terça-feira, 31 de agosto de 2021

O filho que deu o nome ao pai

           [Meu sobrenome, Saramago, vem] do apelido da família do meu pai. Quando ele foi me registrar, o funcionário perguntou: “Como se chama o filho?”. E meu pai respondeu: “Como o pai”, que, segundo a lei, era José de Sousa. Mas o funcionário, por sua conta, acrescentou o apelido que conhecia. Não soubemos disso até que entrei para a escola e meu pai pediu no registro civil uma certidão de nascimento. Ficou de alma partida, gostava tanto de Sousa, mais fino. Teve então de entrar com um processo burocrático complicado para que reconhecessem que ele também se chamava Saramago e que aquele menino era seu filho. Deve ser um caso quase único, em que o filho é que deu o nome ao pai.

José Saramago, in As palavras de Saramago

Esta gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco.

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis.

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre.

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome.

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada.

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Um rosto inesquecível

 


Talvez você já tenha visto por aí a célebre reconstrução artística da face de Luzia, um rosto que lembra levemente o de outra celebridade bem mais recente, o do lutador de MMA Anderson Silva. Sim, ela se parecia com o que hoje chamaríamos de negro, típico da gente oriunda da África ao sul do Saara.
Luzia ganhou essa aparência em 1999, graças ao trabalho de Richard Neave, um britânico que é antropólogo forense (um sujeito que consegue reconstruir as características físicas que um defunto tinha em vida para ajudar a polícia a solucionar crimes ou acidentes). Neave tomou como ponto de partida o formato do crânio de Luzia em sua tarefa de recriar a aparência da moça para um documentário da rede BBC sobre os primeiros habitantes das Américas, mas está enganado quem pensar que a ideia de retratá-la como “negra” (usando a palavra de um jeito propositalmente vago e popular) surgiu com ele. Fazia mais de um século que certos especialistas sentiam que havia algo de muito peculiar no aspecto dos primeiros habitantes de Lagoa Santa.
Tudo começou com Peter Lund, um naturalista dinamarquês que, no começo do reinado do então imperador-menino Dom Pedro II, resolveu se mudar para um remoto arraial de Minas Gerais, tornando-se caçador de fósseis em tempo integral. Nas muitas cavernas calcárias da região, Lund desenterrou uma lista interminável de bichos da Era do Gelo, batizando-os com sonoros nomes em latim. Junto com os bichos, vieram fósseis de seres humanos. Um dos debates científicos mais quentes da época envolvia justamente a dúvida sobre a convivência do homem com essas espécies extintas — lembre-se de que estamos falando da era pré-Darwin, antes que a teoria da evolução tivesse sido formulada e aceita, quando até cientistas de renome aderiam, em linhas gerais, ao relato bíblico sobre a criação dos seres vivos e propunham que os monstros da Era Glacial teriam integrado uma “criação anterior”, destruída por catástrofes similares ao Dilúvio relatado na Bíblia. Além de detectar uma provável convivência entre pessoas como nós e a megafauna do passado, Lund notara, já em 1842, que a gente de Lagoa Santa se caracterizava por ter crânios estreitos e faces projetadas para a frente (um traço que os bioantropólogos designam com o termo “prognatismo”). São essas, em linhas gerais, as características de povos como os africanos que vivem ao sul do Saara.
No total, Lund exumou 17 crânios em Lagoa Santa, mas suas ideias sobre a aparência peculiar desses primeiros habitantes do Brasil foram sendo progressivamente esquecidas. No século seguinte, diversas outras expedições científicas escarafuncharam o solo do interior mineiro, com graus variados de capricho científico e sucesso, até a criação da Missão Arqueológica Franco-Brasileira, uma parceria entre governo brasileiro e governo da França. Capitaneada por Annette Laming-Emperaire, a equipe de arqueólogos trabalhava no abrigo rochoso batizado de Lapa Vermelha IV quando, a 11 metros de profundidade, deparou-se com uma coleção de cacos de um esqueleto humano, o qual, em vida, pertencera a uma mulher jovem. O crânio, em especial, rolara mais para o fundo da gruta. Usando técnicas indiretas de datação — por meio da análise de fragmentos de carvão associados aos restos mortais, por exemplo —, os pesquisadores estimaram que a moça morrera há 12 mil anos. Não há sinais de que ela tenha sido enterrada com as devidas honras fúnebres em Lapa Vermelha IV. É possível que seu corpo tenha sido simplesmente jogado lá dentro por um grupo de pessoas que se deslocava pela região naquele momento. Nesse caso, ela teria morrido, provavelmente de causas naturais, durante uma viagem de sua tribo, um fato possivelmente comum na vida de caçadores-coletores, gente cuja vida tem como marca a grande mobilidade, ao menos pelo que sabemos a respeito de grupos similares que ainda existem hoje.

Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral

Hoje de madrugada

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali no canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o
bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, havia até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados, dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras, a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.

Raduan Nassar, in Obra Completa

Menino de rua

Eram dez e meia da noite e eu ia saindo de casa quando o menino me abordou. Por um instante pensei que pedia dinheiro. Cheguei a lhe estender uma nota, ele pareceu surpreendido mas aceitou.
Usava uma camisa velha e esburacada do Botafogo. O calção deixava à mostra as perninhas finas que mal se sustinham nos pés descalços. Era moreno, com aquela tonalidade encardida que a pobreza tem. Segurava uma pequena caixa de papelão já meio desmantelada.
Que é mesmo que você pediu? Não foi dinheiro?
Uma coberta.
Uma coberta? Para quê?
Pra eu dormir.
Realmente estava frio, mas onde ele queria que eu arranjasse uma coberta? O jeito era voltar em casa, descobrir uma coberta velha, trazer para ele.
Foi o que fiz: apanhei uma colcha já usada mas ainda de serventia e lhe trouxe. Ele aceitou com naturalidade, sem me olhar nos olhos. Não parecia ter mais de nove anos, mas me disse que já tinha 13.
Onde é que você dorme?
Num lugar ali – e fez um gesto vago para os lados da praça General Osório.
Dorme sempre na rua? Não tem casa?
Tenho.
Onde?
Em Austin.
Onde fica isso? É longe daqui?
Não é não. Fica no estado do Rio.
Por que você não vai pra casa?
Ele mordeu o lábio inferior, calado um instante, mas acabou respondendo:
Mamãe me expulsou.
Por quê? Alguma você andou fazendo.
Não fiz nada não – reagiu ele, de súbito veemente. – Minha irmã é nervosa, quebrou o vidro da televisão e disse que fui eu. Então minha mãe me expulsou.
Quando foi isso?
Tem quase três anos.
Três anos? E você nunca mais voltou?
Voltei não.
Como é que você viveu esse tempo todo? Que é que você come?
Peço resto de comida.
Para que serve esse papelão?
Pra cobrir o chão de dormir.
Você tem algum amigo?
Não gosto de amigo não. Amigo faz trapalhada e a gente é que acaba preso.
O nome dele era Carlos Henrique.
Volta pra casa, Carlos Henrique.
E fiz uma pequena pregação: mãe é sempre mãe, ela devia estar sentindo falta dele. Melhor em casa que ficar por aí na rua, sem ter onde dormir. A mãe trabalhava em Nova Iguaçu, ele me havia dito, devia viver da mão para a boca, mas ainda era para ele a melhor solução. Não tinha nem nunca teve pai.
Você sabe ir até lá?
Sei. Vou de ônibus até a Central e lá pego o trem até Austin.
Então vai mesmo, hein?
Ele prometeu ir assim que o dia clareasse. Para isso dei-lhe mais algum dinheiro e ele se afastou, com sua colcha e seus pedaços de papelão, esgueirando-se pelos cantos como um ratinho.
Não acredito que tenha ido. Certamente continuará rolando por aí mesmo, mais dia menos dia transformado em pivete, se exercitando na prática de pequenos furtos, em que, pelo jeito, ainda não se iniciou.
E se por acaso voltarmos a nos encontrar daqui a uns poucos anos, não me resta nem a esperança de que me reconheça e não me mate – pois seguramente e com justas razões já terá se tornado assaltante.
Quando este texto foi publicado, recebi carta de uma “fã e leitora assídua” criticando, em termos delicados mas discretamente agressivos, meu comportamento em relação ao menino: “uma atitude denunciadora do óbvio, pois todos nós estamos cansados de saber que menores abandonados serão futuros pivetes...”. E me interpelava: “Por que só arguições, dinheiro, conselhos que não serão seguidos? Por que não uma atitude mais concreta? Afinal, você pertence a nossa intelligentsia, tem acesso a todas as camadas sociais e políticas. Por que não usar do seu prestígio para conseguir um colégio, um orfanato, enfim, um lugar para acolher esse ser carente, não só de coberta, mas sobretudo de Amor?”.
Depois de informar que ela própria já havia ajudado alguns garotos, encaminhando-os a orfanatos, creches, empregos, através de seus conhecimentos pessoais, encerrava a carta afirmando que “jamais deixaria uma criança esgueirar-se como um ratinho, tendo nas mãos apenas uma colcha e não uma Esperança”.
Em resposta, enviei-lhe uma carta, concordando integralmente com suas palavras e reconhecendo nada me haver ocorrido no momento senão escrever sobre o menino, como era de meu ofício, e fazer do episódio uma denúncia da ordem social iníqua em que vivemos. Eventualmente poderia servir também para tocar consciências sensíveis como a dela, provocando-lhe o generoso impulso de me escrever para despertar a minha que, sem dúvida, devia andar mesmo meio adormecida. Por isso agradecia sua carta, franca e oportuna, certamente um estímulo para procurar dali por diante seguir o seu exemplo.
Posso não ter seguido – mas voltando aqui ao assunto, alertando outras consciências, pelo menos continuo cumprindo humildemente a minha tarefa como escritor.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

Composição e divisão



Uma pessoa comete a falácia da composição ao inferir que, como as partes de um todo têm um determinado atributo, então o todo também deve ter aquele mesmo atributo. Mas, parafraseando Peter Millican, se cada ovelha num rebanho tem uma mãe, não se deduz que o rebanho tem uma mãe. Veja outro exemplo: “Cada módulo desse sistema de software foi submetido a testes de unidade e passou em todos. Portanto, quando os módulos forem integrados, o sistema inteiro não irá violar qualquer das invariantes verificadas pelos testes das unidades.” Na realidade, juntar as partes individuais para formar um sistema introduz um outro nível de complexidade, devido à interação entre as partes, o que poderá apresentar novas possibilidades de erros.
Na falácia da divisão, acontece o inverso. É cometida quando se infere que as partes devem ter um atributo que pertence ao todo. Por exemplo: “Nosso time é imbatível. Cada um dos nossos jogadores conseguirá se destacar mais que qualquer jogador do time adversário.” Embora possa ser verdade que o time como um todo seja invencível, isso poderia ser resultado de como as habilidades de cada jogador funcionam juntas, em equipe – portanto, não se pode usar o sucesso do time como evidência de que o talento individual de cada jogador seja imbatível por si só.

Ali Almossawi, in O livro ilustrado dos maus argumentos

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

As fadigas do vizinho

O vizinho Lourenço
se conhecia por suas preguiças.

Nenhuma ocupação,
alguma vez, o ocupou.

Em moço,
ensonava os olhos,
negando a visão das belezas.

Ora, o amor, resmungava,
o que mais dá são cansaços.

E quando amou,
amou leve
para poupança de baba e suspiro.

No altar,
a noiva, em vão, esperou.

Subir a escadaria da igreja
era trabalho para muito joelho.

A si mesmo, Lourenço se explicou:
ora, o amor é o que, na gaiola, nos dá asas.

Noites e noites,
perante insistência dos parentes,
olhando o fogo, respondia:
não posso, estou contando labaredas.

E de tanto
dos afazeres se desfazer,
certa vez anunciou:
viver,
não sei se gosto de viver.
A vida tira-me o sono.

Nessa noite,
se dispensou de si mesmo.

No final,
porém, não chegou a finar.

Morrer custava fadigas.

Mia Couto

Favorzinho

Começo explicando que era páscoa, época na qual somos tomados por um espírito fraterno. O fato era que o marido da prima de um amigo (reparem bem na proximidade) veio de Viseu a Lisboa para fazer uma entrega que não deu certo. E eu me solidarizei, dizendo que faria a entrega durante a semana.
Pois bem. Eram fertilizantes de solo para serem entregues no Instituto Superior de Agronomia, no bairro da Ajuda. Segunda-feira almocei uma maravilhosa omelete de nada, escolha favorita de pessoas que precisam entrar num vestido de noiva, e peguei o carro para fazer a entrega. Coisa simples, dez minutos para ir, dez para voltar.
Me perdi. Rodei, rodei. Encontrei a portaria. Era a portaria errada. Fui procurar a outra. Me perdi. Dez minutos já eram 25. Cheguei. O segurança explicou tranquilamente: era só ir reto até o edifício amarelo, contorná-lo, entrar na segunda à direita, subir até encontrar uma rua enviesada, virar, seguir adiante, passar pelos edifícios brancos, virar à direita nas vinhas (sim, vinhas, de uva), seguir, encontrar uma rotatória, virar à esquerda, subir e pronto, era lá. Sorri com cara de imbecil, segui com o carro e me perdi na terceira coordenada.
Acenei para um carro de uma empresa de obras e pedi ajuda. O rapaz, muito solícito, disse para segui-lo. Andamos uns dez minutos, até que chegamos ao laboratório. O rapaz desceu do carro e me deu um cartão escrito “trabalhos verticais e impermeabilizações”. Eu agradeci e disse que se precisasse de algo o procuraria. Ele sorriu e disse “Era mais para tomarmos um café qualquer dia”, piscando o olho. Voltei para minha cara de imbecil e respondi: “Ah. Tá. Brigada.”
Estacionei e peguei a caixa, que era bem mais pesada do que eu imaginava. Deparei com uma escadaria sem fim. Respirei e subi. Ao chegar lá em cima, quase falecida, li o cartaz “usar a entrada de baixo”. Coisas de Portugal. Comecei a descer. Quando estava no meio da escada uma senhora me chamou lá em cima, dizendo que eu podia entrar por ali. Subi de novo. Agradeci e disse que tinha uma entrega de fertilizantes. Ela disse “Ah, mas isso é lá embaixo”. Viu meus olhos tristes e disse “Mas pode vir cá por dentro”.
Comecei a descer a escada com a caixa nos braços e percebi que minhas calças estavam caindo. Foi a maior alegria do dia, sinal de que a omelete de nada tem servido para alguma coisa além de me entristecer. Na sala, fui recebida por uma simpática senhora quadrada – mesma medida de altura e largura – com um avental branco. Ela me perguntou “São substratos vegetais?”, respondi que não sabia de nada, que nem tinha aberto a caixa, que fazia um favor para um amigo de Viseu. Ela foi chamar a responsável. Fiquei ouvindo o rádio velho berrando BUT I SEE YOUR TRUUUE COOOLORS SHINING THROUGH. A responsável chegou e me perguntou se os formulários estavam preenchidos. Eu sorri e repeti que não sabia de nada.
Entrou um homem. Me perguntou – TRUE COLORS, TRUE COLORS – se também havia amostra de terra na caixa. Fiquei com vontade de rir. Disse que não sabia. Chegou a quarta senhora – THAT’S WHY I LOOOVE YOU – me perguntando se era para análise de metais pesados. Não aguentei. Caí numa crise de riso, pedi desculpas – TRUE COLORS –, tentei explicar de novo, comecei a lacrimejar pelo canto do olho, “É só um favor... pra um amigo” e ria, ria.
Só conseguia pensar no ridículo daquela odisseia que se instaurou na tentativa de fazer um favorzinho. Era surreal. Seguiram-se mais 15 minutos de debates. Que raio eu fazia ali? Tanto trabalho em casa. No fim, me comunicaram que não analisavam aqueles tipos de substratos. Suspirei. Deixei a caixa, o telefone do homem e fui embora. Entrei no carro e comecei a rir de novo. Duas horas para nada. Ou não: às vezes o fracasso vira texto.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Viagem a Paris

Ouvi dizer que vai a Paris.
Exato.
A negócio?
Não.
Turista?
Não.
Missão política reservada?
Não.
Tão secreta assim?
Não.
Se não sou indiscreto… transa de amor?
Não.
Está muito misterioso.
Não.
Como não? Saúde, talvez.
Não.
Compreendo que não queira alarmar…
Não.
Busca apenas repouso.
Não.
Fugir a esse calorão dos infernos.
Não.
Fugir do trabalho, então.
Não.
Capricho do momento.
Não.
Tantos nãos devem significar um sim.
Não.
Significam sim. Vou repetir as hipóteses.
Não.
Temos pela frente uma indústria nova, de vulto.
Não.
De qualquer maneira, é financiamento internacional.
Não.
Então a coisa está ficando preta.
Não.
Está preta, e há jogadas que só em Paris.
Não.
Percebe-se alguma coisa no ar.
Não.
Não dá para perceber, mas há.
Não.
Mas pode haver a qualquer momento.
Não.
Nem por hipótese?
Não.
Nenhuma nuvem distante, muito distante mesmo?
Não.
No ano que vem?
Não.
Ouvi mal?
Não.
Sendo assim, é segredo pessoal?
Não.
O coração é quem dita a viagem… eu sei.
Não.
Sim, sim. Pode confessar.
Não.
Hoje em dia essas coisas são públicas. Dão até cartaz.
Não.
Sei que não precisa disso, mas…
Não.
Por que não? Está com medo da imprensa?
Não.
Receia perder a situação social?
Não.
A situação financeira?
Não.
Política?
Não.
Pois olhe, melhor é preparar o ambiente.
Não.
Claro que sim. Insinuar mudança em sua vida.
Não.
Discretamente.
Não.
De leve, só uma pincelada. Deixe comigo.
Não.
Não abro manchete nem boto aquela foto em duas colunas, aquela bacana, lembra?
Não.
Só cinco linhas.
Não.
Duas.
Não.
Mas tenho de dizer alguma coisa.
Não.
O senhor é notícia.
Não.
Pode dizer que não, mas é sim.
Não.
Puxa vida, o senhor hoje está medonho. Resolveu responder não a tudo que é pergunta minha?
Não.
Ah, é? Então vamos recomeçar: o senhor vai a Paris?
Vou.
E que é que vai fazer em Paris?
Ver.
Ver o quê?
O último tango em Paris.
E por que é que não me disse isso logo, homem de Deus?
Você não me perguntou, por que eu havia de responder?

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

Livros e caracóis

Um bibliófilo pobre tem infinitas ocasiões de sofrer. Os livros não lhe fogem das mãos mas, em compensação, passam pelo ar, a voo de pássaro, a voo de preços.
No entanto, entre muitas explorações, surge a pérola.
Lembro-me da surpresa do livreiro Garcia Rico, em Madri, em 1934, quando propus comprar dele uma antiga edição de Góngora que custava apenas 100 pesetas, em mensalidades de 20. Era bem pouco dinheiro mas eu não o tinha. Paguei pontualmente ao longo daquele semestre. Era a edição de Foppens, editor flamengo do século XVII que imprimiu em incomparáveis e magníficos caracteres as obras dos mestres espanhóis do Século de Ouro.
Não gosto de ler Quevedo senão naquelas edições onde os sonetos se desdobram em linha de combate com férreos navios. Depois me internei na selva das livrarias, pelos desvãos suburbanos das de segunda mão ou pelas naves catedralícias das grandiosas livrarias da França e da Inglaterra. Saía com as mãos empoeiradas mas de vez em quando obtive algum tesouro – ou pelo menos a alegria de pensar que assim fora.
Prêmios literários marcantes e sonantes me ajudaram a adquirir certos exemplares de preços extravagantes. Minha biblioteca passou a ser considerável. Os antigos livros de poesia relampejavam nela e minha inclinação para a história natural encheu-a de grandiosos livros de botânica com iluminuras coloridas; e livros de pássaros, de insetos ou de peixes. Encontrei pelo mundo milagroso livros de viagens, Quixotes incríveis, impressos por Ibarra, infólios de Dante com os maravilhosos tipos bodôni. Até alguns Molières em edições limitadas, “Ad usum delphini”, para o filho do rei da França.
Mas em realidade o melhor que colecionei em minha vida foram meus caracóis. Deram-me o prazer de sua prodigiosa estrutura: a pureza lunar de uma porcelana misteriosa agregada à multiplicidade das formas, táteis, góticas, funcionais.
Milhares de pequenas portas submarinas se abriram para meu conhecimento desde aquele dia em que D. Carlos de la Torre, ilustre malacólogo de Cuba, me presenteou com os melhores exemplares de sua coleção. Desde então e ao acaso de minhas viagens, percorri os sete mares espreitando-os e buscando-os. Mas devo reconhecer que foi o mar de Paris que, entre uma onda e outra, descobriu para mim mais caracóis. Paris havia transmigrado todo o nácar dos oceanos para suas lojas naturalistas, para seus “mercados de pulgas”. Mais fácil que meter as mãos nas rochas de Veracruz ou Baja California foi encontrar sob o sargaço urbano, entre lâmpadas rotas e sapatos velhos, a delicada silhueta da Oliva Textil. Ou surpreender a lança de quartzo que se alonga, como um verso de água, na Rosellaria Fusus. Ninguém me tirará o deslumbramento de ter tirado do mar o Espondylus Roseo, grande ostra tacheada de espinhos de coral. E mais adiante entreabrir o Espondylus Blanco, de espinhos nevados como estalagmites de uma gruta gongórica.
Alguns destes troféus poderiam ser históricos. Lembro que no Museu de Pequim abriram a caixa mais sagrada dos moluscos do mar da China para me fazer presente do segundo dos dois únicos exemplares da Thatcheria Mirabilis. E assim pude arrebanhar o tesouro dessa inacreditável obra com que o oceano presenteou a China no estilo de templos e pagodes que perduram naquelas latitudes.

Demorei trinta anos para juntar tantos livros. Minhas prateleiras guardavam incunábulos e outros volumes que me comoviam; Quevedo, Cervantes e Góngora, em edições originais, assim como Laforgue, Rimbaud e Lautréamont. Estas páginas me pareciam conservar o tato dos poetas amados. Tinha manuscritos de Rimbaud. Paul Éluard me deu de presente em Paris, por meu aniversário, as duas cartas de Isabelle Rimbaud para sua mãe, escritas no hospital de Marselha onde o nômade teve uma perna amputada. Eram tesouros ambicionados pela Biblioteca Nacional de Paris e pelos vorazes bibliófilos de Chicago.
Tanto corria eu pelo mundo que minha biblioteca cresceu desmedidamente, ultrapassando as condições de uma biblioteca particular. Certo dia presenteei a grande coleção de caracóis que levei vinte anos para juntar e aqueles cinco mil volumes escolhidos por mim com o maior amor em todos os países. Presenteei-os à universidade de minha pátria. Foram recebidos como dádiva cintilante pelas bonitas palavras de um reitor.
Qualquer homem esclarecido pensará no regozijo com que receberiam no Chile essa doação minha. Mas existem também homens não esclarecidos. Um crítico oficial escreveu artigos furiosos. Protestava com veemência contra meu gesto. Quando se poderá interceptar o comunismo internacional?, proclamava. Outro senhor fez no parlamento um discurso inflamado contra a universidade por ter aceito meus maravilhosos cunábulos e incunábulos, ameaçando cortar os subsídios que ela recebia do Instituto Nacional. O articulista e o parlamentar lançaram uma onda de gelo sobre o pequeno mundo chileno. O reitor da universidade ia e vinha pelos corredores do congresso. desarvorado.
O certo é que se passaram vinte anos do fato e ninguém tornou a ver nem meus livros nem meus caracóis. É como se houvessem retornado às livrarias e ao oceano.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

O que é que amo quando te amo?

O que é que amo quando te amo?”
Sim, estou amando. Mas não sei ao certo quem. Tudo parece tão claro: amo aquela que me faz sorrir de felicidade. Mas por que a amo? Eu a amo porque ela é um pedaço de mim. Escreveu o poeta:

Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele...

Ricardo Reis,
Ninguém a outro ama

Nascemos dilacerados. Santo Agostinho começa suas Confissões dizendo: “Inquieto está o nosso coração...”. Eu diria: “Nosso coração está cheio de saudade...”. Saudade é a presença de uma ausência, um vazio que dói.
Álvaro de Campos conhecia essa dor, e a expressa em Acordar:

Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves, E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega. [...]
Dá-me rosas, rosas, E lírios também...
Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa...

Nosso pecado original não é moral. É o vazio dolorido que mora em nós. Vivemos a vida toda à procura de algo que preencherá esse vazio e nos completará. Quando isso parece acontecer, como na experiência do apaixonado, encontramos a felicidade. Estamos completos. Mas o que é isso que encontramos – ou imaginamos encontrar – na pessoa amada?
Breuer se apaixonou por uma adolescente histérica que estava internada no seu sanatório. Nietzsche, por artes de Lou Salomé, o procurou para tratar-se das enxaquecas infernais que o mantinham por dias na cama em um quarto escuro.
Na primeira entrevista que tiveram, Breuer percebeu que aquele homem tinha algo de extraordinário. Freud, que nessa ocasião era assistente de Breuer, depois de ler alguns dos livros de Nietzsche, informou ao mentor: “De todos os que conheço, este é o homem que mais sabe sobre a alma humana”.
Breuer fez então uma proposta a Nietzsche – ele poderia ficar internado na clínica gratuitamente para o acompanhamento terapêutico de suas dores de cabeça, sob uma condição: conversariam uma hora por dia.
Havia um espinho que atormentava Breuer: o seu amor absurdo por aquela adolescente histérica. Como explicar que o mais famoso médico de Viena se apaixonara por uma adolescente, sua cliente? E Nietzsche, para elucidar o mistério daquele sentimento, lhe fazia uma única pergunta: “Qual é o sentido?”. A menina, conhecida na literatura como Anna O., era símbolo de quê? O que é que ela representava? Não amamos a pessoa, mas o símbolo que ela representa.
Talvez Anna O. simbolizasse a juventude – Breuer já não a tinha, era um quarentão, estava com medo da velhice e da morte. Quem sabe ele tivesse, inconscientemente, a esperança mágica de voltar a ser jovem por meio da juventude de Anna O.! Ou seria o certo ar de inocência que havia no sorriso dela?
Cassiano Ricardo escreveu um poema com o título Você e o seu retrato. É uma série de perguntas que ele faz à mulher amada. Lidas à primeira vista, as perguntas se parecem mais com uma negação do amor. Um apaixonado, mergulhado na sua paixão, jamais as faria. Porque o que caracteriza a paixão é a certeza absoluta da eternidade do seu sentimento.

Por que tenho saudade
de você, no retrato,
ainda que o mais recente?

E por que um simples retrato,
mais que você, me comove,
se você mesma está presente?

Olho o seu retrato e sinto saudades de você, porque nele você está ausente. Mas é inútil que eu deixe de olhar para o retrato e olhe para você, porque o retrato, aquele em que você está ausente, me comove mais que você mesma, presente.
Essas duas perguntas, que um amante jamais faria – pelo enigma que contêm –, já me fizeram pensar muitas coisas diferentes em tempos diferentes. Os poemas são sempre assim – cada leitura é uma nova interrogação. Até que percebi que esse poema não é nem sobre o amor nem sobre a amada. É sobre “o retrato”. É uma meditação sobre o mistério do retrato de uma mulher. Retratos têm mistérios?
Os retratos ficaram banais. Até trocaram de nome: fotos. Todo mundo tira fotos com o celular. Elas são o resultado de um artifício técnico que permite gravar numa folha de papel uma cena da natureza ou um rosto. Nada mais. Mas serão só isso mesmo?
Roland Barthes, solteirão que vivia com a mãe, foi escarafunchar, depois que ela morreu, os álbuns de retratos à procura de uma fotografia dela. Eram muitas. Todas de sua mãe. Ele as examinava uma a uma e as punha de lado. Eram retratos de sua mãe, sim, mas não tinham aquilo que ele procurava. Uma fotografia contém um mistério que está além do visível.
Até que uma delas o fez parar. Seus olhos se encheram de lágrimas. Lá estava o retrato que procurava. O que é que ele continha de especial? Era um retrato que havia capturado a essência de sua mãe, tal como ela vivia no coração dele. Era um retrato de sua mãe menina...
O que existe de mágico numa fotografia é que ela possibilita fixar um momento efêmero de beleza que aconteceu num segundo de tempo e se foi. Os olhos nem o perceberam, tão rápido que foi...
Era uma tarde quente quando Albert Camus rabiscou esta curta observação no seu caderno de notas:

Céu de trovoada em agosto. Aragem escaldante. Nuvens negras. No entanto, do lado do nascente, uma faixa azul, delicada, transparente. Impossível fixá-la. Sua presença é uma tortura para os olhos e para a alma. Porque a beleza é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que desejaríamos prolongar pelo tempo fora.

O que ele gostaria de roubar do tempo era a beleza: uma faixa azul, delicada, transparente... Gostaríamos que ela fosse eterna. Mas a beleza escorrega no tempo que passa sem parar.
A beleza acontece quando a eternidade toca o tempo. E a câmera fotográfica tem o poder mágico de fixar esse momento. Mas a captura do momento encantado é coisa rara. Somente os fotógrafos com olhos de artista têm a capacidade de vê-lo e sorte para fixá-lo. Assim, traduzindo o poema de Cassiano Ricardo em outras palavras:

Minha amada: você, mulher que amo, está viva, move-se no tempo que tudo destrói. Mas houve alguém, um artista, um fotógrafo, capaz de capturar um momento mágico quando a eternidade tocou o seu rosto. No retrato você está eternizada na sua beleza. É assim que a desejo, para sempre... E o seu retrato, esse que amo, não é igual a você, que vive no tempo. Ele é o seu rosto no momento em que refletiu o raio de eternidade, o que a tornou infinitamente bela.
Que fragmentos de eternidade se encontram no seu retrato? Será esse ar indefinível de lembrança de um passado que já foi e que me faz sentir saudade? Ou será um sorriso de criança? Ou um sentimento de ausência? Talvez o fato de seus olhos me seguirem sempre, por onde quer que eu vá. Seus olhos me seguindo – isso é uma felicidade.
Olho e percebo que o seu retrato mais se parece com você que você mesma. Porque ele capturou a sua essência. Nele você está perfeita e bela, eternamente. Mas, para assim vê-lo, é preciso que os olhos que o contemplam sejam apaixonados por você…

Rubem Alves, in Canto do pássaro encantado

Ilusão de ética

Eu juro que vi.
Era quase detardezinha.
Esquina da Rua da Aurora,
de quina com o São Luís.
Não foi filme não. Eu juro que eu vi.
Aconteceu a dez passos de mim.
Ali, na lata!
Cacos de vidro pra tudo que é lado,
difícil dizer quantos eram.
Não foi delírio febril.
Eu juro que eu vi.
Pensei ser um sonho,
porra nenhuma.
Real como um tijolo.
Corra meu filho.
Nem perguntei,
corri.
Até hoje não sei
o que de fato aconteceu.

Miró da Muribeca

O futuro que ninguém quer ver

Como as pessoas reagem quando algo terrível pode acontecer? Tudo depende de quando. Se for num futuro muito distante, ninguém dá muita bola. Por exemplo, se eu disser que, em 5 bilhões de anos, o Sol vai expandir feito um balão, engolindo Mercúrio e Vênus e inflando até quase a órbita da Terra, as pessoas vão achar interessante, mas só isso, mesmo que esse cataclismo marque o fim do nosso planeta e da vida aqui.
O que sobrar, se sobrar, será um amontoado de rochas e cinzas. E se eu disser que mudanças no Sol vão afetar a vida na Terra bem antes disso, em menos de um bilhão de anos? Um bilhão de anos? É um tempo que não compreendemos, diria a maioria. Tudo bem. Mas e se eu trouxer esse relógio apocalíptico mais para perto? Qual é o intervalo de tempo que começa a surtir efeito, despertando medo nas pessoas? Um milhão de anos? Muito longe. Dez mil anos? Também. Mil anos? Ainda muito distante. Cem anos? Aqui a coisa começa a ficar incômoda. Setenta anos? Passa a estar dentro da longevidade da maioria das crianças que hoje têm 10 anos.
Se o mundo, como existe hoje, deixar de existir em setenta anos, as pessoas deveriam prestar atenção. Tenho um filho de 13 e outro de 7, e três já adultos. Quero deixar um mundo melhor para eles. Esse deveria ser o legado da nossa geração. Infelizmente, estamos falhando, e os que negam isso o fazem sabendo que não precisarão arcar com as consequências de suas escolhas. Setenta anos nos aproximam do fim deste século, quando modelos de mudança climática preveem cenários terríveis.
Costumamos focar no nível dos oceanos e na migração forçada de milhões de pessoas para o interior. Rio, Recife, Fortaleza, Nova York, Bangladesh: para onde essas pessoas irão, com suas cidades parcialmente submersas? Como vão se alimentar, encontrar abrigo? O que estamos fazendo, nós e os governos, para nos preparar? Em 2017, um iceberg com metade do tamanho de Sergipe se soltou da placa continental da Antártica chamada Larsen C.
Embora seja difícil atribuir um único evento ao aquecimento global – modelos climáticos fazem previsões estatísticas e não exatas de quando algo vai ocorrer –, o efeito desse evento e de outros nas placas Larsen A e B marcam uma mudança radical na Antártica; mapas terão que ser redesenhados. Mesmo que filmes sobre distopias como Mad Max e Jogos Vorazes pintem quadros terríveis sobre o futuro, poucos contemplam seriamente a possibilidade de que essas ficções possam virar realidade. A menos, claro, que a situação mude radicalmente, e a sobrevivência de milhões seja ameaçada.
Nossa tendência é reagir sob pressão, e não preventivamente. Infelizmente, com o clima, uma reação tardia pouco fará para reverter as coisas. Em seus relatórios periódicos, cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) vêm soando o alarme cada vez mais alto. Os modelos mostram que a temperatura irá flutuar cada vez mais, com uma tendência definitiva em direção ao aquecimento. Ondas de calor impactam a produção agrícola, que, no Brasil, é essencial para a estabilidade econômica. As doenças se proliferam e afetam mais intensamente os menos privilegiados. A onda de calor de 2003 matou 35 mil pessoas na Europa, 2 mil por dia.
O jornalista americano David Wallace-Wells entrevistou vários cientistas que dedicaram suas carreiras a esse assunto: “Nenhum programa de controle de emissões pode prevenir o desastre climático.”
Esse é um trem descarrilado. A lista de horrores é longa. A fome levará a migrações de centenas de milhões. O derretimento do gelo no Ártico liberará enormes quantidades do gás metano na atmosfera, atingindo 34 vezes a quantidade atual de dióxido de carbono até o final do século. Doenças soterradas há milênios sob o gelo começarão a se espalhar pelo mundo.
O excesso de dióxido de carbono aumentará cada vez mais a acidificação dos oceanos, destruindo corais e um quarto da vida marinha, que hoje alimenta 500 milhões de pessoas. O caos criará instabilidades sociais, violência e crimes. Muitos acham que a ciência encontrará soluções para a crise. Mas essa é uma aposta muito arriscada, que não podemos perder. Até o momento, não vejo que tipo de solução será efetiva numa escala global. O que precisamos é de uma mudança radical de mentalidade, em nível individual, governamental e corporativo.
Precisamos de uma nova ética planetária, baseada numa relação moral com o planeta, para garantir o futuro das novas gerações. As pessoas não estão tendo medo suficiente do futuro. E precisam, não só ter medo como começar a agir, individualmente, para mudar como vivem e como comem. Talvez seja a nova geração, a das crianças que hoje têm dez anos, que irá finalmente compreender a dimensão do problema e fazer algo sério a respeito, dado que a nossa geração só piorou as coisas. Que vergonha ter que dizer isso aos meus filhos.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

O sonho

Não entendo de sonhos, mas uma vez anotei um que me parecia, mesmo sem eu o entender, querer me dizer alguma coisa.
Como eu fechara a porta ao sair, ao voltar esta se tinha emendado nas paredes e já estava até com os contornos apagados. Entre procurá-la tateando pelas paredes sem marcas, ou cavar outra entrada, pareceu-me menos trabalhoso cavar. Foi o que fiz, procurando abrir uma passagem. Mal porém foi rachada a primeira abertura, percebi que por ali nunca ninguém tinha entrado. Era a primeira porta de alguém. E, embora essa estreita entrada fosse na mesma casa, vi a casa como não a conhecia antes. E meu quarto era como o interior de um cubo. Só agora eu percebia que antes vivera dentro de um cubo.
Acordei, então, toda banhada de suor pois fora um pesadelo, apesar da aparente tranquilidade dos acontecimentos no sonho. Não sei o que este simbolizava. Mas “uma primeira porta de alguém” é alguma coisa que me atemoriza e me fascina a ponto de por si só constituir um pesadelo.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas