Mudanças

Eu tenho a certeza que toda a gente já teve a experiência de ler um livro, e achar que foi vibrante, com vivacidade, colorido e excitante. E que, talvez algumas semanas mais tarde, tenham-no lido outra vez e considerá-lo simples e vazio. Bem, não foi o livro que mudou: a pessoa é que mudou.”

Doris Lessing, in The golden notebook

O mato

          Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vaga-lumes nem grilos.
Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma bênção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estalava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impaciente de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém, com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.
Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres.
Ainda bem que de todas as grandes cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos — mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com sua pele de musgo e seu misterioso coração mineral.
E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angústia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte, quieto, imóvel, feliz.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

Descansa na paz do nosso travesseiro

          Rose Rondelli foi minha primeira namorada. Namorada no sentido Manuel Bandeira da coisa, que afirmou ter sido um coelhinho-da-índia a sua primeira. Rose Rondelli, que morreu em janeiro de 2004, de câncer, num apartamento do Leblon, a vedete mais bonita de todas dos anos 60, um par de coxas que ia daqui até o outro canto da cama, uma bunda do tempo em que elas ainda não tinham formado uma nação à parte do corpo da mulher, Rose foi a primeira namorada das muitas que nunca tive.
Não guardo mágoa, pelo contrário. Todas só me fizeram bem ao tratamento contra a timidez e a falta de sentido em existirmos. Agradeço penhorado, e com os olhos úmidos elas aqui me têm novamente em regresso. Joelhos dobrados sobre as letrinhas, em funeral de saudade pela mais gostosa, professora e impossível de todas.
Eu desconheci Rose Rondelli pela primeira vez quando tinha sei lá quantos anos de infância, mais ou menos quando eu me afundava no vício acachapante, ô droga!, que onda!, do pó de pirlimpimpim batido com refresco de groselha. Rose era uma uva. Me buliversava um tremor inaugural do que eu não tinha ideia que fosse. Me desfalecia os sentidos primevos do que eu sequer supunha ser. Me tornava pulsativa a pílula de vida futura que começava a fazer nexo quando a palavra amor piscava numa guarânia do Anísio Silva.
Me levou no beiço como todas as outras fariam em seguida. Me arreliava a razão como eu me deixaria prostrar estupefato diante das melhores que encontrei na fila. Me desfocava o cerebelo para o umbigo do divino. Me fez, na aula de português, como se vê agora, que eu lhe voasse sôfrego até a catedral do amor e comungasse beato de sua hóstia consagrada, no justo momento em que a professora ensinava a não se começar uma frase com pronome oblíquo. Me desculpe.
Rose Rondelli era a Miss Campeonato de um programa da Mayrink Veiga quando eu botei meus ouvidos na direção de sua fala brejeira. Era atriz do “Noites Cariocas” na TV Rio quando eu coloquei meus óculos míopes sobre o violão em dó sustenido redondo que tinha formatado nas ancas. Era a vedete serelepe gritando “Ooooooooooooooobaaaaa!” na escadaria do teatro rebolado de Walter Pinto. Mais do que as da Sandra Sandré, na “Revista do Rádio”, suas fotos vibravam o que ainda estava por ser explicado, e agora vejo que nunca será, a um moleque batuta apenas nos prazeres do bafo-bafo. A primeira namorada traz a tábua de mandamentos e aponta o caminho. “Rosebud”, estava escrito no trenó feliz da infância de Orson Welles. Eu, menino nos trópicos, escrevi “Rosendelli” no carrinho de rolimã em que me joguei ladeira abaixo até aqui. Foi ela.
Quer dizer que havia algo ainda mais eletrizante do que passar cerol de vidro moído na linha da pipa e cortar quem ousasse opor resistência nos mares do céu? Quer dizer que havia pêlos mais macios que os fios do algodão-doce? Foi ela quem deu o toque.
Rose, a mais certinha das certinhas do Lalau, um par de peitos que olhava altivo e em uníssono na mesma direção do horizonte, nunca para mim. Descansa na paz do nosso travesseiro. Foi a primeira namorada no sentido catecismo de que na mesma mensagem elas trazem o anúncio da salvação da carne, a demolição da calma, a comunhão dos santos, a repetição dos pecados, a vida eterna e a impossibilidade do amém.
São elas, de tempos em tempos, que vão se revezando pacientes na arte de oferecer aos meninos novas porções de mistério que substituam o bola-ou-búlica do primeiro quintal.
São elas, algumas muito más, como as louras de olhos verdes que caminham sobre as árvores do Jardim Botânico, outras muito boas, branqueias flanando diáfanas sobre a Praia do Diabo, são elas que tornam um dia depois do outro um acontecimento adulto de alguma forma suportável para quem já viveu o frisson infantil de gritar “marraio feridô sou rei” e quer, precisa, sonha reinventar um pique-esconde de tantas delícias.
Rondelli, que Deus a tenha embalsamada na glória de seu espartilho, foi a pedra de toque, embora lhe imaginasse a pele acolchoada, de que as aventuras do Sítio do Pica-Pau Amarelo, as reinações de Narizinho, o poço do Visconde, os doze trabalhos de Hércules, o circo do Carequinha e o telecatch Montilla podiam ser desdobráveis pelo resto da existência. Mudariam apenas os brinquedos e o pátio.
Foi o que eu percebi, sempre sob inspiração de Rose, quando pela primeira vez, no escurinho do cinema, a mão desceu pelo ombro da moça, milímetro a milímetro sendo conquistado, e os cinco dedos chegaram sorrateiros como serpentes do Indiana Jones ao ninho que arfava assustado e finalmente consentido. Mudariam apenas os sabores da marmelada de goiaba e do “bento que bento é o frade” a se sussurrar sobre o cangote das amarelinhas.
Aprendi com Rose, colocando um copo de água em cima do rádio, que no pomar do amor maduro haveria mais frutas que o pêra-uva-ou-maçã do casamento japonês. Gramaticalmente errado como sempre, me quedo saudoso agora com a rosa que se foi. Sinto-lhe os dentes cravados na polpa da manga-espada que ofereço.
Quando eu me apaixonei por Rose Rondelli jurei que era para sempre. Um amor inquebrável como disco azul do Braguinha, o assobio do Pererê do Ziraldo e o garoto correndo atrás da bola. E tem sido, e tem sido bom. Por mais que essas novas vedetes me apareçam de nomes trocados, tatuem os glúteos e afinem as coxas, eu reconheço a minha vedete inaugural no jeitão com que cada uma delas se comporta na escadaria de teatro rebolado que é o espetáculo amoroso. Rangem, rugem, anunciam alegrias variadas que eu, ignorante em outra língua, traduzo sempre para os braços levantados de Rose Rondelli. Ela está gritando o que me revelou ser o mantra único da felicidade. O sentido básico da vida, o que não tem segredo nem nunca terá discussão. Quem gritar mais vezes venceu. Ooooooooooooooobaaaaa!

Joaquim Ferreira dos Santos, in Em Busca do Borogodó Perdido

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Amor próprio

          Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:
O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
Senhor, respondeu o pedinte — estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
Que renúncia de si próprio! — dizia um dos espectadores.
Renúncia de mim próprio? — retorquiu o faquir. — Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações — na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos. E cumpre ocultá-lo.

Voltaire, in Dicionário Filosófico

Antiperipléia

           E o senhor quer me levar, distante, às cidades? Delongo. Tudo, para mim, é viagem de volta. Em qualquer ofício, não; o que eu até hoje tive, de que meio entendo e gosto, é ser guia de cego: esforço destino que me praz.
E vão me deixar ir? Em dês que o meu cego seô Tomé se passou, me vexam, por mim puxam, desconfiam discorrendo. Terra de injustiças.
Aqui paramos, os meses, por causa da mulher, por conta do falecido. Então, prendam a mulher, apertem com ela, o marido rufião, aí esses expliquem decerto o que nem se deu. A mulher, terrível. Delegado segure a alma do meu seô Tomé cego, se for capaz! Ele amasiava oculto com a mulher, Sa Justa, disso alguém teve ar? Eu provia e governava.
Mas não cismo como foi que ele no barranco se derrubou, que rendeu a alma. Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas. Suspiros. Declaro, agora, defino. O senhor não me perguntou nada. Só dou resposta é ao que ninguém me perguntou.
Mulheres dôidas por ele, feito Jesus, por ter barba. Mas ele me perguntava, antes. — “É bonita?” Eu informava que sendo. Para mim, cada mulher vive formosa: as roxas, pardas e brancas, nas estradas. Dele gostavam — de um cego completo — por delas nem não poder devassar as formas nem feições? Seô Tomé se soberbava, lavava com sabão o corpo, pedia roupas de esmola. Eu, bebia.
Deandávamos, lugar a lugar, sem prevenir que já se estava no vir para aqui. Tenho culpas retapadas. A gente na rua, puxando cego, concerne que nem se avançar navegando — ao contrário de todos.
Patrão meu, não. Eu regia — ele acompanhava: pegando cada um em ponta do bordão, ocado com recheios de chumbo. Bebo, para impor em mim amores dos outros? Ralhavam, que, passado já de idade de guiar cego, à mão cuspida, mesmo eu assim, calungado, corcundado, cabeçudão. Povo sabe as ignorâncias. Então, eu, para também não ver, hei-de recordar o alheio? Bebo. Tomo, até me apagar, vejo outras coisas. Ele carecia de esperar, quando eu me perfazia bêbedo deitado. Me dava conselhos. Cego suplica de ver mais do que quem vê.
Tinha inveja de mim: não via que eu era defeituoso feioso. Tinha ódio, porque só eu podia ver essas inteiras mulheres, que dele gostavam! Puxar cego é feito tirar um condenado, o de nenhum poder, mas que adivinha mais do que a gente? Amigos. O roto só pode mesmo rir é do esfarrapado. Me dava vontade de leve nele montar, sem freio, sem espora...
A gente cá chegou, pois é. A mulher viu o cego, com modos de não-digas, com toda a força guardada. Essa era a diversa, muito fulana: feia, feia apesar dos poderes de Deus. Mas queria, fatal. Ajoelhou para me pedir, para eu ao meu Seô Cego mentir. Procedi. — “Esta é bonita, a mais!” — a ele afirmei, meus créditos. O cego amaciou a barba. Ele passeou mão nos braços dela, arrojo de usos. Soprou, quente como o olho da brasa. Tive nenhum remorso. Mas os dois respiravam, choraram, méis, airosos.
Se encontravam, cada noite, eu arrumando para eles antes o redor, o amodo e o acômodo, e estava de longe, tomando conta. O marido desgostava dela, druxo homem, de estrambolias, nem vinha em casa. Alguém maldou? Cego esconde mais que qualquer um, qualquer logro. E quem vigia como eu? Ela me dava cachaças, comida. Ele me fiava a féria. Me tratavam. O que podia durar, assim, às estimas fartas?
A vida não fica quieta. Até ele se despenhar no escuro, do barranco, mortal. Vinha de em-delícias. A mulher aqui persiste — para miar aos cães e latir aos gatos. Que é que eu tenho com o caso... Todos fazem questão de me chamar de ladrão. Cego não é quem morre?
Todos tendo precisão de mim, nos intervalos. A mulher, maluca, instando que eu a ele reproduzisse suas porvindas belezas. Seô Tomé dessas sozinhas nossas não contrárias conversas tirando ciúme, com porfias e más zangas. Mas eu reportava falseado leal: que os olhos dela permitiam brilhos, um quilate dos dentes, aquelas chispas, a suma cor das faces. Seô Tomé, às barbas de truz, sorvia também o deleite de me descrever o que o amor, ele não desapaixonava. Só sendo cego quem não deve ver? Mas o marido, imoral, esse comigo bebia, queria mediante meus conluios pegar o dinheiro da sacola... Eu, bêbedo e franzino, ananho, tenho de emendar a doideira e cegueira de todos?
Deixassem — e eu deduzia e concertava. Mas ninguém espera a esperança. Vão ao estopim no fim, às tantas e loucas. Por mais, urjo; me entenda. Aqui, que ele se desastrou, os outros agravam de especular e me afrontar, que me deparo, de fecho para princípio, sem rio nem ponte.
Dia que deu má noite. Ele se errou, beira o precipício, caindo e breu que falecendo. Não pode ter sido só azares, cafifa? De ir solitário bravear, ciumado, boi em bufo, resvalou... e, daí, quebrado ensanguentado, terrível, da terra.
Ou o marido, ardido por matar e roubar — empuxou o outro abaixo no buracão — seu propósito? Cego corre perigo maior é em noites de luares...
E seô Tomé, no derradeiro, variava: falando que começava a tornar a enxergar! Delírios, de paixão, cobiçação, por querer, demais, avistar a mulher — os traços — aquela formosura que, nós três, no desafeio, a gente tinha tanto inventado. Entrevendo que ela era real de má-figura, ele não pode, desiludido em dor, ter mesmo suicidado, em despenho? O pior cego é o que quer ver... Deu a ossada.
Ou, ela, visse que ele ia ver, havia de mais primeiro querer destruir o assombroso, empurrar o qual, de pirambeira — o visionável! Caráter de mulher é caroços e cascas. Ela, no ultimamente, já se estremecia, de pavôres de amor, às vezes em que ele, apalpador, com fortes ânsias, manuseava a cara dela, oitivo, dedudo. Ar que acontece...
Se na hora eu estava embriagado, bêbedo, quando ele se despencou, que é que sei? Não me entendam! Deus vê. Deus atonta e mata. A gente espera é o resto da vida.
A mulher diz que me acusa do crime, sem avermelhação, se com ela eu não for ousado... O marido, terrível, supliquento, diz que eu é que fui o barregão... Terríveis, os outros, me ameaçam, às injúrias... O senhor não diz nada. Tenho e não tenho cão, sabe? Me prendam! Me larguem! A mulher esteja quase grávida. Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não enxerga mais... A culpa cai sempre é no guiador?
Só se inda hei outras coisas, por ter, continuadas de recomeçar; então Deus não é mundial? Temo que eu é que seja terrível.
E o senhor ainda quer me levar, às suas cidades, amistoso?
Decido. Pergunto por onde ando. Aceito, bem-procedidamente, no devagar de ir longe. Voltar, para fim de ida. Repenso, não penso. Dou de xingar o meu falecido, quando as saudades me dão. Cidade grande, o povo lá é infinito.
Vou, para guia de cegos, servo de dono cego, vagavaz, habitual no diferente, com o senhor, Seô Desconhecido.

Guimarães Rosa, in Tutameia

Janeiro: Como nasceram as estrelas

          Pois é, todo mundo pensa que sempre houve no mundo estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro – e bem escuro estava esse céu. Um negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas.
Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E ativos: caçavam, pescavam, guerreavam. Mas nas tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes e dormiam roncando. E a comida? Só as mulheres cuidavam do preparo dela para terem todos o que comer.
Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto para moer. Que fizeram as valentes mulheres? O seguinte: sem medo enfurnaram-se nas matas, sob um gostoso sol amarelo. As árvores rebrilhavam verdes e embaixo delas havia sombra e água fresca. Quando saíam de debaixo das copas encontravam o calor, bebiam no reino das águas dos riachos buliçosos. Mas sempre procurando milho porque a fome era daquelas que as faziam comer folhas de árvores. Mas só encontravam espigazinhas murchas e sem graça.
Vamos voltar e trazer conosco uns curumins. (Assim chamavam os índios as crianças.) Curumim dá sorte.
E deu mesmo. Os garotos pareciam adivinhar as coisas: foram retinho em frente e numa clareira da floresta – eis um milharal viçoso crescendo alto. As índias maravilhadas disseram: toca a colher tanta espiga. Mas os garotinhos também colheram muitas e fugiram das mães voltando à taba e pedindo à avó que lhes fizesse um bolo de milho. A avó assim fez e os curumins se encheram de bolo que logo se acabou. Só então tiveram medo das mães que reclamariam por eles comerem tanto. Podiam esconder numa caverna a avó e o papagaio porque os dois contariam tudo. Mas – se as mães dessem falta da avó e do papagaio tagarela? Aí então chamaram os colibris para que amarrassem um cipó no topo do céu. Quando as índias voltaram ficaram assustadas vendo os filhos subindo pelo ar. Resolveram, essas mães nervosas, subir atrás dos meninos e cortar o cipó embaixo deles.
Aconteceu uma coisa que só acontece quando a gente acredita: as mães caíram no chão, transformando-se em onças. Quanto aos curumins, como já não podiam voltar para a terra, ficaram no céu até hoje, transformados em gordas estrelas brilhantes.
Mas, quanto a mim, tenho a lhes dizer que as estrelas são mais do que curumins. Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que corra tudo bem. Para sempre. E, como se sabe, sempre não acaba nunca.

Clarice Lispector, in Doze lendas brasileiras: Como nasceram as estrelas

Um salmo

Tudo que existe louvará.
Quem tocar vai louvar,
quem cantar vai louvar,
o que pegar a ponta de sua saia
e fizer uma pirueta, vai louvar.
Os meninos, os cachorros,
os gatos desesquivados,
os ressuscitados,
o que sob o céu mover e andar
vai seguir e louvar.
O abano de um rabo, um miado
u’a mão levantada, louvarão.
Esperai a deflagração da alegria.
A nossa alma deseja,
o nosso corpo anseia
o movimento pleno:
cantar e dançar TE-DEUM.

Adélia Prado

Dois runs para regar o acordo

          Olhei o estranho personagem diante de mim. Tinha os olhos fixos em mim, os pequenos olhos redondos negros, com veiazinhas na parte branca. Eu os sentia me trespassar e revistar, insaciáveis.
Então? — disse — e depois?
Zorba ergueu de novo seus ombros ossudos.
Deixe de lado — disse. — me dá um cigarro?
Dei. Tirou de seu colete uma pedra-de-fogo, uma mecha e acendeu. Seus olhos se entrefecharam, satisfeitos.
Você já foi casado?
Sou homem — respondeu agastado. — sou homem, quero dizer, sou um cego. Eu também caí nesse poço, de cabeça para baixo como todo mundo. Casei-me. Mas não tive sorte. Virei chefe de família. Construí uma casa. Tive filhos. Amolações. Mas, bendito seja o santuri!
Você tocava em casa para espantar as amolações? Não é isso?
Ah! Meu amigo, vê-se bem que você nunca tocou um instrumento! Que ideia é essa? Em casa você tem amolações, a mulher, as crianças. Que é que vai se comer? Com quer roupa a gente vai se vestir? Que é que vai ser de nós? O inferno, em suma! Nada disso; para o santuri, é preciso estar embalado, é preciso estar puro. Se minha mulher diz uma palavra a mais, como quer você que eu toque o santuri? Se as crianças querem comer e começam a chorar, lá se vai toda a vontade. Para se tocar santuri, a gente tem que se voltar todo para ele, e para nada mais, compreende?
Eu compreendia é que Zorba era o homem que eu buscava sem encontrar. Um coração vivo, uma boca voraz, uma grande alma bruta. O sentido das palavras amor, arte, beleza, pureza e paixão — esse trabalhador rude esclarecia para mim com as palavras mais singelas do homem.
Olhava para essas mãos que sabiam manejar a picareta e o santuri — calejadas e esburacadas, deformadas e nervosas. Com precaução e ternura, como se estivessem despindo uma mulher, elas abriram a sacola e de lá tiraram um velho santuri polido pelos anos, com muitas cordas, guarnecido de cobre e marfim, com uma borla de seda vermelha. Os dedos grossos o acariciavam por inteiro, apaixonadamente, como se fosse uma mulher. Depois, guardaram de novo o instrumento como se cobrissem o corpo amado para que não sentisse frio.
E aí está o meu santuri! — murmurou ele, fazendo-o repousar com precaução sobre a cadeira.
Os marinheiros agora faziam tilintar os seus copos, rindo às gargalhadas. O velho bateu com amizade nas costas do Capitão Lemoni.
Teve muita sorte, não foi Capitão Lemoni? Diga lá se não é verdade! Você fez uma promessa a São Nicolau? Só Deus sabe quantas velas você prometeu a São Nicolau!
O Capitão franziu suas sobrancelhas espessas.
Eu juro pelo mar, rapazes, que quando a vi a morte tão perto não pensei na Virgem Santa nem em São Nicolau! Voltei-me na direção de Salamina, pensei em minha mulher e gritei: “Ah! Catarina, quem me dera estar na tua cama!”
Uma vez mais os marinheiros riram, e com eles o Capitão Lemoni.
Vejam só, que animal estranho é o homem! — disse ele. — O Arcanjo da Morte com a espada sobre sua cabeça e ele só pensa nisso, exatamente nisso, em nada mais! Que o Diabo o carregue, porco!
Bateu palmas.
Garçom, traga bebida para o pessoal!
Zorba escutava, suas grandes orelhas atentas. Virou-se olhou os marinheiros e depois a mim.
Nisso o que? — perguntou. — que diz ele?
Subitamente compreendeu, e teve um sobressalto.
Bravos, velho! — disse em tom respeitoso. — esses marinheiros sabem o segredo. Talvez por que lutam dia e noite contra a morte.
Agitou no ar sua manopla.
Bom — disse, — isso é outra história. Voltemos à nossa: eu fico ou vou-me embora? Decida.
Zorba — disse eu, esforçando-me para não me atirar em seus braços. — Zorba, de acordo! Você vem comigo. Tenho linhita em Creta, você vigiará os operários. De noite, iremos nos deitar na praia... Não tenho no mundo nem mulher, nem crianças, nem cachorro... Comeremos e beberemos juntos. Depois, você tocará santuri...
... Se eu tiver vontade, você sabe, só se eu tiver vontade. Trabalhar para você está certo, quando quiser. Sou homem seu. Mas o santuri é diferente. É um animal selvagem, e precisa de liberdade. Se eu tiver vontade, eu toco e chegarei mesmo a dançar. E dançarei o zeimbekiko (dança dos Seimbeks, tribo litorânea da Ásia Menor), o hassapiko (dança dos açougueiros), o pendozali (dança cretense dos guerreiros) — mas digo desde logo, só se eu tiver vontade. Bons entendimentos fazem bons amigos. Se você me forçar, acabou-se. Para essas coisas, é preciso que você saiba, sou um homem.
Um homem? O que quer dizer com isso?
Pois bem, livre!
Garçom — chamei! — Mais um rum!
Dois runs! — gritou Zorba. — Você vai beber um também porque vamos brindar. Infusão e rum não dá bom brinde. Você vai tomar rum também, para regar nosso acordo.
Fizemos chocar os cálices. Agora já era dia. O navio apitava. O carregador que havia embarcado minhas malas me fez sinal.
Que Deus nos acompanhe — disse ao me levantar. — vamos indo!
... E o Diabo — completou tranquilamente Zorba.
Abaixou-se, pôs o santuri sob o braço, abriu a porta e passou na frente.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

Autocontrole

Não aspiro ao autocontrole. Autocontrole significa: querer atuar num ponto aleatório das irradiações infinitas da minha existência espiritual. Mas tenho de traçar estes círculos em torno de mim, por isso é melhor fazê-lo passivamente no puro espanto de admiração perante o imenso complexo e levar para casa apenas a força que, e contrario , essa visão oferece.

Franz Kafka, in Aforismos reunidos

O fim está próximo! (De novo?)

          Segundo um grupo de literalistas bíblicos, o mundo deveria ter acabado no dia 23 de setembro de 2017. Essa foi a interpretação deles de um capítulo do Apocalipse de João, o último livro do Novo Testamento, que prevê o fim dos tempos.
Segundo João, o fim dos tempos é anunciado por uma série de sinais, muitos deles cósmicos; coisas estranhas que acontecem nos céus, traduzidas como uma mensagem de Deus para os homens: Preparem-se, pois o fim está próximo! Desta vez, o “sinal” foi um alinhamento planetário nas constelações de Virgem e de Leão que, em 23 de setembro, atingiu uma espécie de auge. Estavam lá Mercúrio, Vênus, Marte, Sol, Lua e Júpiter. No dia 23, Júpiter deixou a constelação de Virgem, seguindo sua trajetória cósmica. João (Apocalipse 12: 1-5) relata a aparição de um “sinal grandioso no céu”, a Visão da Mulher e do Dragão: Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz.
Apareceu então outro sinal no céu: um grande Dragão, cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas; sua cauda arrastava um terço das estrelas do céu, lançando-as para a terra. O Dragão colocou-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho. Ela deu à luz um filho, que irá reger todas as nações com um cetro de ferro [...]. A profecia e sua interpretação é o tema do documentário O sinal, do canal a cabo americano da AT&T, a empresa telefônica.
O “filho” sendo parido é associado a Júpiter deixando a constelação da Virgem no dia 23; o alinhamento planetário e as estrelas mais brilhantes são a “coroa de doze estrelas”. Já o Dragão de Fogo é associado pelos literalistas à aparição do Planeta X, um planeta que muitos insistem (erroneamente) em afirmar que existe nos confins do sistema solar, a uma distância aproximadamente noventa vezes maior do que a do Sol e da Terra. Resumindo, os literalistas entrevistados no documentário afirmam com absoluta convicção que o Apocalipse chegaria no dia 23 de setembro de 2017, conforme profetizado por João. Felizmente, o documentário não fica apenas no catastrofismo, apresentando também a versão científica da história.
Nisso, representa o perene debate entre a ciência e a religião; neste caso, a religião mais extrema possível, que toma um livro sagrado como sendo uma narrativa profética da realidade e não um texto simbólico, construído para instruir as pessoas numa ética religiosa – no caso, uma ética cristã extremamente conservadora e retrógrada. Os cientistas, todos conhecidos e de alto gabarito, fazem o que podem para mostrar o absurdo da coisa. Um deles, em particular, o astrônomo Konstantin Batygin, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), explica como a existência de um objeto celeste como o Planeta X teria induzido o colapso da órbita da Terra: com tal massa e atração gravitacional, teria causado instabilidades na órbita terrestre e não estaríamos aqui para contar a história. No entanto, a Terra vem girando em torno do Sol há 4,5 bilhões de anos.
O Planeta X não existe. Se existisse, e estivesse perto, teria sido visto. O que não significa que não possam existir outros objetos nos confins do sistema solar, como explica Batygin. A palavra-chave aqui é “confins”: dado que a força da gravidade cai com o quadrado da distância, objetos muito distantes têm influência desprezível na Terra. É por isso, aliás, que não caímos no centro da galáxia, devorados pelo buraco negro gigantesco que existe lá. O que mais me espanta nessa discussão e em tantas outras, praticamente idênticas, que ocorreram antes é a convicção absoluta dos literalistas. O que disseram no dia 24, quando nada de catastrófico aconteceu, ao menos ao nível cósmico? Claro, tensões mundiais existem, e tanto Donald Trump quanto a Coreia do Norte ou algum outro líder ou grupo terrorista pode fazer algo terrível.
Haverá sempre alguma tensão política ou social no mundo que um oportunista pode interpretar como uma profecia bíblica. E por que não se aprende com a história, após incontáveis profecias não darem em nada? Outra coisa que me espanta nisso tudo: por que tantas pessoas ainda acreditam nesse tipo de profecia? Essa, para mim, é a pergunta-chave. Em meu livro O fim da Terra e do Céu: o apocalipse na ciência e na religião, explorei como muitas ideias apocalípticas de várias culturas fazem menção a eventos celestes, e como essas ideias transitaram da religião para a ciência. Eventos celestes estranhos ocorrem, e vêm sendo observados há milênios.
Como, para os crentes, os céus são a morada dos deuses (Deus é o “papai do céu”), atribuir uma aparição celeste estranha a uma mensagem divina é quase natural. Historicamente, eclipses, cometas, chuvas de meteoros e outros eventos astronômicos foram associados a mensagens divinas negativas, indicando uma tragédia iminente. A lógica é simples: se os céus se comportam de forma estranha, é porque os deuses não estão felizes. E se os deuses não estão felizes, nós pagaremos por isso; especialmente – para os cristãos – os pecadores. O medo de um fim apocalíptico expõe nossa fragilidade perante as forças da Natureza. Sabemos que pouco podemos fazer quando a ordem natural das coisas é rompida. O que podemos é tentar, coletivamente, fazer diferença no que vemos à nossa volta, das injustiças sociais à falta de acesso a uma educação de bom nível. Usar o medo como agente de mudança, como faz a tradição apocalíptica, não funcionou no passado e, certamente, funciona muito menos agora. Somos nós, e não os deuses, os agentes das mudanças que queremos ver no mundo.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Lavoura Arcaica / 14

Saltei num instante para cima da laje que pesava sobre meu corpo, meus olhos de início foram de espanto, redondos e parados, olhos de lagarto que abandonando a água imensa tivesse deslizado a barriga numa rocha firme; fechei minhas pálpebras de couro para proteger-me da luz que me queimava, e meu verbo foi um princípio de mundo: musgo, charcos e lodo; e meu primeiro pensamento foi em relação ao espaço, e minha primeira saliva revestiu-se do emprego do tempo; todo espaço existe para um passeio, passei a dizer, e a dizer o que nunca havia sequer suspeitado antes, nenhum espaço existe se não for fecundado, como quem entra na mata virgem e se aloja no interior, como quem penetra num círculo de pessoas em vez de circundá-lo timidamente de longe; e na claridade ingênua e cheia de febre logo me apercebi, espiando entre folhagens suculentas, do voo célere de um pássaro branco, ocupando em cada instante um espaço novo; pela primeira vez senti o fluxo da vida, seu cheiro forte de peixe, e o pássaro que voava traçava em meu pensamento uma linha branca e arrojada, da inércia para o eterno movimento; e mal saindo da água do meu sono, mas já sentindo as patas de um animal forte galopando no meu peito, eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a igreja que frequentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo pois me senti num momento profeta da minha própria história, não aquele que alça os olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente querer, e eu posso! vendo o sol se enchendo com seu sangue antigo, retesando os músculos perfeitos, lançando na atmosfera seus dardos de cobre sempre seguidos de um vento quente zunindo nos meus ouvidos, me rondando o sono quieto de planta, despenteando o silêncio do meu ninho, me espicaçando o couro nas pontas da sua luz metálica, me atirando numa súbita insônia ardente, que bolhas nos meus poros, que correntes nos meus pelos enquanto perseguia fremente uma corça esguia, cada palavra era uma folha seca e eu nessa carreira pisoteando as páginas de muitos livros, colhendo entre gravetos este alimento ácido e virulento, quantas mulheres, quantos varões, quantos ancestrais, quanta peste acumulada, que caldo mais grosso neste fruto da família! eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos!

Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

Estátua de mãe

          Mas antes, teve a ladainha de convencer a mãe de que deveria passar algum tempo fora de Dores do Indaiá. Disse-lhe que acabara de completar dezoito anos, havia sido uma aluna razoável, mas ainda não sabia que curso faria dali em diante; disse-lhe que voltaria quando chegasse a hora do regresso; que a hora de voltar a gente descobre de repente, num momento crucial; disse-lhe também que a amava, que sentiria saudade, mas o mais premente naquela fase da vida era ser todas as moças que ela pudesse ser, a partir dos nomes que ela mesma escolhesse para si, no intento de ser mais senhora de si.
A mãe, coitada, com a pia cheia de louça, perguntou que história é essa de ser todas as moças que ela pudesse ser, como assim a partir dos nomes que ela mesma escolhesse, que ideia é essa, minha filha.
Maria, já um tanto sedutora e cativante, argumentou que passar algum tempo fora da casa materna seria bom, diferente, aventuroso, e com certeza daria a ela Maria muitas oportunidades de aprender muitas coisas, coisas que a pia cheia de louça e a mãe sozinha não podiam ensinar.
Ao ouvir isso, “coisas que a pia cheia de louça e a mãe sozinha não podiam ensinar”, Bernardina ficou parada, virou uma estátua, uma mulher com a espuma de sabão escorrendo pelos braços. Uma travessa escorregou dentro da pia; a sorte é que não quebrou.

Bernardina também com apenas dezoito anos. Já havia perdido os pais, sentia-se totalmente sem rumo, e então quisera conhecer São Paulo. Estivera com a única irmã, mais velha, que morava em Belo Horizonte, que dizia que viajar faz bem, e decidira passar uns dias na maior cidade do Brasil. E estava naquele ônibus. Cochilara um pouquinho. Sentia-se alegrinha. De repente, a freada brusca. O susto. O pavor.
Minutos depois, enquanto os outros esvaziavam sacolas, bolsas e malas de mão, o mais jovem dos bandidos olhou para ela.
Hesitou por um breve instante.
E obedeceu à ordem do chefe.
Cometeu o crime.

Sua filha também correria riscos?
A estátua se moveu. Continuou a lavar as vasilhas.
Vou telefonar pro serviço da senhora. Uma vez por semana, pra dar notícias, combinado assim?
Maria acrescentou que sempre tivera vontade de viajar, de sentir como é estar numa cidade diferente, com pessoas estranhas, saber como resolver coisa ou outra por conta própria, de certa forma ser outra pessoa.
Bernardina teve que concordar. No fundo, ela sabia que a filha um dia lhe diria essas coisas.
E a moça de nome Maria, “a senhora”, “a escolhida”, assim que saiu de casa com a malinha de couro antiga, e na bolsa umas economias dadas pela mãe, caminhou solerte em direção à rodoviária, sabia que de fato já se chamava Zoraida.

Stella Maris Rezende, in A mocinha do mercado central

Um dicionário

             Alegria — Egoísmo generoso.
Amizade — Tu te tornas temporariamente irresponsável por aquilo que libertas.
Amor — Ela coça o lóbulo da orelha quando fica nervosa.
Arte — Tentativa de fazer coincidirem o que se diz com a forma como se diz. Nostalgia das coisas. Vontade de, com a língua, livrar-se dela.
Aurora — Pontualidade da promessa, disse Edmond Jabés.
As coisas — Não são sempre assim.
Certeza — vide Medo.
Cinismo — Patologia derivada do ressentimento, cujo disfarce é o pessimismo.
Destino — Construção narrativa de acasos.
Deus — O casco da tartaruga.
Dorival Caymmi — “Mas se, por exemplo, chover.”
Esquecimento — Verdade.
Exceção — O que deve abrir-se.
Fato — Versão.
Fatores — Diversos outros.
Felicidade — Nunca de frente; só de lado.
Ferida — Aquilo que, soprando, alivia.
Fotografia — Estranhamento de verem vivos os mortos.
Frase linda — Suprimir.
Futuro — Flecha tardia.
Hospital — Lugar onde o doente não deve ofender os médicos.
Imanência — “Minha filha, todo mundo é difícil.”
Instante — O tempo nos instando.
Kafka — A punição atrás do culpado.
Mãe — Sim.
Medo — Retesamento excessivo das partes moles do corpo e da alma.
Memória — Ficção.
Metáfora — Tudo, menos a vaca.
Mexerica — Integração perfeita entre natureza e civilização.
Ódio — À maionese.
Oportunidade — Perdê-la.
O que poderia ter acontecido — Também é um acontecimento.
Paciência — Raiva mascarada.
Perfeito — Particípio passado de “perfazer”.
Poesia — Recuperação do grau de impenetrabilidade das palavras.
Polícia — Quem a salvará de si?
Portabilidade — vide Tristeza 3.
Relativas — Algumas coisas não são.
Responsabilidade — Saber responder.
Reza — Perguntas certas.
Saudade e saudades — A coisa em si e a coisa com objeto.
Si — Aquilo sobre o que não se deve escrever.
Testemunha — Aquela sobre a qual ninguém dá testemunha.
Tristeza — 1. Passeio vespertino das palavras. 2. Enfileiramento desalinhado das palavras. 3. Palavras em casamata.
Vaca — O que não se pode metaforizar.
Vão — Para dizer o nome de Deus.
Vingança — “Cê vai se ver!”

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

Fingimento de estar infeliz

          Para alimentar a saudade do meu primeiro amor, comia retratos, rezava sem fé, mastigava hóstia, subtraía-me, entregava-me às amoras e seus aromas. Não havia mundo lá fora. Só amor, dentro e fora de mim. Virei dois, como a mulher de duas almas que visitava a minha rua. Faltavam-me rédeas para frear meu amor. Ele me roubava para o fundo do quintal, afogava-me nos rios, transportava-me para os pastos, subia-me nos galhos das árvores, mesmo sem fruto para colher. Eu amava, ou melhor, por inteiro, eu só era amor.
        Tranquei minha boca, não por falta da palavra. A felicidade abraçava-me, embaraçava-se em meu corpo, salgava-me com o sal de sua saliva. A felicidade se escondia no porão da casa, e cabia a mim visitá-la. Ser feliz era estar em pecado, eu me culpava e negociava o fingimento de estar infeliz. Caminhar por sobre o pecado demandava muitas pernas. Mentir-me em tristeza preservava a felicidade que me assaltara, eu suspeitava.
Ela decapitava um tomate para cada refeição. Isso, depois de tomar do martelo e espancar, com a força dos seus músculos, os bifes. Sofrer amaciava, talvez ela pensasse. Batia forte tornando possível escutar o ruído na rua. O martelar violento avisava aos vizinhos que comeríamos carne no almoço. Eu padecia pelo medo do martelo e a violência da mulher ao açoitar a carne.
Depois, com o sal na ponta dos dedos, ela salgava os bifes, lentamente, dos dois lados, como o rio da cidade. O sal agia sobre a carne morta e uma água ensanguentada se empossava no fundo da travessa de louça. O gato da minha irmã suspirava diante da sangrenta água. Os bifes eram finos — magros como eu — pelo amargor dos espancamentos. Ao depois de muita tortura, a carne se transfigurava em pedaços de rendas esgarçadas.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

Pour Mémoire

Não me toques
nesta lembrança.
Não perguntes a respeito
que viro mãe-leoa
ou pedra-lage lívida
ereta
na grama
muito bem-feita.
Estas são as fazes da minha fúria.
Sob a janela molhada
passam guarda-chuvas
na horizontal,
como em Cherbourg,
mas não era este
o nome.
Saudade em pedaços,
estação de vidro.
Água.
As cartas
não mentem jamais:
virá ver-te outra vez
um homem de outro continente.
Não me toques,
foi minha cortante resposta
sem palavras
que se digam
dentro do ouvido
num murmúrio.
E mais não quer saber
a outra, que sou eu,
do espelho em frente.
Ela instrui:
deixa a saudade em repouso
(em estação de águas)
tomando conta
desse objeto claro
e sem nome.

Ana Cristina Cesar

Os embrulhos do Rio

          Encontro o amigo Mário em seu escritório, à volta com papéis e barbantes, fazendo um grande embrulho. São encomendas e presentes que vai mandar para sua gente em Santa Catarina. Inábil e carinhosamente ele compõe o grande embrulho, que sai torto e frágil.
Não me proponho a ajudá-lo, porque sou seu irmão em falta de jeito.
Aparece, a certa altura, um rapazinho, que olha em silêncio a faina de Mário. Este compreende a ironia e compaixão do tímido sorriso do rapaz e, com um gesto, pede sua ajuda. Em meio minuto, o moço desmancha tudo e faz daquele embrulho informe e explosivo um pacote simples, sólido e firme.
Mas não estou pensando nessa qualidade que sempre me pareceu milagrosa, essa certeza das mãos em ordenar as coisas para nós rebeldes e desconjuntadas, para esses privilegiados, obedientes e fáceis. Penso nas mãos que, em uma praia distante, vão desembrulhar essas coisas; na alegria com que no fundo da província a gente recebe os presentes.
Quando meus pais ou minha irmã voltavam de um passeio ao Rio, nós todos, os menores, ficávamos olhando com uma impaciência quase agônica as malas e valises que o carregador ia depondo na sala. A alegria maior não estava no presente que cada um recebia, estava no mistério numeroso das malas, na surpresa do que ia surgindo. Uma grande parte, que despertava exclamações deliciadas das mulheres, não nos interessava: eram saias, blusas, lenços, cortes de trapos e fazendas coloridas, joias e bugigangas femininas. A mais distante das primas e a mais obscura das empregadas podia estar certa de ganhar um pequeno presente: a alegria era para todos da casa e da família, e se derramava em nossa rua pelos vizinhos e amigos. Além dos presentes havia as inumeráveis encomendas, três metros disto ou daquilo, um sapatinho de tal número para combinar com aquele vestidinho grená, fitas, elásticos, não sei o que mais.
Se esse mundo de coisas de mulher nos deixava frios e impacientes, os brinquedos e os presentes para homens e coisas para uso caseiro eram visões sensacionais. Jogos de papelões coloridos, coisas de lata com molas imprevistas, fósforos de acender sem caixa, abridores de latas, sopa juliana seca, isqueiro, torradeiras de pão, coisas elétricas, brilhantes e coloridas — todo o mundo mecânico insuspeitado que chegava ao nosso canto de província. E também programas de cinema, cardápios de restaurantes...
Seriam, afinal de contas, coisas de pouco valor: os grandes engenhos modernos estrangeiros estavam fora de nossas posses e de nossa imaginação. Mas para nós tudo era sensacional; e depois de esparramado sobre a mesa ou pelo chão o conteúdo da última valise, e distribuídos todos os presentes, ainda ficávamos algum tempo aturdidos por aquela sensação de opulência e de milagre. E o dia inteiro ouvindo a conversa dos grandes, que davam notícias de amigos, comentavam histórias, falavam da última revista de Araci Cortes, no Recreio, da última comédia de Procópio ou de Leopoldo Fróis ou da doença dos nossos parentes de Vila Isabel — ainda ficávamos tontos, pensando nesse Rio de Janeiro fabuloso, tão próximo e tão distante.
Aos 9 anos de idade, vim pela primeira vez ao Rio, trazido por minha irmã. Voltei muitas vezes; estou sempre voltando. Aqui já me aconteceram coisas. Mas o grande encanto e o máximo prestígio do Rio estavam nas malas e nos embrulhos abertos diante dos olhos assombrados do menino da roça.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

O rio Grande

          O rio Grande ensinava preguiça. Escorria sonolento. Ia como quem não quer ir. Empurrado. O Heládio Brito, poeta, sabe o ser dos rios: “Eu vim de ver o rio, o frouxo ir das águas, pesadas delas mesmas, grossas das lonjuras vindas no irem sendo rio. Líquido boi cansado carregado de peixes...”. Guimarães Rosa, talvez contemplando o São Francisco, confessou o seu amor pelos rios. “Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma dos homens. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade...”. E Heráclito, o obscuro, filósofo grego, tomou o rio como a imagem do mundo. Tudo é rio. Tudo passa sem parar. Não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. Assim era o rio Grande. Ensinava filosofia. Filosofia tao.
Mas, ao se aproximar de Lavras, o rio Grande era repentinamente espremido numa estreitíssima garganta de pedras, pela qual as águas passavam com fúria. Era o “funil” que passou a ser agregado ao nome da cidade que virou Lavras do Funil. Lugar de perigo. Muitos distraídos foram tragados pelas águas. Mas era um lugar bom de se pescar porque os peixes, subindo o rio manso em busca das nascentes, eram parados pela força das águas. Pesquei lá muitas vezes. Hoje não existe mais. Construíram uma barragem. O funil foi coberto pelas águas do progresso. Sua fúria amansou. Na fundura serena das águas não mais estranguladas pela garganta estreita os peixes nadam tranquilamente. Dali para baixo o rio ficava preguiçoso de novo, prestando-se à navegação. Foi então que homens progressistas da cidade de Lavras, entre eles o doutor Jorge, avô materno de minha mãe, e o seu genro capitão Evaristo, pai de minha mãe, tiveram a ideia de montar uma companhia de navegação que, começando no porto de Ribeirão Vermelho, a oito quilômetros de Lavras, desceria até Boa Esperança. O vapor, parecido com aqueles do rio Mississípi, veio dos Estados Unidos. Imagino que o seu transporte do Rio de Janeiro até Ribeirão Vermelho deve ter sido uma epopeia a se comparar com a epopeia do transporte da pedra do altar para o convento de Mafra descrito por Saramago, no seu livro Memorial do convento. Rio abaixo, de Ribeirão Vermelho a Boa Esperança, a viagem levava dia e meio. O vapor, elegante, era dotado de camarotes. Rio acima, três dias, duas noites sobre as águas. Devia ser bonito e silencioso. Foi nesse vapor que os casadinhos de novo, meu pai e minha mãe, viajaram naquele dia de começo de setembro do ano de 1919. Os ipês amarelos estavam em flor.
Aquele casamento ligava duas fortunas e dois sangues: um sangue ruim, misturado, e um sangue azul, supostamente puro. Mas plebeu que se casa com princesa fica nobre. A excelentíssima esposa do filho da dona Sophia tinha sangue azul e era pianista. Seu piano Pleyel, presente de casamento do capitão Evaristo, seu pai, em breve chegaria a Dores diretamente de Paris, alterando a estatística do Almanak. Realizava-se o sonho da dona Sophia.
O foguetório era para anunciar que os nubentes acabavam de desembarcar do vapor Doutor Jorge, no porto do rio Grande, depois de uma viagem de um dia e meio rio abaixo, desde o porto de Ribeirão Vermelho. Todo mundo tinha de saber. Naquele momento a comitiva estava a caminho, os homens cavalgando em selas e arreios, minha mãe cavalgando em silhão porque em Dores não havia liteira. Silhão, se é que você não sabe, foi a solução encontrada pelos artesãos defensores da castidade para evitar a indecência de uma mulher cavalgando de pernas abertas, como os homens. No silhão cavalgava-se assentado. De fato, era perigoso para uma mulher cavalgar de pernas abertas, mormente se fosse virgem. Havia sempre duas possibilidades, pelo menos na imaginação dos homens. Primeira, que a virgem viesse a perder sua virgindade, o que a infelicitaria pelo resto da vida, posto que o marido não acreditaria nas explicações que ela daria na noite de núpcias. Segunda, mais realista, que as pressões rítmicas da sela sobre as partes secretas da mulher viessem a lhe causar prazeres proibidos. Aqueles movimentos do cavalo, especialmente se for trotão, sugerem imediatamente os movimentos de um coito e os seus deleites, coisa que eventualmente era confirmada pelo sorriso de prazer da amazona. Ora, isso é incompatível com o caráter puro de uma excelentíssima mulher honesta. Mulheres honestas não gostam de sexo. Por isso a mulher tinha de ir assentada no silhão, pernas castamente fechadas, o seu cavalo a andar passo a passo, como se estivesse seguindo uma procissão.
O vapor Doutor Jorge, eu o vi 22 anos depois, quando tinha sete anos, afundado no porto de Ribeirão Vermelho. Dizem que a sua chaminé ainda pode ser vista hoje quando o rio está baixo.
Minha avó sorriu feliz. O seu sonho de nobreza, acrescentado ao da riqueza, estava realizado.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Torto Arado / 6

          Demorou algumas semanas até que Crispina, em parte, se pacificasse. Antes disso foi preciso conviver com seus gritos e gemidos, dia e noite. De dia, já era de certa forma esperado. À noite, nos arrepiávamos e acordávamos aturdidos. Via meu pai Zeca levantar de seu quarto e seguir acompanhado de minha mãe para onde estava a interna. Escutávamos tudo de onde estávamos, minúsculo cômodo onde nós, irmãos, dormíamos amontoados, mas quando as palavras chegavam até mim eram apenas sussurros que mal conseguia distinguir. Minha mãe passava com o candeeiro aceso no quarto para bem-fadar nosso sono. Essa rotina se repetiu por semanas.
Quando retornei certa manhã, depois de aguar as plantas do quintal – e Crispina já reagia bem às rezas e poções de raízes que meu pai administrava –, ouvi as duas irmãs conversando baixo, a princípio, mas depois se tornou um crescente exaltar de vozes vindas do quarto onde estavam. Tinham acabado de voltar de um passeio pelo terreiro da casa, consentido pelo curador. Não pude escutar tudo, mas suas sentenças passaram o resto do dia martelando em minha cabeça: “Não foi verdade”, “Foi, sim”, “Você adoeceu, Crispina”, “Não estou doida, Crispiniana”, “Não diga uma tolice dessas na frente de nosso pai”, “Que você estava no mato com ele”, “Isidoro nem estava por lá essa hora”, “Isidoro fez promessa de morar comigo”, “Fez promessa não, senhora. Você que está inventando coisa”, “Fala isso porque é você que quer ele e estava lá no mato”, “Maluca, por isso está aqui”.
Escutei tudo suavizando minha respiração, atenta ao que diziam, na mesma medida que estava alerta à presença de minha mãe, que poderia chegar a qualquer momento e me surpreender escutando a conversa. Sabia bem que repreensão teria se fosse apanhada ouvindo duas pessoas mais velhas. Foi quando Crispina gritou para que a irmã saísse dali, que a deixasse em paz, e das brechas da cortina que separava os cômodos, vi seus olhos ficarem vermelhos feito dois torrões de brasa. Ela começou a salivar de tal forma que se formou um muco leitoso no canto da boca. Eram gritos misturados ao choro alto. O caos se instaurou naquele instante, as duas choravam até que, depois de certo ponto, rolavam pelo chão retirando seus lenços e se agarrando aos cabelos.
Eu estava surpresa, mas Belonísia se aproximou de mim rindo da cena. Minha mãe, que lavava utensílios com a água que eu havia pegado no rio mais cedo, deixou as panelas no jirau e correu para o quarto. “Mas o que é isso?”, disse avançando para tentar separar as duas, “Anda, vocês duas” – olhou para mim e Belonísia – “me ajudem aqui”. Seguramos Crispiniana pelos braços. Ela tinha os olhos lacrimosos e o cabelo em pé de tantos puxões que havia levado; minha mãe segurou os dois braços de Crispina, a perturbada, com os olhos vítreos e a boca repetindo as acusações que havia lançado à irmã. Minha mãe ameaçou chamar compadre Saturnino para levar as duas dali, “e aí não tem remédio, acaba o tratamento e não vou querer você de volta, Crispina”. Nos braços de minha mãe mesmo, Crispina, agitada, chorou repousando a cabeça nos seus seios. Salustiana Nicolau ordenou que Crispiniana saísse com nós duas e que as deixássemos a sós por um tempo.
Crispiniana ajeitou a roupa rasgada em seu corpo e foi para o quintal. Chorou em silêncio e, quando seus olhos ficaram cansados de verter lágrimas, pegou os utensílios que minha mãe lavava para terminar o trabalho. Eu e Belonísia continuamos na sala, fingindo brincar em silêncio para escutar o que Crispina dizia. Crispina repetiu o que havia dito, que encontrou seu noivo deitado com a irmã na roça dele. Que foi tomada de um sentimento de amargor que nunca havia experimentado. Que já não atinava mais coisa com coisa e foi tomada de uma coisa ruim que a perturbou por completo. Só veio recobrar a consciência quando já estava instalada em nossa casa, há semanas, e aos poucos foi recordando os dias que antecederam seu desaparecimento.
O resto da história nós sabíamos de escutar compadre Saturnino contar no dia em que chegaram à casa, e mais as prosas das vizinhas, compadres e comadres que repetiam a novidade nos caminhos que cortavam a fazenda. Depois de sumir sem deixar vestígios, pai, noivo e irmãos procuraram Crispina por roças, na mata que cercava o rio Santo Antônio, pelos pântanos e brejos dos marimbus, sem êxito. O pai, atormentado com aquele inesperado desaparecimento, chegou à cidade caminhando e procurou por ajuda da polícia. A cada dia chegava uma notícia nova, de que Crispina estava indo para um povoado nas cercanias da fazenda, ou que alguém a havia visto subindo num ônibus em direção à capital, ou que ouviram urros de uma mulher louca durante a madrugada, como se fosse um bicho. Ou ainda, que tinham visto alguém tirando frutas do quintal, que compadre Domingos havia atirado numa pessoa pensando que era uma raposa, e quando Saturnino chegou tonto na casa do compadre, teve a história desmentida.
Oito dias depois, Crispina foi encontrada por um coveiro deitada entre os túmulos no cemitério da cidade, incapaz de responder sobre quem era, muito menos onde vivia e o que estava fazendo ali. Surgiu poucos dias depois do feriado de finados, deitada em meio a flores murchas que já haviam perdido a frescura, mas ainda guardavam o perfume das coisas que mirram e diminuem em sua própria finitude. Angélicas, crisântemos, lírios deixados pelas famílias mais abastadas, e flores artificiais, de arame e papel crepom desbotado pelo tempo, pelas famílias desprovidas. Estava mais magra, abandonada ao próprio esquecimento, suja da terra que revolviam para sepultar os mortos, da longa caminhada, com os pés e mãos feridos, com um odor forte de suor e urina. Compadre Saturnino foi ao encontro da filha, submisso ao destino, aceitando o imprevisto. Não contou com a boa vontade de Sutério para buscá-la com o Ford Rural. O gerente havia alegado trabalhos para não fazer o transporte no carro do patrão. Daí que veio a ideia de laçá-la como se laçam os animais na lida do campo ou os perturbados conduzidos aos curadores de jarê. E caminhando por muitas horas chegaram aos domínios de Zeca Chapéu Grande, para que pudesse curá-la do infortúnio da loucura que havia se abatido sobre seu juízo.
De loucura meu pai entendia, assim diziam, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida. Os curadores serviam para restituir a saúde do corpo e do espírito dos doentes, era o que sabíamos desde o nascimento. O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. Diziam que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar noutro, deixando a terra para entrar no rio. Gente que perseguia a fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se frustrava depois de tempos de trabalhos fatigantes, quebrando rochas, lavrando cascalhos, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma ínfima o seu horizonte. Quantos do que encontravam a pedra estavam libertos do delírio? Quantos tinham que proteger seu bambúrrio da cobiça alheia, passando dias sem dormir, com os diamantes debaixo do corpo, sem se banhar nas águas dos rios, atentos a qualquer gesto de trapaça que poderia vir de onde menos se esperava?
Crispina tentou de todo jeito fazer com que minha mãe mandasse a irmã de volta para casa, que a deixasse ali sozinha. Minha mãe, de forma assertiva, disse que o passado ficaria para trás, que elas eram irmãs e naqueles dias que se encontrava recolhida em nossa casa Crispiniana tinha zelado por ela como se fosse uma mãe. “Onde já se viu irmãs da mesma barriga viverem a vida como se fossem inimigas?”, perguntou. Disse que nunca em sua vida tinha visto algo assim, e que aquilo deveria trazer má sorte para a vida das duas. As gêmeas voltaram a se falar e conviver como antes no resto da temporada em nossa casa. Não brigaram mais, porém tampouco “se uniram como os dedos da mão”, diria minha mãe certo dia para meu pai.
Crispina recobrou a saúde, o viço da pele, as forças de jovem lavradora, como grande parte das mulheres que residiam na fazenda. Havia brilho em seus olhos e se tornou novamente um espelho da irmã, Crispiniana. Logo seria hora de regressarem para as margens do Santo Antônio. Agora, mais que antes, laços concretos nos uniam: a mão de meu pai estava repousada, enquanto vivesse, em sua cabeça. Repousada nas cabeças dos membros de sua família. Zeca Chapéu Grande não era apenas um compadre. Era pai espiritual de toda a gente de Água Negra. Quando deixou nossa casa, ela voltou, contra a vontade do pai, a se encontrar com Isidoro. Pegaram seus pertences e foram morar juntos numa casa de barro que levantaram na parte destinada à morada dos trabalhadores. Da porta da casa do pai, Crispiniana mirava a vida da irmã com sua grande paixão. Não acreditávamos que a história das irmãs fosse terminar daquela forma.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado