Corpo, alma e inteligência

Corpo, alma e inteligência. Ao corpo, pertencem as sensações. À alma, os impulsos. À inteligência, as convicções. Até mesmo os animais recebem impressões a partir das aparências das formas. Até as feras selvagens, os catamitas, Fálaris e Nero são impulsionados pelas cordas do desejo. Até os hereges, os traidores da pátria e os praticantes de atos impuros a portas fechadas possuem a inteligência que direciona ao que parece adequado.
Se essas qualidades são comuns aos mencionados, restam as exclusivas do homem bom:
I. A aptidão para se satisfazer com os acontecimentos e se contentar com fio tecido para ele.
II. A preservação da tranquilidade e a obediência à divindade guardada em seu peito—sem contaminá-la ou perturbá-la com uma multidão de imagens.
III. A inclinação para não dizer o oposto da verdade e não agir contrário à justiça.
O homem bom não se zanga com os que se recusam a acreditar que ele vive contente e de maneira simples e modesta. Não se desvia do caminho que leva ao fim da vida, onde se deve chegar puro, tranquilo e pronto para partir—sem qualquer compulsão desconciliada da sorte.

Marco Aurélio, in Meditações do Imperador Marco Aurélio: Uma Nova Tradução

A arte de contar em Sagarana

Para muitos escritores fracos, o regionalismo é uma espécie de tábua de salvação, pois tem a ilusão – e com eles parte do público – de que o armazenamento de costumes, tradições e superstições locais, o acúmulo de palavras, modismos e construções dialetais, a abundância da documentação folclórica e linguística suprem as falhas da capacidade criadora. Pelo contrário, para os autores que trazem uma mensagem humana e o talento necessário para exprimi-la, o regionalismo envolve antes um obstáculo e uma limitação do que um recurso. A riqueza léxica, em particular, longe de constituir um atrativo – a não ser para os estudiosos da língua – torna a obra menos acessível à maioria dos leitores. Quanto ao material folclórico, este significa uma perpétua ameaça de desviar a narração, tolher o enredo, quebrar o ritmo. Dir-se-ia que o escritor regionalista precisa de menos valor que os outros para se fazer tolerar, porém de maior originalidade para alcançar o êxito e a admiração.
Em Sagarana, J. Guimarães Rosa afronta todos esses empecilhos. Apresenta-se como o autor regionalista de uma obra cujo conteúdo universal e humano prende o leitor desde o primeiro momento, mais ainda que a novidade do tom ou o sabor do estilo. O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra; deve aproximar-se dela de um outro lado para penetrar-lhe a importância literária.
A arte de contar, no antigo sentido da palavra, que evoca as poderosas narrativas do século passado e, mais longe ainda, as caudalosas torrentes da épica antiga, está-se tornando rara. Apesar ou em razão do número enorme de narrativas breves que se publicam, encontram-se com frequência cada vez menor novelas e contos que nos comuniquem um frêmito ou nos arranquem um grito de admiração. Os desesperados esforços de renovação que caracterizam o gênero de algum tempo para cá geram fórmulas mais de uma vez surpreendentes e inéditas, mas dificilmente despertam emoções profundas.
As nove peças que formam o volume Sagarana continuam a grande tradição da arte de narrar. O gênero peculiar do autor é, aliás, a novela, e não o conto. A maioria das narrativas reunidas no livro são novelas, menos por sua extensão relativamente grande do que pela existência, em cada uma delas, de vários episódios ou “subistórias”, na expressão do escritor, aliás sempre bem concatenados e que se sucedem em ascensão gradativa. O gênero, em suas mãos, alcança flexibilidade notável, modifica-se conforme o assunto, adapta-se às exigências do enredo. Pois esta maleabilidade é justamente uma das características da novela moderna.
O burrinho pedrês”, por exemplo, é de todas as narrativas aquela cujas partes, de início, parecem mais desconjuntadas. Contém uma série de historietas e anedotas que não fazem avançar a ação central. Mas é esta a espécie de narração exigida pelo assunto, a viagem de uma boiada que prossegue por etapas, para, recomeça, se desvia. Todos os episódios, finalmente, concorrem para criar uma atmosfera única, caracterizada pela predominância da vida animal, em volta da qual evolve todo aquele pequeno mundo nômade do Major Saulo e seus boiadeiros. Aqui a forma parece ter nascido e crescido com o assunto. A construção da novela obedece toda ela a uma arte consciente que se disfarça sob um ar de naturalidade, mas se revela não somente no aumento progressivo da tensão, senão também nos periódicos desaparecimentos e voltas do burrinho pedrês. Note-se que de todas as possíveis atitudes para com o seu protagonista animal o autor adota a mais plausível: a da observação feita por fora, com uma mistura de realismo e ironia que humaniza a personagem sem recorrer a artifícios antropomórficos.
Patenteia-se nesta novela um dos processos característicos da técnica de Guimarães Rosa, decorrente, aliás, de sua concepção do mundo e do destino: intensificar a tensão, aproximando o leitor de um desfecho trágico previsto. De repente, verifica-se algum acontecimento brusco – mas sempre verossímil – que traz desenlace diferente do esperado; diferente, mas não menos patético. Espera-se em “O burrinho pedrês” um assassínio, que todos os indícios fazem prever… e sobrevém um desastre de proporções maiores, que resolve a tensão por um cataclismo imprevisto. Combinam-se, assim, os efeitos da surpresa e da unidade.
Aplicação ainda mais perfeita deste processo observa-se em “A hora e vez de Augusto Matraga”, a novela talvez mais densa de humanidade de todo o volume. A vida retraída do valentão arrependido, que depois de ter sido deixado como morto pelos capangas do adversário, levou anos a restaurar a saúde do corpo e a amansar o espírito sedento de vingança, inspira ao leitor uma inquietação crescente. Treme-se por esta alma perdida e reencontrada, que por fim só escapará à tentação da desforra por outro ato louco de valentia que o redime, mas ao mesmo tempo o aniquila.
Aparentada a essas duas novelas é a intitulada “Duelo”. Aí a série de emboscadas em que dois adversários procuram acabar um com outro parece primeiro terminar pela morte cristã de um deles, colhido e consumido por insidiosa doença. Mas o moribundo conseguiu transmitir o seu ódio como herança a um seu protegido, e, pela mão deste, depois de morto, matará o rival sobrevivente.
Talvez nem seja justo falar em técnica, pois nos dois últimos casos, pelo menos, o desenlace, por mais inesperado que seja, decorre necessariamente dos caracteres. O contista recria com extraordinária plasticidade caracteres primários como Augusto Matraga ou, no “Duelo”, Cassiano Gomes, concentrados em torno de um único sentimento, que se transforma em sua razão de ser no objetivo de toda a sua existência.
Apesar de uma ironia fina que oscila num ritmo tão pessoal entre o humor e o cinismo, o autor mantém-se imparcial para com as suas criaturas. Tem-se a impressão, às vezes, de que adota a respeito delas os sentimentos do ambiente e as admira ou despreza de acordo com esses sentimentos, partilhando das simpatias e antipatias dos comparsas. Na realidade, trata-se apenas de mais um meio para criar atmosfera. O escritor conserva-se algo distante das personagens, e quando se apressa em adotar algum julgamento cômodo sobre elas, não sabemos com certeza se não o faz para se divertir à custa do leitor. Veja-se o trecho em que conta a morte edificante de Cassiano Gomes. Depois de deixar tudo o que tem a um pobre caboclo de quem se tornara o benfeitor, este “tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o céu”. Sim, mas ao seu protegido, além dos cobres, deixou também a obrigação de uma vindita.
Nas novelas de atmosfera trágica de Guimarães Rosa respira-se um fundo desânimo, talvez por ser a conclusão tão fatal, tão sem recurso. Esse acabamento absurdo e, ao mesmo tempo, irrespondivelmente explicado, dos destinos individuais, faz entrever abismos tão abruptos como aquele que se abre debaixo da Ponte de São Luís Rei, no romance de Thornton Wilder.
Estas mesmas novelas possuem credibilidade logo à primeira vista, mais um sinal por que se reconhece a obra de ficção de real valor. Credibilidade na ficção não envolve a exatidão e a verossimilhança de todos os pormenores; apenas uma certa sugestão que leva o leitor a não preocupar-se em verificar-lhes a consistência, compenetrado por essa verdade condensada que só por acaso a vida alcança. Pirandello ter-se-ia felicitado de um achado como este, em que o autor soube formular com bastante pitoresco uma das regras essenciais da arte: “E assim se passaram pelo menos seis anos ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem por, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história inventada e não é um caso acontecido, não senhor.
Uma quarta novela, “A volta do marido pródigo”, representa gênero inteiramente diverso. Aqui as fases sucessivas do enredo fragmentado servem para dar um duplo retrato, extremamente vivo e divertido, de um malandro atraente, representado simultaneamente como tipo e como indivíduo. Talvez seja este o conto em que o autor melhor realiza a tarefa de caracterizar ao mesmo tempo o ambiente e as personagens pelo halo de simpatia irresistível e imerecida que rodeia estas últimas.
A superstição, um dos mais importantes elementos de quantos concorrem para a construção do universo do contista, fornece a duas narrativas o assunto central. “Corpo fechado”, história de um feitiço, e admirável de unidade e composição. Pouco nos importa, para a verdade íntima do conto, se é o feitiço que opera, ou a fé que nele depositam os protagonistas; o essencial é a presença permanente da magia em que vítima e feiticeiro acreditam da mesma forma. Talvez seja esta a razão de o leitor sentir-se menos convencido pelo conto “São Marcos”, em que o contista, apresentando-se em primeira pessoa como objeto de um ato de feitiçaria, nos força a perguntarmos a nós mesmos se ele, autor, acredita na magia ou não, dúvida que soube artisticamente eludir nos outros contos.
Minha gente” confirma a impressão de que o talento narrativo de Guimarães Rosa é essencialmente impessoal: ao lado de retratos excelentes, como o do enxadrista viajante, e da pintura maliciosamente viva de uma eleição no interior, a história de amor contada em primeira pessoa parece um tanto convencional (com uma leve reminiscência, talvez, de Cabocla ou de Prima Belinha, de Ribeiro Couto).
Sarapalha” representa, a meu ver, em todo o volume, a única vitória do regional sobre o humano: a descrição de uma região destruída pelas febres avulta sobre o conflito passional das duas personagens, que valem mais como componentes da paisagem que como verdadeiros atores.
Conversa de bois”, finalmente, representa ainda outro tipo, o do conto inteiramente estilizado, com bichos que falam e raciocinam, quase numa atmosfera mítica de balada escocesa. Se as grandes novelas do volume não nos tivessem exalçado as exigências, entregar-nos-íamos sem reservas ao encontro desta forte narrativa. Elas, porém, nos habituaram a uma mistura tão feliz de visão realista e de expressão algo estudada, que nos custa admitir uma modificação da dosagem a favor do elemento artificial.
Vocação épica de excepcional fôlego, o autor dar-nos-á decerto algum romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se manifeste ainda mais à vontade. Por enquanto, aguarda-se com natural curiosidade a publicação de seu volume de versos, premiado já em 1936 pela Academia Brasileira de Letras e que ficou escondido ainda mais tempo que Sagarana. Que formas revestirá o lirismo num poeta tão visceralmente narrador?
Chegando ao fim destas breves considerações, percebemos o que elas têm de ilusório. O exame unilateral de um livro tão rico de conteúdos e significações como este há de deixar uma impressão falsa. É sobretudo quase impossível falar desta obra abstraindo-se o aspecto da expressão verbal, que nela é de excepcional importância. O autor não apenas conhece todas as riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos, expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária. O que nos vale é que Sagarana já deu ensejo a análises agudas, extensivas a todos os seus aspectos; por outro lado, é desses livros em que cada leitor faz necessariamente novas descobertas.

Paulo Ronái, in Rosa & Ronái: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador (Org. Ana Cecília Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry)

Um sonho de criança

Tive um sonho aos sete ou oito anos, que posso recordar como o sonho mais bonito da minha vida. Era um riacho, uma corrente d’água, muito transparente, muito límpida; no fundo, umas pedrinhas pequenas, muito brancas; de um lado, numa margem, um campo, um campo de relva; do outro lado, outro campo de relva; e, no fundo, bosques. Eu, nu, dentro d’água, corria em direção à nascente. Era uma viagem bonita. Gostaria de sonhá-lo de novo, embora eu já não seria o mesmo. Não seria inocente, mas o sonho de alguém mais velho.

José Saramago, in As palavras de Saramago

Dr. Nazi

Bem, sou um homem com muitos problemas e suponho que em sua maioria sejam criados por mim mesmo. Estou falando de problemas com mulheres, jogo, hostilidade contra grupos de pessoas, e, quanto maior o grupo, maior a hostilidade. Dizem que sou negativo, sombrio e taciturno.
Sempre me lembro da mulher que me gritou assim:
Você é tão negativo, porra! A vida pode ser bonita!
Suponho que possa e especialmente com menos gritaria. Mas quero falar de meu médico. Não vou a psiquiatras. Psiquiatras não valem nada e estão muito satisfeitos consigo mesmos. Mas um bom médico está sempre de saco cheio e/ou louco, e, portanto, muito mais interessante.
Fui ao consultório do dr. Kiepenheur porque era o mais perto. Minhas mãos estavam estourando com pequenas bolhas brancas... um sinal, imaginei, da minha ansiedade presente ou possivelmente câncer. Eu usava luvas grossas para que as pessoas não ficassem olhando. E minhas mãos ardiam dentro das luvas, enquanto eu fumava dois maços de cigarro por dia.
Entrei no consultório do doutor. Minha consulta era a primeira. Sendo o homem ansioso que eu era, estava trinta minutos adiantado, pensando no câncer. Caminhei pela sala de espera, olhando para o escritório. Ali estava uma enfermeira-recepcionista agachada no chão com o seu uniforme branco e justo, seu vestido subira quase até os quadris, coxas grossas e potentes apareciam através da meia-calça de nylon apertada. Esqueci completamente do câncer. Ela não me ouvira e eu olhava suas pernas e coxas desveladas, apreciava aquela bunda deliciosa com meus olhos. Ela estava secando água do chão, a privada havia transbordado e ela dizia palavrões, de modo passional, e ela era rosa e marrom e cheia de vida e desvelada e eu a encarava.
Ela olhou para cima.
Sim?
Vá em frente – eu disse –, não deixe que eu a atrapalhe.
É a privada – ela disse –, vive transbordando.
Ela continuou secando e eu continuei olhando por cima da revista Life. Finalmente ela se levantou. Caminhei até o sofá e me sentei. Ela revisou a agenda de consultas.
Você é o sr. Chinaski?
Sim.
Por que não tira as luvas? Está quente aqui.
Prefiro não tirá-las, se não se importa.
O dr. Kiepenheuer logo estará aqui.
Tudo bem. Posso esperar.
Qual é o seu problema?
Câncer.
Câncer?
Sim.
A enfermeira desapareceu, e eu li a Life e depois outro exemplar da Life e então uma Sports Illustrated e em seguida fiquei sentado, olhando as pinturas de paisagens marítimas e terrestres pregadas na parede. Logo uma música de saxofone surgiu de algum lugar. Então, subitamente, todas as luzes piscaram, então mais uma vez, e imaginei se haveria alguma maneira de estuprar a enfermeira e não ser preso, quando o médico entrou. Ignorei-o e ele me ignorou, de modo que ficamos quites.
Ele me chamou para seu escritório. Estava sentado em um banquinho e me olhou. Tinha uma cara amarela e cabelos amarelados e seus olhos eram opacos. Ele estava morrendo. Devia ter uns 42 anos. Vi-o e lhe dei seis meses de vida.
Por que as luvas? – ele perguntou.
Sou um homem sensível, doutor.
É?
Sim.
Então devo lhe informar que eu já fui nazista.
Tudo bem.
Não se importa de eu já ter sido nazista?
Não, não me importo.
Fui capturado. Eles me levaram pela França em um vagão de trem com as portas abertas, e as pessoas ficavam ao longo do caminho e atiravam bombas de fedor e pedras e todo tipo de lixo em nós... ossos de peixe, plantas mortas, excremento, tudo o que se possa imaginar.
Então o doutor me falou de sua esposa. Ela estava tentando lhe arrancar o couro. Uma tremenda cadela. Queria toda a grana dele. A casa. O jardim. A casa de verão. O jardineiro também, provavelmente, se já não o tinha. E o carro. E uma pensão. Além de uma grande quantia em dinheiro. Mulher horrível. Ele trabalhava tão duro. Cinquenta pacientes por dia a dez dólares por cabeça. Quase impossível sobreviver. E aquela mulher. Mulher. Sim, mulher. Ele decompôs a palavra para mim. Não lembro se ele disse mulher ou fêmea ou outra coisa, mas ele decompôs a palavra para mim em latim e a dividiu para me mostrar qual era a raiz... em latim: mulheres eram basicamente insanas.
Enquanto ele falava sobre a insanidade das mulheres, comecei a me sentir bem com o doutor. Minha cabeça sinalizava em concordância.
Subitamente ele me mandou para a balança, me pesou, então auscultou meu coração e meu peito. Tirou rudemente as minhas luvas, lavou minhas mãos com algum tipo de merda e abriu as bolhas com uma lâmina, ainda falando sobre o rancor e a vingança que todas as mulheres carregavam em seus corações. Era glandular. As mulheres eram comandadas por suas glândulas; os homens, por seus corações. Era por isso que apenas os homens sofriam.
Disse que eu deveria lavar as mãos regularmente e jogar as malditas luvas fora. Falou um pouco mais sobre as mulheres e sua esposa e então fui embora.
O problema seguinte foram vertigens que me causavam desmaios. Mas só me acontecia quando eu estava em pé em alguma fila. Comecei a ficar aterrorizado de ter que ficar em qualquer fila. Era insuportável.
Descobri que na América e provavelmente em todos os outros lugares, tudo se resumia a ficar na fila. Fazíamos isso em toda parte. Carteira de motorista: três ou quatro filas. Hipódromo: filas. Cinema: filas. Mercado: filas. Eu odiava filas. Senti que devia haver uma maneira de evitar as filas. Então a resposta me iluminou. Ter mais atendentes. Sim, essa era a solução. Dois atendentes para cada pessoa. Três atendentes. Deixem os atendentes fazerem fila.
Sabia que as filas estavam me matando. Não podia aceitá-las, mas todo mundo aceitava. Todo mundo era normal. A vida era bela para eles. Podiam ficar na fila sem sentir dor. Podiam ficar na fila para sempre. Eles até mesmo gostavam de ficar na fila. Conversavam e se mostravam os dentes e sorriam e flertavam uns com os outros. Não tinham mais nada para fazer. Não conseguiam pensar em mais nada para fazer. E eu tinha que olhar para suas orelhas e bocas e pescoços e pernas e bundas e narinas, tudo aquilo. Podia sentir raios de morte emanando de seus corpos, como vapores e, ouvindo suas conversas, eu sentia vontade de gritar:
Jesus Cristo, alguém me ajude! Tenho que sofrer desta forma só para comprar um quilo de hambúrger e um pedaço de pão de centeio?
A tontura vinha, e eu espichava e afastava minhas pernas para evitar cair no chão, o supermercado girava e também as caras dos atendentes do supermercado com seus bigodes dourados e marrons, seus olhos alegres e espertos, todos chegarão a gerentes de supermercado um dia, com suas caras esfoliadas e contentes, comprando casas em Arcádia e trepando à noite com suas esposas loiras, pálidas e graciosas.
Marquei novamente uma consulta com o doutor. Recebi o primeiro horário. Cheguei meia hora mais cedo e a privada estava consertada. A enfermeira estava tirando o pó do escritório. Ela se curvou e se endireitou e se curvou um pouco e então se curvava para a direita e então se curvava para a esquerda e virou a bunda para mim e se curvou. O uniforme branco se contraía e subia, escalava, se erguia; aqui estava um joelho com covinhas, lá uma coxa, aqui um quadril, lá o corpo inteiro. Sentei e abri um exemplar da Life.
Ela parou de tirar o pó e pôs a cabeça para fora e me sorriu:
Livrou-se das luvas, sr. Chinaski.
Sim.
O doutor entrou, parecendo estar um pouco mais perto da morte, acenou com a cabeça, levantei e o segui para seu consultório.
Ele sentou em seu banco.
Chinaski, como vai?
Bem, doutor...
Problema com as mulheres?
Bem, é claro, mas...
Ele não me deixava terminar minhas frases. Tinha perdido mais cabelo. Seus dedos se contraíam. Parecia não ter mais fôlego. Mais magro. Era um homem desesperado.
Sua esposa o estava esfolando. Tinham ido ao tribunal. Ela lhe deu um tapa no tribunal. Ele gostou disso. Ajudou no caso. Eles viram quem era aquela cadela. De qualquer forma, não se saiu tão mal. Ela lhe deixara alguma coisa. É claro, sabe quanto custam os advogados. Desgraçados. Já reparou nos advogados? Quase sempre gordos. Especialmente ao redor do rosto.
De qualquer forma, caralho, ela me ferrou. Mas tenho um pouco guardado. Quer saber quanto custa uma tesoura como essa? Olha bem. Latão com um parafuso. Dezoito e cinquenta. Meu Deus, e eles odiavam os nazistas. O que é um nazista comparado a isso?
Não sei, doutor. Já disse que sou um homem confuso.
Já tentou um psiquiatra?
Não adianta. São idiotas, sem imaginação. Não preciso de psiquiatras. Ouvi dizer que eles acabam molestando sexualmente suas pacientes. Eu gostaria de ser um psiquiatra, se eu pudesse foder todas as mulheres. Fora isso, o trabalho deles é inútil.
Meu doutor se endireitou no seu banco. Ele amarelou e acinzentou um pouco mais. Um gigantesco espasmo percorreu seu corpo. Estava quase acabado. Um bom camarada, apesar de tudo.
Bem, me livrei da minha esposa – ele disse. – Está acabado.
Bom – eu disse –, me conte de quando você era nazista.
Bem, não tínhamos muita escolha. Eles simplesmente nos faziam entrar. Eu era jovem. Quero dizer, porra, o que se pode fazer? Só se pode viver em um país por vez. Vai-se à guerra e, se não acaba morrendo, acaba em um vagão aberto com pessoas atirando merda em você...
Perguntei-lhe se ele trepava com sua enfermeira gostosa. Ele sorriu gentilmente. O sorriso era um sim. Então me disse que desde o divórcio, bem, vinha se encontrando com uma de suas pacientes e ele sabia que não era ético fazer isso com pacientes...
Não, acho que está tudo bem, doutor.
É uma mulher muito inteligente. Casei com ela.
Tudo bem.
Agora estou feliz... mas...
Então ele esticou suas mãos abertas, lado a lado, com as palmas para cima...
Contei-lhe sobre o meu medo de filas. Ele me deu uma receita de Librium.
Então fui atacado por uma furunculose na minha bunda. Estava em agonia. Amarraram-me com tiras de couro, esses sujeitos podem fazer o que quiserem com você, me deram uma anestesia local e me abriram o cu. Virei minha cabeça e olhei para o meu doutor e disse:
Há alguma possibilidade de que eu mude de ideia?
Três rostos me olhavam de cima. O do médico e outros dois. Ele para cortar. Ela para as bandagens. Um terceiro metendo agulhas.
Você não pode mudar de ideia – disse o doutor e esfregou suas mãos e arreganhou os dentes e começou...

A última vez que o vi foi por causa de algo relacionado à cera em meus ouvidos. Eu podia ver seus lábios se mexendo, tentei entender, mas não podia ouvir. Eu sabia, por seus olhos e por sua cara, que eram tempos difíceis para ele outra vez e assenti com a cabeça.
Fazia calor. Eu estava um pouco tonto e pensei, bem, sim, ele é um bom camarada, mas por que não me deixa falar sobre os meus problemas, isso não é justo, também tenho problemas e tenho que pagá-lo.
Por fim, meu doutor se deu conta de que eu não estava ouvindo nada. Pegou algo que parecia com um extintor de incêndio e meteu em meus ouvidos. Mais tarde me mostrou grandes pedaços de cera... era a cera, ele disse. E apontou para um balde. Parecia realmente com feijões requentados.
Levantei da mesa, paguei-o e me fui. Ainda não podia ouvir nada. Não me sentia particularmente mal nem bem e imaginei que doença eu lhe traria da próxima vez, o que ele faria a respeito disso, o que ele faria com respeito à sua filha de dezessete anos que estava apaixonada por outra mulher e que iria casar com ela, e me ocorreu que todo mundo sofria continuamente, incluindo aqueles que fingiam não sofrer. Parecia-me que essa era uma boa descoberta. Olhei para o garoto que vendia jornal e pensei, hmmmm, hmmmm, e olhei para a próxima pessoa que passou e pensei hmmmm, hmmmm, hmmmmmm, e no semáforo perto do hospital, um carro novo e preto dobrou a esquina e atropelou uma bela garota que vestia um minivestido azul, e ela era loira e tinha faixas azuis no cabelo e se sentou na rua, ao sol, e um filete escarlate correu de seu nariz.

Charles Bukowski, in Ao Sul de Lugar Nenhum

Os lugares comuns

Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionou o fato.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.

Adélia Prado

Anunciação

Anunciação, de Angelo Savelli

Tenho em casa uma pintura do italiano Savelli – depois compreendi muito bem quando soube que ele fora convidado para fazer vitrais no Vaticano.
Por mais que olhe o quadro não me canso dele. Pelo contrário, ele me renova.
Nele, Maria está sentada perto de uma janela e vê-se pelo volume de seu ventre que está grávida. O arcanjo, de pé ao seu lado, olha-a. E ela, como se mal suportasse o que lhe fora anunciado como destino seu e destino para a humanidade futura através dela, Maria aperta a garganta com a mão, em surpresa e angústia.
O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas: carnudas, e seu rosto é o rosto de um homem.
É a mais bela e cruciante verdade do mundo.
Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir.
A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Rio de Sangue | 3

Os novos proprietários chegaram um ano após a morte de Zeca Chapéu Grande. O homem era alto e corpulento. Negociou com os herdeiros da família Peixoto e esteve, durante o período de negociação, algumas vezes na fazenda. Tinha cor de areia e ferrugem como a que se vê na beira do rio Santo Antônio. Usou essa cor de pele muitas vezes, nas discussões com Severo e com o povo, para dizer que não tinha nada contra ninguém, que ele mesmo tinha antepassados negros, dos quais se dizia orgulhoso. A mulher que o acompanhava, e depois veio a residir na fazenda, era branca e pequena, parecia não ter trinta anos. Tinham dois filhos que chegaram muito tempo depois, por breves períodos, porque estudavam na cidade. No começo, andavam pra cima e pra baixo, o homem tinha os olhos grandes para as coisas que via na fazenda, e a mulher conseguia fingir interesse. Era atabalhoada, entrava nos lugares sem saber se poderia entrar, repetia as mesmas frases de espanto, sorria de forma quase discreta do que chamava de ignorância do povo, quando se dispunha a perguntar e obtinha uma resposta diferente da que presumia ser verdadeira.
Salomão parecia se interessar por tudo. Se dispunha a escutar o que os moradores diziam, para refutar depois, dizendo que sabia mais, que viu sobre tal coisa em algum lugar que ninguém compreendia o nome. Almoçaram na casa de Firmina numa das visitas à fazenda, enquanto escolhiam o lugar para construir a casa grande. Firmina matou uma galinha para receber os novos donos de Água Negra, fez um pequeno banquete com abóbora e quiabo, picadinho de palma e arroz. Ela se sentia apenas uma inquilina, embora morasse ali há mais de quarenta anos, e, apesar de o dono estar ali há tão pouco tempo, sentia como se devesse favores por estar na terra alheia. Salomão comeu o que lhe serviram. A mulher não tocou na comida, dizia que tinha uma alimentação especial, agradeceu por tudo, mas ficou claro que sentia nojo. Das casas em condições ruins, das roupas, da precariedade de não se ter água encanada. Numa das vezes, teve dor de barriga e sentiu horror ao descobrir que não havia banheiro em nenhuma das casas, nem na escola. Depois de resistir, quando seu rosto foi mudando de cor, do corado de sol para o pálido, teve que se aliviar no mato. Entregou um pedaço de papel, que haviam lhe dado, sujo, para que uma das mulheres pegasse. “Não, a senhora pode deixar lá no mato mesmo”, foi o que as que a observavam de longe disseram, entre riso e ofensa. Voltou contrariada, considerando que teria dificuldades para se adaptar à vida naquele lugar.
Aquela fazenda parecia ser a menina dos olhos do novo senhor. Ele almejava se tornar um grande produtor de café, sem saber se era possível o cultivo naquela terra.
Depois quis criar porcos. Por último, quis fazer de Água Negra um santuário ecológico, extasiado que estava com a abundância de água e mata preservada, que resistiam à depredação da Chapada. Em nenhum dos seus planos o povo de Água Negra tinha lugar. Eram meros trabalhadores que deveriam ser deslocados para dormitórios. Deveriam viver efetivamente longe da fazenda, porque eram intrusos na propriedade alheia.
Salomão contratou trabalhadores para ajudar no transporte dos materiais e eventuais serviços para a obra da casa. Ela se tornou uma paisagem estranha aos moradores. Derrubaram pés de buritis e dendês que frutificavam num terreno pantanoso, onde começavam os marimbus. Drenaram parte da água, levantaram uma casa de madeira e vidro. Foi o suficiente para Severo lembrar que havia muito existia uma demanda por melhoria das casas de barro dos moradores, precárias, que poderiam ruir ou ser fonte de doenças. Era preciso construir com materiais mais duradouros. Uns concordavam, outros não. Diziam que se a terra era do dono, ele é que poderia dizer o que poderia ser feito. Sempre havia sido assim. Não havia motivos para mudar agora. Outros estavam cientes de seus direitos. Há bastante tempo, muito antes da morte de Zeca Chapéu Grande, Severo e outros trabalhadores traziam informações sobre as permissões negadas aos moradores da fazenda. Muitos nunca estiveram conformados com os interditos, mas durante muito tempo foi necessário permanecer quieto e submisso para garantir a sobrevivência. Agora falam em direito dos pretos, dos descendentes de escravos que viveram errantes de um lugar para o outro. Falam muito sobre isso. Que agora tem lei. Tem formas de garantir a terra. De não viverem à mercê de dono, correndo daqui pra acolá, como no passado.
Sou uma velha encantada, muito antiga, que acompanhou esse povo desde sua chegada das Minas, do Recôncavo, da África. Talvez tenham esquecido Santa Rita Pescadeira, mas a minha memória não permite esquecer o que sofri com muita gente, fugindo de disputas de terra, da violência de homens armados, da seca. Atravessei o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio bravo. A luta era desigual e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes.
Duas semanas antes da morte de Severo, Salomão e Estela deixaram a casa da fazenda. Partiram para uma viagem, era o que se dizia. Mas o desejo do povo, depois do enterro, foi queimar a casa de madeira e vidro. Queriam vê-la reduzida a cinza, moída feito poeira, consumida pelas chamas. Sentiam vontade de destruir tudo o que lhes foi negado.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Desembarque pelo lado esquerdo do trem

Ele pulou da carona como um gato, apesar dos seus cento e doze quilos de puro charme. Estava atrasado para ser entrevistado para um emprego que já sabia não querer. Essas coisas que a gente faz. Sorte, pelo menos, que a entrevista era num horário besta, 11h40. Não há horário mais besta. Talvez 15h15, não sei. É uma boa briga. Enfim, horário besta em que o metrô não está tão abarrotado de gente.
Linha Azul, sentido Tucuruvi. São Judas é a terceira, geralmente tem lugar. Tinha. Sentou-se com aquele tradicional medo de a calça do terno descosturar nesses momentos escolhidos a dedo. Ele era bem bonito. Cabelo farto, já um pouco grisalho, mesmo que antes dos trinta. Nunca foi magro, sempre esbanjou quilos e charme. Costeletas, perfume bom, nunca precisou de muito mais.
Ainda se recuperava do fora que tinha levado do último namorado, que adorava seu perfume, mas andava querendo cheirar novos pescoços. Procurava não pensar muito nisso (nítido sinal de que já pensava demais). Eles tinham uma daquelas relações que pareciam não ter hora pra acabar, até que acabou de uma hora pra outra. Ia ficar tudo bem; ele sempre divou na noite paulistana.
Saúde, Praça da Árvore, Santa Cruz, Vila Mariana. Entra um cão-guia. E entra o surpreendente guiado: tão cego, tão lindo, tão gay. Nosso protagonista ficou desnorteado, era muita informação. Não se vê um cego todo dia, não se vê um gay tão evidente toda hora, e, sobretudo, não se vê homem bonito por aí. Raça ameaçada de extinção e nem por isso tutelada por alguma ONG.
Ele, que sempre foi o rei do flerte, especialmente no metrô (daqueles flertes em que os olhares continuam quando um fica no vagão e o outro na plataforma, até se perderem no vácuo), quis flertar mais do que nunca e se sentiu de mãos atadas. O que eu faço? Por onde começo? E se ele for descer no Paraíso? Ofereço ajuda? Claro que não, idiota. Brinco com o cachorro? Também não, ele tá em serviço. Pergunto se ele tem horas? Afe. Não.
Foi Ana Rosa, foi Paraíso e foi Vergueiro, e ele não desceu. Cavalera, ele está com uma camiseta da Cavalera. O protagonista vai à loucura. São Joaquim, Liberdade. Preciso paquerar esse cara antes que ele desça na Sé. Dane-se, vou lá. Colocou a mão levemente no ombro dele e disse:
Cara, você quer sentar? Acabei de vagar um lugar.
Não, não, valeu, vou descer na próxima.
(Sorte e pressa, sorte e pressa, ele pensava.)
Beleza. E… E uma cerveja um dia qualquer, você topa?
(Ele ri, surpreso.)
Pô, essa proposta é melhor do que o assento. (Riram.) Como você chama?
Davi. Prazer. E você?
Vinícius. Prazer.
E então uma voz imperativa interrompeu:
Estação Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.
Você vai descer, né? Me passa seu número antes. Deixa eu pegar o celular.
O trem parou, o cão-guia tomou a dianteira. Ele foi falando o número enquanto saía. No final, gritou:
Boa sorte no que você vai fazer agora. Não sei o que é, mas o perfume vai ajudar!
O protagonista respondeu:
Valeu! Mas acho que a coisa mais importante que eu tinha pra fazer hoje, acabei de fazer.
As portas fecharam. Ele não tirava os olhos daquela dupla na plataforma. O trem foi saindo, e para sua surpresa Vinícius foi virando o pescoço junto com o trem, como quem ainda olhava para ele dentro do vagão. Davi sentiu um frio na barriga como em nenhum outro flerte. Pelo jeito, ambos iriam viver muita coisa que, literalmente, nunca tinham visto na vida.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

O som do rugido da onça | IV

A vida é o tempo que segue correndo, Iñe-e aprendeu. Até que se deu a chegada daquele homem desconhecido. Ele viera em uma grande comitiva como se fosse um grande chefe. Havia três montarias, um pequeno séquito de escravos, caçadores e pescadores a seu dispor, e muitos outros homens, entre eles um parente e um outro branco já conhecido do povo miranha. Esse branco, sempre com as armas postas na cintura, era muito animado, falador, conhecedor da floresta e das gentes de origem dela. Uma comitiva de muitas canoas fora anunciada dias antes pelos vizinhos, mas a embarcação do desconhecido, que era a principal, veio coberta de folhas de tamarica, para protegê-lo do sol, e só isso já indicava sua importância. Doze homens remavam para ele, uns da nação dos coerunas e outros da nação dos macunás. O homem que era como um grande chefe tinha um aspecto lastimável, por estar doente parecia que houvesse sido banhado na tintura rubra do achiote. Picadas dos carapanãs formavam calombos em seu corpo, e Iñe-e achou que aquele era um homem muito feio.
O alvoroço do povo reverberava no estampado das chitas, no chiado das miçangas, no tilintar dos troços de metal. Algumas crianças que de primeiro foram arredias agora cercavam os visitantes com seus olhos curiosos, admirados, e a presença daqueles homens monopolizava o cochicho das mulheres, ao mesmo tempo que dobrava a ocupação delas no preparo das comidas. Os homens agora tocavam os trocanos em resposta aos moradores adjacentes, anunciando que os brancos chegaram bem, que o principal deles repousava por causa da febre, que os subordinados estavam comendo, que todos eles estavam dançando, que vieram interessados em fazer negócios lucrativos.
O homem de aspecto lastimável é cuidado com beijus, sopa de yuca, água fresca e frutas até que a moléstia dê uma trégua a seu corpo. O velho avô faz o seu trabalho de cura com as ervas. E tão logo o branco se recupera, aqueles se tornam verdadeiramente dias de festa. Inaugurando um novo costume, a mãe de Iñe-e e Tsittsi recentemente havia sido repudiada e trocada por uma mulher mais jovem e mais alta pelo seu pai, o tuxaua. Temerosa do que poderia significar aquela perda de posição, recomendara, desde a chegada dos estrangeiros, com voz trêmula, que a filha mantivesse distância daqueles homens, especialmente quando estivessem tratando com o pai. Suas mãos trançando o fio de buriti em exato movimento de dedos em dança; seu coração, porém, palpitando, bambo. Igual recomendação lhe fez o avô, que por sua vez parecia mais encarquilhado e até tristonho.
Alguns dias depois de sarado, o branco partiu para as cachoeiras do Araracoara, e o pai se embrenhou com os guerreiros em busca dos escravos que o homem encomendara. Quando o tuxaua regressou, trazia alguns poucos homens, muitas mulheres e várias crianças. Eram crianças que aquele branco queria, Iñe-e ouviu o avô dizer a outro velho. Porém, na noite em que o tuxaua e o branco negociavam, Iñe-e ficou mais próxima do centro daquelas transações do que deveria. Ouviu o pai rir muito alto. Ouviu a voz do branco vexada, vacilante. Antes era costume que seu povo trocasse com os brancos apenas os inimigos e os órfãos dos inimigos por mercadorias variadas e ferramentas de trabalho. Mas, desde que esses negócios com os estrangeiros se haviam tornado mais constantes, muitas coisas tinham mudado, e alguns dos seus modos e hábitos começaram a se entranhar no tuxaua, o pai de Iñe-e, que se barbeava como eles e que passara mesmo a usar calça comprida e até uma casaca que a menina achava esquisita e feia. Ocasionalmente o pai até dizia palavras na língua dos brancos, a maioria das quais ele mesmo desconhecia o significado. Em uma de suas viagens fora batizado por um frade e desde então exigia ser chamado de João Manoel.
Iñe-e escutara uma vez as mulheres, sua mãe entre elas, dizendo que o pai pegara a doença dos brancos e que estava se tornando um estrangeiro em sua própria nação. Mas os guerreiros mais velhos e mesmo os jovens pareciam estar todos de acordo com ele, e o povo miranha se congratulava pelas trocas que o chefe se empenhava em realizar. Foi assim que nos últimos tempos as crianças órfãs e mulheres do seu povo haviam virado moeda também, e por isso a mãe e o avô de Iñe-e temiam as visitas dos brancos, especialmente por causa dela, e tentavam escondê-la dos olhos do pai, como se isso o fizesse esquecer de sua existência. Mas todos os esforços se revelaram inúteis. Não havia nenhum esconderijo a seus olhos, nada e nem ninguém que o impedisse.
Uma manhã em que o sol se levantou do mesmo jeito que sempre se levantava, e em que a mata falava sua língua do mesmo modo com que sempre falava, nada denunciava o que estava por acontecer. O pai de Iñe-e e o estrangeiro, que atendia pelo nome de Martius, firmaram acordo sobre a venda de sete crianças. Mas o homem branco deixaria o porto dos Miranhas levando consigo oito vidas. Iñe-e lhe fora dada como presente.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

Nova canção do exílio

A Josué Montello

Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.

O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.

Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.

Onde é tudo belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)

Ainda um grito de vida e
voltar
para onde é tudo belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.

Carlos Drummond de Andrade

Da humilde verdade

O quotidiano é o incógnito do mistério.

Mário Quintana, in Sapato florido

Jack Chase num tombadilho espanhol

Neste momento, devo ser honesto e contar uma história sobre Jack, que, embora esbarre em sua honra e integridade, tenho certeza não irá diminuí-lo na estima de qualquer homem de coração. Na presente viagem da fragata Neversink, Jack desertara e, passado certo tempo, fora capturado.
Mas qual teria sido o motivo de sua deserção? Fugir à disciplina naval? Entregar-se à diversão e aos excessos em algum porto de perdição? O amor de alguma signorita sem valor? De forma alguma. Ele abandonou a fragata, sim, por mais altos, nobres e gloriosos motivos. Embora respeitoso da disciplina naval a bordo, em terra firme era um defensor obstinado dos direitos do homem e das liberdades do mundo. Jack decidiu desembainhar a espada da causa numa insurreição civil no Peru, abraçando, de corpo e alma, o que julgava ser o justo.
Na época, seu desaparecimento causou enorme surpresa entre os oficiais, que não alimentavam suspeitas de postura desertora em relação a ele.
O quê? Jack, meu grande homem da gávea principal, um desertor?”, surpreendeu-se o capitão. “Não quero acreditar nisso.”
Jack Chase dando no pé!”, exclamou um aspirante com tendências ao romance e à aventura. “Só pode ter sido por amor; foram as signoritas que lhe viraram a cabeça.”
Jack Chase não foi encontrado?”, bradou um veterano resmungão da âncora d’esperança, um daqueles maliciosos profetas de acontecimentos passados: “Pensei nisso; eu sabia; podia até jurar… é o tipo de sujeito que zarpa de fininho. Sempre esperei isso dele.”
Meses se passaram sem qualquer notícia de Jack; até que, por fim, a fragata veio a ancorar na costa, ao lado de uma chalupa de guerra peruana.
Intrepidamente vestido em uniforme peruano e ostentando largas passadas, nas quais se misturavam os estilos naval e marcial, avistou-se a figura portentosa e alta de um oficial de barba longa caminhando pelo tombadilho da nau estrangeira; e supervisando as saudações que, em tais ocasiões, são trocadas entre navios de diferentes bandeiras nacionais.
Mirando nosso capitão, esse belo oficial tocou o chapéu adornado à maneira mais cortês; e aquele, depois de devolver-lhe o cumprimento, observou-o com certa indiscrição, tomando do monóculo.
Por Deus!”, ele gritou por fim. “É ele… ele não consegue disfarçar aquele jeito de andar… é a barba; eu o reconheceria na Cochinchina… Homens ao primeiro bote! Lugar-tenente Blink, quero que vá a bordo daquela chalupa e me traga aquele oficial.”
Todos ficaram assustadíssimos. O quê? Com os Estados Unidos e o Peru vivendo em calorosa paz, mandar um destacamento armado a bordo de uma chalupa peruana e capturar um de seus oficiais em plena luz do dia? Nefasta infração das Leis Internacionais! O que Vattel diria?
Mas ao capitão Claret era preciso obedecer. E lá se foi o bote, com todos os homens armados até os dentes, o lugar-tenente em exercício investido de instruções secretas, e os aspirantes a bordo ostentando ar de presciente sagacidade, embora, em verdade, não fossem capazes de dizer o que estava por vir.
Chegando à chalupa de guerra, o lugar-tenente foi recebido com as devidas honras; mas, àquela altura, o oficial alto e barbado desaparecera do tombadilho. O lugar-tenente mandou chamar o capitão peruano; e, após ser conduzido até a cabine, informou-lhe que a bordo de sua embarcação havia um indivíduo pertencente ao USS Neversink e que tinha ordens de levá-lo imediatamente.
O capitão estrangeiro enrolou as pontas do bigode, surpreso e indignado, e deu a entender um chamado aos postos, em resposta àquela demonstração de insolência ianque.
Porém, mantendo uma das mãos enluvadas sobre a mesa e brincando com a borla presa a sua espada, o lugar-tenente, não sem branda firmeza, repetiu a ordem. Por fim, com o caso todo esclarecido, e o indivíduo em questão descrito com precisão — incluindo uma mancha no rosto —, nada restou além de uma imediata concórdia.
Assim, o alinhado oficial de bastas barbas, que erguera cortesmente o chapéu a nosso capitão porém desaparecera à chegada do lugar-tenente, foi chamado à cabine diante de seu superior, que assim lhe dirigiu a palavra:
Don John, este cavalheiro declara que, por direito, você pertence à fragata Neversink. É verdade?”
Sim, don Sereno”, respondeu Jack Chase, levando ao peito os galões dourados das mangas de seu fardão, “e, não havendo resistência à fragata, entrego-me… Lugar-tenente Blink, estou pronto. Adeus, don Sereno, e que a Madre de Dios o proteja! Como amigo e capitão, o senhor sempre foi um cavalheiro. Espero que esmague seus sórdidos inimigos.”
Com isso, ele se virou e, embarcando no bote, foi levado à fragata e adiantou-se ao tombadilho do navio, onde o capitão Claret estava.
Às suas ordens, meu caro don”, disse o capitão, erguendo ironicamente o chapéu, porém ao mesmo tempo mirando Jack com um olhar de intenso descontentamento.
Seu mais devoto e penitente capitão de gávea grande, senhor; alguém que, em sua mais contrita humildade, ainda tem o orgulho de reconhecer no capitão Claret seu comandante”, respondeu Jack, produzindo uma gloriosa mesura e, então, num gesto trágico, lançando sua espada peruana ao mar.
Reintegrem-no imediatamente”, bradou o capitão Claret. “Agora, senhor, ao trabalho; se cumprir bem com suas funções até o final da viagem, não mais será lembrado de sua fuga.”
Assim, Jack avançou em meio à multidão de admiradores, marujos que depositavam toda a confiança naquela barba castanha, que crescera e se expandira espantosamente durante sua ausência. Os marinheiros dividiram entre si seu chapéu agalonado e o uniforme; e sobre os ombros o carregaram em triunfo pela coberta dos canhões.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

O do contra

Carla Bruni?”
Trubufu! Calhau!”
Fala sério...”
Se me ligar, digo que sou um monge em retiro e meu francês é péssimo.”
Ela não vai te ligar.”
Quem garante?”
Ela não vai te ligar.”
Ei! Sou eu o do contra.”
Maria Sharapova?”
Mocreia!”
Como é que é?”
Baranga! Bagulho! Xonga! E ainda urra como um urso quando bate na bola. Já ouviu? Não joga nada.”
Mas e a paralela?”
É na paralela que você presta atenção?”
Gisele?”
A Bündchen? Xô! Que pergunta... Magrela sem-sal. Anda toda torta, como aquelas pessoas no farol vendendo canetas. Dá-lhe umas muletas.”
É uma gata!”
Uma coisa patética.”
Luana?”
Nem sei quem é.”
Penélope Cruz?”
Credo! Muda, vai.”
Samba jazz?”
Que chatice!”
Como é que é?”
Agora, só se fala nisso?!”
Não gosta?”
Música de frases feitas.”
Frases feitas?”
E dois acordes! Tô fora!”
Seu Jorge?”
Detesto. Mala, chatinho, com músicas chatinhas. E faz propaganda de cerveja. Que mala!”
Tá bombado no mundo.”
Problema dele.”
Zeca Pagodinho?”
Outro. Fez a mesma propaganda. Agora, todos fazem propaganda de cerveja. Até aquele cantor do Rappa, mala metido a preocupado com a injustiça social. São os malas mais malas.”
Você não está exagerando?”
Aquele Carlinhos Brown também fez a mesma propaganda. Mas esse é mala unânime. Qual é? Malas, todos! Tudo mudou, reparou? Antigamente, artista não fazia propaganda. Ainda mais de cerveja. Artista era artista, defendia uma causa nobre, morria na dureza, mas não entregava o maior bem, a inspiração, a liberdade de criação, não se vendiam. Noel Rosa fez propaganda de xarope? E Cartola, de ótica? Olha, esse comentário dá até samba.”
Ivete Sangalo?”
Logo quem... Desengonçada!”
Que grosseria...”
Você perguntou. Faz propaganda da outra cerveja e de carro, telefone, sandálias, sei lá. A mina é um outdoor dançante.”
Mas e a música?”
E gritar ‘levantou a poeira’ é lá música?”
Ronaldinho Gaúcho?”
Perna de pau.”
Fenômeno?”
Desengonçado.”
Kaká?”
Bambi.”
Cidade de Deus?”
O filme? Fora de foco, descontínuo, sem pé nem cabeça, com um monte de ator ruim, que nem era profissional, como esse tal de Seu Jorge, que mala...”
Nelson Rodrigues?”
Machista.”
Machado de Assis?”
Racista.”
Lima Barreto?”
Caso de hospício.”
Mário de Andrade?”
Outro. E homofóbico.”
Oswald?”
Comuna!”
Plínio Marcos?”
Analfabeto.”
Paulo Autran?”
Canastrão.”
Fernanda Montenegro?”
Sem voz, sem voz...”
Respeito!”
Você quem provoca.”
Você não pode estar falando a sério.”
Não?”
Glauber?”
Direitista!”
Os Sertões?”
Chatinho.Tentou ler?”
Grande Sertão: Veredas?”
Não entendi nada. Tô fora!”
Os serviços telefônicos de atendimento ao cliente?”
Perfeitos. Bem-treinados e educados.”
Mas no Procon...”
Malas, malas.”
O uso do gerúndio das atendentes?”
Um charme, não acha?”
George Bush?”
Grande estadista!”
O filho?”
Ambos!”
A Guerra no Iraque?”
O mundo não está melhor sem Saddam?”
Puxa, mas você é do contra, mesmo.”
Não sou, não!”

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola