixo, alto bramiam. Feros, ferozes. Ele estava são.
Vesânicos, queriam linchá-lo.
Aquele homem apiedava diferentemente —
de fora da província humana. A precisão de viver vencia-o. Agora,
de gambá num atordoamento, requeria nossa ajuda. Em fácil pressa
atuavam os bombeiros, atirando-se a reaparecê-lo e retrazê-lo —
prestidigitavam-no. Rebaixavam-no, com tábuas, cordas e peças, e,
com seus outros meios apocatastáticos. Mas estava salvo. Já, pois.
Isto e assim. Iria o povo destruí-lo?
Ainda não concluindo. Antes, ainda na
escada, no descendimento, ele mirou, melhor, a multidão,
deogenésica, diogenista. Vindo o quê, de qual cabeça, o caso que
já não se esperava. Deu-nos outra cor. Pois, tornavam a endoidá-lo?
Apenas proclamou: — “Viva a luta! Viva a Liberdade!” —
nu, adão, nado, psiquiartista. Frenéticos, o ovacionaram, às
dezenas de milhares se abalavam. Acenou, e chegou em baixo, incólume.
Apanhou então a alma de entre os pés, botou-se outro. Aprumou o
corpo, desnudo, definitivo.
Fez-se o monumental desfecho. Pegaram-no,
a ombros, em esplêndido, levaram-no carregado. Sorria, e, decerto,
alguma coisa ou nenhuma proferia. Ninguém poderia deter ninguém,
naquela desordem do povo pelo povo. Tudo se desmanchou em andamento,
espraiando-se para trivialidades. Vivera-se o dia. Só restava
imundada, irreal, a palmeira.
Concluindo. Dando-se que, em pós,
desafogueados, trocavam-se pelos paletós os aventais. Modulavam
drásticas futuras providências, com o professor Dartanhã,
ex-professo, o dr. Diretor e o dr. Enéias — alienistas. —
“Vejo que ainda não vi bem o que vi...” — referia
Sandoval, cheio de cepticismo histórico. — “A vida é
constante, progressivo desconhecimento...” — definiu o dr.
Bilôlo, sério, entendo que, pela primeira vez. Pondo o chapéu,
elegantemente, já que de nada se sentia seguro. A vida era à hora.
Apenas nada disse o Adalgiso, que, sem
aparente algum motivo, agora e sempre súbito assustava-nos.
Ajuizado, correto, circunspecto demais: e terrível, ele, não em si,
insatisfatório. Visto que, no sonho geral, permanecera insolúvel.
Dava-me um frio animal, retrospectado. Disse nada. Ou talvez disse,
na pauta, e eis tudo. E foi para a cidade, comer camarões.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
Quando acabar esta adolescência
Quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.
Paulo Leminski
Abraço ou beijo?
Muita gente idealiza a vida de escritor.
Acha que a grana é fácil e a rotina, sem estresse e com glamour.
Basta ficar em casa, com os pés para o alto, e jogar com as palavras
e ideias? Vai nessa...
“Estela com ‘e’ e dois ‘eles’?”,
pergunto com a caneta na mão e a boca seca.
“Com ‘esse’ e dois ‘eles’”,
ela responde.
Assino “Stella, um beijo, Marcelo”,
entrego o livro e sorrio. Porque vem a foto. Agora, noites de
autógrafos são também sessões de fotos. Um amigo do autografado
sempre tem em mãos um celular com câmera. Não bastam as
dedicatórias. Não basta a assinatura. Desejam a prova visual.
Mas ele não sabe tirar, ou não consegue
focar, ou ligar o flash, ou não gosta da foto e pede para repetir. E
novamente preparo o disfarce da felicidade para um sujeito que nunca
vi na vida, ao lado de uma leitora empolgada, que me agarra pelo
pescoço e me beija, deixando uma marca de batom, enquanto a fila
está grande. E penso: vou passar a noite nessa, preciso sorrir, com
uma marca de batom ridícula na bochecha, são meus leitores, vivo
disso. É o preço, é o preço...
Bebo em noites de autógrafos. É de
graça. Vinho, uísque, caipirinha, o que tiver. Nessa, parti pro
uísque. E o garçom sumiu. Chama-se Jango. Tem a cara do Mr. Bean. O
mais importante é ganhar a simpatia de um garçom. Para ele manter o
copo cheio, e a água em estado sólido. Peço para Stella, com
‘esse’ e dois ‘eles’, procurar Jango, o garçom com a cara do
Mr. Bean, e pedir mais uísque com gelo.
“Um abraço, Marilorde”, escrevo.
Sim, estou no Nordeste, onde a composição de nomes é criativa.
Maria com Lorde. No interior de São Paulo, o uso e abuso do ‘dáblio’
e ‘ipsilone’ não têm limites: Wellyngton, Wladyr... Na capital,
pedem a dedicatória com nome e sobrenome. No Rio, os autógrafos são
para apelidos infantilizados: Baby, Cunca, Birunda.
“Elizabeth com ‘zê’ e ‘tê-agá’
no final?”
“É. Puxa. Que bom que você perguntou,
todo mundo erra”, diz Elizabeth.
São 24 anos de estrada, nega, mais de
oito livros, sem contar autógrafos em ruas, bares, cadeias. Rodei.
Sempre busco a soletração. Não posso errar o nome de um leitor.
Ficará registrado na sua estante. Para os netos confrontarem: “Vô,
este escritor é analfabeto, nem sabe escrever seu nome.” E existem
Raquel e Rachel, Bete e Beth, Luiz e Luis, Teresa e Tereza…
Chega Mr. Bean com meu uísque. Tomo um
gole. Vou ficar alegrinho no final, já sei. Minha letra estará
desleixada. Comecei tão bem. A caneta é boa, desliza, não é
daquelas que falham e deixam Suely com o ‘ipsilone’ final
apagado.
Elizabeth pede para alguém tirar uma
foto. Tenho certeza de que ela faz chifrinhos, paranoia que começou
quando Pânico na TV lançou a campanha Faça Um Chifrinho na
Celebridade. Todos que me fotografavam, presumi, colocavam
chifrinhos.
Um cara se aproxima. Já fazendo pose pra
foto. Não fala nada. De birra, também não falo. Me encara.
Aproveito a pausa e bebo. Tem leitor que fica parado, mudo. Como se
eu soubesse seu nome. Confundiu a noite de autógrafos: acha que sou
Chico Xavier. Então, quebro o gelo.
“O autógrafo é para você?”
“É.”
E continua o silêncio.
“E como é o seu nome?”
“Põe aí qualquer coisa.”
Já fiz isso, já escrevi “Ao qualquer
coisa, um abraço, Marcelo”.
“Não prefere que eu coloque o seu
nome?”
“Põe aí... Para Hélio, com afeto.”
Tem cara que é assim, que especifica a
dedicatória.
“Hélio com ‘agá’ e acento?”
Então, medito sobre a minha incapacidade
de criar boas dedicatórias. Para as mulheres, um beijo. Para os
homens, um abraço. Eventualmente, alguém pede um autógrafo
especial, e dedico: “Um beijo especial.” Outra diz que quer algo
diferente do da amiga, para quem escrevi “Um beijo especial”.
Escrevo: “Um beijo diferente.”
Já não me angustia a falta de
criatividade. São pessoas que nunca vi na vida. No passado, eu
jogava com os nomes: “Para Rosa do sorriso colorido...” Nem sei
por que querem um rabisco no livro. Logo logo o venderão para um
sebo. Como fez minha avó Olga. Na verdade, fizeram. Quando a levaram
para a casa de repouso, venderam tudo o que era seu. Encontrei num
sebo meu segundo livro, Blecaute, primeira edição, rara,
autografado “para a minha avó querida...”
Surge aquele amigo, e dá um branco.
Surpreendentemente esqueci o nome, apesar do rosto familiar. Ele
sorri esperando, como um sádico. Você já foi a um lançamento. As
vendedoras escrevem seu nome num papelzinho, porque brancos
acontecem. Tem gente que se irrita com as vendedoras: “Ele sabe meu
nome!” Não pega o papelzinho. São justamente os que a gente
esquece. Eu tenho um truque infalível: “Como é mesmo o seu nome
completo?”
Cadê o Jango, fugiu pro Uruguai? Estou
ficando alto. A letra cresce. Acho incrível rabiscar na primeira
folha de um livro novinho em folha, uma pretensão escrever meu nome
com letras grandes, rabiscos exagerados. Quem sou eu, afinal? Eles
pagam, me entregam, e estrago com tinta. E ficam felizes com isso.
Estou bêbado. Tenho que tomar cuidado, pois é quando mando abraços
para as leitoras e beijos para os leitores: “Maurão, beijo,
Marcelo.” Ou quando começo a autografar com a minha assinatura
pessoal. Podem me passar a perna, um contrato em branco, tomarem meus
bens. Cadê Jango?
Quando a fila diminui, engato uma
conversa com o leitor. Para a fila voltar a crescer. Tática velha.
Não vou dar chances para um cara entrar na livraria e ver um
escritor numa mesinha com pilhas de livros e três gatos-pingados na
fila.
Jânio me serve outra. Aproxima-se a
parte enfadonha (por isso, bebo). Porque a galera da intimidade fica
pro final. Aquela que fala de meus personagens como se fossem seus
melhores amigos. Que conhece de cor meus livros. Que pergunta
detalhes da trama e quer me levar pro barzinho. Odeio a palavra
barzinho. Eles falam assim: “E aí, já tá doidão, vamos pro
barzinho com a gente, aqui só tem careta...” Mas quero mais ir pro
meu hotel, jantar e dormir. Sou um careta. Meus personagens que são
doidões.
Depois da galera da intimidade, tem a
turma da organização, com pilhas de livros e a lista de nomes dos
que não puderam comparecer e dos que trabalharam nos bastidores.
Graças ao Jânio, a letra sai fácil, o pulso nem dói. E enrolo,
pra galera do barzinho, que está na porta, desistir. É fácil ser
escritor?
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
A paneira
Fonte da imagem: MFRural
Depois da janta os homens se reuniam para
contar estórias e lorotas enquanto pitavam. A meninada se misturava.
Era debaixo de uma paineira enorme, barriguda, com um oco no tronco.
Eu imaginava que naquele oco deveriam viver criaturas encantadas que
só apareciam depois da meia-noite. Meia-noite era hora do medo,
sinistra. Por isso, à meia-noite, todo mundo tem de estar em casa,
com portas e janelas trancadas, na cama. Um menino afirmava,
categórico: “À meia-noite eles soltam a bicharada...” . Nunca
perguntei quem eram “eles”. Essas entidades noturnas foram também
objeto do pensamento de Jorge Luis Borges. Dedicou um dos seus
ensaios a uma dessas bestas que, em inglês, se chama “nightmare”,
palavra que traduzida literalmente é “égua da noite”, uma égua
que galopa durante a noite. Galopa onde? Nos sonhos. São os
pesadelos. Pesadelo é uma égua desembestada no sono.
A paineira ficava ao lado dos trilhos do
trem cujos marimbondos de fogo saíam da chaminé da maria-fumaça e
chamuscavam suas folhas e flores. Quando a paineira florescia e suas
flores caíam, nós, crianças, as transformávamos em exércitos de
soldados com penachos na cabeça.
Os serões masculinos eram um festival de
mentiras. E todo mundo sabia que era lorota. Mas ninguém desmentia.
Era falta de educação. O corpo, mesmo sabendo que é mentira, fica
todo arrepiado. Eu gostava de estar na roda dos mentirosos que
acreditavam nas mentiras. Só muito mais tarde compreendi que não se
tratava de um festival de lorotas. Tratava-se de uma oficina de
literatura. Porque literatura se faz com coisas que não existem. “O
que não existe é mais bonito.”
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Acerca das leis
“Quando os homens são puros, as leis são inúteis; quando os homens são corruptos, as leis são quebradas.”
Benjamin Disraeli, in 1001 frases de grandes pensadores
Interlúdio
A noite se estende ao rés do chão como
um lençol, que os cachorros puxam, do horizonte. Puxam, esticam, sem
rasgar.
Porque a lua vai saltar.
E ficará pulando, ao centro, para cima,
para baixo, para cima, para baixo, como Sancho Pança no capítulo
XLV do Dom Quixote.
Mário Quintana, in Sapato florido
A arte do tempo
O tempo…
Sempre vivo e indeciso,
ora corre, ora voa,
consegue curar feridas,
no mesmo instante as magoa.
Ninguém escapa do tempo
invisível feito o vento
que toca qualquer pessoa.
O tempo me modelou,
me arrancou do meu ninho,
clareou os meus cabelos,
me bateu, me fez carinho.
O tempo me fez voar,
me ensinou a caminhar,
mas não mostrou o caminho.
Por tanto tempo o tempo
fez papel de diretor,
um roteirista confuso,
ora ódio, ora amor,
gritando silencioso,
tão claro e misterioso
feito o mar pro pescador.
O tempo me fez poeta,
artista, palco e cenário,
me fez imaginação,
aí, encontrou um páreo,
pois, para o tempo, o artista
sempre foi um adversário.
Só o artista segura
e faz parar o ponteiro
que faz o dia ser noite
e último ser primeiro,
e que tem a ousadia
de determinar o dia
que será o derradeiro.
A liberdade da arte
deixa o tempo aprisionado,
faz o relógio da vida
adiantado, atrasado,
e num segundo de paz
toda guerra se desfaz
se o relógio for parado.
Já que o tempo é infinito
e o artista o domina,
ser eterno e ser mortal
talvez seja minha sina,
atuar num espetáculo
que nunca fecha a cortina.
A única previsão
que é certa sobre o tempo
é que ele vai passar.
Por isso cada momento
deve ser aproveitado,
vivido e depois guardado
na caixa do pensamento.
O tempo está sempre vivo
num grande desassossego,
inquieto, inconstante,
é pancada e é chamego,
é solução e problema.
O tempo é só um poema
dizendo: já fui, já chego.
Bráulio Bessa