Ontem

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

Carlos Drummond de Andrade

Presente e passado

A avó de minha amiga está com 90 anos feitos. Vive muito modestamente, mas tem o costume de lembrar às visitas:
Pois é. Eu fui casada com um ministro...
Um negro velho, cria de família, de tanto ouvir aquilo, acabou dizendo, com o desembaraço dos velhos servidores:
A senhora não deve ficar repetindo essa coisa. Quando a gente bate numa porta a pessoa lá dentro sempre pergunta: “Quem é?” Ninguém pergunta: “Quem foi?”

Rubem Braga, in Recado de primavera

Hoje de madrugada

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali no canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, havia até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados, dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras, a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.

Raduan Nassar, in Obra completa

A morte da verdade – Notas sobre a mentira da era Trump (Introdução)

A morte da verdade (1814), de Francisco Goya

Dois dos regimes mais abomináveis da história da humanidade chegaram ao poder no século XX, e ambos se estabeleceram com base na violação e no esfacelamento da verdade, cientes de que o cinismo, o cansaço e o medo podem tornar as pessoas suscetíveis a mentiras e falsas promessas de líderes determinados a alcançar o poder incondicional. Como Hannah Arendt escreveu em seu livro de 1951, Origens do totalitarismo: “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).”
O alarmante para o leitor contemporâneo é que as palavras de Arendt soam cada vez menos como um comunicado do século passado e mais como um terrível reflexo do panorama cultural e político em que vivemos hoje — um mundo no qual as fake news e as mentiras são divulgadas em escala industrial por “fábricas” de trolls russos, lançadas num fluxo ininterrupto pela boca e pelo Twitter do presidente dos Estados Unidos, e espalhadas pelo mundo todo na velocidade da luz por perfis em redes sociais. O nacionalismo, o tribalismo, a sensação de estranhamento, o medo de mudanças sociais e o ódio aos estrangeiros estão novamente em ascensão à medida que as pessoas, trancadas nos seus grupos partidários e protegidas pelo filtro de suas bolhas, vêm perdendo a noção de realidade compartilhada e a habilidade de se comunicar com as diversas linhas sociais e sectárias.
No entanto, não quero fazer uma analogia direta entre as circunstâncias atuais e os horrores opressivos da época da Segunda Guerra Mundial, apenas olhar para determinadas condições e atitudes — ao comentar as obras de George Orwell 1984 e A revolução dos bichos, Margaret Atwood as chamou de “sinais de alerta” — que tornam um povo suscetível à demagogia e à manipulação política, e transformam uma nação numa presa fácil para os aspirantes a autocratas. Quero examinar como o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção, e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade, e o que isso significa para os Estados Unidos e para o mundo.
O historiador sabe o quão frágil é a tessitura dos fatos no cotidiano em que vivemos”, escreveu Arendt em 1971, no ensaio “A mentira na política”. “Ela está sempre correndo o risco de ser perfurada por uma única mentira ou despedaçada pela mentira organizada de grupos, países ou classes, ou negada e distorcida, muitas vezes cuidadosamente acobertada por calhamaços de mentiras, ou simplesmente autorizada a cair no esquecimento. Fatos necessitam de testemunhos para serem lembrados, e de testemunhas confiáveis para serem oficializados, de modo a encontrar um lugar seguro para habitar o domínio dos interesses humanos.”
O termo “declínio da verdade” (usado pelo think tank Rand Corporation para descrever “o enfraquecimento do papel dos fatos e análises” na vida pública norte-americana) entrou para o léxico da era da pós-verdade, que inclui também expressões agora corriqueiras como “fake news” e “fatos alternativos”. E não só as notícias são falsas: também existe a ciência falsa (produzida por negacionistas das mudanças climáticas e anti-vaxxers, os ativistas do movimento antivacina), a história falsa (promovida por revisionistas do Holocausto e supremacistas brancos), os perfis falsos de norte-americanos no Facebook (criados por trolls russos) e os seguidores e “likes” falsos nas redes sociais (gerados por bots).
Trump, o 45º presidente dos Estados Unidos, mente de forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o The Washington Post calculou que ele fez 2.140 alegações falsas ou enganosas no seu primeiro ano de governo — uma média de quase 5,9 por dia. As mentiras dele — sobre absolutamente tudo, desde as investigações sobre a interferência russa nas eleições, passando por sua popularidade e suas conquistas, até o tempo que passa vendo TV — são apenas o mais espalhafatoso entre os vários sinais de alerta acerca de seus ataques às instituições democráticas e normas vigentes. Ele ataca rotineiramente a imprensa, o sistema de justiça, as agências de inteligência, o sistema eleitoral e os funcionários públicos responsáveis pelo bom funcionamento do governo norte-americano.
Entretanto, os ataques à verdade não estão limitados aos Estados Unidos. Pelo mundo todo, ondas de populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo as instituições democráticas e trocando os especialistas pela sabedoria das multidões. Alegações falsas sobre as relações financeiras do Reino Unido com a União Europeia (em anúncios da campanha do partido Vote Leave num ônibus) ajudaram a mudar a votação em favor do Brexit; e a Rússia intensificou a propagação da sua dezinformatsiya durante as campanhas eleitorais na França, na Alemanha, na Holanda e em outros países, em esforços orquestrados de propaganda para desacreditar e desestabilizar democracias.
O papa Francisco nos lembra: “Não existe desinformação inofensiva; acreditar na falsidade pode ter consequências calamitosas.” O ex-presidente Barack Obama comentou que “um dos maiores desafios que temos em nossa democracia é o fato de não compartilharmos a mesma base de fatos” — atualmente as pessoas estão “operando em universos de informação completamente diferentes”. E o senador republicano Jeff Flake fez um discurso no qual alertou que “2017 foi o ano em que nós vimos a verdade — objetiva, empírica, baseada em evidências — ser mais agredida e atacada do que em qualquer outro período da história norte-americana, por meio das mãos da figura mais poderosa do nosso governo”.9

Como isso aconteceu? Quais são as raízes da falsidade na era Trump? Como a verdade e o bom senso se tornaram espécies ameaçadas de extinção, e o que sua morte iminente sugere para o futuro do nosso discurso público, da nossa política e dos nossos governantes? Esse é o tema deste livro.

* * *

É muito fácil encarar Trump — um candidato que baseou sua carreira política no pecado original do nascimentismo (ou birtherism) — como um cisne negro que conquistou seu cargo graças a uma soma perfeita de fatores: um eleitorado frustrado ainda se recuperando da ressaca da crise financeira de 2008; a interferência dos russos na eleição com uma enxurrada de fake news a favor dele nas redes sociais; uma oponente altamente polarizada que simbolizava a elite de Washington, acusada pelos populistas; e uma publicidade espontânea estimada em 5 bilhões de dólares graças à cobertura dos veículos de imprensa obcecados com as visualizações e os cliques gerados pelo ex-astro de reality show.
Se um escritor criasse um vilão como Trump — uma personificação megalomaníaca e extravagante do narcisismo, mendacidade, ignorância, preconceito, grosseria e demagogia com impulsos tirânicos (isso sem falar que é alguém que consome até uma dúzia de Coca-Cola diet por dia) —, seria acusado de ter produzido um personagem muito fantasioso ou sem nenhuma verossimilhança. Na verdade, o presidente dos Estados Unidos frequentemente se apresenta como um personagem menos convincente do que seria uma mistura de Ubu Rei, Triumph the Insult Comic Dog e um personagem descartado de Molière.
No entanto, por mais que a personalidade de Trump possua traços cômicos, não devemos nos cegar diante das consequências tremendamente sérias de seus ataques à verdade e ao Estado de direito, que evidenciam a vulnerabilidade de nossas instituições e comunicações digitais. Um candidato tão exposto durante a campanha por seu histórico de mentiras e práticas comerciais enganosas dificilmente conseguiria tanto apoio popular se setores do público não tivessem adotado uma postura um tanto quanto blasé em relação à verdade. É inegável que existem problemas sistêmicos em relação ao modo como as pessoas obtêm as informações e como passaram a pensar de forma cada vez mais polarizada.
Com Trump, a esfera pessoal é política e, em muitos sentidos, ele é menos uma anomalia caricata e mais um bizarro epítome de uma série de atitudes mais amplas e interligadas que corroem lentamente a verdade nos dias de hoje, desde a mistura do noticiário e da política com o entretenimento até a polarização tóxica que tomou conta da política norte-americana, passando pelo crescente desprezo populista em relação ao conhecimento especializado.
Essas atitudes, por sua vez, são símbolos das dinâmicas que foram ganhando corpo por anos a fio, criando um ambiente perfeito no qual Veritas, a deusa da Verdade (conforme foi retratada por Goya na famosa gravura Murió la Verdad), poderia adoecer e cair morta.
Já faz décadas que a objetividade — ou mesmo a ideia de que as pessoas desejam conhecer a melhor verdade disponível — está fora de moda. A famosa frase do ex-senador Daniel Patrick Moynihan — “Todo mundo tem o direito de ter suas próprias opiniões, mas não seus próprios fatos” — é mais atual do que nunca: a polarização se tornou tão extrema nos Estados Unidos que os eleitores dos estados de maioria republicana e dos de maioria democrata estão tendo dificuldades para entrar em consenso sobre os mesmos fatos. Isso vem acontecendo desde que um verdadeiro sistema solar de sites de notícias de direita passou a orbitar a Fox News e o Breitbart News e consolidou sua força gravitacional sobre a base republicana. E esse cenário vem sendo exponencialmente acelerado pelas redes sociais, que conectam usuários que pensam da mesma forma e os abastecem com notícias personalizadas que reforçam suas ideias preconcebidas, permitindo que eles vivam em bolhas, ambientes cada vez mais fechados e sem comunicação com o exterior.
Quanto a isso, o relativismo está em ascensão desde o início das guerras culturais, na década de 1960. Naquela época, ele foi abraçado pela Nova Esquerda, ansiosa para expor os preconceitos do pensamento ocidental, burguês e primordialmente masculino; e por acadêmicos que pregavam o evangelho do Pós-modernismo, que argumentava que não existem verdades universais, apenas pequenas verdades pessoais — percepções moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo. Desde então, o discurso relativista tem sido usurpado pela direita populista, incluindo os criacionistas e os negacionistas climáticos, que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as teorias “baseadas na ciência”.
O relativismo, é claro, combina perfeitamente com o narcisismo e a subjetividade que estão em expansão, desde “A década do eu”, de Tom Wolfe, até a autoestima na era das selfies. Não é nenhuma surpresa, portanto, que o efeito Rashomon — o ponto de vista de que tudo depende do seu ponto de vista — venha permeando nossa cultura, desde livros de sucesso como Destinos e Fúrias, de Lauren Groff, até séries de TV como The Affair, baseados na ideia de realidades conflitantes e narradores em quem não se pode confiar.
Tenho lido e escrito sobre muitos desses assuntos nas últimas quatro décadas, desde a ascensão do conceito de desconstrução e das batalhas acerca do cânone literário nos campi universitários; debates sobre a releitura ficcional de fatos históricos em filmes como JFK, de Oliver Stone, e A Hora Mais Escura, de Kathryn Bigelow; esforços feitos pelos governos Clinton e Bush para se furtar à transparência e definir a realidade em seus próprios termos; a guerra de Donald Trump contra a linguagem e seus esforços para normalizar o anormal; e a influência da tecnologia na forma como processamos e compartilhamos informações. Nestas páginas pretendo recorrer à leitura de livros e da realidade atual para ligar alguns pontos acerca dos ataques à verdade e situá-los num quadro mais amplo de dinâmicas sociais e políticas que vêm se infiltrando em nossa cultura há anos. Também pretendo chamar a atenção para alguns livros e artigos proféticos do passado, que ajudam a entender melhor o dilema em que nos encontramos hoje.
A verdade é um dos pilares da democracia. Como observou a ex-procuradora-geral interina Sally Yates, a verdade é uma das coisas que nos separam de uma autocracia: “Nós podemos — e devemos — debater políticas e questões, mas esses debates devem se basear em fatos em comum, e não em apelações baratas à emoção e ao medo na forma de mentiras e de uma retórica polarizante.”
Não apenas existe uma verdade objetiva, como deixar de dizê-la é uma questão importante. Não temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas temos como controlar se eles devem responder por essas mentiras ou se então, seja por exaustão ou para proteger nossos interesses políticos, vamos olhar para o outro lado e igualar a indiferença à verdade.”

Michiko Kakutani, in A morte da verdade – Notas sobre a mentira da era Trump

Acima de tudo o boi

Os chapéus parecem andar sozinhos;
mas a paisagem é ainda mais fantástica
quando chove e cogumelos deslizam
negros no espelho que então se estende

pela Place de la Concorde e se fecham
e desabrocham e correm sabe-se lá para
onde; ver o mundo e entender o tanto
que se esconde é melhor sem folhas

embora nua a noite fique assim tão fria
com seus esqueletos agarrados nas ilhas
de luz dos postes que gentis são guardas
monótonos, sempre de dieta e paletó;

mais divertidas vão as sombras que se
espicham quando o sol cai nas calçadas
onde a bicicleta é ela mais duas rodas
se uma claridade quadrada vem apanhá-la

e uma carroça parece uma carruagem
fantástica; na vizinhança de tais alegrias,
rumino certos pensamentos e monotonias,
o movimento, por exemplo, não é mais

que efeito do vento; o corre-corre, o lusco-
-fusco, o zigzag, ilusão de nada encobre
o certo: que as coisas são preenchimento
momentâneo de um pasto vazio, outros

chamarão deserto, alma, onde assisto
a pequenas euforias flores tabuletas
nuvens de cigarro correria gatos e
sobretudo as máquinas do progresso;

balões gigantes debruçam encantos
e futuras bombas sobre mim, sobre
as chaminés, as noivas e os rabinos;
dos balões pode-se ver minha solidão;

cabeças de edifícios não pensam mas
nelas pensa-se melhor porque daqui,
mais alto que o mais alto galinheiro,
avistamos o teatro inteiro; tudo assim

é pequeno; coisas me perguntam a razão
de elas estarem ali ou então sou eu
que lhes pergunto a razão de estar
aqui, porque é sempre espantoso,

cada coisa vive estranha e sem razão
nenhuma; mas nada supera a liberdade,
poder estar assim, exilado e livre,
doido, sinfônico, chifre-chafariz sobre

a cidade boquiaberta, boi sem igual,
sem causa, sem meta, dos telhados
de Paris ver girar num salto-
-mortal a Terra.

Eucanaã Ferraz

O chapéu vermelho


Foi um bocado bom voltar para o quarto depois de sair da casa do velho Spencer, porque todo mundo estava no jogo e, para variar, o sistema de aquecimento estava funcionando em nosso quarto. Tirei o paletó, a gravata, desabotoei o colarinho e pus na cabeça um chapéu que tinha comprado em Nova York de manhã. Era um desses chapéus de caça, vermelho, com a pala bem comprida. Eu o tinha visto na vitrina de uma loja de artigos esportivos quando saímos do metrô, logo depois que descobri que havia perdido a porcaria dos floretes e tudo. Só custou um dólar. Usava o chapéu com a pala virada para trás – de um jeito meio ridículo, mas era assim mesmo que eu gostava. Aí apanhei o livro que estava lendo e sentei na minha poltrona. Havia duas poltronas em cada quarto. Eu tinha uma e meu colega de quarto, Ward Stradlater, tinha outra. Os braços estavam em petição de miséria, porque todo mundo sentava sempre em cima deles, mas eram umas poltronas um bocado confortáveis.
Estava lendo um livro que tinha apanhado por engano na biblioteca. Me deram o livro errado e só notei quando já estava de volta no quarto. Haviam me dado Fora da África, de Isak Dinesen. Pensei que ia ser uma droga, mas não era não. Até que era um livro muito bom. Sou bastante ignorante, mas leio um bocado. Meu autor preferido é meu irmão D.B. e, em segundo lugar, Ring Lardner. Meu irmão me deu um livro do Ring Lardner no meu aniversário, antes de eu ir para o Pencey. Tinha uma porção de peças malucas, engraçadas pra burro, e um conto sobre um guarda de trânsito que se apaixona por uma garota muito bonita, que dirigia sempre em excesso de velocidade. Só que o guarda era casado, e por isso não podia casar com ela nem nada. Aí a garota acaba morrendo, porque dirigia sempre em excesso de velocidade. Achei essa estória infernal. O que eu gosto mesmo é de um livro que seja engraçado, pelo menos de vez em quando. Li uma porção de livros clássicos, como A Volta do Nativo, e tudo, e gostei deles; li também vários livros de guerra e de mistério, mas nenhum desses me deixou maluco. Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade. Mas isso é raro de acontecer. Eu até que gostaria de telefonar para esse tal de Ring Lardner, só que o D. B. me disse que ele já morreu. Mas, por exemplo, esse livro do Somerset Maugham, A Servidão Humana, que li no verão passado. É um livro bom pra chuchu e tudo, mas não me dá vontade de telefonar para o Somerset Maugham. Sei lá. Não é o tipo de sujeito que a gente tenha vontade de telefonar para ele, essa é que é a verdade. Preferiria telefonar para o Thomas Hardy. Gosto muito da tal de Eustacia Vye.
Seja lá como for, pus meu chapéu novo na cabeça, sentei e comecei a ler o tal do Fora da África. Não tinha lido nem umas três páginas quando ouvi alguém atravessando as cortinas do chuveiro. Mesmo sem olhar já sabia quem era. Era o Robert Ackley, que morava no quarto ao lado do meu. Na nossa ala havia um chuveiro entre cada dois quartos, e o tal do Ackley encarnava em mim umas oitenta e cinco vezes por dia. Era provavelmente o único cara em todo o dormitório, além de mim, que não estava vendo o jogo. Ele quase nunca ia a lugar nenhum. Era um sujeito um bocado esquisito. Já estava no último ano, tinha feito o curso inteiro lá mesmo no Pencey, mas todo mundo só chamava ele de Ackley. Nem mesmo o Herb Gale, seu companheiro de quarto, chamava ele de Bob ou mesmo Ack. Se é que algum dia ele vai se casar, aposto que a mulher dele também vai chamá-lo de Ackley. Era um desses camaradas altos pra burro, de ombros largos – devia ter um metro e oitenta e sete – com uns dentes podres. O tempo todo que morou no quarto ao lado do meu, não o vi escovar os dentes nem uma única vez. Os dentes dele estavam sempre meio esverdeados, parecia até que já tinham criado musgo, e dava nojo vê-lo no refeitório, com a boca cheia de purê de batatas, ervilha ou coisa que o valha. Além disso, tinha um bocado de espinhas. Não era só na testa ou no queixo, como a maioria dos sujeitos, mas pela cara toda. E não era só isso, tinha um gênio dos diabos, o tipo do indivíduo desagradável. Confesso que não ia lá muito com as fuças dele.
Podia sentir que ele estava em pé, na borda do chuveiro, bem detrás da minha poltrona, dando uma olhada para ver se o Stradlater andava por perto. Ackley não topava o Stradlater, e nunca entrava no quarto com ele por lá. No duro mesmo, acho que o safado não topava era ninguém.
Desceu da borda do chuveiro e entrou no quarto. – Oba – disse. Ele sempre dizia isso como se estivesse terrivelmente chateado ou terrivelmente cansado. Não queria que os outros pensassem que ele estava fazendo uma visita, ou coisa parecida; queria que a gente imaginasse que ele tinha entrado por engano!
Oba – respondi, mas nem levantei a cabeça do livro. Com um sujeito como o Ackley, a gente estava perdido se levantasse a cabeça do livro. Estaria perdido de qualquer jeito, mas não tão depressa como se houvesse logo olhado para ele.
Começou a zanzar pelo quarto, devagarinho e tudo, como sempre fazia, mexendo nos objetos pessoais da gente que estivessem por cima das escrivaninhas ou das mesas. Estava sempre apanhando um objeto pessoal de alguém para dar uma olhada. Puxa, tinha horas que botava a gente nervoso.
Como é que foi a competição de esgrima? – perguntou. Mas era só para me obrigar a parar de ler e deixar de me divertir. – Ganhamos, ou como é que foi?
Ninguém ganhou – respondi. Mas sem olhar para ele.
O quê?
Ele estava sempre obrigando a gente a dizer as coisas duas vezes.
Isso mesmo. Ninguém ganhou.
Dei uma olhadela para ver o que é que ele estava fazendo na minha escrivaninha. Estava olhando o retrato de uma garota com quem eu costumava sair em Nova York, Sally Hayes. Ele já devia ter apanhado e olhado aquela droga daquele retrato umas cinco mil vezes desde o dia em que o recebi. Quando tinha se fartado de mexer numa coisa, punha sempre de volta no lugar errado. Fazia isso de propósito, evidentemente.
Ninguém ganhou, não é? Como é que pode?
Esqueci a droga dos floretes e do equipamento no metrô.
Continuava com a cara enfiada no livro.
No metrô, essa é boa! Quer dizer que você perdeu tudo?
Nós tomamos o trem errado e eu tinha que ficar me levantando para olhar a porcaria do mapa na parede.
Chegou para perto de onde eu estava e se postou bem em frente da luz. Aí eu disse: – Puxa, já li essa mesma frase umas vinte vezes desde que você chegou.
Qualquer um teria entendido a indireta, menos o Ackley. Menos ele.
E você acha que vão te fazer pagar o equipamento? – perguntou.
Sei lá, e estou pouco ligando. Que tal você se sentar ou coisa que o valha, hem, meu menino? Você está bem na frente da minha luz.
Ficava possesso quando alguém o chamava de menino. Estava sempre dizendo que eu era criança, porque eu tinha dezesseis anos e ele dezoito. Ficava maluco quando eu o chamava de meu menino.
Nem com isso saiu do lugar. Era exatamente o tipo do sujeito que não sai da frente da luz se a gente pedir. Depois de algum tempo acabava saindo, mas sempre demorava mais um pouco se a gente tivesse pedido a ele para sair.
O que é que você está lendo?
Uma droga dum livro.
Deu um empurrão no livro para ver o título e perguntou:
Como é? Vale alguma coisa?
Essa frase que eu estou lendo é genial.
Às vezes, quando me dá vontade, consigo ser um bocado sarcástico. Mas ele nem entendeu a ironia. Começou a andar outra vez pelo quarto, mexendo em todos os meus objetos pessoais e do Stradlater. Afinal, pus meu livro no chão. Ninguém consegue ler mais nada com um sujeito como o Ackley por perto. É totalmente impossível. Deixei o corpo escorregar até lá em baixo da poltrona, e fiquei olhando o sacana do Ackley se pondo à vontade, como se estivesse em casa. Estava começando a me sentir um pouco cansado da viagem a Nova York e tudo, e comecei a bocejar. Aí comecei a bancar o maluco pra fazer hora. De vez em quando eu banco o maluco uma porção de tempo, só para não ficar chateado. O que fiz foi puxar a pala do meu chapéu para a frente e dobrar para baixo, tapando os olhos. desse jeito não conseguia ver porcaria nenhuma.
Acho que estou ficando cego – eu disse, numa voz rouca pra chuchu. – Mãezinha querida, está ficando tudo tão escuro aqui.
Juro que você é maluco – disse o Ackley.
Mãezinha querida, me dá a tua mão. Por que é que você não me dá a tua mão?
Oh, por favor. Vê se cresce, tá?
Comecei a tatear na minha frente, como se fosse cego, mas sem me levantar nem nada. – Mãezinha querida, por que é que você não me dá a tua mão? – continuei dizendo, mas estava só bancando o maluco, naturalmente. Às vezes um negócio desses me diverte um bocado, e além disso eu sabia que o Ackley ficava danado com a brincadeira. Ele sempre despertava em mim uma ponta de sadismo. De vez em quando eu era um bocado sádico com ele. Acabei parando. Puxei a pala de volta para trás e sosseguei.
De quem é isso? – Ackley perguntou. Estava me mostrando a joelheira do meu companheiro de quarto. O sacaneta do Ackley mexia em qualquer troço. Era até capaz de apanhar a culhoneira da gente, ou qualquer outra coisa. Disse que era do Stradlater e ele aí jogou a joelheira em cima da cama dele. Tinha apanhado em cima da escrivaninha, por isso é que jogava em cima da cama.
Aproximou-se e sentou no braço da poltrona do Stradlater. Nunca sentava numa poltrona, tinha que ser sempre no braço da poltrona.
Onde é que você arranjou esse chapéu?
Em Nova York.
Quanto foi?
Um dólar.
Então você foi roubado.
Começou a limpar a droga das unhas com a ponta de um fósforo. Estava sempre limpando as unhas. De certo modo, era até engraçado. Os dentes dele estavam sempre esverdeados de sujeira, as orelhas eram uma imundície, mas ele não passava um dia sem limpar as unhas. Acho que pensava que isso o tornava um sujeito muito limpo. Deu outra olhadela para meu chapéu enquanto limpava as unhas.
Lá onde eu moro a gente usa esse tipo de chapéu para caçar veado, por Deus do céu. Esse chapéu só serve para caçar veado.
Nada disso.
Tirei o chapéu e olhei para ele, com um dos olhos meio fechado, como se estivesse fazendo mira.
Esse chapéu aqui é para caçar gente. Eu uso ele para caçar gente.

J. D. Salinger, in O Apanhador no Campo de Centeio

Intercâmbio

Vovô tem um riso de cobre — surdo, velho, azinhavrado — um riso que sai custoso, aos vinténs.
Mas Lili, sempre generosa, lhe dá o troco em pratinhas novas.

Mário Quintana, in Sapato Florido

Éluard, O Magnífico

Grafite de Paul Eluard (1936), de Pablo Picasso

Meu camarada Paul Éluard morreu faz pouco tempo. Era tão íntegro, tão denso, que me custou dor e trabalho acostumar com seu desaparecimento. Era um normando azul e rosa, de aspecto grave e delicado. A guerra de 14, na qual foi vítima de gases duas vezes, deixou-o para sempre de mãos trêmulas. Mas Éluard me deu em todos os momentos a ideia da cor celeste, de uma água profunda, de uma doçura que conhecia a força. Sua poesia tão pura, transparente como as gotas de uma chuva de primavera contra os cristais, fazia com que Paul Éluard parecesse um homem apolítico, um poeta contra a política. Não era assim. Sentia-se fortemente ligado ao povo da França, à sua causa e à sua luta.
Paul Éluard era firme, uma espécie de torre francesa, com essa lucidez apaixonada que não é o mesmo que a estupidez apaixonada tao comum.
Pela primeira vez, no México, para onde viajamos juntos, vi-o à beira de um abismo escuro, ele que sempre – com uma sábia perseverança – rejeitou a tristeza.
Estava abatido. Eu tinha convencido e arrastado este francês central para essas terras distantes e ali, no mesmo dia em que enterramos José Clemente Orozco, caí doente com uma perigosa tromboflebite que me manteve quatro meses preso à cama. Paul Éluard sentiu-se solitário, sombriamente solitário, com o desamparo do explorador cego. Não conhecia ninguém, as portas não se abriam para ele. A viuvez o acometeu e se sentia ali sozinho e sem amor. Dizia-me: “Precisamos ver a vida com companhia, participar em todos os fragmentos da vida. É irreal e criminosa a minha solidão.”
Chamei meus amigos e o obrigamos a sair. De má vontade o levaram a percorrer os caminhos do México e em um desses recantos se encontrou com o amor, com seu último amor: Dominique.

É muito difícil para mim escrever sobre Paul Éluard. Continuarei vendo-o vivo junto de mim, acesa em seus olhos a elétrica profundidade azul que olhava tão amplamente e de tão longe.
Saía do solo francês em que lauréis e raízes entretecem suas flagrantes heranças. Sua grandeza era feita de água e pedra e para ela subiam antigas trepadeiras, portadoras de flor e fulgor, de ninhos e cantos transparentes.
Transparência – é esta a palavra. Sua poesia era cristal de pedra, água imobilizada em sua corrente cantante.
Poeta do amor mais alto, fogueira pura do meio-dia, nos dias desastrosos da França deu o coração para sua pátria – e dele saiu o fogo decisivo para as batalhas.
Assim chegou às fileiras do partido comunista. Para Éluard, ser um comunista era confirmar com sua poesia e sua vida os valores da humanidade e do humanismo.
Não se pense que Éluard foi menos político que poeta. Muitas vezes me assombrava sua clara visão e sua formidável razão dialética. Juntos examinamos muitas coisas, homens e problemas de nosso tempo, e sua lucidez me foi útil para sempre.
Não se perdeu no irracionalismo surrealista porque não foi um imitador mas sim um criador e, como tal, descarregou sobre o cadáver do surrealismo disparos de claridade e inteligência.
Foi meu amigo de todo dia e perco sua ternura que era parte de meu pão. Ninguém me poderá dar agora o que ele levou consigo porque sua fraternidade ativa era um dos mais preciosos luxos de minha vida.
Torre da França, irmão! Inclino-me sobre teus olhos cerrados que continuarão me dando a luz e a grandeza, a simplicidade e a retidão, a bondade e a simplicidade que implantaste sobre a terra.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Torto Arado | 19

Aquele foi o último enterro realizado na Viração por muito tempo. Não que não houvesse morrido mais gente, mas porque a fazenda foi vendida meses depois da morte de meu pai. Os herdeiros da família Peixoto envelheceram, e os seus filhos e netos não queriam continuar com a propriedade Água Negra. Os mais velhos nos conheciam, mas os mais novos nem sabiam quem éramos, embora não tivessem dúvida de que se tratava de um problema aos seus negócios. Foi com as casas de barro e nossos corpos como mobília que venderam a terra a um casal com dois filhos. Acostumados que estávamos à longa posse da família Peixoto, fomos surpreendidos pela mudança e ficamos sem saber o que aconteceria a partir de então. Os mais ingênuos achavam que tudo permaneceria da mesma maneira. Os mais desconfiados temiam o que estava por vir, quiçá o despejo. Sabíamos que a fazenda existia, pelo menos, desde a chegada de Damião, o pioneiro dos trabalhadores, durante a seca de 1932. A família Peixoto havia herdado terras das sesmarias. Essas coisas nem Deus sabe explicar como aconteceram, mas Severo diz de uma forma que o povo fica atento, indo de casa em casa, da escola aos caminhos para a roça. Depois o povo fica se perguntando, conversando entre si, e vão recuperando as histórias das famílias antes da chegada. Eu tentava me concentrar depois, para aprender sobre o que Severo contava. Que chegou um branco colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados, mortos, ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de muito longe, para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho de roça, porque ganhavam muito mais dinheiro como doutores na cidade, e nos procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dissemos que éramos índios. Porque sabíamos que, mesmo que não fosse respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio. E também porque eles se misturaram conosco, indo e voltando de seu canto, perdidos de suas aldeias.
Muito antes de nós, é o que dizem, chegou para cá muita gente, vindo com a notícia de que haviam sido encontradas minas de diamantes. Dizem até que quem encontrou o diamante foi um de nossos antepassados. Contam que roubaram dele as pedras sob sua posse, que foram garimpadas no rio Serrano. Que para tirar as pedras de suas mãos chegaram mesmo a acusá-lo de matar um viajante das Minas Gerais. Para não ser morto, teve que contar onde havia encontrado as pedras. Outros contam que ele apenas carregava os diamantes para serem vendidos, e que as pedras tinham sido encontradas pelos escravos de um tal senhor do Prado. Outros dizem que o primeiro diamante foi encontrado por um homem das Gerais. O que sabemos é que essa notícia trouxe mais escravos, trabalhadores livres, consulado de país estrangeiro para o interior e companhia de mineradores, tudo para retirar o diamante das serras. Sabe-se também que muito sangue foi derramado, muitos homens sucumbiram ao chamamento, à loucura e ao feitiço da pedra. Muitos endoideceram na sanha para encontrar o brilho. Muitos pereceram encantados e outros tantos foram mortos. Esta terra viveu em guerra de coronéis por muitos e muitos anos. Para trabalhar no garimpo vieram muitos homens escravos das vizinhanças da capital, dos engenhos que já não tinham mais a importância de antes, e das minas de ouro das Gerais. Dizem que até mesmo nasceu por aqui, filho de um dos trabalhadores das minas de diamante, o neto de um rei de Oyó da África, o neto do último rei a manter o império unido, antes de cair em desgraça.
Durante muitos anos, nascemos e vivemos à sombra da corrida do garimpo. Seja nas brincadeiras de criança, quando éramos ensinados a identificar qualquer gema que pudesse se assemelhar à pedra da cobiça, seja nas histórias dos coronéis que dominavam a região e da guerra que embrenharam pelas serras onde estava o diamante. Contavam de como o trânsito de pessoas às vezes era interrompido de um lugar a outro para que não fossem mortos nas emboscadas. De como as fazendas em que morávamos e nossas origens tinham a marca dessa trama de vida e morte que se instalou por décadas na Chapada Velha. Se fôssemos moradores da fazenda tal estávamos livres para transitar de um lugar a outro. Se nosso senhor fosse desafeto de tal coronel, os que ali viviam também corriam risco de se tornar vítimas da violência. Era o que nos contavam. O medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre.
Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor. Que não gostassem de seus filhos, das cantigas, da nossa irmandade. Aonde quer que fôssemos, encontrávamos um parente, nunca estávamos sós. Quando não éramos parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o medo. Eu fui apanhando cada palavra da fala de Severo, das muitas vezes que o vi contar, para guardar em meu pensamento.
Foi assim que ele nos disse, e o povo ajudava contando o que conhecia das histórias de vida também: que, em dado momento, o diamante já não atraía tanta gente e só restaram as terras de Água Negra, conhecidas pela grande quantidade de água e pela várzea, que tudo dá. Era uma porção de mundo entre dois rios que corriam à sua volta por quase todos os lados, formando uma ilha no coração da Chapada Velha. Para cá, em quase todos os anos de seca de que se tem notícia, peregrinaram muitos trabalhadores buscando morada. Eram trazidos pelo gerente da fazenda, ou pelos que ali já estavam, que pediam por irmãos e compadres. Outros chegaram sobre as forças das próprias pernas para se juntar aos demais, com a autorização dos donos da terra.
Durante muitos anos, a fazenda foi uma bênção de água e fartura no sertão. Agora o novo dono, que construiu uma casa bonita e vistosa para morar na beira dos marimbus, mandou um novo gerente, depois de Sutério se aposentar, dizer que não poderíamos mais sepultar ninguém na Viração. Que era crime contra as matas. Contra a natureza. Que o cemitério estava próximo ao leito do rio. Que na cidade tinha cemitério e que a prefeitura garantia o transporte do morto para a cidade.
Os mais jovens não viram muita diferença em enterrar os mortos na cidade ou na Viração. Mas para os mais velhos aquela interdição era uma ofensa. A Viração existia há mais de duzentos anos, era o que contavam. As mulheres diziam em suas conversas que só saíam de suas casas, só se recolheriam de suas vidas, para a Viração. Que não haveria conversa nem interdito, que não abriam mão de ser sepultadas naquele chão. Não abdicariam do destino de ser enterradas ao lado de seus parentes e compadres. Queriam estar à volta de compadre Zeca, assentado bem no meio daquele quadrado de terra seca, com metade do terreno cercado de um muro de um metro, enquanto a outra metade estava cercada da caatinga. “Daqui só saio para a Viração”, foi o que mais ouvimos naqueles dias que anunciaram o interdito.
Por sorte, ninguém morreu naquele primeiro ano. Mas também ninguém se tranquilizou com o que estava para vir. Aquela mensagem dizia muito mais sobre nossas vidas do que sobre a morte em si. Se não pudéssemos deitar nossos mortos na
Viração era porque, em breve, também não poderíamos estar sobre a mesma terra.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Flor

nada que o sol
não explique
tudo que a lua
mais chique
não tem chuva
que desbote essa flor.

Paulo Leminski

Meditações | 1

Amanheça dizendo: “Hoje encontrarei um intrometido, um ingrato, um arrogante, um desonesto, um invejoso e um insociável.”
Eles se comportam dessa maneira por não saberem distinguir o bem do mal. Eu, em contrapartida, aprendi a enxergar a beleza do que é bom e certo e a feiura do que é mau e errado. Observei o parentesco entre mim e eles. Não compartilhamos do mesmo sangue ou semente, mas somos uniformemente dotados de inteligência e porções divinas.
Não posso ser ferido por um parente, sequer me zangar ou odiá-lo, pois ninguém é capaz de me embaraçar com o que é feio. Nascemos para cooperar, tal qual os dois pés, as duas mãos, as pálpebras superiores e inferiores e o maxilar e a mandíbula. Não cooperar é contrário à natureza, e me irritar ou me afastar deles não é um ato de cooperação.

Marco Aurélio, in Meditações

O choque estilístico

O leitor brasileiro que porventura entrar em contato com a arte de Guimarães Rosa através de Primeiras estórias inevitavelmente haverá de experimentar um choque, devido à agressiva novidade do estilo, à qual os leitores antigos do autor se vêm habituando progressivamente. (Falamos no leitor brasileiro, porque o estrangeiro, que a conhecer através de tradução, terá forçosamente sob os olhos um texto atenuado e filtrado, adaptado pelo tradutor aos padrões existentes da língua acolhedora.)
Lembre-se que o autor fez sua aparição na literatura como escritor regionalista. Não adotara, porém, nenhuma das três técnicas à disposição do regionalismo: servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro, restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem literária, convencional. A quarta solução, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. Disse língua elaborada e não culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos mais profundos do idioma, não se satisfaz em explorar-lhe todo o tesouro registrado e codificado, mas submete-o a uma experimentação incessante, para testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. Daí um estilo personalíssimo, que das obras de caráter regionalístico se alastrou por toda a obra de ficção do nosso autor, e até por suas raras produções ensaísticas.
Fez, em suma, Guimarães Rosa, em relação à linguagem, o que todos os ficcionistas fazem da realidade, sua matéria-prima: desagregam-na e reconstituem-na a seu bel-prazer, tratando as suas parcelas como elementos de mosaico; com pedaços e traços de pessoas vivas constroem as suas personagens; fundindo cenas e acontecimentos registrados pela própria memória, deles tiram episódios e enredos. Com clarividência notável, Antonio Candido define o mundo de Guimarães Rosa como um universo autônomo “composto de realidades expressionais e humanas que se articulam com harmonia, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma”.
Entre os motivos dessa experimentação, do contínuo alargar do registro da língua, figura, sem dúvida, o propósito de amoldá-la para exprimir matizes e modalidades até então não observados da realidade que aguardam denominação para penetrarem na consciência comum. “O poeta se distingue como um aparelho altamente discriminante da infinita multiplicidade de aspectos do ser” (Oswaldino Marques). Mas o motivo principal, mais de uma vez declarado pelo próprio ficcionista, consiste em dar “toque e timbre novos às expressões amortecidas”. Como pertinentemente observa Cavalcanti Proença, o nosso escritor outra coisa não faz “senão apelar para a consciência etimológica do leitor, neologizando vocábulos, reavivando-lhes o significado (obliterado ou por demais esquecido pelo uso corrente), dando-lhes uma precisão que esse mesmo uso acabou por destruir. Uma espécie daquele silêncio que desperta os moleiros quando cessa o rolar do moinho.”
Nas considerações seguintes, tenta-se não a catalogação dos recursos estilísticos manejados no presente volume (e que daria outro volume), e sim, apenas, a indicação exemplificada das tendências a que correspondem. Não se ignora o risco deste trabalho: os espécimes montados em alfinete com fins de coleção, rígidos e murchos, podem parecer meras esquisitices e até monstruosidades, por mais que vicejem e resplandeçam no contexto do seu ambiente natural, vitalizando-o e animando-o.

Paulo Rónai, in Os vastos campos (Introdução a Primeiras estórias)

Contos dos bosques de Curitiba

Nelsinho encostou a porta, encurralada a moça no canto:
É hoje.
Roçou a sombra do lábio, a espinha na asa do nariz. Ela voltou-lhe a face: beijou-a ferozmente na boca.
Fechou a porta, empurrando-a com o pé. Certa que iriam ficar nos toques e blandícias, pendurou-se ao seu pescoço. Pousou a mão no peitinho, ela se encolheu, vergonha do seio pequeno? Era dona experiente, sem provocá-la não conseguia nada:
Duvido seja carne – é borracha!
Não faça isso. Vem gente. – Suspirosa, pesando cada vez mais no seu ombro. – Se vem gente?
O herói estendeu a mão, deu volta à chave:
Vem não.
Arquejante, estalou os dois colchetes, ergueu lhe a blusa. Ela que baixou o sutiã. Surgiram dois bocados cor-de-rosa:
Nunca vi coisinha mais linda!
Ai, mãezinha do céu, aquilo sim era seio – dois de uma vez, sem mentira. Se apertasse o biquinho espirrava leite?
Brasão de família, ela confidenciou que o da mãe era mais bonito.
Depressa. Vem gente.
Risinho abafado, queixou-se de cócega.
Que maravilha – a mão cheia, ele sopesava o fruto. – Ó perfeição da natureza!
Ares de distraída, olho ausente no teto:
Sou nervosa. Hoje estou fria.
Como é que você gosta?
Sem inspiração eu não posso.
Ah, é...
Beijava-a raivoso, lábio inchado de mordida. Ela titilou a língua no céu da boca. O herói, sem sair do lugar, descreveu duplo salto mortal.
Deslizou a mão no joelho, debaixo da saia cinza. Magra, usava anágua. Assustadiça, arregalou o olho:
Não. Não. Aqui não.
Seja boba.
Conversinha em sussurro, na ânsia louca do mais cobiçado prêmio da terra.
Querido, pode vir alguém.
Na última resistência, vencida pela surpresa. Levantou-lhe a anágua e viu - o que ele viu? Babados, brincos e rendas da ilha da Madeira!
Ai, você me machuca.
Da vacina contra varíola, queixou-se de íngua no braço.
Já faço benzedura de íngua.
A bela soltou o botão da saia e correu o fecho. Agora de blusa e anágua. Sem blusa. Sem anágua, desfeita aos pés. Magrinha e branca, dava pena - deitou-a no sofá de couro vermelho.
Espere, meu bem.
Ela derrubou o sapato, raspando na beirada o calcanhar. De joelho no tapete, Nelsinho babujou-lhe o seio.
Me olhe. Abra o olho.
Toda trêmula, escondeu o rosto no seu ombro:
Sinto vergonha. Gemido abafado de terror:
Tenha pena de mim!
Juro que...
Quem me dera um espelho, uma almofada, um anel mágico.
... não faço mal.
Sem inspiração, a bela enterrou-lhe a unha no pescoço:
Me beije. Ai, meu amor – e rilhando com fúria os dentes. - Ai, me beije.

Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba

A viagem a Lavras

Na estação da Rede Mineira Viação estávamos eu e minha mãe esperando o trem que nos levaria a Lavras. Batia o sino da estação. Parecia sino de igreja. Estação é igreja? Pode ser. Pode ser céu para quem volta, pode ser céu para quem vai.
O sino batera porque o telégrafo, com seus bipes em Morse, informara o chefe da estação que o trem acabara de partir da estação mais próxima. Dentro de uns vinte minutos estaria chegando. Aí os olhos de todos se voltavam para a esquerda. O trem viria da esquerda. Antes de aparecer, seria o apito rouco da maria-fumaça resfolegando nas curvas, “vim-da-barra-tô-cansada, vim-da-barra-tô-cansada, vim-da-barra-tô-cansada”, gritando às pessoas e bichos que fugissem dos trilhos. As marias-fumaça falam sempre, cada uma na sua língua. Kurosawa disse que no Japão as marias-fumaça diziam: dodêskaden, dodêskaden, dodêskaden. Finalmente ela aparecia ao longe, negra, bufando fumaça pela chaminé. Aproximando-se da plataforma era o barulho dos ferros, o guincho das rodas escorregando sobre os trilhos por causa da freada, aço contra aço, o chiado dos vapores que saíam assobiando da caldeira que os fogos da fornalha faziam ferver. Desciam os que chegavam. Embarcavam os que partiam. Púnhamos as malas no bagageiro suspenso do vagão de primeira classe, tomávamos o nosso lugar, o chefe da estação tocava um apito e gesticulava, dizendo ao maquinista que podia partir. A máquina apitava, esforçava-se aos sacolejões para vencer a inércia e partia. Depois eram as paradas nas estações intermediárias, dava tempo de descer e comer pastel ou empadinha com café ralo melado. O trem parava para a máquina beber água, a noite descendo triste, agora era a luz do holofote iluminando para a frente e os milhões de fagulhas espalhando galáxias efêmeras pelo céu...
Da porta da estação, Lavras aparecia como uma cidade encantada, adormecida, ninguém na rua — as poucas pessoas que apareciam eram sombras indefinidas, vultos que se moviam no escuro. O casario mal se via, as sombras das casas aparecendo borradas à luz mortiça das lâmpadas que se esforçavam por iluminar com o seu brilho de velas que ameaçavam se apagar.
Procurávamos um carro de aluguel. Minha mãe simplesmente dizia ao chauffeur: “Para o sobrado...” . Nenhum deles jamais perguntou: “Que sobrado? Qual é o endereço?”. Todo mundo sabia o que era o sobrado. Havia outros. Mas apenas aquele era “o sobrado”. Minha mãe estava feliz. Estava retornando ao ninho, à casa da sua meninice e juventude, a “sua” casa…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Calça literária

É assíduo leitor de blusas, camisas, saias, calças estampadas. Não lhe escapa um exemplar novo. Parece desligado, e observa tudo. Segundo ele, as peças de indumentária, masculina e feminina, ostentando símbolos e nomes de universidades americanas, manchetes, páginas de jornal, retratos de Pelé e Jimi Hendrix, apelos ao amor que não à guerra etc., há muito deixaram de ser originais. Constituem invólucros rotineiros de pessoas de qualquer idade. A gente estranha é uma camisa inteiramente nua de dizeres ou figuras, a roupa que não diz nada, só roupa. Hoje, lê-se mais nos tecidos do que nos livros, e não é ler apenas, é ver cinema e televisão, pois os corpos, ao se moverem, dinamizam as figuras estampadas. O que, de um modo ou de outro, contribui para a cultura de massas. Informa:
Estou pensando em aproveitar esse material para fins especificamente didáticos. Através dele, ensinar geografia, história, matemática, medicina de urgência, imposto de renda, ortografia desmistificada, essas coisas. O indivíduo cobre-se e vai distribuindo ciência. Ou aprendendo. Vinte minutos no ônibus — que aula! Classes ao ar livre, na feira, na fila. Escola dinâmica.
Você sozinho é um Mobral 1971.
Ontem eu li uma calça comprida, de mulher que à primeira vista não tinha nada de especial. Estava escrita como tantas outras. Mas o texto (não confundir com textura) me chamou a atenção. Geralmente, calças e blusas não são literárias. Trazem notícias, anúncios, slogans, mas versos, ainda não tinha visto. Pois essa tinha poemas em português, de Camões ao Vinicius.
Tomou nota?
Claro. Aliás, a usuária foi muito gentil. Percebendo que eu mirava a parte inferior do seu revestimento, gratificou-me com um sorriso que eu traduzi assim: “Pode mirar mais”. E eu mirei. Aí, puxei da caneta, e ela sorriu outra vez, como quem diz: “Pode copiar também”. Copiei.
Tudo?
Tudo não. A dona da calça estava sentada na sala de espera do cinema. Só o que era visível. Depois se levantou, foi ao bebedouro, deu tempo para eu colher mais alguma coisa, no ir e vir. Não tive coragem de pedir-lhe que desse umas voltas. Você compreende: sou tímido.
Estou vendo.
Foi a primeira calça literária, totalmente poética, do meu conhecimento. Feita em São Paulo? Talvez. Caracteres pretos sobre fundo branco. Versos em todas as direções. De Bilac, de Cecília, de Bandeira, de Castro Alves, de Fernando Pessoa. Uma antologia, bicho. Sem ordem, naturalmente. Escuta aí: Onde vais à tardezinha, morena flor do sertão? O que eu adoro em ti é a vida. Aqui outrora retumbaram hinos. Oh abelha imaginativa! o que o desejo inventa… Vou-me embora pra Pasárgada. Amor é fogo que arde sem se ver. Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho. No monte de amor andei, por ter de monteiro fama, sem tomar gamo nem gama. Clorindas e Belindas brincam no tempo das berlindas. Eu tenho amado tanto e não conheço o amor. Estrela Vésper do pastor errante. ‘Tamos em pleno mar: dois infinitos ali se alteiam…
Beleza.
Não é? Tem mais. Transforma-se o amador na coisa amada. Antônia, você parece uma lagarta listrada. D. Janaína, rainha do mar, dai-me licença para eu também brincar no vosso reinado. Por que não nasci eu um simples vaga-lume? Não queiras indagar do meu segredo. Mas que seja infinito enquanto dure. Cantando espalharei por toda parte. Tudo não escondido perde a graça. O cinamomo floresce em frente do teu postigo. Crisântemo divino aberto em meio da solidão… Tinha uma pedra no meio do caminho.
Isso já é prosa, amizade.
É mesmo. Em todo caso, trata-se da primeira calça poética luso-brasileira. Os poetas que tratem de defender seus direitos autorais. A menos que considerem uma honra vestir de versos as mulheres.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica