quarta-feira, 29 de setembro de 2021
Ontem
Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.
De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.
Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
Carlos Drummond de Andrade
Presente e passado
A avó de minha amiga está com 90 anos
feitos. Vive muito modestamente, mas tem o costume de lembrar às
visitas:
— Pois é. Eu fui casada com um
ministro...
Um negro velho, cria de família, de
tanto ouvir aquilo, acabou dizendo, com o desembaraço dos velhos
servidores:
— A senhora não deve ficar repetindo
essa coisa. Quando a gente bate numa porta a pessoa lá dentro sempre
pergunta: “Quem é?” Ninguém pergunta: “Quem foi?”
Rubem Braga, in Recado de primavera
Hoje de madrugada
O que registro agora aconteceu hoje de
madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu
mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e
encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui
feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola,
assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços,
enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali no
canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num
momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de
coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava
nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava.
Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem
dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia
quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar
no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela
acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus
olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro
estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando percebi
que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando
vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis.
Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela
escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o
foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em
cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada,
não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas
logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me
devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo
numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer,
mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava
afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada,
provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de
misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as
mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não
tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco
de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se
lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar
entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o
bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que
ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na
mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso
do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu
couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca.
Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua
mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente
frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até
onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu,
num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se
deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance
para a janela, havia até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas
as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo
através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava.
Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa
na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de
novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o
laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente
expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara.
Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e,
debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa,
tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as
pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no
subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob
o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos,
subindo afoito, me queimando a perna com sua febre. Fiz a tentativa
com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e
brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo
meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os
olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça
jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as
costas, os olhos cerrados, dois frisos úmidos e brilhantes
contornando o arco das pálpebras, a boca escancarada, e eu não
minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus
dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou
quase solene em direção à porta, logo freando porém o passo. E
parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não
fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria
interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse
então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou
pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que
se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por
esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta
reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito
sonâmbula.
Raduan Nassar, in Obra completa
A morte da verdade – Notas sobre a mentira da era Trump (Introdução)
A morte da verdade (1814), de Francisco Goya
Dois dos regimes mais abomináveis da
história da humanidade chegaram ao poder no século XX, e ambos se
estabeleceram com base na violação e no esfacelamento da verdade,
cientes de que o cinismo, o cansaço e o medo podem tornar as pessoas
suscetíveis a mentiras e falsas promessas de líderes determinados a
alcançar o poder incondicional. Como Hannah Arendt escreveu em seu
livro de 1951, Origens do totalitarismo: “O súdito ideal do
governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista
convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o
fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a
diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do
pensamento).”
O alarmante para o leitor contemporâneo
é que as palavras de Arendt soam cada vez menos como um comunicado
do século passado e mais como um terrível reflexo do panorama
cultural e político em que vivemos hoje — um mundo no qual as fake
news e as mentiras são divulgadas em escala industrial por
“fábricas” de trolls russos, lançadas num fluxo
ininterrupto pela boca e pelo Twitter do presidente dos Estados
Unidos, e espalhadas pelo mundo todo na velocidade da luz por perfis
em redes sociais. O nacionalismo, o tribalismo, a sensação de
estranhamento, o medo de mudanças sociais e o ódio aos estrangeiros
estão novamente em ascensão à medida que as pessoas, trancadas nos
seus grupos partidários e protegidas pelo filtro de suas bolhas, vêm
perdendo a noção de realidade compartilhada e a habilidade de se
comunicar com as diversas linhas sociais e sectárias.
No entanto, não quero fazer uma analogia
direta entre as circunstâncias atuais e os horrores opressivos da
época da Segunda Guerra Mundial, apenas olhar para determinadas
condições e atitudes — ao comentar as obras de George Orwell 1984
e A revolução dos bichos, Margaret Atwood as chamou de
“sinais de alerta” — que tornam um povo suscetível à
demagogia e à manipulação política, e transformam uma nação
numa presa fácil para os aspirantes a autocratas. Quero examinar
como o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção,
e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade, e o
que isso significa para os Estados Unidos e para o mundo.
“O historiador sabe o quão frágil é
a tessitura dos fatos no cotidiano em que vivemos”, escreveu Arendt
em 1971, no ensaio “A mentira na política”. “Ela está sempre
correndo o risco de ser perfurada por uma única mentira ou
despedaçada pela mentira organizada de grupos, países ou classes,
ou negada e distorcida, muitas vezes cuidadosamente acobertada por
calhamaços de mentiras, ou simplesmente autorizada a cair no
esquecimento. Fatos necessitam de testemunhos para serem lembrados, e
de testemunhas confiáveis para serem oficializados, de modo a
encontrar um lugar seguro para habitar o domínio dos interesses
humanos.”
O termo “declínio da verdade” (usado
pelo think tank Rand Corporation para descrever “o
enfraquecimento do papel dos fatos e análises” na vida pública
norte-americana) entrou para o léxico da era da pós-verdade, que
inclui também expressões agora corriqueiras como “fake news”
e “fatos alternativos”. E não só as notícias são falsas:
também existe a ciência falsa (produzida por negacionistas das
mudanças climáticas e anti-vaxxers, os ativistas do
movimento antivacina), a história falsa (promovida por revisionistas
do Holocausto e supremacistas brancos), os perfis falsos de
norte-americanos no Facebook (criados por trolls russos) e os
seguidores e “likes” falsos nas redes sociais (gerados por
bots).
Trump, o 45º presidente dos Estados
Unidos, mente de forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o
The Washington Post calculou que ele fez 2.140 alegações
falsas ou enganosas no seu primeiro ano de governo — uma média de
quase 5,9 por dia. As mentiras dele — sobre absolutamente tudo,
desde as investigações sobre a interferência russa nas eleições,
passando por sua popularidade e suas conquistas, até o tempo que
passa vendo TV — são apenas o mais espalhafatoso entre os vários
sinais de alerta acerca de seus ataques às instituições
democráticas e normas vigentes. Ele ataca rotineiramente a imprensa,
o sistema de justiça, as agências de inteligência, o sistema
eleitoral e os funcionários públicos responsáveis pelo bom
funcionamento do governo norte-americano.
Entretanto, os ataques à verdade não
estão limitados aos Estados Unidos. Pelo mundo todo, ondas de
populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas
recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo
as instituições democráticas e trocando os especialistas pela
sabedoria das multidões. Alegações falsas sobre as relações
financeiras do Reino Unido com a União Europeia (em anúncios da
campanha do partido Vote Leave
num ônibus) ajudaram a mudar a votação em favor do Brexit; e a
Rússia intensificou a propagação da sua dezinformatsiya
durante as campanhas eleitorais na França, na Alemanha, na Holanda e
em outros países, em esforços orquestrados de propaganda para
desacreditar e desestabilizar democracias.
O papa Francisco nos lembra: “Não
existe desinformação inofensiva; acreditar na falsidade pode ter
consequências calamitosas.” O ex-presidente Barack Obama comentou
que “um dos maiores desafios que temos em nossa democracia é o
fato de não compartilharmos a mesma base de fatos” — atualmente
as pessoas estão “operando em universos de informação
completamente diferentes”. E o senador republicano Jeff Flake fez
um discurso no qual alertou que “2017 foi o ano em que nós vimos a
verdade — objetiva, empírica, baseada em evidências — ser mais
agredida e atacada do que em qualquer outro período da história
norte-americana, por meio das mãos da figura mais poderosa do nosso
governo”.9
Como isso aconteceu? Quais são as raízes
da falsidade na era Trump? Como a verdade e o bom senso se tornaram
espécies ameaçadas de extinção, e o que sua morte iminente sugere
para o futuro do nosso discurso público, da nossa política e dos
nossos governantes? Esse é o tema deste livro.
* * *
É muito fácil encarar Trump — um
candidato que baseou sua carreira política no pecado original do
nascimentismo (ou birtherism) — como um cisne negro que
conquistou seu cargo graças a uma soma perfeita de fatores: um
eleitorado frustrado ainda se recuperando da ressaca da crise
financeira de 2008; a interferência dos russos na eleição com uma
enxurrada de fake news a favor dele nas redes sociais; uma
oponente altamente polarizada que simbolizava a elite de Washington,
acusada pelos populistas; e uma publicidade espontânea estimada em 5
bilhões de dólares graças à cobertura dos veículos de imprensa
obcecados com as visualizações e os cliques gerados pelo ex-astro
de reality show.
Se um escritor criasse um vilão como
Trump — uma personificação megalomaníaca e extravagante do
narcisismo, mendacidade, ignorância, preconceito, grosseria e
demagogia com impulsos tirânicos (isso sem falar que é alguém que
consome até uma dúzia de Coca-Cola diet por dia) —, seria acusado
de ter produzido um personagem muito fantasioso ou sem nenhuma
verossimilhança. Na verdade, o presidente dos Estados Unidos
frequentemente se apresenta como um personagem menos convincente do
que seria uma mistura de Ubu Rei, Triumph the Insult Comic Dog e um
personagem descartado de Molière.
No entanto, por mais que a personalidade
de Trump possua traços cômicos, não devemos nos cegar diante das
consequências tremendamente sérias de seus ataques à verdade e ao
Estado de direito, que evidenciam a vulnerabilidade de nossas
instituições e comunicações digitais. Um candidato tão exposto
durante a campanha por seu histórico de mentiras e práticas
comerciais enganosas dificilmente conseguiria tanto apoio popular se
setores do público não tivessem adotado uma postura um tanto quanto
blasé em relação à verdade. É inegável que existem problemas
sistêmicos em relação ao modo como as pessoas obtêm as
informações e como passaram a pensar de forma cada vez mais
polarizada.
Com Trump, a esfera pessoal é política
e, em muitos sentidos, ele é menos uma anomalia caricata e mais um
bizarro epítome de uma série de atitudes mais amplas e interligadas
que corroem lentamente a verdade nos dias de hoje, desde a mistura do
noticiário e da política com o entretenimento até a polarização
tóxica que tomou conta da política norte-americana, passando pelo
crescente desprezo populista em relação ao conhecimento
especializado.
Essas atitudes, por sua vez, são
símbolos das dinâmicas que foram ganhando corpo por anos a fio,
criando um ambiente perfeito no qual Veritas, a deusa da Verdade
(conforme foi retratada por Goya na famosa gravura Murió la
Verdad), poderia adoecer e cair morta.
Já faz décadas que a objetividade —
ou mesmo a ideia de que as pessoas desejam conhecer a melhor verdade
disponível — está fora de moda. A famosa frase do ex-senador
Daniel Patrick Moynihan — “Todo mundo tem o direito de ter suas
próprias opiniões, mas não seus próprios fatos” — é mais
atual do que nunca: a polarização se tornou tão extrema nos
Estados Unidos que os eleitores dos estados de maioria republicana e
dos de maioria democrata estão tendo dificuldades para entrar em
consenso sobre os mesmos fatos. Isso vem acontecendo desde que um
verdadeiro sistema solar de sites de notícias de direita
passou a orbitar a Fox News e o Breitbart News e consolidou sua força
gravitacional sobre a base republicana. E esse cenário vem sendo
exponencialmente acelerado pelas redes sociais, que conectam usuários
que pensam da mesma forma e os abastecem com notícias personalizadas
que reforçam suas ideias preconcebidas, permitindo que eles vivam em
bolhas, ambientes cada vez mais fechados e sem comunicação com o
exterior.
Quanto a isso, o relativismo está em
ascensão desde o início das guerras culturais, na década de 1960.
Naquela época, ele foi abraçado pela Nova Esquerda, ansiosa para
expor os preconceitos do pensamento ocidental, burguês e
primordialmente masculino; e por acadêmicos que pregavam o evangelho
do Pós-modernismo, que argumentava que não existem verdades
universais, apenas pequenas verdades pessoais — percepções
moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo. Desde
então, o discurso relativista tem sido usurpado pela direita
populista, incluindo os criacionistas e os negacionistas climáticos,
que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as teorias
“baseadas na ciência”.
O relativismo, é claro, combina
perfeitamente com o narcisismo e a subjetividade que estão em
expansão, desde “A década do eu”, de Tom Wolfe, até a
autoestima na era das selfies. Não é nenhuma surpresa,
portanto, que o efeito Rashomon — o ponto de vista de que tudo
depende do seu ponto de vista — venha permeando nossa cultura,
desde livros de sucesso como Destinos e Fúrias, de Lauren
Groff, até séries de TV como The Affair, baseados na ideia
de realidades conflitantes e narradores em quem não se pode confiar.
Tenho lido e escrito sobre muitos desses
assuntos nas últimas quatro décadas, desde a ascensão do conceito
de desconstrução e das batalhas acerca do cânone literário nos
campi universitários; debates sobre a releitura ficcional de fatos
históricos em filmes como JFK, de Oliver Stone, e A Hora
Mais Escura, de Kathryn Bigelow; esforços feitos pelos governos
Clinton e Bush para se furtar à transparência e definir a realidade
em seus próprios termos; a guerra de Donald Trump contra a linguagem
e seus esforços para normalizar o anormal; e a influência da
tecnologia na forma como processamos e compartilhamos informações.
Nestas páginas pretendo recorrer à leitura de livros e da realidade
atual para ligar alguns pontos acerca dos ataques à verdade e
situá-los num quadro mais amplo de dinâmicas sociais e políticas
que vêm se infiltrando em nossa cultura há anos. Também pretendo
chamar a atenção para alguns livros e artigos proféticos do
passado, que ajudam a entender melhor o dilema em que nos encontramos
hoje.
A verdade é um dos pilares da
democracia. Como observou a ex-procuradora-geral interina Sally
Yates, a verdade é uma das coisas que nos separam de uma autocracia:
“Nós podemos — e devemos — debater políticas e questões, mas
esses debates devem se basear em fatos em comum, e não em apelações
baratas à emoção e ao medo na forma de mentiras e de uma retórica
polarizante.”
“Não apenas existe uma verdade
objetiva, como deixar de dizê-la é uma questão importante. Não
temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas
temos como controlar se eles devem responder por essas mentiras ou se
então, seja por exaustão ou para proteger nossos interesses
políticos, vamos olhar para o outro lado e igualar a indiferença à
verdade.”
Michiko Kakutani, in A morte da verdade – Notas sobre a mentira da era Trump
terça-feira, 28 de setembro de 2021
Acima de tudo o boi
Os chapéus parecem andar sozinhos;
mas a paisagem é ainda mais fantástica
quando chove e cogumelos deslizam
negros no espelho que então se estende
pela Place de la Concorde e se fecham
e desabrocham e correm sabe-se lá para
onde; ver o mundo e entender o tanto
que se esconde é melhor sem folhas
embora nua a noite fique assim tão fria
com seus esqueletos agarrados nas ilhas
de luz dos postes que gentis são guardas
monótonos, sempre de dieta e paletó;
mais divertidas vão as sombras que se
espicham quando o sol cai nas calçadas
onde a bicicleta é ela mais duas rodas
se uma claridade quadrada vem apanhá-la
e uma carroça parece uma carruagem
fantástica; na vizinhança de tais
alegrias,
rumino certos pensamentos e monotonias,
o movimento, por exemplo, não é mais
que efeito do vento; o corre-corre, o
lusco-
-fusco, o zigzag, ilusão de nada encobre
o certo: que as coisas são preenchimento
momentâneo de um pasto vazio, outros
chamarão deserto, alma, onde assisto
a pequenas euforias flores tabuletas
nuvens de cigarro correria gatos e
sobretudo as máquinas do progresso;
balões gigantes debruçam encantos
e futuras bombas sobre mim, sobre
as chaminés, as noivas e os rabinos;
dos balões pode-se ver minha solidão;
cabeças de edifícios não pensam mas
nelas pensa-se melhor porque daqui,
mais alto que o mais alto galinheiro,
avistamos o teatro inteiro; tudo assim
é pequeno; coisas me perguntam a razão
de elas estarem ali ou então sou eu
que lhes pergunto a razão de estar
aqui, porque é sempre espantoso,
cada coisa vive estranha e sem razão
nenhuma; mas nada supera a liberdade,
poder estar assim, exilado e livre,
doido, sinfônico, chifre-chafariz sobre
a cidade boquiaberta, boi sem igual,
sem causa, sem meta, dos telhados
de Paris ver girar num salto-
-mortal a Terra.
Eucanaã Ferraz
O chapéu vermelho
Foi um bocado bom voltar para o quarto
depois de sair da casa do velho Spencer, porque todo mundo estava no
jogo e, para variar, o sistema de aquecimento estava funcionando em
nosso quarto. Tirei o paletó, a gravata, desabotoei o colarinho e
pus na cabeça um chapéu que tinha comprado em Nova York de manhã.
Era um desses chapéus de caça, vermelho, com a pala bem comprida.
Eu o tinha visto na vitrina de uma loja de artigos esportivos quando
saímos do metrô, logo depois que descobri que havia perdido a
porcaria dos floretes e tudo. Só custou um dólar. Usava o chapéu
com a pala virada para trás – de um jeito meio ridículo, mas era
assim mesmo que eu gostava. Aí apanhei o livro que estava lendo e
sentei na minha poltrona. Havia duas poltronas em cada quarto. Eu
tinha uma e meu colega de quarto, Ward Stradlater, tinha outra. Os
braços estavam em petição de miséria, porque todo mundo sentava
sempre em cima deles, mas eram umas poltronas um bocado confortáveis.
Estava lendo um livro que tinha apanhado
por engano na biblioteca. Me deram o livro errado e só notei quando
já estava de volta no quarto. Haviam me dado Fora da África,
de Isak Dinesen. Pensei que ia ser uma droga, mas não era não. Até
que era um livro muito bom. Sou bastante ignorante, mas leio um
bocado. Meu autor preferido é meu irmão D.B. e, em segundo lugar,
Ring Lardner. Meu irmão me deu um livro do Ring Lardner no meu
aniversário, antes de eu ir para o Pencey. Tinha uma porção de
peças malucas, engraçadas pra burro, e um conto sobre um guarda de
trânsito que se apaixona por uma garota muito bonita, que dirigia
sempre em excesso de velocidade. Só que o guarda era casado, e por
isso não podia casar com ela nem nada. Aí a garota acaba morrendo,
porque dirigia sempre em excesso de velocidade. Achei essa estória
infernal. O que eu gosto mesmo é de um livro que seja engraçado,
pelo menos de vez em quando. Li uma porção de livros clássicos,
como A Volta do Nativo, e tudo, e gostei deles; li também
vários livros de guerra e de mistério, mas nenhum desses me deixou
maluco. Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica
querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para
ele toda vez que der vontade. Mas isso é raro de acontecer. Eu até
que gostaria de telefonar para esse tal de Ring Lardner, só que o D.
B. me disse que ele já morreu. Mas, por exemplo, esse livro do
Somerset Maugham, A Servidão Humana, que li no verão
passado. É um livro bom pra chuchu e tudo, mas não me dá vontade
de telefonar para o Somerset Maugham. Sei lá. Não é o tipo de
sujeito que a gente tenha vontade de telefonar para ele, essa é que
é a verdade. Preferiria telefonar para o Thomas Hardy. Gosto muito
da tal de Eustacia Vye.
Seja lá como for, pus meu chapéu novo
na cabeça, sentei e comecei a ler o tal do Fora da África.
Não tinha lido nem umas três páginas quando ouvi alguém
atravessando as cortinas do chuveiro. Mesmo sem olhar já sabia quem
era. Era o Robert Ackley, que morava no quarto ao lado do meu. Na
nossa ala havia um chuveiro entre cada dois quartos, e o tal do
Ackley encarnava em mim umas oitenta e cinco vezes por dia. Era
provavelmente o único cara em todo o dormitório, além de mim, que
não estava vendo o jogo. Ele quase nunca ia a lugar nenhum.
Era um sujeito um bocado esquisito. Já estava no último ano, tinha
feito o curso inteiro lá mesmo no Pencey, mas todo mundo só chamava
ele de Ackley. Nem mesmo o Herb Gale, seu companheiro de quarto,
chamava ele de Bob ou mesmo Ack. Se é que algum dia ele vai se
casar, aposto que a mulher dele também vai chamá-lo de Ackley. Era
um desses camaradas altos pra burro, de ombros largos – devia ter
um metro e oitenta e sete – com uns dentes podres. O tempo todo que
morou no quarto ao lado do meu, não o vi escovar os dentes nem uma
única vez. Os dentes dele estavam sempre meio esverdeados, parecia
até que já tinham criado musgo, e dava nojo vê-lo no refeitório,
com a boca cheia de purê de batatas, ervilha ou coisa que o valha.
Além disso, tinha um bocado de espinhas. Não era só na testa ou no
queixo, como a maioria dos sujeitos, mas pela cara toda. E não era
só isso, tinha um gênio dos diabos, o tipo do indivíduo
desagradável. Confesso que não ia lá muito com as fuças dele.
Podia sentir que ele estava em pé, na
borda do chuveiro, bem detrás da minha poltrona, dando uma olhada
para ver se o Stradlater andava por perto. Ackley não topava o
Stradlater, e nunca entrava no quarto com ele por lá. No duro mesmo,
acho que o safado não topava era ninguém.
Desceu da borda do chuveiro e entrou no
quarto. – Oba – disse. Ele sempre dizia isso como se estivesse
terrivelmente chateado ou terrivelmente cansado. Não queria que os
outros pensassem que ele estava fazendo uma visita, ou coisa
parecida; queria que a gente imaginasse que ele tinha entrado por
engano!
– Oba – respondi, mas nem levantei a
cabeça do livro. Com um sujeito como o Ackley, a gente estava
perdido se levantasse a cabeça do livro. Estaria perdido de qualquer
jeito, mas não tão depressa como se houvesse logo olhado para ele.
Começou a zanzar pelo quarto,
devagarinho e tudo, como sempre fazia, mexendo nos objetos pessoais
da gente que estivessem por cima das escrivaninhas ou das mesas.
Estava sempre apanhando um objeto pessoal de alguém para dar uma
olhada. Puxa, tinha horas que botava a gente nervoso.
– Como é que foi a competição de
esgrima? – perguntou. Mas era só para me obrigar a parar de ler e
deixar de me divertir. – Ganhamos, ou como é que foi?
– Ninguém ganhou – respondi. Mas sem
olhar para ele.
– O quê?
Ele estava sempre obrigando a gente a
dizer as coisas duas vezes.
– Isso mesmo. Ninguém ganhou.
Dei uma olhadela para ver o que é que
ele estava fazendo na minha escrivaninha. Estava olhando o retrato de
uma garota com quem eu costumava sair em Nova York, Sally Hayes. Ele
já devia ter apanhado e olhado aquela droga daquele retrato umas
cinco mil vezes desde o dia em que o recebi. Quando tinha se fartado
de mexer numa coisa, punha sempre de volta no lugar errado. Fazia
isso de propósito, evidentemente.
– Ninguém ganhou, não é? Como
é que pode?
– Esqueci a droga dos floretes e do
equipamento no metrô.
Continuava com a cara enfiada no livro.
– No metrô, essa é boa! Quer
dizer que você perdeu tudo?
– Nós tomamos o trem errado e eu tinha
que ficar me levantando para olhar a porcaria do mapa na parede.
Chegou para perto de onde eu estava e se
postou bem em frente da luz. Aí eu disse: – Puxa, já li essa
mesma frase umas vinte vezes desde que você chegou.
Qualquer um teria entendido a indireta,
menos o Ackley. Menos ele.
– E você acha que vão te fazer pagar
o equipamento? – perguntou.
– Sei lá, e estou pouco ligando. Que
tal você se sentar ou coisa que o valha, hem, meu menino? Você está
bem na frente da minha luz.
Ficava possesso quando alguém o chamava
de menino. Estava sempre dizendo que eu era criança, porque eu tinha
dezesseis anos e ele dezoito. Ficava maluco quando eu o chamava de
meu menino.
Nem com isso saiu do lugar. Era
exatamente o tipo do sujeito que não sai da frente da luz se
a gente pedir. Depois de algum tempo acabava saindo, mas sempre
demorava mais um pouco se a gente tivesse pedido a ele para sair.
– O que é que você está lendo?
– Uma droga dum livro.
Deu um empurrão no livro para ver o
título e perguntou:
– Como é? Vale alguma coisa?
– Essa frase que eu estou lendo
é genial.
Às vezes, quando me dá vontade, consigo
ser um bocado sarcástico. Mas ele nem entendeu a ironia. Começou a
andar outra vez pelo quarto, mexendo em todos os meus objetos
pessoais e do Stradlater. Afinal, pus meu livro no chão. Ninguém
consegue ler mais nada com um sujeito como o Ackley por perto. É
totalmente impossível. Deixei o corpo escorregar até lá em baixo
da poltrona, e fiquei olhando o sacana do Ackley se pondo à vontade,
como se estivesse em casa. Estava começando a me sentir um pouco
cansado da viagem a Nova York e tudo, e comecei a bocejar. Aí
comecei a bancar o maluco pra fazer hora. De vez em quando eu banco o
maluco uma porção de tempo, só para não ficar chateado. O que fiz
foi puxar a pala do meu chapéu para a frente e dobrar para baixo,
tapando os olhos. desse jeito não conseguia ver porcaria nenhuma.
– Acho que estou ficando cego – eu
disse, numa voz rouca pra chuchu. – Mãezinha querida, está
ficando tudo tão escuro aqui.
– Juro que você é maluco – disse o
Ackley.
– Mãezinha querida, me dá a tua mão.
Por que é que você não me dá a tua mão?
– Oh, por favor. Vê se cresce, tá?
Comecei a tatear na minha frente, como se
fosse cego, mas sem me levantar nem nada. – Mãezinha querida, por
que é que você não me dá a tua mão? – continuei dizendo, mas
estava só bancando o maluco, naturalmente. Às vezes um negócio
desses me diverte um bocado, e além disso eu sabia que o Ackley
ficava danado com a brincadeira. Ele sempre despertava em mim uma
ponta de sadismo. De vez em quando eu era um bocado sádico com ele.
Acabei parando. Puxei a pala de volta para trás e sosseguei.
– De quem é isso? – Ackley
perguntou. Estava me mostrando a joelheira do meu companheiro de
quarto. O sacaneta do Ackley mexia em qualquer troço. Era até capaz
de apanhar a culhoneira da gente, ou qualquer outra coisa.
Disse que era do Stradlater e ele aí jogou a joelheira em cima da
cama dele. Tinha apanhado em cima da escrivaninha, por isso é
que jogava em cima da cama.
Aproximou-se e sentou no braço da
poltrona do Stradlater. Nunca sentava numa poltrona, tinha que ser
sempre no braço da poltrona.
– Onde é que você arranjou esse
chapéu?
– Em Nova York.
– Quanto foi?
– Um dólar.
– Então você foi roubado.
Começou a limpar a droga das unhas com a
ponta de um fósforo. Estava sempre limpando as unhas. De certo modo,
era até engraçado. Os dentes dele estavam sempre esverdeados de
sujeira, as orelhas eram uma imundície, mas ele não passava um dia
sem limpar as unhas. Acho que pensava que isso o tornava um sujeito
muito limpo. Deu outra olhadela para meu chapéu enquanto limpava as
unhas.
– Lá onde eu moro a gente usa esse
tipo de chapéu para caçar veado, por Deus do céu. Esse chapéu só
serve para caçar veado.
– Nada disso.
Tirei o chapéu e olhei para ele, com um
dos olhos meio fechado, como se estivesse fazendo mira.
– Esse chapéu aqui é para caçar
gente. Eu uso ele para caçar gente.
J. D. Salinger, in O Apanhador no Campo de Centeio
Intercâmbio
Vovô tem um riso de cobre — surdo,
velho, azinhavrado — um riso que sai custoso, aos vinténs.
Mas Lili, sempre generosa, lhe dá o
troco em pratinhas novas.
Mário Quintana, in Sapato Florido
Éluard, O Magnífico
Grafite de Paul Eluard (1936), de Pablo Picasso
Meu camarada Paul Éluard morreu faz
pouco tempo. Era tão íntegro, tão denso, que me custou dor e
trabalho acostumar com seu desaparecimento. Era um normando azul e
rosa, de aspecto grave e delicado. A guerra de 14, na qual foi vítima
de gases duas vezes, deixou-o para sempre de mãos trêmulas. Mas
Éluard me deu em todos os momentos a ideia da cor celeste, de uma
água profunda, de uma doçura que conhecia a força. Sua poesia tão
pura, transparente como as gotas de uma chuva de primavera contra os
cristais, fazia com que Paul Éluard parecesse um homem apolítico,
um poeta contra a política. Não era assim. Sentia-se fortemente
ligado ao povo da França, à sua causa e à sua luta.
Paul Éluard era firme, uma espécie de
torre francesa, com essa lucidez apaixonada que não é o mesmo que a
estupidez apaixonada tao comum.
Pela primeira vez, no México, para onde
viajamos juntos, vi-o à beira de um abismo escuro, ele que sempre –
com uma sábia perseverança – rejeitou a tristeza.
Estava abatido. Eu tinha convencido e
arrastado este francês central para essas terras distantes e ali, no
mesmo dia em que enterramos José Clemente Orozco, caí doente com
uma perigosa tromboflebite que me manteve quatro meses preso à cama.
Paul Éluard sentiu-se solitário, sombriamente solitário, com o
desamparo do explorador cego. Não conhecia ninguém, as portas não
se abriam para ele. A viuvez o acometeu e se sentia ali sozinho e sem
amor. Dizia-me: “Precisamos ver a vida com companhia, participar em
todos os fragmentos da vida. É irreal e criminosa a minha solidão.”
Chamei meus amigos e o obrigamos a sair.
De má vontade o levaram a percorrer os caminhos do México e em um
desses recantos se encontrou com o amor, com seu último amor:
Dominique.
É muito difícil para mim escrever sobre
Paul Éluard. Continuarei vendo-o vivo junto de mim, acesa em seus
olhos a elétrica profundidade azul que olhava tão amplamente e de
tão longe.
Saía do solo francês em que lauréis e
raízes entretecem suas flagrantes heranças. Sua grandeza era feita
de água e pedra e para ela subiam antigas trepadeiras, portadoras de
flor e fulgor, de ninhos e cantos transparentes.
Transparência – é esta a palavra. Sua
poesia era cristal de pedra, água imobilizada em sua corrente
cantante.
Poeta do amor mais alto, fogueira pura do
meio-dia, nos dias desastrosos da França deu o coração para sua
pátria – e dele saiu o fogo decisivo para as batalhas.
Assim chegou às fileiras do partido
comunista. Para Éluard, ser um comunista era confirmar com sua
poesia e sua vida os valores da humanidade e do humanismo.
Não se pense que Éluard foi menos
político que poeta. Muitas vezes me assombrava sua clara visão e
sua formidável razão dialética. Juntos examinamos muitas coisas,
homens e problemas de nosso tempo, e sua lucidez me foi útil para
sempre.
Não se perdeu no irracionalismo
surrealista porque não foi um imitador mas sim um criador e, como
tal, descarregou sobre o cadáver do surrealismo disparos de
claridade e inteligência.
Foi meu amigo de todo dia e perco sua
ternura que era parte de meu pão. Ninguém me poderá dar agora o
que ele levou consigo porque sua fraternidade ativa era um dos mais
preciosos luxos de minha vida.
Torre da França, irmão! Inclino-me
sobre teus olhos cerrados que continuarão me dando a luz e a
grandeza, a simplicidade e a retidão, a bondade e a simplicidade que
implantaste sobre a terra.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi
Torto Arado | 19
Aquele foi o último enterro realizado na
Viração por muito tempo. Não que não houvesse morrido mais gente,
mas porque a fazenda foi vendida meses depois da morte de meu pai. Os
herdeiros da família Peixoto envelheceram, e os seus filhos e netos
não queriam continuar com a propriedade Água Negra. Os mais velhos
nos conheciam, mas os mais novos nem sabiam quem éramos, embora não
tivessem dúvida de que se tratava de um problema aos seus negócios.
Foi com as casas de barro e nossos corpos como mobília que venderam
a terra a um casal com dois filhos. Acostumados que estávamos à
longa posse da família Peixoto, fomos surpreendidos pela mudança e
ficamos sem saber o que aconteceria a partir de então. Os mais
ingênuos achavam que tudo permaneceria da mesma maneira. Os mais
desconfiados temiam o que estava por vir, quiçá o despejo. Sabíamos
que a fazenda existia, pelo menos, desde a chegada de Damião, o
pioneiro dos trabalhadores, durante a seca de 1932. A família
Peixoto havia herdado terras das sesmarias. Essas coisas nem Deus
sabe explicar como aconteceram, mas Severo diz de uma forma que o
povo fica atento, indo de casa em casa, da escola aos caminhos para a
roça. Depois o povo fica se perguntando, conversando entre si, e vão
recuperando as histórias das famílias antes da chegada. Eu tentava
me concentrar depois, para aprender sobre o que Severo contava. Que
chegou um branco colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou
outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre
eles. Os índios foram sendo afastados, mortos, ou obrigados a
trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de
muito longe, para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não
sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as
fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam
velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho de roça,
porque ganhavam muito mais dinheiro como doutores na cidade, e nos
procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dissemos
que éramos índios. Porque sabíamos que, mesmo que não fosse
respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio. E também
porque eles se misturaram conosco, indo e voltando de seu canto,
perdidos de suas aldeias.
Muito antes de nós, é o que dizem,
chegou para cá muita gente, vindo com a notícia de que haviam sido
encontradas minas de diamantes. Dizem até que quem encontrou o
diamante foi um de nossos antepassados. Contam que roubaram dele as
pedras sob sua posse, que foram garimpadas no rio Serrano. Que para
tirar as pedras de suas mãos chegaram mesmo a acusá-lo de matar um
viajante das Minas Gerais. Para não ser morto, teve que contar onde
havia encontrado as pedras. Outros contam que ele apenas carregava os
diamantes para serem vendidos, e que as pedras tinham sido
encontradas pelos escravos de um tal senhor do Prado. Outros dizem
que o primeiro diamante foi encontrado por um homem das Gerais. O que
sabemos é que essa notícia trouxe mais escravos, trabalhadores
livres, consulado de país estrangeiro para o interior e companhia de
mineradores, tudo para retirar o diamante das serras. Sabe-se também
que muito sangue foi derramado, muitos homens sucumbiram ao
chamamento, à loucura e ao feitiço da pedra. Muitos endoideceram na
sanha para encontrar o brilho. Muitos pereceram encantados e outros
tantos foram mortos. Esta terra viveu em guerra de coronéis por
muitos e muitos anos. Para trabalhar no garimpo vieram muitos homens
escravos das vizinhanças da capital, dos engenhos que já não
tinham mais a importância de antes, e das minas de ouro das Gerais.
Dizem que até mesmo nasceu por aqui, filho de um dos trabalhadores
das minas de diamante, o neto de um rei de Oyó da África, o neto do
último rei a manter o império unido, antes de cair em desgraça.
Durante muitos anos, nascemos e vivemos à
sombra da corrida do garimpo. Seja nas brincadeiras de criança,
quando éramos ensinados a identificar qualquer gema que pudesse se
assemelhar à pedra da cobiça, seja nas histórias dos coronéis que
dominavam a região e da guerra que embrenharam pelas serras onde
estava o diamante. Contavam de como o trânsito de pessoas às vezes
era interrompido de um lugar a outro para que não fossem mortos nas
emboscadas. De como as fazendas em que morávamos e nossas origens
tinham a marca dessa trama de vida e morte que se instalou por
décadas na Chapada Velha. Se fôssemos moradores da fazenda “tal” estávamos livres para transitar de um lugar a outro. Se nosso senhor
fosse desafeto de “tal” coronel, os que ali viviam também corriam
risco de se tornar vítimas da violência. Era o que nos contavam. O
medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre.
Era o medo de quem foi arrancado do seu
chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos
castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela
gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de
que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu
cheiro, do seu cabelo, de sua cor. Que não gostassem de seus filhos,
das cantigas, da nossa irmandade. Aonde quer que fôssemos,
encontrávamos um parente, nunca estávamos sós. Quando não éramos
parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se
adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da
vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o
medo. Eu fui apanhando cada palavra da fala de Severo, das muitas
vezes que o vi contar, para guardar em meu pensamento.
Foi assim que ele nos disse, e o povo
ajudava contando o que conhecia das histórias de vida também: que,
em dado momento, o diamante já não atraía tanta gente e só
restaram as terras de Água Negra, conhecidas pela grande quantidade
de água e pela várzea, que tudo dá. Era uma porção de mundo
entre dois rios que corriam à sua volta por quase todos os lados,
formando uma ilha no coração da Chapada Velha. Para cá, em quase
todos os anos de seca de que se tem notícia, peregrinaram muitos
trabalhadores buscando morada. Eram trazidos pelo gerente da fazenda,
ou pelos que ali já estavam, que pediam por irmãos e compadres.
Outros chegaram sobre as forças das próprias pernas para se juntar
aos demais, com a autorização dos donos da terra.
Durante muitos anos, a fazenda foi uma
bênção de água e fartura no sertão. Agora o novo dono, que
construiu uma casa bonita e vistosa para morar na beira dos marimbus,
mandou um novo gerente, depois de Sutério se aposentar, dizer que
não poderíamos mais sepultar ninguém na Viração. Que era crime
contra as matas. Contra a natureza. Que o cemitério estava próximo
ao leito do rio. Que na cidade tinha cemitério e que a prefeitura
garantia o transporte do morto para a cidade.
Os mais jovens não viram muita diferença
em enterrar os mortos na cidade ou na Viração. Mas para os mais
velhos aquela interdição era uma ofensa. A Viração existia há
mais de duzentos anos, era o que contavam. As mulheres diziam em suas
conversas que só saíam de suas casas, só se recolheriam de suas
vidas, para a Viração. Que não haveria conversa nem interdito, que
não abriam mão de ser sepultadas naquele chão. Não abdicariam do
destino de ser enterradas ao lado de seus parentes e compadres.
Queriam estar à volta de compadre Zeca, assentado bem no meio
daquele quadrado de terra seca, com metade do terreno cercado de um
muro de um metro, enquanto a outra metade estava cercada da caatinga.
“Daqui só saio para a Viração”, foi o que mais ouvimos
naqueles dias que anunciaram o interdito.
Por sorte, ninguém morreu naquele
primeiro ano. Mas também ninguém se tranquilizou com o que estava
para vir. Aquela mensagem dizia muito mais sobre nossas vidas do que
sobre a morte em si. Se não pudéssemos deitar nossos mortos na
Viração era porque, em breve, também
não poderíamos estar sobre a mesma terra.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
segunda-feira, 27 de setembro de 2021
Flor
nada que o sol
não explique
tudo que a lua
mais chique
não tem chuva
que desbote essa flor.
Paulo Leminski
Meditações | 1
Amanheça dizendo: “Hoje encontrarei um
intrometido, um ingrato, um arrogante, um desonesto, um invejoso e um
insociável.”
Eles se comportam dessa maneira por não
saberem distinguir o bem do mal. Eu, em contrapartida, aprendi a
enxergar a beleza do que é bom e certo e a feiura do que é mau e
errado. Observei o parentesco entre mim e eles. Não compartilhamos
do mesmo sangue ou semente, mas somos uniformemente dotados de
inteligência e porções divinas.
Não posso ser ferido por um parente,
sequer me zangar ou odiá-lo, pois ninguém é capaz de me embaraçar
com o que é feio. Nascemos para cooperar, tal qual os dois pés, as
duas mãos, as pálpebras superiores e inferiores e o maxilar e a
mandíbula. Não cooperar é contrário à natureza, e me irritar ou
me afastar deles não é um ato de cooperação.
Marco Aurélio, in Meditações
O choque estilístico
O leitor brasileiro que porventura entrar
em contato com a arte de Guimarães Rosa através de Primeiras
estórias inevitavelmente haverá de experimentar um choque,
devido à agressiva novidade do estilo, à qual os leitores antigos
do autor se vêm habituando progressivamente. (Falamos no leitor
brasileiro, porque o estrangeiro, que a conhecer através de
tradução, terá forçosamente sob os olhos um texto atenuado e
filtrado, adaptado pelo tradutor aos padrões existentes da língua
acolhedora.)
Lembre-se que o autor fez sua aparição
na literatura como escritor regionalista. Não adotara, porém,
nenhuma das três técnicas à disposição do regionalismo:
servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro,
restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente
por uma linguagem literária, convencional. A quarta solução,
adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos
da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua
elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. Disse língua
elaborada e não culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos
mais profundos do idioma, não se satisfaz em explorar-lhe todo o
tesouro registrado e codificado, mas submete-o a uma experimentação
incessante, para testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. Daí
um estilo personalíssimo, que das obras de caráter regionalístico
se alastrou por toda a obra de ficção do nosso autor, e até por
suas raras produções ensaísticas.
Fez, em suma, Guimarães Rosa, em relação
à linguagem, o que todos os ficcionistas fazem da realidade, sua
matéria-prima: desagregam-na e reconstituem-na a seu bel-prazer,
tratando as suas parcelas como elementos de mosaico; com pedaços e
traços de pessoas vivas constroem as suas personagens; fundindo
cenas e acontecimentos registrados pela própria memória, deles
tiram episódios e enredos. Com clarividência notável, Antonio
Candido define o mundo de Guimarães Rosa como um universo autônomo
“composto de realidades expressionais e humanas que se articulam
com harmonia, superando por milagre o poderoso lastro de realidade
tenazmente observada, que é a sua plataforma”.
Entre os motivos dessa experimentação,
do contínuo alargar do registro da língua, figura, sem dúvida, o
propósito de amoldá-la para exprimir matizes e modalidades até
então não observados da realidade que aguardam denominação para
penetrarem na consciência comum. “O poeta se distingue como um
aparelho altamente discriminante da infinita multiplicidade de
aspectos do ser” (Oswaldino Marques). Mas o motivo principal, mais
de uma vez declarado pelo próprio ficcionista, consiste em dar
“toque e timbre novos às expressões amortecidas”. Como
pertinentemente observa Cavalcanti Proença, o nosso escritor outra
coisa não faz “senão apelar para a consciência etimológica do
leitor, neologizando vocábulos, reavivando-lhes o significado
(obliterado ou por demais esquecido pelo uso corrente), dando-lhes
uma precisão que esse mesmo uso acabou por destruir. Uma espécie
daquele silêncio que desperta os moleiros quando cessa o rolar do
moinho.”
Nas considerações seguintes, tenta-se
não a catalogação dos recursos estilísticos manejados no presente
volume (e que daria outro volume), e sim, apenas, a indicação
exemplificada das tendências a que correspondem. Não se ignora o
risco deste trabalho: os espécimes montados em alfinete com fins de
coleção, rígidos e murchos, podem parecer meras esquisitices e até
monstruosidades, por mais que vicejem e resplandeçam no contexto do
seu ambiente natural, vitalizando-o e animando-o.
Paulo Rónai, in Os vastos campos (Introdução a Primeiras estórias)
Contos dos bosques de Curitiba
Nelsinho encostou a porta, encurralada a
moça no canto:
– É hoje.
Roçou a sombra do lábio, a espinha na
asa do nariz. Ela voltou-lhe a face: beijou-a ferozmente na boca.
Fechou a porta, empurrando-a com o pé.
Certa que iriam ficar nos toques e blandícias, pendurou-se ao seu
pescoço. Pousou a mão no peitinho, ela se encolheu, vergonha do
seio pequeno? Era dona experiente, sem provocá-la não conseguia
nada:
– Duvido seja carne – é borracha!
– Não faça isso. Vem gente. –
Suspirosa, pesando cada vez mais no seu ombro. – Se vem gente?
O herói estendeu a mão, deu volta à
chave:
– Vem não.
Arquejante, estalou os dois colchetes,
ergueu lhe a blusa. Ela que baixou o sutiã. Surgiram dois bocados
cor-de-rosa:
– Nunca vi coisinha mais linda!
Ai, mãezinha do céu, aquilo sim era
seio – dois de uma vez, sem mentira. Se apertasse o biquinho
espirrava leite?
Brasão de família, ela confidenciou que
o da mãe era mais bonito.
– Depressa. Vem gente.
Risinho abafado, queixou-se de cócega.
– Que maravilha – a mão cheia, ele
sopesava o fruto. – Ó perfeição da natureza!
Ares de distraída, olho ausente no teto:
– Sou nervosa. Hoje estou fria.
– Como é que você gosta?
– Sem inspiração eu não posso.
– Ah, é...
Beijava-a raivoso, lábio inchado de
mordida. Ela titilou a língua no céu da boca. O herói, sem sair do
lugar, descreveu duplo salto mortal.
Deslizou a mão no joelho, debaixo da
saia cinza. Magra, usava anágua. Assustadiça, arregalou o olho:
– Não. Não. Aqui não.
– Seja boba.
Conversinha em sussurro, na ânsia louca
do mais cobiçado prêmio da terra.
– Querido, pode vir alguém.
Na última resistência, vencida pela
surpresa. Levantou-lhe a anágua e viu - o que ele viu? Babados,
brincos e rendas da ilha da Madeira!
– Ai, você me machuca.
Da vacina contra varíola, queixou-se de
íngua no braço.
– Já faço benzedura de íngua.
A bela soltou o botão da saia e correu o
fecho. Agora de blusa e anágua. Sem blusa. Sem anágua, desfeita aos
pés. Magrinha e branca, dava pena - deitou-a no sofá de couro
vermelho.
– Espere, meu bem.
Ela derrubou o sapato, raspando na
beirada o calcanhar. De joelho no tapete, Nelsinho babujou-lhe o
seio.
– Me olhe. Abra o olho.
Toda trêmula, escondeu o rosto no seu
ombro:
– Sinto vergonha. Gemido abafado de
terror:
– Tenha pena de mim!
– Juro que...
Quem me dera um espelho, uma almofada, um
anel mágico.
–... não faço mal.
Sem inspiração, a bela enterrou-lhe a
unha no pescoço:
– Me beije. Ai, meu amor – e
rilhando com fúria os dentes. - Ai, me beije.
Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba
domingo, 26 de setembro de 2021
A viagem a Lavras
Na estação da Rede Mineira Viação
estávamos eu e minha mãe esperando o trem que nos levaria a Lavras.
Batia o sino da estação. Parecia sino de igreja. Estação é
igreja? Pode ser. Pode ser céu para quem volta, pode ser céu para
quem vai.
O sino batera porque o telégrafo, com
seus bipes em Morse, informara o chefe da estação que o trem
acabara de partir da estação mais próxima. Dentro de uns vinte
minutos estaria chegando. Aí os olhos de todos se voltavam para a
esquerda. O trem viria da esquerda. Antes de aparecer, seria o apito
rouco da maria-fumaça resfolegando nas curvas,
“vim-da-barra-tô-cansada, vim-da-barra-tô-cansada,
vim-da-barra-tô-cansada”, gritando às pessoas e bichos que
fugissem dos trilhos. As marias-fumaça falam sempre, cada uma na sua
língua. Kurosawa disse que no Japão as marias-fumaça diziam:
dodêskaden, dodêskaden, dodêskaden. Finalmente ela aparecia ao
longe, negra, bufando fumaça pela chaminé. Aproximando-se da
plataforma era o barulho dos ferros, o guincho das rodas escorregando
sobre os trilhos por causa da freada, aço contra aço, o chiado dos
vapores que saíam assobiando da caldeira que os fogos da fornalha
faziam ferver. Desciam os que chegavam. Embarcavam os que partiam.
Púnhamos as malas no bagageiro suspenso do vagão de primeira
classe, tomávamos o nosso lugar, o chefe da estação tocava um
apito e gesticulava, dizendo ao maquinista que podia partir. A
máquina apitava, esforçava-se aos sacolejões para vencer a inércia
e partia. Depois eram as paradas nas estações intermediárias, dava
tempo de descer e comer pastel ou empadinha com café ralo melado. O
trem parava para a máquina beber água, a noite descendo triste,
agora era a luz do holofote iluminando para a frente e os milhões de
fagulhas espalhando galáxias efêmeras pelo céu...
Da porta da estação, Lavras aparecia
como uma cidade encantada, adormecida, ninguém na rua — as poucas
pessoas que apareciam eram sombras indefinidas, vultos que se moviam
no escuro. O casario mal se via, as sombras das casas aparecendo
borradas à luz mortiça das lâmpadas que se esforçavam por
iluminar com o seu brilho de velas que ameaçavam se apagar.
Procurávamos um carro de aluguel. Minha
mãe simplesmente dizia ao chauffeur: “Para o sobrado...” .
Nenhum deles jamais perguntou: “Que sobrado? Qual é o endereço?”.
Todo mundo sabia o que era o sobrado. Havia outros. Mas apenas aquele
era “o sobrado”. Minha mãe estava feliz. Estava retornando ao
ninho, à casa da sua meninice e juventude, a “sua” casa…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Calça literária
É assíduo leitor de blusas, camisas,
saias, calças estampadas. Não lhe escapa um exemplar novo. Parece
desligado, e observa tudo. Segundo ele, as peças de indumentária,
masculina e feminina, ostentando símbolos e nomes de universidades
americanas, manchetes, páginas de jornal, retratos de Pelé e Jimi
Hendrix, apelos ao amor que não à guerra etc., há muito deixaram
de ser originais. Constituem invólucros rotineiros de pessoas de
qualquer idade. A gente estranha é uma camisa inteiramente nua de
dizeres ou figuras, a roupa que não diz nada, só roupa. Hoje, lê-se
mais nos tecidos do que nos livros, e não é ler apenas, é ver
cinema e televisão, pois os corpos, ao se moverem, dinamizam as
figuras estampadas. O que, de um modo ou de outro, contribui para a
cultura de massas. Informa:
— Estou pensando em aproveitar esse
material para fins especificamente didáticos. Através dele, ensinar
geografia, história, matemática, medicina de urgência, imposto de
renda, ortografia desmistificada, essas coisas. O indivíduo cobre-se
e vai distribuindo ciência. Ou aprendendo. Vinte minutos no ônibus
— que aula! Classes ao ar livre, na feira, na fila. Escola
dinâmica.
— Você sozinho é um Mobral 1971.
— Ontem eu li uma calça comprida, de
mulher que à primeira vista não tinha nada de especial. Estava
escrita como tantas outras. Mas o texto (não confundir com textura)
me chamou a atenção. Geralmente, calças e blusas não são
literárias. Trazem notícias, anúncios, slogans, mas versos, ainda
não tinha visto. Pois essa tinha poemas em português, de Camões ao
Vinicius.
— Tomou nota?
— Claro. Aliás, a usuária foi muito
gentil. Percebendo que eu mirava a parte inferior do seu
revestimento, gratificou-me com um sorriso que eu traduzi assim:
“Pode mirar mais”. E eu mirei. Aí, puxei da caneta, e ela sorriu
outra vez, como quem diz: “Pode copiar também”. Copiei.
— Tudo?
— Tudo não. A dona da calça estava
sentada na sala de espera do cinema. Só o que era visível. Depois
se levantou, foi ao bebedouro, deu tempo para eu colher mais alguma
coisa, no ir e vir. Não tive coragem de pedir-lhe que desse umas
voltas. Você compreende: sou tímido.
— Estou vendo.
— Foi a primeira calça literária,
totalmente poética, do meu conhecimento. Feita em São Paulo?
Talvez. Caracteres pretos sobre fundo branco. Versos em todas as
direções. De Bilac, de Cecília, de Bandeira, de Castro Alves, de
Fernando Pessoa. Uma antologia, bicho. Sem ordem, naturalmente.
Escuta aí: Onde vais à tardezinha, morena flor do sertão? O que eu
adoro em ti é a vida. Aqui outrora retumbaram hinos. Oh abelha
imaginativa! o que o desejo inventa… Vou-me embora pra Pasárgada.
Amor é fogo que arde sem se ver. Ninguém sonha duas vezes o mesmo
sonho. No monte de amor andei, por ter de monteiro fama, sem tomar
gamo nem gama. Clorindas e Belindas brincam no tempo das berlindas.
Eu tenho amado tanto e não conheço o amor. Estrela Vésper do
pastor errante. ‘Tamos em pleno mar: dois infinitos ali se alteiam…
— Beleza.
— Não é? Tem mais. Transforma-se o
amador na coisa amada. Antônia, você parece uma lagarta listrada.
D. Janaína, rainha do mar, dai-me licença para eu também brincar
no vosso reinado. Por que não nasci eu um simples vaga-lume? Não
queiras indagar do meu segredo. Mas que seja infinito enquanto dure.
Cantando espalharei por toda parte. Tudo não escondido perde a
graça. O cinamomo floresce em frente do teu postigo. Crisântemo
divino aberto em meio da solidão… Tinha uma pedra no meio do
caminho.
— Isso já é prosa, amizade.
— É mesmo. Em todo caso, trata-se da
primeira calça poética luso-brasileira. Os poetas que tratem de
defender seus direitos autorais. A menos que considerem uma honra
vestir de versos as mulheres.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica