domingo, 31 de janeiro de 2021
Hora de visita
—
Gostei
de nascer, doutor,
mas,
agora, já chega.
O
médico baixou o rosto, incapaz de palavra.
Depois,
se acertou e disse:
—
Amanhã,
o senhor volta para sua casa.
O
velho doente
superou
o cansaço das palavras:
—
Agora,
doutor,
a
minha casa é a minha cama.
Que
ele se ia afeiçoando
ao
tamanho dos que partem.
O
médico cortou no drama:
—
Já
é hora da visita.
Já
lhes ouço os passos no corredor.
Sorriu:
a solidão preferia.
Cada
visita
é
uma despedida,
os
parentes junto ao leito,
contemplam
apenas a dor de serem eles,
amanhã,
os visitados.
—
Estão-me
velando sem velas.
Depois
entraram os parentes,
numerosos,
mas
nenhum chegando nunca a estar ali,
nenhuma
ponte cruzando os dolorosos abismos.
Então,
uma
mão pequena,
asa
sem ave,
ascendeu
do chão
e
sobre o leito pousou.
Seria,
por
certo,
a
mão de um neto
que
buscava o abraço sem braço
e
ali se quedou em desajeitada carícia.
Ou
talvez fosse
a
mão de um anjo.
Só
então,
começou
a visita.
Mia Couto
Sobre meus ombros
Que
lógica, afinal, há na memória? Lembramos de muita coisa quando
queremos, e grande parte de nossa vida se baseia nisso. Mas também
lembramos do que não queremos, do que nos faz mal, de coisas
desimportantes e esquecemos do que gostamos, do que nos fez bem, de
algo de que precisaríamos com urgência. E nem falo dos efeitos mais
compreensíveis da idade, que, como com todo o resto, também agem
sobre a lembrança e o esquecimento. O contrassenso é total, quando
penso, por exemplo, que, aos cinquenta e cinco anos — idade para já
se esquecer, ao abrir a geladeira, o que é que se foi pegar lá —,
esqueço do nome de uma de minhas primas mais queridas, e, por outro
lado, lembro dos nomes de todos os jogadores da seleção de 74, time
de pouca importância e no qual eu mal prestei atenção. Por que
lembro desses nomes? O que faz com que minha memória traga coisas
que não me dizem respeito, não me dizem mesmo nada, não têm
relação com algo que me traumatizou, nada absolutamente? Teria a
memória também a função de fixar amenidades, simplesmente porque
sim, porque, como o espancador de Kafka, cuja tarefa é só espancar,
a memória lembra assim, à toa, só por lembrar?
Se
não fosse assim, por que esqueço de como era o braço de meu pai
sobre meu ombro, mas lembro de sua camisa para fora da calça; da
coca-cola que ele bebia inteira, direto do gargalo da garrafa, num
único gole, e que eu olhava admirada e invejosa; do sorvete Ki-Show
que nós comíamos juntos e escondidos de minha mãe no boteco da
esquina de casa; da linguiça que devorávamos na rua São Bento, ele
que não podia comer carne de porco; do elástico de borracha que
envolvia o maço de dinheiro que ele guardava no bolso lateral da
calça de tergal; do caranguejo de plástico que ele comprava no
centro da cidade e punha sem ninguém ver no sofá de casa para que,
quando eu voltasse da escola, sem dar pela coisa, me assustasse e eu
na verdade não me assustava, mas fingia que sim para agradá-lo; do
contorno de seu nariz enorme que eu desenhei com a mão quando o vi
morto sob um lençol; do momento em que eu disse que não gostava
dele e ele saiu desembestado pela rua, dizendo que tinha criado um
monstro e eu indo atrás me desculpando, pai, pelo amor de Deus, pai,
me desculpe, não foi isso o que eu quis dizer, só desabafei; de
quando eu ia junto com ele ao banco na rua da Graça e ria porque ele
fazia contas em voz alta e porque “vezes” em iugoslavo se diz
“puta” e ele falava: “tri puta tri puta dva”; de como ele me
agarrava pelas mãos, quando eu era bem pequena, na praia, e me
lançava por baixo de suas pernas ou por cima dos ombros; de quando
implorava que eu fosse para o mar junto com ele, porque afinal o mar
é que era a melhor terapia, e que eu parasse de frequentar o
psicólogo, porque nada se resolvia falando; de como o filme que ele
mais amava na vida era Horizonte
perdido,
e que Shangri-lá, sim, é que era o lugar perfeito e não esse país
ridículo onde vivíamos; de como ele admirava tanto Jânio Quadros
como Fidel Castro porque ambos eram seguros do que diziam e realmente
se interessavam pelo povo; de como ele era a favor de uma ditadura do
proletariado; como ele queria ser “ou guarda de trânsito ou
presidente da República ou um milionário da fundição, igual ao
Antônio Ermírio de Moraes”; como ele achava que os grandes males
do século XX tinham sido “a empregada doméstica, a pílula
anticoncepcional e a televisão”; da forma nostálgica e sensual
como ele admirava as pernas da Elba Ramalho; da caneta Bic que ele
mantinha sempre no bolso da camisa como se fosse uma Mont Blanc, não
permitindo que ninguém a pegasse emprestado; como ele chamava os
funcionários de sua pequena fábrica de “Ilustre!”; como ele
pedia que eu lhe desse um beijo na bochecha, dizendo “aplica”;
como ele gostava de bife com batatas fritas e só pedia esse único
prato em todos os restaurantes aonde íamos, fosse na churrascaria
mais cara da cidade ou na cantina do bairro; como ele conversava com
os mendigos da rua, que frequentavam sua mesa e a quem ele dava
mesadas ou semanadas regulares; como ele me dizia “conta alguma
coisa, para de estudar um pouco e vem conversar com o teu pai”;
como ele perguntava para todos os amigos que chegavam em casa: “que
acha da conjuntura política e econômica internacional?”; como ele
odiava borrachudos e largou uma casa alugada por um mês em Ilhabela
depois de apenas dois dias, por causa deles; como ele e minha mãe
sempre pediam os mesmos sabores de sorvete no Alaska, limão e
pistache; como ele não gostava de viajar porque dizia que em todas
as cidades se vê sempre a mesma coisa: igrejas, monumentos e museus;
como ele se trancava com o primeiro neto em seu quarto, pendurando do
lado de fora da porta um aviso “não perturbe”, e ficava por mais
de quatro, cinco horas brincando com ele; de como quando, ao ser
advertido por mim sobre a grande quantidade de brinquedos que ele
comprava para esse neto e de como isso podia fazer mal ao menino, ele
respondeu, mas se ele fica feliz, e então eu fico também, qual é o
problema?; como ele se orgulhava, nas cartas que escrevia aos
clientes, de usar a palavra “referente”, porque a considerava uma
palavra chique; como ele fingia ter um caso com uma de suas
costureiras, ou talvez tivesse mesmo; como ele me pedia que apertasse
a cabeça dele, que sempre doía, e quando eu apertava, ele dizia,
“ai de ió”, que eu nunca quis saber o que quer dizer, mas
intuitivamente sabia.
Mas
de seu braço, que, tenho certeza, ele colocava sobre meu ombro, com
aquela sua mão grande, a sensação desse peso leve e quente eu não
consigo lembrar.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
Nkali
É impossível falar sobre a história
única sem falar sobre poder. Existe uma palavra em igbo na qual
sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo: nkali.
É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer “ser maior
do que outro”. Assim como o mundo econômico e político, as
histórias também são definidas pelo princípio de nkali:
como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e
quantas são contadas depende muito de poder.
O poder é a habilidade não apenas de
contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua
história definitiva. O poeta palestino Mourid Barghouti escreveu
que, se você quiser espoliar um povo, a maneira mais simples é
contar a história dele e começar com “em segundo lugar”. Comece
a história com as flechas dos indígenas americanos, e não com a
chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente.
Comece a história com o fracasso do Estado africano, e não com a
criação colonial do Estado africano, e a história será
completamente diferente.
Há pouco tempo dei uma palestra numa
universidade e um aluno me disse que era uma grande pena que os
homens nigerianos fossem agressivos como o personagem do pai no meu
romance. Eu disse a ele que tinha acabado de ler um livro chamado O
psicopata americano e que achava que era uma grande pena que os
jovens americanos fossem assassinos em série.
Bem, obviamente eu disse isso num leve
ataque de irritação. Mas jamais teria me ocorrido pensar que, só
porque li um romance no qual o personagem era um assassino em série,
ele de alguma maneira representava todos os americanos. Não digo
isso porque me considero uma pessoa melhor do que esse aluno, mas
porque, graças ao poder econômico e cultural dos Estados Unidos,
tive acesso a muitas histórias sobre esse país. Já tinha lido
Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill. Não tinha uma história única
dos Estados Unidos.
Quando descobri, alguns anos atrás, que
se esperava que os escritores tivessem tido infâncias muito
infelizes para ser bem-sucedidos, comecei a pensar em como inventar
coisas horríveis que meus pais poderiam ter feito comigo. Mas a
verdade é que tive uma infância muito feliz, cheia de riso e amor,
numa família muito próxima.
Também tive avós que morreram em campos
de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não recebeu tratamento
médico adequado. Um dos meus melhores amigos, Okoloma, morreu num
acidente de avião porque nossos caminhões de bombeiros não tinham
água. Minha infância transcorreu durante governos militares que
desvalorizavam a educação, de modo que às vezes meus pais não
recebiam seus salários. Então, quando eu era criança, vi a geleia
desaparecer da mesa do café, depois a margarina, depois o pão ficou
caro demais, depois o leite foi racionado. Acima de tudo, uma espécie
de medo político normalizado invadiu nossa vida.
Todas essas histórias me fazem quem eu
sou. Mas insistir só nas histórias negativas é simplificar minha
experiência e não olhar para as muitas outras histórias que me
formaram.
A história única cria estereótipos, e
o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que
são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única
história.
É claro que a África é um continente
repleto de catástrofes. Existem algumas enormes, como os estupros
aterradores no Congo, e outras deprimentes, como o fato de que 5 mil
pessoas se candidatam a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas existem
outras histórias que não são sobre catástrofes, e é muito
importante, igualmente importante, falar sobre elas.
Chimamanda Ngozi Adichie, in O perigo de uma história única
sábado, 30 de janeiro de 2021
Os Almanaks
Ignoro como foi que chegou às mãos do
meu pai aquele exemplar do Almanak Sul-Mineiro do século XIX.
Estava num lamentável estado de conservação, faltando-lhe as
páginas iniciais onde normalmente aparecem o nome do autor, o nome
da gráfica e a data de publicação. Examinei atentamente o que
restava, folhas rasgadas, soltas, em busca de alguma pista que me
permitisse inferir a data. Meu esforço não foi em vão. Na parte
dedicada ao município de Lavras, à folha 586, deparei-me com uma
cifra referente ao número de escravos existentes no município, que
somavam, em dezembro de 1882, 6053, número menor que os 7452 que
havia em 28 de setembro de 1873. O Almanak explica que esse
declínio no número de escravos se deveu a alforrias de negros,
patrocinadas por um Fundo de Emancipação de Escravos, no valor de
64:660$000. A publicação do dito Almanak, então, se deu em
alguma data entre o ano de 1882 e 1888, data em que escravidão foi
abolida. A cidade onde nasci encontra-se ali referida com o nome de
Dores da Boa Esperança. Entretanto, por ocasião do meu nascimento,
em 1933, o “Boa Esperança” estava em desuso e a cidade era
conhecida simplesmente como Dores. Nasci “dorense”.
O Almanak descreve a geografia, a
cidade, a religião, as atividades culturais, as organizações de
caridade, nomeia os profissionais mais importantes e relata os
acontecimentos dignos de nota, como foi o caso de uma ventania nunca
vista que fez voar uma rodeira de carro de bois por uma légua. No
outro Almanach Sul-Mineiro de que disponho, organizado e editado por
Bernardo Saturnino da Veiga e publicado em 1874, o autor diz que
“o terreno é de conhecida uberdade e banhado pelo caudaloso rio
Grande, que passa á duas léguas da cidade ”. “Compõe-se a
cidade de 240 casas, das quaes 5 de sobrado e 24 assobradadas,
formando ellas seis largos ou praças e dez ruas. Existe no largo da
matriz um chafariz público.”
Os chafarizes eram marca do progresso de
uma cidade. Além de serem as fontes de água que abasteciam as casas
da cidade, eles eram os lugares onde as pessoas se encontravam para
conversar e namorar.
O autor do Almanak continua:
Os cereais são cultivados para o
consumo local, mas já se faz também considerável exportação de
queijos fabricados em muitas fazendas, que são os melhores da
província no consenso geral e tão bons como os mais afamados da
Europa. Possui um serviço de correios, a cargo de estafetas que
levam a correspondência para Três Pontas aos dias 4, 10, 16, 22 e
28 de cada mês.
A seguir são nomeados os açougues, os
advogados, o vigário, os alfaiates, os capitalistas, os fabricantes
de cerveja e de licores, os fazendeiros, os ferradores, o fogueteiro,
as costureiras, os cigarreiros, as doceiras, as floristas, os
ourives, as parteiras, o pharmaceutico, o pintor, os rancheiros, os
pedreiros, entre eles vários escravos, os selleiros, os sapateiros,
as tecedeiras, os hotéis, os marceneiros, o médico, os
estabelecimentos de secos e molhados, o encarregado da música, as
olarias, os depósitos de sal.
Relata ainda o Almanak de data
incerta que havia em Boa Esperança quatro pianos.
Meu pai não se interessou por esses
detalhes. O que lhe importava era outra coisa. Ajustados os óculos,
ele deslizava o dedo sobre a lista dos notáveis da cidade, na
esperança de ali encontrar algum antepassado ilustre com o sobrenome
“Espírito Santo”. Encontrou o “Espírito Santo” entre os
tropeiros. Ele não se abateu. Ele nunca se abatia. Era um
feiticeiro. Mudava tudo pelo poder das palavras. Assim, ele falou e a
mágica aconteceu: “Tropeiro. Esse meu antepassado era dono de uma
empresa de transportes...” .
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
A mulher de 50 é o elo perdido
Eu vi Vera Fischer nua e você tem todo o
direito de dizer grande coisa, meu chapa, porque só não viu quem
não tem 50 pratas para gastar com teatro. Vi Vera à vera, naquela
hora em que os meninos se transformam em homens, como anunciava o
velho filme sobre tempestade no mar, e acho, a propósito, que é um
slogan perfeito também para se anunciar uma peça, como a que ela
está fazendo, sobre a primeira noite de um homem. São eventos das
mesmas proporções monumentais. Divisores de água. Há quem medre.
Há quem enfrente as ondas e nesse momento faça surgir dali um leão
com forças que ele próprio julgava impossíveis.
Eu vi Vera Fischer nua, mas deve ter sido
por isso que me perco em rodopios e não vou direto ao ponto. Não
quero falar de tempestade marítima nem leões-marinhos nem furacões
louros. Nada disso. Eu vi Vera Fischer nua e, nessa eterna busca em
que sempre acabo me metendo atrás das delícias perdidas, nessa caça
insaciável do prazer que às vezes julgo terem nos surrupiado, eu,
ao mesmo tempo que me alumbrava por estar tão perto da quinta
estrela no céu de Vénus, eu, ao mesmo tempo, fui conduzido por meus
hormônios peripatéticos a imediatamente viajar no tempo.
Caraca, onde mesmo foram parar essas
doidas redondas?!
Elas vinham aos borbotões e ainda esta
semana eu vi, já que hoje tomei afeição pelo verbo, eu vi uma das
mais estupefacientes delas na chanchada “Camelô da Rua Larga”,
participando do time das girls que simulavam uma praia na
produção, de 1958, da Herbert Richers. Vista assim de agora,
coitada, a moça era desprovida, pela fartura das carnes, de qualquer
atributo que a levasse ao pano de boca de um filme. Totalmente fora
do peso. No entanto, toda desenhada em compasso, foi diante dela que
o camelô Zé Trindade parou na chanchada e disparou o elogio ao
sabor da época. “Com tanta curva assim”, galanteava o pseudogalã
nordestino, “não há motorista que não derrape, minha filha.”
Eu vi Vera Fischer cheia de curvas no
primeiro ato de “A primeira noite de um homem” e sei da vida e do
teatro apenas o suficiente para entender que nesses momentos um homem
normal teme pela possibilidade de não chegar com o equi- líbrio
ajustado ao segundo ato dessa grande peça em que nos meteram. Vi-a
nua, já o disse. Fiquei confuso, como já se percebeu. Mas depois de
pensar na tempestade que define o caráter dos meninos, depois de
lembrar como eram desenhadas essas senhoras que nos endoideciam, eu
acabei chegando ao ponto cronical do assunto, e antes ainda de
anunciá-lo aqui, faço um parêntese para agradecer ao Lavolho, o
colírio com aquele baldezinho azul que me abriu a vista na infância
e hoje me permite botar em foco o que interessa nesta crônica.
Caraca!, como podem ser bonitas as
mulheres entradas nos cinquentanos!
Jamais serei visto desenhando escala de
valores numa matéria desse tipo, eu que sempre tive como tipo
preferido aquela que, primeiro, está respirando, e, em seguida, a
que me dá bola. Todas deusas, todas merecedoras de epifanias,
hosanas, e é o que aqui se tem feito quando há inspiração. Das de
20, não mais me ocupo. Foram genialmente flagradas por Paulo Mendes
Campos em “Ser brotinho”, no justo momento em que lançavam fogo
pelos olhos – e pelo que vejo ao redor, continuam mais ou menos
assim, com o detalhe tão 2004 que agora marcam para sempre o corpo
do outro com o piercing em brasa.
As de 30, que vibravam tristonhas na voz
de Miltinho, agora pisam aceleradas e planam, entre petulantes e
angustiadas, como se estivessem sobre a mesma sandália de US$ 400 da
Carrie em “Sex and the City”. As de 40 batem o fino. Todos os
filhos postos, vagam com aquela determinação de quem sabe
direitinho onde é o ponto G e também o melhor endereço para
decorar o apartamento deixado pelo ex.
Eu vi Vera Fischer nua aos 52 anos e, não
sei se foi porque a peça começou com “Dream a little dream of
me”, com os Mamas and Papas, e acabou com “There’s a kind of
hush”, dos Herman’s Hermits, eu só sei que me emocionei em
pensar que uma mulher nessa idade, hoje, não pode mais passar
adiante nem as canções românticas que ouviu na juventude nem a
educação que recebeu dos pais.
Ela foi a primeira a ouvir rock e a
última a debutar. A primeira a saber da pílula e a última a casar
virgem. A primeira a escrever liberdade no muro e a última a sonhar
da vida apenas o que fosse a saia plissada do curso normal, a mesa
posta na janta e a firme determinação de ser fiel até que a morte
a separasse do sacrossanto marido. A mulher dos 50 é o elo perdido,
o bastão de passagem que caiu no chão. De nada lhe serviu o curso
da mamãe para ser a rainha do lar, de nada do que aprendeu pode
tirar o chip que ajude a filha a se conectar na banda larga da nova
felicidade.
E, no entanto, há uma geração de
mulheres aos 50, aos 60, que sobreviveu ao marido machista, ao
preconceito careta, pegou o bastão no chão e reconstruiu a corrida
de um jeito próprio, como Vera faz no teatro, que permite mostrar
beleza, humor, vivacidade e tesão num prazo muito além dos 40, que
era mais ou menos quando mamãe se recolheu ao tricô, ao truco e ao
triste.
Eu vi, acho que já disse, Vera Fischer
nua aos 52, a mais que perfeita tradução da última fornada de
mulheres a ser educada com repressão e, em seguida, obrigada a
aprender, com o bonde andando, a viver num mundo onde é proibido
proibir. Ela estava nua à vera, eu na segunda fila, e como não sou
crítico de teatro, não entendo nada dos rigores de uma encenação,
fico muito à vontade para dizer que tirei como útil daquela noite a
impressão de que pode ter sido o rock and roll. Não sei. Pode ter
sido essa dieta à base de ômega 3 que ela anda fazendo. Pode ter
sido o efeito de malhar ferro todo dia. Não importa. Fiquei com a
impressão de que Vera, 52, é o exemplo mais evidente de um grupo
que já viveu, que já sofreu, e chegou ao segundo tempo da
existência com tudo em cima. Sem cabelo azul. Na hora de ir ao
teatro, ela não vai de van. Vai nua.
Não há muito mais o que fazer. A vida
já se mostra avançada no tempo, não dá para reescrever todo o
texto. Depois de Vera, espero ver outras. É irresistível a mulher
que chega aos 50 pacificada com seu delicioso projeto de apenas
melhorar e encher de beleza a biografia.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
Uma experiência
Talvez seja uma das experiências humanas
e animais mais importantes. A de pedir socorro e, por pura bondade e
compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter
nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba.
Eu já pedi socorro. E não me foi negado. Senti-me então como se eu
fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que
estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem
lhe tiraria a dor. E então uma pessoa tivesse sentido que um tigre
ferido é apenas tão perigoso como uma criança. E aproximando-se da
fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha
fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem
pessoas nem animais podem agradecer. Então eu, o tigre, dei umas
voltas vagarosas em frente à pessoa, hesitei, lambi uma das patas e
depois, como não é a palavra o que tem importância, afastei-me
silenciosamente.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Manhãs de maio
Mesmo em maio — com manhãs secas e
frias — sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção
e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim.
Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado
pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri
imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A
vida me pareceu inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades
para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é
demasiadamente penoso, se não me ocupo das mentiras.
Dói. Dói muito. Dói pelo corpo
inteiro. Principia nas unhas, passa pelos cabelos, contagia os ossos,
penaliza a memória e se estende pela altura da pele. Nada fica sem
dor. Também os olhos, que só armazenam as imagens do que já fora,
doem. A dor vem de afastadas distâncias, sepultados tempos,
inconvenientes lugares, inseguros futuros. Não se chora pelo amanhã.
Só se salga a carne morta.
No princípio, se um de nós caía, a dor
doía ligeiro. Um beijo seu curava a cabeça batida na terra, o dedo
espremido na dobradiça da porta, o pé tropeçado no degrau da
escada, o braço torcido no galho da árvore. Seu beijo de mãe era
um santo remédio. Ao machucar, pedia-se: mãe, beija aqui!
Há que experimentar o prazer para, só
depois, bem suportar a dor. Vim ao mundo molhado pelo desenlace. A
dor do parto é também de quem nasce. Todo parto decreta um pesaroso
abandono. Nascer é afastar-se — em lágrimas — do paraíso, é
condenar-se à liberdade. Houve, e só depois, o tempo da alegria ao
enxergar o mundo como o mais absoluto e sucessivo milagre: fogo,
terra, água, ar e o impiedoso tempo.
Sem a mãe, a casa veio a ser um lugar
provisório. Uma estação com indecifrável plataforma, onde
espreitávamos um cargueiro para ignorado destino. Não se desata com
delicadeza o nó que nos amarra à mãe.
Impossível adivinhar, ao certo, a
direção do nosso bilhete de partida. Sem poder recuar, os trilhos
corriam exatos diante de nossos corações imprecisos. Os cômodos
sombrios da casa — antes bem-aventurança primavera — abrigavam
passageiros sem linha do horizonte. Se fora o lugar da mãe, hoje
ventilava obstinado exílio. Oito. A madrasta retalhava um tomate em
fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível
entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua
transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em
justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no
cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo,
maduro, como se degolasse cada um de nós. Seis.
O pai, amparado pela prateleira da
cozinha, com o suor desinfetando o ar, tamanho o cheiro do álcool,
reparava na fome dos filhos. Enxergava o manejo da faca desafiando o
tomate e, por certo, nos pensava devorados pelo vento ou tempestade,
segundo decretava a nova mulher. Todos os dias — cotidianamente —
havia tomate para o almoço. Eles germinavam em todas as estações.
Jabuticaba, manga, laranja, floresciam cada uma em seu tempo. Tomate,
não. Ele frutificava, continuamente, sem demandar adubo além do
ciúme. Eu desconhecia se era mais importante o tomate ou o ritual de
cortá-lo. As fatias delgadas escreviam um ódio e só aqueles que se
sentem intrusos ao amor podem tragar.
Sem o colo da mãe eu me fartava em falta
de amor. O medo de permanecer desamado fazia de mim o mais inquieto
dos enredos. Para abrandar minha impaciência, sujeitava-me aos
caprichos de muitos. Exercia a arte de me supor capaz de adivinhar os
desejos de todos que me cercavam. Engolia o tomate imaginando ser
ambrosia ou claras em neve, batidas com açúcar e nadando num mar de
leite, como praticava minha mãe — ilha flutuante — com as mãos
do amor.
Eu desconhecia o amor, mesmo fantasiando
em me sentir amado. Repetia o verbo amar a Deus sobre todas as
coisas, amar o próximo como a si mesmo, não matar, não pecar
contra a castidade, honrar pai e mãe, por frequentar a catequese,
nas tardes ociosas dos sábados. Decorar os dez mandamentos encurtava
o caminho para o céu, tantos me repetiam. E contrito, mãos
amarradas sobre o peito, eu duvidava da fé, mas insistia em crer em
Deus Pai, todo-poderoso. Atravessar do infinito ao infinito e
alcançar o pleno azul, sobre a bicicleta do padre, negociada em
pecado e segredo, tornava o céu mais viável.
A mãe partiu cedo — manhã seca e fria
de maio — sem levar o amor que diziam eu ter por ela. Daí, veio me
sobrar amor e sem ter a quem amar. Nas manhãs de maio o ar é frio e
seco, assim como retruca o coração nos abandonos. Ela viajou
indignada, por não ser consultada. Evadiu-se, sem suplicar um
socorro. Nem murmurou um “com licença” — eu confirmo — para
adentrar em outra vida, como nos era recomendado. Já não cantava,
sobrevivia isenta, respirando o medo pelo desconhecido. A mão da
morte soterrou até sua sombra. Foi um adeus inteiro, definitivo,
rigoroso, sem escutar nosso pesar. Eu pronunciava, seguidamente, a
palavra amor, amor, sem ter a presença amada.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
A irresistível necessidade de acreditar
Ao discutirmos a complexa relação entre
ciência e religião, com frequência nos deparamos com posições
polarizadas: ou se afirma “acredito” ou se afirma “não
acredito”, com total convicção em ambos os casos. Com frequência
ainda maior, se perguntarmos no quê, exatamente, a pessoa acredita,
ou de onde vem a necessidade de sua fé, nos deparamos com respostas
vagas, que incluem “tradição”, “comunidade”, “mortalidade”.
Um grupo menor, que se dá a reflexões mais profundas, examina,
questiona e reavalia sua fé regularmente, sabendo que o crer é
fluido. Nossas convicções mudam com a idade e, com essas mudanças,
muda, também, nossa relação com a fé.
Nessa polarização milenar, muita
animosidade desnecessária vem da convicção infundada de que os que
têm opinião diferente da nossa em relação à fé, ou os que
acreditam de forma diferente, estão profundamente equivocados, ou
são simplesmente tolos ou, pior, são infiéis que não merecem
viver. Deixando de lado a radicalização trágica dos muçulmanos de
organizações terroristas como ISIS ou Al-Qaeda, vimos exemplos mais
amenos, mas não menos sintomáticos, do radicalismo entre ateus e
cristãos nos debates presidenciais durante a eleição de Donald
Trump nos EUA, e em várias eleições no Brasil, onde ateus são
considerados os candidatos menos elegíveis.
É impensável, hoje, ter um presidente
que se proclama não crente nos Estados Unidos ou no Brasil. Essa
dicotomia é uma distorção cultural que precisa ser repensada. Na
realidade, existe todo um espectro de modalidades da fé humana, que
ocupam o espaço entre o radicalismo extremo dos dois polos. Por
exemplo, Francis Collins, diretor do Instituto Nacional de Saúde dos
EUA – o órgão governamental que administra o maior número de
bolsas de pesquisa nas áreas da medicina e da biologia –, não vê
qualquer conflito entre ser cristão e ser cientista. Como ele,
muitos cientistas veem a prática científica como mais um modo de
admirar a obra divina, ou seja, como uma forma de devoção
religiosa. Essa é uma tradição antiga, que inclui alguns dos
patriarcas da ciência moderna, como Copérnico, Newton, Kepler e
Descartes.
A ruptura veio mais tarde, com o
Iluminismo do século XVIII. Para ateus radicais conhecidos do
público, como o biólogo inglês Richard Dawkins, o escritor
americano Sam Harris e o falecido jornalista inglês Christopher
Hitchens, esse tipo de posição intermediária é inconsistente com
os fundamentos da ciência: a Natureza é material, e a matéria é
organizada segundo leis quantitativas. O objetivo da ciência é
descobrir essas leis; não existe espaço para mais nada. Segundo
eles, qualquer posição conciliatória entre ciência e religião
cria uma série de problemas filosóficos. Como exemplo, citam a
coexistência incompatível do natural com o sobrenatural. Como a
Natureza pode ser tanto natural quanto sobrenatural? Por definição,
chamar um evento que ocorre e é percebido por alguém como sendo um
“fenômeno sobrenatural” cria uma inconsistência básica: para
que o fenômeno tenha sido observado, teve que emitir algum tipo de
radiação eletromagnética (luz visível, radiação infravermelha
etc.), que foi detectada por algum observador ou instrumento. “Eu
vi um fantasma!” Em outras palavras, para um fenômeno ser
detectado, tem que trocar energia com quem (ou com o que) o observa.
É claro que um fenômeno chamado de
sobrenatural, uma vez observado, é perfeitamente natural, mesmo se
misterioso ou aparentemente inexplicável. Um fantasma que é visto
não é mais uma entidade sobrenatural. E agora? Os ateus usam essa
incompatibilidade como argumento definitivo contra a crença no
sobrenatural e, por extensão, contra a religião. Sem se dar conta,
acabam usando sua fé na não fé como prova, e acabam caindo em uma
contradição, como veremos adiante. Outros adotam a posição que o
biólogo americano Stephen Jay Gould chamou de NOMA (do inglês,
Non-Overlapping Magisteria, magistérios que não se superpõem), e
compartimentalizam a ciência e a religião dentro de esferas
limitadas de influência, afirmando algo como “a religião começa
onde a ciência termina”. Apesar de cômoda, essa posição não
vai muito longe.
À medida que a ciência avança, a
fronteira entre os dois magistérios vai migrando, refletindo uma
posição teológica antiquada conhecida como “Deus dos Vãos”, a
religião tapando os buracos da nossa ignorância científica. Isso é
um tanto indignante para Deus, dado que o espaço para a crença vai
diminuindo ao entendermos mais sobre o funcionamento do mundo
natural. Me parece bem mais prudente basear a fé em algo mais
abstrato do que nossa ignorância sobre o mundo. Além disso, afirmar
categoricamente que o sobrenatural tem uma existência intangível e
imensurável posiciona sua natureza além do discurso científico,
anulando qualquer possibilidade de uma troca construtiva de ideias. O
fato é que a ciência e a religião claramente se superpõem na
cabeça das pessoas, nas escolhas que fazemos na vida, nos desafios
morais que a sociedade moderna enfrenta.
É tragicamente inocente negar o poder da
religião no mundo, com bilhões de pessoas declarando-se seguidores
de algum tipo de fé, mesmo que muitas delas definam sua fé de forma
vaga. Para muitos, a necessidade da fé vai além da crença, tendo
um papel social essencial: ela cria alianças que restituem um senso
de dignidade e de comunidade que governos muitas vezes deixam de
oferecer. Numa realidade miserável, a visão divina enaltece o
espírito. Ademais, a posição dos ateus radicais é inconsistente
com os parâmetros do método científico, algo que talvez surpreenda
muita gente. Para entender isso, basta ver que o ateísmo é a crença
na não crença, já que nega categoricamente a possibilidade da
existência de qualquer tipo de divindade. O problema é que a
ciência só pode negar categoricamente a existência de algo após
observações absolutamente conclusivas.
E observações absolutamente conclusivas
não existem. Existem apenas convicções, baseadas num conhecimento
parcial da realidade. Toda medida científica tem uma margem de erro
e um limite de precisão.
Como podemos ter certeza do que ainda não
medimos? A posição mais consistente com o método científico é a
do agnóstico, como haviam já percebido Thomas Huxley e Bertrand
Russell, entre muitos outros: não vejo qualquer razão para crer,
mas baseado no que sei não posso negar absolutamente a possibilidade
de que alguma entidade divina exista. Como escreveu Huxley, criador
do termo “agnóstico”:
“É errôneo afirmar que se tem certeza
da verdade objetiva de uma proposição, a menos que seja fornecida
evidência que justifique logicamente esta certeza.” Em vista da
diversidade de posições, a questão essencial é a origem dessa
necessidade de acreditar, que identificamos na maioria absoluta das
culturas do passado e do presente. O que a crença oferece que tantos
precisam? Pertencer a um grupo religioso confere um senso de
comunidade imediato. Ao encontrar outros membros de sua comunidade na
igreja ou no templo, a pessoa vê sua crença justificada, dado que é
compartilhada por tantos outros. Mais do que a crença em si, a
pessoa se vê integrada num grupo com valores afins. Isso é tanto
verdade para as pessoas de fé quanto para aquelas seculares, sejam
elas ateias ou agnósticas.
Seres humanos são criaturas tribais, e
tribos definem-se a partir de certos símbolos, mitos ou código
moral. Não há dúvida de que nossos ancestrais entenderam que
existe uma enorme vantagem em pertencer a um grupo. Fazer parte de
uma tribo oferecia uma proteção que aumentava as chances de
sobrevivência num ambiente extremamente hostil: unidos venceremos.
Tanto no passado quanto no presente, fazer parte de uma tribo confere
legitimidade social imediata. Para muita gente, a fé pode ser a
justificativa oferecida para participar de um grupo religioso, mas é
o senso de comunidade, de valores divididos pelo grupo, que está por
trás da devoção. Existe, no entanto, outro aspecto da fé, bem
mais subjetivo do que este tribal. Como descreveu o psicólogo
americano William James em sua obra-prima.
As variedades da experiência religiosa,
a experiência religiosa atinge seu clímax na subjetividade da
experiência individual, na comunhão da pessoa com o desconhecido,
na percepção de transcendência dos limites da existência humana,
delineada pelas barreiras do espaço e do tempo. As visões e
revelações dos profetas e dos santos, a experiência emocional do
divino, ocorrem no indivíduo, mesmo quando induzidas pelo grupo (por
exemplo, através de rituais). Existe muito mais no mundo do que
aquilo que percebemos ou podemos medir, e essas características
“ocultas” são igualmente importantes na nossa construção do
que definimos como realidade. Como escreveu James, “toda a sua vida
subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades, são
a premissa da sua existência consciente; existe algo dentro de você
que sabe de forma absoluta que o resultado disso tudo deve ser mais
verdadeiro do que qualquer tipo de argumento lógico, por mais
articulado que seja, que tente contradizer essas convicções
subconscientes”.
Mesmo que o filósofo George Santayana e
outros tenham criticado James por “encorajar a superstição”,
ninguém pode negar o fato de que a razão tem alcance limitado. A
ciência, se vista como expressão da razão humana, espalha-se por
todos os cantos do conhecimento de forma magnífica. Mas seu alcance
não é ilimitado. Existe outra dimensão da fé, separada dos
rituais tribais e da religião organizada, que dá expressão a uma
necessidade primária que temos de comunhão com o desconhecido. Este
é o aspecto mais universal da necessidade humana de crer, que
transcende divisões arbitrárias da fé criadas no decorrer da
história; as religiões, as tradições, os cultos, as tribos e suas
regras. Não falo aqui de uma supersticiosidade irracional ou
mística. O que identificamos é a necessidade individual da crença,
expressa por cada um de forma variada.
Quando Einstein mencionou sua “emoção
religiosa cósmica” para descrever sua conexão espiritual com a
Natureza, tentava expressar precisamente essa atração humana pelo
mistério, pelo desconhecido. “Espiritual” não implica
necessariamente na crença em uma dimensão não material ou
sobrenatural. O que pode surpreender a muitos – especialmente aos
que veem cientistas por meio do estereótipo do racionalista frio –
é que essa atração pelo mistério, em essência, uma atração
espiritual pela Natureza, inspira muitos cientistas em seu trabalho.
Não é Deus que se busca no questionamento científico, mas a
transcendência do humano, a busca por uma dimensão além do
cotidiano que dá sentido à nossa busca por sentido. Ao estender sua
curiosidade ao oceano do desconhecido, mesmo o cientista secular está
praticando essa crença, expressando a necessidade universal que
temos de conhecer nossa história e de explorar o novo, ampliando,
assim, nossa visão da realidade.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
Contrição
Quero banhar-me nas águas límpidas
Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
Me sinto sórdido
Confiei às feras as minhas lágrimas
Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
Meu Deus valei-me
Vozes da infância contai a história
Da vida boa que nunca veio
E eu caia ouvindo-a no calmo seio
Da eternidade.
Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
Me sinto sórdido
Confiei às feras as minhas lágrimas
Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
Meu Deus valei-me
Vozes da infância contai a história
Da vida boa que nunca veio
E eu caia ouvindo-a no calmo seio
Da eternidade.
Manuel Bandeira
Ajuda ao semelhante
“Feliz
aquele que atravessou a vida ajudando o seu semelhante, que não
conheceu o medo e se manteve alheio à agressividade e ao
ressentimento! É dessa madeira que são esculpidas as figuras
ideais, que consolam a Humanidade nas situações de sofrimento que
ela própria criou.”
Albert Einstein, in Como vejo o mundo
Kid Foguete no matadouro
Me vi de novo na lona e desta vez nervoso
demais de tanto tomar vinho; o olhar desvairado, caindo de fraqueza;
tão deprimido que nem podia pensar em recorrer ao quebra-galho de
sempre, à minha pausa para recalibrar, topando qualquer serviço em
departamento de expedição ou almoxarifado. por isso resolvi ir ao
matadouro.
entrei no escritório.
não te conheço?, perguntou o cara.
que eu saiba não, menti.
já tinha estado lá duas ou três vezes,
preenchendo toda aquela papelada, passando por exame médico etc. e
tal, e então me levaram até uma escada, por onde descemos quatro
andares, o frio cada vez pior, o chão reluzente de sangue, ladrilhos
verdes e o azulejo das paredes também. Explicaram o que eu tinha que
fazer: consistia em apertar um botão e aí, pelo buraco aberto na
parede, se escutava um barulhão semelhante ao estouro de uma boiada
ou 2 elefantes caindo pesadamente no chão para trepar, e lá vinha
aquela enorme posta de carne morta, pingando sangue, e o cara me
mostrou: você pega isso aí e joga dentro do caminhão. depois
aperta de novo o botão e vem outro pedaço. aí se afastou. quando
me vi sozinho, tirei o avental, o capacete, as botas (sempre davam 3
números menor que o da gente), subi a escada e dei o fora. agora
estava ali de volta, outra vez na pior.
tá me parecendo meio velho pro trabalho.
tenho que endurecer os músculos. preciso
de serviço pesado, pesado à beça, menti.
acha que vai aguentar?
sou forte pra burro. já lutei como
profissional. enfrentei campeões.
não diga, é mesmo?
é, sim.
hum, tem cara. pelo que vejo, te pegaram
de jeito.
deixa a minha cara de lado. eu era um
raio com as mãos. ainda sou. também tive que me abaixar, senão ia
ficar parecendo marmelada.
eu costumo acompanhar as lutas de boxe.
teu nome não me diz nada.
é que eu tinha apelido. Kid Foguete.
Kid Foguete? não me lembro de ninguém
com esse nome.
lutei na América do Sul, na África, na
Europa, nas ilhas. Em cidades do interior. por isso é que tem todos
esses espaços em branco aí na minha carteira – não gosto de
escrever pugilista porque são capazes de pensar que estou brincando
ou mentindo. simplesmente deixo em branco. e o resto que se dane.
tá bom. aparece amanhã de manhã às 9
pro exame médico que eu tenho um serviço pra você. quer dizer que
quer um trabalho pesado?
bem, se não tiver outra coisa...
não, de momento não. sabe que você
aparenta ter quase cinquenta anos? será que não estou cometendo um
erro? aqui ninguém gosta de perder tempo com qualquer mocorongo que
aparece.
não sou nenhum mocorongo, sou Kid
Foguete.
tá legal, Kid. – deu uma risada –,
vamos te botar pra TRABALHAR mesmo!
não gostei do jeito que ele disse isso.
dois dias depois passei pelo portão e
entrei no galpão de madeira, onde mostrei a um velhote o crachá com
o meu nome: Henry Charles Bukowski Jr., e ele me mandou procurar o
Thurman no pavilhão de carga. fui até lá. tinha uma fila de
sujeitos sentados num banco de madeira que me olharam como se fosse
bicha ou débil mental.
encarei o grupo com ar de sereno desdém
e caprichei no meu melhor estilo de boçal.
quedê o Thurman? me disseram que tenho
que falar com esse cara.
um deles apontou.
Thurman?
quê?
vou trabalhar com você.
é?
é.
olhou bem para mim.
cadê as botas?
(botas?)
não tenho, respondi.
meteu a mão embaixo do banco e me
entregou um par. velho e mais duro que bacalhau. calcei no pé. a
mesma história de sempre: 3 números menor. me esmagava os dedos,
que viraram para baixo.
depois me deu um avental sujo de sangue e
o capacete. fiquei ali parado enquanto ele acendia um cigarro. jogou
o fósforo longe com calma digna de macho.
vem cá.
eram todos negros. quando cheguei perto
me olharam como se fossem Muçulmanos. tenho quase 1 metro e 80, mas
não havia nenhum que não fosse mais alto que eu ou 2 ou 3 vezes
mais corpulento.
Charley! berrou Thurman. Charley, pensei.
Charley, que nem eu. que bom.
já estava suando por baixo do capacete.
bota ele pra TRABALHAR!
ah meu deus do céu. que fim levaram as
noites suaves e tranquilas? por que isso não acontece com o Walter
Winchell, que acredita piamente no Sistema Americano? não fui um dos
mais brilhantes alunos de antropologia? o que foi que houve? Charley
me pegou pelo braço e me levou para a frente de um caminhão vazio,
do tamanho da metade de um quarteirão, que estava parado na
plataforma.
fica esperando aqui.
aí então um bando de negros Muçulmanos
veio correndo com carrinhos de mão pintados com uma tinta branca
pastosa e grudenta, como se tivesse sido misturada com merda de
galinha, cada carrinho trazendo um montão de pernas de porco boiando
no meio de um sangue ralo e aguado. não, não boiavam no meio do
sangue. estavam mergulhadas nele, que nem chumbo, feito balas de
canhão, que nem mortas.
um dos negros saltou para dentro do
caminhão atrás de mim e outro começou a me atirar as pernas de
porco, que eu pegava e jogava para o cara parado às minhas costas,
que se virava e lançava para a parte traseira do caminhão. as
pernas vinham rápidas RÁPIDAS, eram pesadas e foram ficando cada
vez mais. mal pegava uma e me virava, e já vinha outra a caminho,
pelo ar. sabia que estavam dispostos a liquidar com o meu couro. não
demorou muito comecei a suar, a suar, feito água jorrando de
torneira aberta com toda a força, e a sentir dores nas costas, nos
pulsos, nos braços. me doía tudo, e os joelhos, no limite da
resistência possível, já baqueavam de tanto tentar manter o
equilíbrio. nem conseguia enxergar direito, fazendo um esforço
tremendo para apanhar mais uma perna e atirar, mais uma perna e
atirar. todo salpicado de sangue e aparando com as mãos aquele PLOFT
macio, morto e pesado, a carne cedendo feito nádegas de mulher ao
contato dos dedos, e eu fraco demais para poder abrir a boca e
reclamar, ei caras, que bicho mordeu vocês, PORRA? as pernas de
porco continuavam vindo e eu a girar, pregado no chão, que nem um
crucificado de capacete, e não acabavam mais de chegar, carrinhos e
mais carrinhos, cheios de pernas e mais pernas de porco, até que
afinal ficaram todos vazios, e eu ali parado, zonzo, o corpo
oscilante, respirando o fulgor amarelado das lâmpadas elétricas.
uma verdadeira noite no inferno. ué, por que estou me queixando?
sempre gostei de trabalho noturno.
venha!
me levaram para outro lugar. Lá em cima,
dependurada no ar, através de uma vasta abertura no alto da parede
distante, a metade de um novilho, ou talvez até fosse um inteiro,
sim, pensando bem, eram novilhos inteiros, com todas as quatro patas,
e um deles veio saindo pelo buraco, preso a um gancho, tinha acabado
de ser morto, e parou exatamente em cima de mim. ficou ali imóvel,
bem na minha cabeça, suspenso por aquele gancho.
acabou de ser morto, pensei, mataram essa
joça. como poderiam diferenciar um homem de um novilho? como é que
iriam saber que não sou um novilho?
TÁ BOM – SACODE ELE!
sacudir ele?
isso mesmo – DANÇA COM ELE!
quê?
ah pelo amor de deus! GEORGE, vem cá!
George se colocou embaixo do novilho
morto. agarrou a carcaça. UM. vacilou para a frente. DOIS. vacilou
para trás. TRÊS. tomou impulso e saiu correndo. o novilho ia quase
rente ao chão. alguém apertou um botão e estava tudo pronto. tudo
pronto para os açougues do mundo. tudo pronto para as donas de casa
fofoqueiras, rabugentas, bem descansadas e burras, espalhadas por
todo este planeta, às 2 da tarde, com suas batas caseiras, tragando
cigarros sujos de batom e não sentindo praticamente nada. me
colocaram embaixo do novilho seguinte.
UM.
DOIS.
TRÊS.
já estava com ele. aqueles ossos inertes
contra os meus vivos, aquela carne morta contra a minha palpitante, e
o osso e o peso superpostos, pensei em óperas de Wagner, em cerveja
gelada, na buceta provocante sentada num sofá na minha frente, com
as pernas dela cruzadas e eu segurando o copo de bebida na mão e,
aos poucos e com firmeza, falando e abrindo caminho para penetrar na
mentalidade insensível daquele corpo, e aí Charley berrou PENDURA
NO CAMINHÃO!
tomei a direção indicada. com medo do
fracasso inculcado em mim quando criança no pátio de recreio das
escolas americanas, sabia que não podia deixar o novilho cair no
chão porque provaria que, em vez de ser homem, era um covarde e
portanto só digno de escárnio, risadas e surras. na América a
gente tem que ser vitorioso, não há escapatória, e é preciso
aprender a lutar por ninharias, sem discutir, e de mais a mais, caso
deixasse cair o novilho, era bem capaz de ter que levantá-lo
sozinho. além disso, ele ficaria todo sujo. e não quero que fique,
ou melhor – eles é que não querem que se suje.
Levei-o para o caminhão.
PENDURA!
o gancho que pendia do teto era liso com
um polegar sem unha. deixava-se escorregar a parte traseira para trás
e procurava-se a ponta superior, tateando à procura do gancho,
fincando 1, 2, 3 vezes, e não havia jeito do desgraçado furar a
carne. FILHA DA MÃE! !! era pura cartilagem e gordura, resistente e
duro como uma pedra.
ANDA DE UMA VEZ! VAMOS LOGO COM ISSO!
empreguei minhas últimas forças e
consegui enfiar o gancho. foi uma visão maravilhosa, um verdadeiro
milagre, aquele gancho cravado na carne, aquele novilho dependurado
ali por si mesmo, completamente – enfim! – longe do meu ombro,
exposto às batas caseiras e às fofocas de açougue.
SAI DA FRENTE!
um negro de 150 quilos, insolente,
brusco, frio, homicida, entrou, pendurou com estrépito a carne que
trazia, e olhou lá de cima pra mim.
aqui a gente fica na fila!
tá legal, campeão.
saí andando na frente dele. já tinha
outro novilho à minha espera. cada vez que carregava um, ficava
certo de que era o último que daria para aguentar, mas continuava
dizendo
mais um
só mais um
aí eu paro.
fodam-se.
estavam esperando que desistisse, dava
para notar nos olhares, nos sorrisos, quando pensavam que não estava
vendo. Não queria dar o braço a torcer. fui buscar outro novilho. o
lutador, na última investida do pugilista famoso liquidado, foi
buscar a carne.
passaram-se 2 horas e aí alguém berrou
PAUSA.
tinha conseguido. um descanso de 10
minutos, um pouco de café e nunca que iam me fazer desistir. saí
andando atrás deles em direção a uma carrocinha de lanches que
havia se aproximado. dava para enxergar a fumaça do café se
levantando na noite; as rosquinhas, cigarros, os bolos e sanduíches,
sob as lâmpadas acesas.
EI, VOCÊ AÍ!
era Charley. Charley que nem eu.
que é, Charley?
antes de descansar, pega esse caminhão
aí, tira ele daqui e leva lá pro pavilhão 18.
era o caminhão que tínhamos acabado de
carregar, o de meio quarteirão de comprimento. o pavilhão 18 ficava
do outro lado do pátio.
consegui abrir a porta e subi para a
cabine. tinha um assento de couro macio e tão confortável que logo
vi que teria que lutar para não pegar no sono. não era motorista de
caminhão. baixei os olhos e deparei com meia dúzia de caixas de
mudanças, freios, pedais e sei lá mais o quê. girei a chave e dei
um jeito de ligar o motor. manobrei pedais e mudanças até que o
caminhão começou a andar e aí saí dirigindo pelo pátio afora até
chegar no pavilhão 18, o tempo todo pensando – quando voltar, a
carrocinha de lanches já foi embora. para mim isso significava uma
tragédia, uma verdadeira calamidade. estacionei o caminhão,
desliguei o motor e fiquei ali sentado um instante, aproveitando o
conforto macio daquele assento de couro. depois abri a porta e
saltei. errei o degrau ou seja lá o que for que deveria estar ali e
caí no chão com aquela porra de avental e merda de capacete, feito
um homem que levou um tiro. não doeu nada, nem deu para sentir. me
levantei ainda a tempo de ver a carrocinha de lanches saindo pelo
portão e desaparecendo na rua. o grupo todo já estava voltando para
a plataforma, dando risadas e acendendo cigarros.
tirei as botas, o avental e o capacete e
fui até o galpão de madeira na entrada do pátio. joguei tudo em
cima do balcão. o velhote olhou para mim.
quê? vai largar um emprego BOM desses?
diz pra eles me mandarem o cheque de 2 horas de trabalho pelo
correio. ou então pra enfiar ele no cu. pouco tou ligando, porra!
saí. atravessei a rua, entrei num bar
mexicano, tomei cerveja, depois peguei o ônibus. tinha sido
novamente derrotado pelo pátio de recreio das escolas americanas.
Charles Bukowski, in A mulher mais linda da cidade
quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
Desespero e felicidade
“Renda
anual de vinte libras, despesa de dezenove libras, dezenove xelins e
seis pence, resultado: felicidade. Renda anual de vinte libras,
despesa anual de vinte libras e seis pence, resultado: desespero.”
Charles Dickens, in David Copperfield
Torto arado / 2
Nossos pais retornaram da roça e
encontraram minha avó desorientada, com nossas cabeças mergulhadas
numa tina de água, gritando: “Ela perdeu a língua, ela cortou a
língua.” Repetia tanto que, certamente, naqueles primeiros
momentos, Zeca Chapéu Grande e Salustiana Nicolau acharam que as
duas filhas haviam se mutilado num ritual misterioso que, nas suas
crenças, precisaria de muita imaginação para explicar. A tina era
uma poça vermelha e nós duas chorávamos. Quanto mais chorávamos
abraçadas, querendo pedir desculpas, mais ficava difícil saber quem
tinha perdido a língua, quem teria que ir para o hospital a léguas
de Água Negra. O gerente da fazenda chegou numa Ford Rural branca
e verde para nos conduzir ao hospital. Essa Rural, como
chamávamos, servia aos proprietários quando estavam na fazenda,
servia a Sutério para os trabalhos como gerente, se deslocando entre
a cidade e Água Negra, ou percorrendo as distâncias na própria
fazenda, quando não queria fazer a cavalo.
Minha mãe se muniu de colchas e toalhas
que recobriam as camas e a mesa, para tentar estancar o sangue. Ela
gritava para meu pai, que colhia com as mãos trêmulas ervas nos
canteiros próximos à casa, impaciente, transmitindo seu desespero
na voz, que se tornou mais aguda, além do olhar espantado. As ervas
eram para ser usadas no caminho até o hospital, em rezas e encantos.
Os olhos de Belonísia estavam vermelhos de tanto choro, os meus eu
não conseguia sequer sentir, e minha mãe perguntava perplexa o que
havia acontecido, com o que brincávamos, mas nossas respostas eram
longos gemidos difíceis de interpretar. Meu pai segurava a língua
envolta numa de suas poucas camisas. Mesmo naquelas horas, meu medo
era que o órgão em arrebatamento se dispusesse a falar sozinho no
colo dele sobre o que havíamos feito. Que falasse sobre nossa
curiosidade, nossa teimosia, nossa transgressão, nossa falta de zelo
e respeito por Donana e por suas coisas. Mais ainda, sobre a nossa
irresponsabilidade de colocar uma faca na boca, sabendo que facas
sangram caças, sangram as crias do quintal e matam homens.
Meu pai recobriu a pequena trouxa com as
folhas que havia colhido antes de sair. Da janela do carro vi meus
irmãos ao redor de Donana, dona Tonha a amparando pelo braço e a
levando de volta para casa. Anos depois viria a sentir remorso por
esse dia, por ter deixado minha avó desnorteada, aos prantos, se
sentindo incapaz de cuidar de qualquer pessoa. Durante a viagem,
ouvimos a angústia de minha mãe transmitida nos sussurros de suas
preces e por suas mãos calosas e sempre quentes, mas que agora
pareciam saídas de uma bacia de água que dormiu ao relento no
sereno da noite.
No hospital, demoramos a ser atendidas.
Nossos pais estavam encolhidos em um canto ao nosso lado. Vi as
calças sujas de terra que ele não teve tempo de trocar. Minha mãe
tinha um lenço colorido amarrado na cabeça. Era o mesmo lenço que
usava embaixo do chapéu que levava para se proteger do sol na roça.
Ela limpava nossos rostos com peças da trouxa de roupa, a cada
momento com um novo tecido com cheiro de guardado, e que não
conseguia identificar. Meu pai ainda segurava a língua envolta na
mesma camisa. As folhas estavam guardadas nos bolsos de sua calça,
talvez por vergonha de o apontarem com desdém como feiticeiro dentro
daquele lugar que ele não conhecia. Foi o primeiro lugar em que vi
mais gente branca que preta. E vi como as pessoas nos olhavam com
curiosidade, mas sem se aproximar.
Quando o médico nos levou para a sala e
meu pai lhe mostrou a língua como uma flor murcha entre as mãos, vi
sua cabeça balançar num sinal de negação. Vi também o suspiro
que deu ao abrir nossas bocas quase ao mesmo tempo. Ela terá que
ficar aqui. Terá problemas na fala, para deglutir. Não tem como
reimplantar. Hoje sei que se diz assim, mas à época nem passava por
minha cabeça o que tudo aquilo significava, e muito menos na cabeça
de meu pai e de minha mãe. Belonísia nesse instante sequer me
olhava, mas ainda continuávamos unidas.
Nossas feridas foram suturadas, e
permanecemos juntas por mais dois dias. Saímos com um carregamento
de antibióticos e analgésicos nas mãos. Teríamos que voltar dali
a duas semanas para retirar os pontos. Teríamos que comer mingaus e
purês, alimentos pastosos. Minha mãe deixaria o trabalho na roça
nas semanas que se seguiriam para se dedicar integralmente aos nossos
cuidados. Somente uma das filhas teria a fala e deglutição
prejudicada. Mas o silêncio passaria a ser nosso mais proeminente
estado a partir desse evento.
Nunca havíamos saído da fazenda. Nunca
tínhamos visto uma estrada larga com carros passando para os dois
lados, seguindo para os mais distantes lugares da Terra. Foi o que
Sutério disse. No caminho de ida, estávamos tomados de aflição,
pelo cheiro de sangue coagulando, pelas preces de meu pai e de minha
mãe, atônitos. O gerente da fazenda apenas ria dizendo que crianças
são iguais a gatos, que cegam, uma hora estão num lugar outra hora
estão em outro, quase sempre aprontando algo para dar dor de cabeça
aos pais. Que ele tinha filhos e sabia. Na volta estávamos bastante
doloridas, uma mais que a outra, esgotadas da mesma forma, apesar da
extensão das lesões ter sido distinta. Uma havia amputado a língua,
a outra tinha tido um corte profundo, mas estava longe de perdê-la.
Nunca havíamos andado no Ford Rural
da fazenda ou em qualquer outro automóvel. E como era diferente o
mundo além de Água Negra! Como era diferente a cidade com suas
casas grudadas uma às outras, dividindo paredes. As ruas calçadas
com pedras. O chão das nossas casas e dos caminhos da fazenda eram
de terra. De barro, apenas, que também servia para fazer a comida de
nossas bonecas de sabugo, e de onde brotava quase tudo que comíamos.
Onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde
enterrávamos os restos de nossos corpos. Para onde todos desceriam
algum dia. Ninguém escaparia. Só pudemos observar tudo aquilo
durante o retorno, em lados opostos do veículo, com nossa mãe ao
meio, absorta em pensamentos que nosso alarido havia precipitado em
seu íntimo.
Ao chegarmos à casa, só estavam Zezé e
Domingas, pequenos, acompanhados de dona Tonha. Vi meu pai perguntar
por Donana enquanto minha mãe nos segurava pelas mãos diante da
porta. Desceu faz umas duas horas para o rumo do rio, foi o que dona
Tonha respondeu. Sozinha?, quiseram saber. Sim, saiu levando um
embrulho.
Itamar Vieira Júnior, in Torto arado
Acerca de ateus e cristãos
Perguntaram
um dia a alguém se havia ateus verdadeiros. Você acredita,
respondeu ele, que haja cristãos verdadeiros?
Denis Diderot, in Pensamentos filosóficos
Uma histórias dos diabos (trecho)
[...]
Recordava tudo isso e não parava de
refletir. É sabido que, por vezes, nos passam pela cabeça séries
completas de raciocínios no espaço de um breve instante, na forma
de um qualquer tipo de sensações, sem tradução para a linguagem
humana corrente e, muito menos, para a língua literária. Tentaremos
no entanto traduzir todas essas sensações do nosso herói e
apresentar ao leitor nem que seja apenas a sua essência, isto é, o
que nelas foi, por assim dizer, o mais importante e verosímil. É
que muitas das nossas sensações, traduzidas para a linguagem
normal, podem parecer absolutamente inverosímeis. É por isso que
nunca surgem à luz do dia, embora cada qual as tenha. As sensações
e os pensamentos de Ivan Iliitch eram, evidentemente, um pouco
incoerentes. Bom, o leitor já sabe porquê.
“Pois é! — passou-lhe pela cabeça.
— Falamos, falamos, mas, na hora da verdade, nada. Por exemplo,
este Pseldonímov: chegou a casa, depois da cerimónia do casamento,
emocionado, cheio de esperança, à espera do momento delicioso... É
um dos dias mais venturosos da sua vida... Agora está a receber os
convidados, a fazer a festa... modesto, pobre, mas alegre, feliz,
sincero... Então se soubesse que eu, neste preciso momento, eu, o
seu chefe, estou aqui, mesmo ao lado de sua casa, a ouvir a sua
música! Na verdade, o que sentiria ele? Mais: o que sentiria ele se
eu, agora mesmo, entrasse de repente em casa dele? Humm... É claro
que a princípio se assustaria, ficaria paralisado de embaraço. Eu
ia ser um estorvo, talvez estragasse tudo... Sim, mas isso era se
entrasse ali um outro general qualquer, mas não eu...
“Sim, Stepan Nikiforovitch! O senhor
não me compreendeu, mas aqui está um exemplo real.
“Pois. Não paramos de gritar sobre o
humanismo, mas somos incapazes do heroísmo, da façanha.
“Qual heroísmo? Veja bem: nas relações
atualmente existentes entre todos os membros da sociedade, se eu
entrar, eu, depois da meia-noite, nas bodas do meu subordinado, um
registador com dez rublos mensais de ordenado, será uma
atrapalhação, um turbilhão de ideias, o último dia de Pompeia, o
pânico! Ninguém vai compreender. Stepan Nikiforovitch nem por nada
deste mundo compreenderá. Não foi ele quem disse: não vamos
aguentar? Pois não, mas isso é para vós, os velhos, gente da
paralisia e da estagnação. Porque eu, eu aguento! Transformo
o último dia de Pompeia no mais doce dos dias para o meu
subordinado, transformo um gesto louco num ato normal, patriarcal,
elevado e moral. Como? Pois faça o favor de ouvir...
“Bom... eu, digamos, entro; eles ficam
espantados, param de dançar, olham-me como bichos do buraco, recuam.
É aí, então, que eu me mostro tal como sou: vou direito a
Pseldonímov e, com o mais carinhoso dos sorrisos, com as palavras
mais simples, com simplíssimas palavras, digo: “Tal e tal, acabo
de visitar sua excelência Stepan Nikiforovitch. Suponho que sabes
que é perto daqui, na vizinhança...” E conto logo, de uma forma
cômica, a minha desventura com Trífon. Depois do Trífon, passo a
contar como me meti a pé... “Foi então que ouvi a música,
perguntei ao polícia e fiquei a saber, meu amigo, que eram as tuas
bodas. “Ora, vou visitar o meu subordinado, pensei, vou ver como é
que se divertem os meus funcionários e... como são os casamentos
deles. Não me vais expulsar, suponho eu!” Expulsar! Que palavra
para um subordinado! Qual expulsar, qual quê! Acho é que vai ficar
doido, todo afobado para me chegar uma cadeira, a tremer de
exaltação, enfim, no primeiro momento vai ficar de cabeça
perdida!...
“O que pode haver de mais simples, de
mais elegante do que este procedimento? E porque é que eu entraria
lá? Isso já é outro problema. Trata-se, por assim dizer, do lado
moral da questão. É esse o cerne da questão!
“Humm... Onde é que eu ia? Ah, pois!
“Vão com certeza sentar-me ao lado do
convidado mais importante, um qualquer conselheiro titular ou
parente, um capitão na reserva de nariz vermelho... Gógol descrevia
lindamente esses originais. Bom, então apresento-me à noiva, é
claro, apresento-lhe os meus cumprimentos, animo os convidados. Peço
que não se acanhem, que se divirtam, que continuem a dançar, digo
umas piadas, rio, brinco, enfim, sou amável e simpático. Aliás,
sou sempre amável e simpático quando estou satisfeito comigo
próprio... Humm... Na verdade, parece que ainda estou... enfim, um
tanto embriagado, mas só...
“... Evidentemente, eu, como gentleman,
ponho-me em pé de igualdade com eles e não exijo de modo algum
qualquer tratamento de privilégio... Mas, moralmente, moralmente é
outra coisa: eles vão compreender e vão dar o devido valor... O meu
procedimento ressuscitará neles toda a nobreza... E pronto, fico lá
meia hora... Uma hora, vá lá... Saio antes da ceia, evidentemente,
mas eles vão azafamar-se a assar coisas, a fritar, depois
convidam-me, com muitas vênias, mas eu bebo apenas um copo, dou os
parabéns, e recuso-me a cear. Direi: tenho assuntos para tratar. E
quando eu pronunciar a palavra “assuntos”, vão fazer todos umas
caras de respeito, sisudas. E assim, delicadamente, lembro-lhes que
entre mim e eles há uma certa diferença, há sim senhor. Terra e
céu. Não é que eu queira impor semelhante ideia, mas é preciso...
é uma coisa necessária, até no sentido moral, nada a fazer. Aliás,
logo a seguir sorrio, até me rio um pouco, pronto, e toda a gente
vai ficar animada... Brinco mais uma vez com a noiva, humm... até
pode ser assim: insinuo que volto dentro de nove meses na qualidade
de padrinho, ih, ih! De certeza que ela vai dar à luz nesse prazo. É
que eles reproduzem-se como coelhos. Então todos se riem, a noiva
fica muito corada; eu dou-lhe um beijo sentido na fronte, até a
abençoo e... pronto, amanhã já o meu feito é conhecido no
serviço. Mas amanhã volto a ser rigoroso, exigente, até
implacável, mas entretanto já eles sabem como eu sou, já conhecem
a minha alma, a minha essência: “Como chefe é muito rigoroso, mas
como pessoa é um anjo!” É esta a minha vitória: apanhá-los com
uma pequena ação que a vós, meus senhores, nem passaria pela
cabeça; torná-los meus: eu sou o pai, eles são os filhos... Ora
veja lá Vossa Excelência, Stepan Nikiforovitch, se é capaz de
fazer o mesmo...
“Será que não sabe, Stepan
Nikiforovitch, será que não compreende que o Pseldonímov contará
mais tarde aos filhos que nas suas bodas até esteve o general, a
beber com ele! Depois os filhos contarão aos seus filhos, e estes
aos seus netos, como um caso lendário e sagrado, que um tal
dignitário, um homem de Estado (nessa altura serei tudo isso) os
honrou, etc., etc. Elevarei moralmente o humilhado, devolvê-lo-ei a
si mesmo... É que ele recebe dez rublos mensais de vencimento!...
Pois é, e se eu repetir isto cinco ou dez vezes, ou qualquer outra
coisa do gênero, adquiro popularidade por todo o lado... Fico
gravado em todos os corações, e só o diabo sabe o que virá depois
disso, da popularidade...”
Assim, ou quase assim, raciocinava Ivan
Iliitch (é que, meus senhores, a gente às vezes diz cada coisa
mentalmente, sobretudo num estado um pouco excêntrico!). Todos estes
raciocínios relampejaram na sua cabeça no espaço de uns trinta
segundos, e seria de prever que, depois de ter envergonhado
mentalmente Stepan Nikiforovitch, Ivan Iliitch iria tranquilamente
para casa deitar-se. E faria muito bem! Mas, infelizmente, o momento
era mesmo excêntrico.
Nem de propósito, neste momento
desenharam-se-lhe de súbito na sua imaginação desconcertada as
caras convencidas de Stepan Nikiforovitch e Semion Ivánovitch.
— Não vamos aguentar! — voltava a
dizer Stepan Nikiforovitch, sorrindo com altivez.
— Ih, ih, ih! — secundava-o Semion
Ivánovitch com o mais abominável dos seus sorrisos.
— Vamos lá a ver se não aguentaremos!
— disse resolutamente Ivan Iliitch, e até o calor lhe subiu ao
rosto. Saiu do passeio e atravessou em passo firme a rua, a caminho
da casa do seu subordinado, o registador Pseldonímov.
[…]
Fiodor Dostoiévski, Uma histórias dos diabos