Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
 
Carlos Drummond de Andrade

O apaixonado

            Meu amigo está apaixonado, e me agarra na mesa do bar. Fala monotonamente, e com veemência, da carta que recebeu e dos telegramas que passou em resposta ― três ou quatro ou cinco telegramas grandes e sucessivos, trezentos e quarenta e oito cruzeiros de telegramas.
Pergunto porque não telefonou para a moça. Não tivera coragem, não saberia falar, tivera medo do interurbano não estar bom, da moça não poder falar direito por que haveria gente escutando, e então ele acharia que ela estava indiferente e sofreria demais: tivera medo sobretudo da hora de desligar, da solidão insuportável em que se sentiria então depois de ouvir sua voz, tivera medo de dizer alguma coisa que ela achasse ridículo e ele sentisse isso, preferira escrever em telegramas frases que pelo menos enquanto não tivessem resposta ficariam vibrando, e não tinha certeza se até aquele momento ela já teria chegado em casa, quem sabe, talvez naquele instante mesmo estivesse abrindo os telegramas, talvez ainda de pé na sala, ainda com a bolsa a tiracolo, vindo da rua, um pouco espantada de receber tantos Westerns urgentes.
E com certeza sentaria no sofá, sentiria que alguém da família a interrogava mudamente sobre aqueles telegramas e diria alguma coisa vaga para afastar o curioso, e quem sabe começasse a procurar entre aqueles números que vêm em cima do telegrama a hora da expedição, para saber qual tinha sido mandado primeiro, a diferença de tempo de um para outro.
Ou não teria saído de casa aquele dia, e os telegramas teriam chegado ao longo da tarde, o primeiro devia ter sido entregue pelo meio dia e meia, o segundo pelas três horas, a empregada da casa com certeza teria rido achando graça de virem assim tantos telegramas para dona Maria.
Ou talvez tivesse saído cedo e telefonado da cidade dizendo que ia jantar fora, e então sua irmã por exemplo teria dito “aqui tem quatro telegramas para você”, ficaria indecisa se mandava abrir ou não, perguntaria de onde “meu Deus que será isso”? Talvez pensasse em alguma notícia ruim, alguma desgraça que a procurava com urgência: “bem, vou dar um pulo aí em casa”. E então teria tomado um táxi e ao abrir os telegramas teria ficado aliviada mas ao mesmo tempo também um pouco desapontada, “que ideia” entretanto sorrindo.
Meu amigo está apaixonado e imagina coisas, agora é tarde demais para telefonar, além disso seria terrível saber que a essa hora ela não estava em casa ― não estar em casa no dia que recebeu aqueles telegramas tão apaixonados! Estar com aquele casal amigo e aquele sujeito em uma boate dançando, sorrindo, talvez gostando um pouco demais da companhia daquele sujeito, um sujeito que dança bem e tem esse traquejo de boate e senhoras, essa bobagem que afinal qualquer idiota pode ter, ao passo que uma paixão assim tão profunda, tão profunda, ninguém no mundo nunca teve:
― “Rubem, v. nem pode imaginar, ela é uma coisa! Quanto mais a gente conhece mais adora e acha mais linda e além disso a maneira de sentir as coisas é uma criatura como não existe no mundo, eu não sei não, tenho até medo, nunca na minha vida tive uma paixão assim, também só mesmo uma mulher como aquela poderia me fazer sentir isso”.
Meu amigo está apaixonado, tira do bolso o envelope e tem de fazer um esforço violento, sinto que faz esse esforço de cavalheirismo para não me mostrar a carta, mas pede que eu olhe o sobrescrito, como se achasse a coisa mais maravilhosa do mundo o nome dele escrito pela mão daquele anjo. Pode haver coisa mais excelente e mais suprema? Aliás a carta não tem nada de mais, mas o jeito dela dizer as coisas, “você nem pode imaginar, é uma cartinha pequena eu já li cinquenta vezes”. E guarda aquele envelope branco escrito à tinta azul como se fosse o único original da única mensagem divina autêntica jamais enviada a um ser humano ― e a esse ser humano sendo precisamente ele!
Meu amigo está apaixonado, já bebeu um pouco demais, tira do bolso a passagem do avião para o dia seguinte para ter certeza de que vai mesmo, de que amanhã poderá rever aqueles cabelos, aqueles olhos, e o sorriso triste e lindo, ouvir aquela voz dizendo coisas amigas, coisas para ele, coisas de sonho, de sonho.... Meu amigo está apaixonado ― e de repente, no bar que avança pela madrugada como um velho barco meio vazio eu sinto uma estranha piedade e uma estranha inveja e uma secreta humilhação.

Rubem Braga, in Correio da Manhã, 25/03/1954

O amor

          Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.
Te cortaram? – perguntou o homem.
Não – disse ela. – Sempre fui assim.
Ele examinou-a de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta. Disse:
Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amadurecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.
Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e se deixou aplicar as pomadas e os unguentos. Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:
Não te preocupes.
Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A memória das frutas enchia sua boca de água.
Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:
Encontrei! Encontrei!
Acabava de ver o macaco curando a macaca na copa de uma árvore.
É assim – disse o homem, aproximando-se da mulher.
Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta a formosura que os sóis e os deuses morriam de vergonha.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Fim de ano

          Mal educado eu sou, mas ingrato não é verdade. O que me falta é organização, por dentro e por fora, para transformar em atos materiais a minha ressonância afetiva. Sou um fracasso nesse capítulo das obrigações (já não digo as sociais, as de amizade), e nem me cuido mais de consertar-me, isto é, a não ser no ano que vem. O ano que vem, sim, vou arrumar minha mesa, minha gaveta, minha vida, vou responder às cartas todas, telegrafar, telefonar, presentear, mandar flores, agradecer, comparecer, abraçar, sorrir, perguntar, desfazer equívocos. Este ano ainda não foi possível, perdoai-me.
Só me resta portanto o golpe bastante desonesto de registrar nesta página um agradecimento geral a todos os meus amigos e pessoas gentis. Obrigado para todos que me mandaram cartões de boas-festas, alguns de tão longe, e há tanto tempo sem encontros pessoais, que me encheram de confusão. Agradeço aos que enviaram presentes a quem não os merece, agradeço aos que me convidaram para as festas, estendendo o agradecimento a todos que foram amáveis comigo, prestando-me obséquios, aturando-me, chamando-me para cerimônias, enviando-me livros, dando-me de comer e de beber em suas casas. Agradeço aos leitores que me escreveram cartas, cordiais ou de crítica, e aos que delicadamente se silenciaram sobre meus descaminhos de forma e pensamento. A todos os meus amigos e companheiros desejo um ano novo pelo menos sem grandes problemas. A meus inimigos, se os tiver, desejo uma boa indigestão, coisa ainda melhor que a mesa vazia.
Quanto a Papai Noel, dane-se. Não gosto dele. Trata-se de um velho antipático, gorducho, falando português com um intolerável sotaque anglo-saxônio, bebedor de licores fortes, mentiroso, muito ligado aos grupos financeiros mais tentaculares, protetor de comerciantes espertos, demagogo e vulgar.
Há muito que um enfarte do miocárdio poderia levar o velho para o país das neves eternas. Mas Papai Noel vem resistindo a tudo, intrigando, sorrindo, falando no rádio e na televisão, prometendo a todos e dando muito somente a quem não precisa. Papai Noel é um chato, além de tudo barulhento, nariz vermelho, usando nos trópicos um absurdo jibão e capuz.
Refletido nos olhos das crianças, é verdade consegue ludibriar-nos o sentimento, induzindonos a uma inútil ternura. E só. Se a criança pisca os olhos ou vira o rosto, Papai Noel transforma-se de novo em homem prático, mais que prático, interesseiro e fingido como o primeiro sujeito que imaginou ganhar dez por cento sem fazer muita força. Trata-se de fato do arqui-public-relations, um cara que envelheceu na arte marota de canalizar o dinheiro de quem tem pouco para o bolso de quem tem muito. Não é à toa que as iniciais de seu nome (PN) significam publicidade e negócios.
Enfim, não estou de muito bom humor: foi um crooked year, mais um.
Mas diz um provérbio judaico que Deus, não podendo estar em todos os lugares, fez as mães. Como as mães são terríveis, como urdem dia e noite a trama do amor e da vigilância, como se inclinam, ilimitadas, incessantemente sobre os filhos, almas verdes, sempre ameaçadas. Um homem põe barba e quer pensar com o seu nariz; uma menina põe busto e quer pensar com o seu coração. De que ardis se socorrem as mães para endireitar corações e narizes sem machucá-los.
Sonhei com ela. Almoçávamos em sua casa, e eu tinha acabado de comer uma salada imensa, muito temperada, quando minha mãe me falou com uma voz superlativamente doce: “Meu filho, você anda comendo muito, cuidado com a arterioesclerose.”
Acordei em pânico e cheio de lúcida gratidão. Aparecer em sonho para aconselhar-me é uma das espertezas das mães. Mas a esperteza de minha mãe foi ainda maior. Não ando comendo muito e nenhum sinal aparente me faz candidato à arterioesclerose. Minha mãe queria me dizer outra coisa. Usou do estratagema de que eu estava comendo muito para não magoar o filho. Na realidade, andava eu era exagerando na bebida, festas inelutáveis, exposições, lançamentos, um amigo que chegou, um amigo que se foi, coisas. Sim, tinha exagerado nestes últimos dias. E o que minha mãe pretende me dizer é claro como água: “Meu filho, você anda bebendo muito, cuidado com a cirrose.”
Mas é do coração que morri.

Paulo Mendes Campos, in Portal da Crônica Brasileira

Mistério

Mistério não está num quarto escuro. É a asa de uma libélula, o canto de um sabiá, o gomo de uma laranja, a concha espiralada de um molusco. É o costume que torna essas coisas banais.

Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

Charles Dickens / Our mutual friend

 


Um Tâmisa cor de chumbo e barrento ao anoitecer, quando a maré sobe ao longo dos pilares das pontes: neste cenário que as crônicas deste ano atualizaram sob as luzes mais lúgubres, um barco avança rente aos troncos flutuantes, às chatas e aos dejetos. Na proa, um homem com olhar de abutre fixa a corrente como se procurasse algo; nos remos, semiescondida por um capuz e um manto impermeável, encontra-se uma moça de rosto angélico. O que estão buscando? Não se tarda a compreender que o homem é um recolhedor de cadáveres de suicidas ou de vítimas de assassinato jogadas no rio: para esse tipo de pescaria parece que as águas do Tâmisa são cotidianamente generosas. Avistado um cadáver à tona, o homem é ágil ao esvaziar-lhe os bolsos das moedas de ouro e depois ao arrastá-lo com uma corda fina até uma delegacia na margem, onde embolsará uma recompensa. A jovem angélica, filha do barqueiro, procura não olhar o butim macabro; está atordoada, mas continua remando.
Os inícios dos romances de Dickens são muitas vezes memoráveis, mas nenhum supera o primeiro capítulo de Our mutual friend, penúltimo romance que ele escreveu, último que concluiu. Levados pelo barco do pescador de cadáveres, parece que entramos no avesso do mundo.
No segundo capítulo muda tudo, estamos em plena comédia de costumes e de caracteres: um jantar em casa de um novo-rico onde todos fingem ser amigos de velha data quando mal se conhecem. Mas antes que o capítulo se encerre, eis que, evocado pelas conversas dos comensais, o mistério de um homem afogado no momento de herdar uma grande fortuna refaz o circuito da tensão romanesca.
A grande herança é a do falecido rei do lixo, um velho avarento que deixou na periferia de Londres uma casa ao lado de um terreno cheio de grandes monturos de lixo. Continuamos a mover-nos naquele sinistro mundo das dejeções em que nos introduzira por via fluvial o primeiro capítulo. Todos os outros cenários do romance, mesas prontas cintilando com pratarias, ambições lambuzadas de pomada, emaranhados de interesses e especulações, não passam de leves telas na substância desolada desse cenário de fim de mundo.
Depositário dos tesouros do Lixeiro de Ouro é o seu ex-burro de carga, Boffin, uma das grandes personagens cômicas de Dickens, pelo jeito pomposo com que derruba tudo do alto mesmo não tendo outra experiência a não ser aquela de uma ínfima miséria e de uma ignorância infinita. (Personagem simpática, porém: pelo calor humano e pelas intenções benévolas, ele e sua mulher; depois, na sequência do romance, transforma-se em avarento e egoísta, para revelar-se no final novamente um coração de ouro.) Vendo-se rico de repente, o analfabeto Boffin pode dar livre curso ao amor reprimido pela cultura: adquire os oito volumes do Declínio e queda do Império Romano de Gibbon (um título que mal consegue soletrar, e ao invés de RomanRussian e pensa que se trata do Império Russo). Contrata então um vagabundo com uma perna de madeira, Silas Wegg, como “homem de letras”, para que lhe faça leituras noturnas. Depois de Gibbon, Boffin, que passa a ficar obcecado em não perder suas riquezas, procura nas livrarias as vidas de avarentos famosos e faz com que seu “literato” de confiança leia tudo para ele.
O exuberante Boffin e o asqueroso Silas Wegg formam um dueto extraordinário, ao qual vem se somar mr. Venus, embalsamador profissional e montado de esqueletos humanos mediante ossos esparsos recolhidos ao acaso, a quem Wegg pediu que construísse uma perna de osso para substituir a de madeira. Nesse horizonte de lixo, habitado por personagens clownescas e um tanto espectrais, o mundo de Dickens se transforma a nossos olhos no de Samuel Beckett; no humor negro do último Dickens podemos vislumbrar mais de uma antecipação beckettiana.
Naturalmente em Dickens — embora hoje sejam os aspectos negros que ganham mais relevo em nossa literatura — a escuridão está sempre em contraste com a luz, irradiada em geral por figuras de donzelas tão mais virtuosas e de bom coração quanto mais mergulhadas num inferno de trevas. A parte mais difícil de digerir é justamente essa da virtude, para nós, leitores modernos de Dickens. Certamente ele como pessoa tinha com a virtude relações não mais íntimas que as nossas, mas a mentalidade vitoriana encontrou em seus romances não só uma aplicação fiel mas até mesmo as imagens fundamentais da própria mitologia. E seria impossível, uma vez estabelecido que para nós o verdadeiro Dickens é somente aquele das personificações da maldade e das caricaturas grotescas, pôr entre parênteses as vítimas angélicas e as presenças consoladoras: sem estas não haveria tampouco aquelas; temos de considerar umas e outras como elementos estruturais relacionados entre si, paredes e traves do mesmo edifício sólido.
Também no front dos “bons”, Dickens pode inventar figuras inesperadas, nada convencionais, como nesse romance o heterogêneo trio formado por uma mocinha anã, sarcástica e sabida, por um anjo de rosto e de coração como Lizzie, e por um judeu barbudo e com gabão. A pequena e sábia Jenny Wren, costureira de bonecas, que só pode andar com muletas e traduz tudo de negativo de sua vida numa transfiguração fantástica que jamais é edulcorada, pelo contrário enfrenta de peito aberto as durezas da existência, momento por momento, é uma das personagens dickensianas mais ricas de encanto e humor. E o judeu Riah, empregado de um especulador sórdido, Lammle, que o aterroriza e insulta, servindo-se dele também como testa de ferro para fazer agiotagem, continuando a se fingir de pessoa respeitável e desinteressada, trata de contrabalançar o mal de que se torna instrumento prodigalizando secretamente seus dons de gênio benéfico. Daí nasce um apólogo perfeito sobre o antissemitismo, sobre o mecanismo pelo qual a sociedade hipócrita sente a necessidade de criar uma imagem do judeu para atribuir a ele os próprios vícios. Esse Riah é de uma suavidade tão desarmada que poderia ser considerado um medroso, se não acontecesse que no abismo do desprezo encontrasse um modo de criar um espaço de liberdade e de revanche, junto com as outras duas menosprezadas, e sobretudo com o atuante conselho da costureira de bonecas (angélica também ela, mas capaz de infligir ao odioso Lammle um suplício diabólico).
Esse espaço do bem é representado materialmente por um terraço sobre o telhado tétrico escritório da caixa de penhores, em meio à esqualidez da City, onde Riah põe à disposição das duas moças retalhos de pano para as roupas das bonecas, pequenas pérolas, livros, flores e fruta, enquanto “ao redor uma selva de velhas cumeeiras entrelaçavam seus rolos de fumaça e giravam bandeirinhas, com todo o jeito de velhas solteironas vaidosas que fazem poses empertigadas e olham em volta demonstrando uma grande surpresa”.
Em Nosso amigo comum existe lugar para o romance metropolitano e para a comédia de costumes, mas também para personagens de consciências complexas e trágicas, como Bradley Headstone, ex-proletário que uma vez tendo se tornado professor se deixa dominar por uma ânsia de ascensão social e de prestígio que se transforma numa espécie de possessão diabólica. Vamos acompanhá-lo em seu enamoramento por Lizzie, em seu ciúme que se torna obsessão fanática, no projeto minucioso e depois na execução de um delito, e em seguida no permanecer parado, repetindo suas etapas mesmo quando dá aulas a seus alunos. “De vez em quando, diante do quadro, antes de começar a escrever, detinha-se com o pedaço de giz na mão e relembrava o local da agressão, e se um pouco mais para cima ou um pouco mais para baixo a água não teria sido mais profunda e a inclinação mais íngreme. Ficava tentado a fazer um desenho no quadro para ver mais nítido.”
O nosso amigo comum foi escrito em 1864-5, Crime e castigo, em 1865-6. Dostoiévski era um admirador de Dickens, mas não poderia ter lido esse romance. Escreve Pietro Citati em seu belo ensaio dickensiano (incluído no volume Il migliore dei mondi impossibili, Rizzoli):

A estranha providência que governa a literatura quis que, justamente nos anos em que Dostoiévski compunha Crime e castigo, Dickens tenha tentado inconscientemente competir com o próprio discípulo distante, escrevendo as páginas do crime de Bradley Headstone… Se Dostoiévski tivesse lido tal página, como teria achado sublime aquele último trecho, o desenho no quadro!

O título Il migliore dei mondi impossibili Citati retirou do escritor de nosso século que mais amou Dickens, G. K. Chesterton. Sobre Dickens, Chesterton escreveu um livro e depois as introduções a muitos romances, para a edição da “Everyman’s Library”. Naquela para Our mutual friend, ele começa implicando com o título. “O nosso amigo comum” faz sentido, tanto em inglês quanto em italiano; mas “o nosso amigo mútuo”, “o nosso amigo recíproco” o que significaria? Poder-se-ia objetar a Chesterton que a expressão surge pela primeira vez no romance sendo dita por Boffin, cujo discurso é sempre despropositado; e que, embora a ligação do título com o conteúdo do romance não seja das mais evidentes, também o tema da amizade verdadeira ou falsa, alardeada ou oculta, distorcida ou sujeita a provas, ali circula por toda parte. Mas Chesterton, após ter denunciado a impropriedade linguística do título, declara que justamente por isso o título lhe agrada. Dickens não havia feito estudos regulares e jamais fora um literato rebuscado; é por isso que Chesterton o ama, ou seja, o ama quando se mostra assim como é, não quando pretende ser algo diferente; e a predileção de Chesterton por Our mutual friend recai em um Dickens que volta às origens, depois de ter feito vários esforços para sofisticar-se e demonstrar gostos aristocráticos.
Embora Chesterton tenha sido o melhor defensor da grandeza literária de Dickens na crítica do século XX, parece-me que seu ensaio sobre Our mutual friend revela um fundo de condescendência paternalista do literato refinado em relação ao romancista popular.
Para nós, O nosso amigo comum é uma obra-prima em absoluto, tanto de invenção quanto de escritura. Como exemplos de escritura lembrarei não só as metáforas fulminantes que definem uma personagem ou uma situação (“‘Quanta honra’, disse a mãe oferecendo para ser beijada uma bochecha sensível e afetuosa como a parte convexa de uma colher”), mas também os ângulos descritivos dignos de entrar numa antologia da paisagem urbana:

Uma noite cinza, seca e poeirenta na City de Londres tem um aspecto pouco promissor. As lojas e os escritórios fechados parecem mortos e o terror nacional pelas cores dá um ar de luto. As torres e os campanários das inúmeras igrejas assediadas pelas casas, escuros e enfumaçados como o céu que parece cair-lhes por cima, não diminuem a desolação geral; um relógio de sol na parede de uma igreja, com sua sombra negra ora inútil, parece um dedo que faliu e suspendeu os pagamentos para sempre. Melancólicos restos de guardiães e porteiros varrem melancólicos dejetos de papelão nos córregos onde outros melancólicos sobejos vêm curvados fuçar, procurar e remexer, esperando descobrir algo para vender.

Retirei esta última citação da tradução dos “Struzzi” Einaudi, mas a primeira que fiz acima, a das cumeeiras, foi extraída da tradução de Filippo Donini para os “Grandi Libri” Garzanti, que me parece captar melhor o espírito em algumas passagens mais sutis, embora apresente alguns aspectos antiquados como a italianização dos nomes de batismo. Nessa frase se tratava de transmitir o distanciamento entre as humildes alegrias do terraço e as chaminés da City, vistas como nobres damas (dowager) altivas; cada detalhe descritivo em Dickens tem sempre uma função, entra na dinâmica da narrativa.
Outro motivo pelo qual este romance é considerado uma obra-prima é a representação de um quadro social muito complexo de classes em conflito; neste ponto concordam a introdução ágil e inteligente de Piergiorgio Bellocchio para a edição Garzanti e aquela, toda concentrada neste aspecto, de Arnold Kettle para a edição Einaudi. Kettle polemiza com George Orwell que, numa famosa análise “classista” dos romances dickensianos, demonstrou como, para Dickens, o objetivo não eram os males da sociedade, mas da natureza humana.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

Conselho sensato

 “Seja cortês com todos, sociável com muitos, íntimo de poucos, amigo de um e inimigo de nenhum.”

Benjamim Franklin

Peixe dourado

           Yonatan teve uma ideia brilhante para um documentário. Bateria às portas das pessoas. Apenas ele, sem equipe de filmagem, com uma pequena câmera na mão, e perguntaria: “Se vocês encontrassem um peixe dourado falante que lhes concedesse três desejos, o que pediriam?”
As pessoas responderiam, e ele iria editar e montar clips com as respostas mais surpreendentes. Antes de cada conjunto de respostas, veriam a pessoa imóvel, na entrada de sua casa, e, superpostas a esta imagem, viriam as legendas com o nome, dados pessoais, renda mensal e talvez até mesmo o partido em que havia votado na última eleição. Junto com os desejos, todo o assunto se transformaria em um projeto social, que diria algo sobre o enorme abismo entre os nossos sonhos e a verdadeira situação em que a sociedade se encontra.
Era uma ideia genial e barata. Tudo que ele precisava era de uma porta e um coração pulsando atrás dela. E tinha certeza de que, com uma filmagem decente, seria capaz de vendê-la facilmente para o Canal 8 ou o Discovery, fosse como filme ou como uma coleção de vinhetas, cada qual exibindo uma alma diferente à sua porta de entrada e seus três preciosos desejos.
Com um pouco de sorte, talvez pudesse até interessar a algum banco ou empresa de celulares e, por fim, seria possível embalar o produto com o nome do patrocinador. Algo no estilo “Sonhos diversos, desejos diversos, um banco”. Ou “O banco que faz seus sonhos tornarem-se realidade”.
Yonatan decidiu começar a trabalhar nisso sem quaisquer preparações. Pegou sua câmera e foi bater à porta das pessoas. No primeiro bairro que filmou, a maioria dos que concordaram em cooperar pediram as coisas relativamente previsíveis: saúde, dinheiro, um apartamento maior. Mas houve também momentos tocantes. Uma mulher estéril pediu um filho. Um sobrevivente do Holocausto com um número tatuado no braço pediu que todos os nazistas ainda vivos pagassem pelos seus crimes. Um homossexual idoso pediu para ser mulher.
E estes eram desejos apenas de um pequeno bairro no subúrbio de Tel Aviv. Yonatan imaginava o que as pessoas iriam pedir nas cidades em desenvolvimento, comunidades ao longo da fronteira norte, nos assentamentos, nas aldeias árabes, nos centros de absorção de imigrantes repletos de trailers quebrados e pessoas exaustas abandonadas sob o sol do deserto.
Yonatan sabia que, para valorizar o projeto, seria muito importante ter também desempregados, religiosos, árabes, etíopes e expatriados americanos. Começou a planejar um cronograma de filmagens para os dias seguintes: Jafa, Dimona, Ashdod, Sderot, Taibe, Talpiot. Talvez até Hebron. Ele olhou para os nomes de comunidades que anotara no papel. Se conseguisse filmar um árabe pedindo paz como um dos seus desejos, isto seria uma bomba.
Sergei Goralick não gostava que estranhos lhe batessem à porta. Especialmente quando estes estranhos lhe faziam perguntas. Na Rússia, quando era jovem, isto acontecia muito. Pessoas da KGB batiam à sua porta porque seu pai era sionista e teve o pedido de imigração negado.
Quando Sergei se mudou para Israel, e então para Jafa, familiares lhe disseram, ei, o que você espera encontrar em um lugar como esse? Lá só tem drogados e árabes. Mas o que é muito bom com drogados e árabes é que eles não vêm bater à porta de Sergei. Assim, Sergei pode se levantar quando ainda está escuro, partir com seu barquinho para o mar, pescar um pouco e voltar para casa. E tudo sozinho. Em silêncio. Como deve ser.
Até que certo dia, um rapaz de brinco na orelha, parecendo homossexual, bate à sua porta, bem forte, do jeito que Sergei não gosta, e lhe diz que tem algumas perguntas, alguma coisa para a TV.
Sergei lhe diz claramente que não quer, não está interessado, e empurra um pouco a câmera para que ele entenda que está falando sério. Mas o rapaz de brinco insiste. Diz-lhe todos os tipos de coisas. Com rapidez. Sergei mal consegue acompanhar, o seu hebraico não é tão bom.
O rapaz de brinco diminui o ritmo, diz a Sergei que ele tem um rosto forte, um belo rosto, e que precisa dele para este filme. Sergei tenta fechar a porta, mas o rapaz é ágil e consegue entrar. Ele começa a filmar, sem autorização, e, por trás da câmera, novamente fala do rosto de Sergei, que ele transmite bastante sentimento. De repente, o rapaz vê o peixe dourado de Sergei nadando na grande jarra de vidro na cozinha.
O rapaz com o brinco começa a gritar. “Peixe dourado! Peixe dourado!” Isto aborrece Sergei, que lhe pede para não filmar o peixe e explica que se trata de um peixe comum que ele pegou na rede. Mas o rapaz não está ouvindo. Ele continua a filmar e fala várias coisas sobre o peixe, que ele fala, que realiza desejos mágicos.
Sergei não gosta disso, não gosta que o rapaz esteja próximo demais, quase alcançando a jarra. Neste instante, Sergei entende que o rapaz não veio por causa da televisão, que veio tomar o seu peixe. E, antes que a mente de Sergei Goralick realmente entenda o que o seu corpo fez, ele pega a frigideira do fogão e dá uma pancada na cabeça do rapaz de brinco. O rapaz cai. A câmera cai com ele. Quando chega ao chão, a câmera se abre, assim como o crânio do rapaz. Sai muito sangue da cabeça, e Sergei realmente não sabe o que fazer.
Quer dizer, ele sabe exatamente o que fazer, mas isto pode complicá-lo de verdade. Porque se levar o rapaz para o hospital, as pessoas vão perguntar o que aconteceu, o que daria um rumo à situação nada bom para ele.
Não há razão para levá-lo ao hospital – diz o peixinho, em russo. – Ele já está morto.
Ele não pode estar morto – Sergei protesta. – A pancada nem foi forte. Foi apenas uma frigideira.
A pancada não foi forte – o peixe concorda –, mas a cabeça do rapaz pelo visto é ainda menos forte.
Ele queria tirar você de mim – diz Sergei, quase chorando.
Nada disso – diz o peixe. – Ele estava aqui só para filmar alguma bobagem para a TV.
Mas ele disse...
Ele disse exatamente o que estava fazendo – afirma o peixe, interrompendo –, mas você não entendeu. O seu hebraico não é dos melhores.
E o seu é? – Sergei retruca.
Sim, o meu é excelente – diz o peixe impaciente. – Sou um peixe mágico. Fluente em todas as línguas.
A poça de sangue da cabeça do rapaz de brinco fica cada vez maior, e Sergei, desesperado, é obrigado a ficar colado à parede da cozinha para não pisar nela.
Ainda lhe resta um desejo – o peixe lembra Sergei.
Não – Sergei move a cabeça de um lado ao outro –, não posso. Eu o estou guardando.
Guardando para quê? – o peixe pergunta.
Mas Sergei não responde.
Sergei utilizou o primeiro desejo quando descobriram um câncer em sua irmã. Era um câncer de pulmão do tipo que a pessoa não se recupera. Mas o peixe acabou com ele em um segundo. O segundo desejo Sergei tinha desperdiçado cinco anos antes com o filho de Sveta. O garoto ainda era pequeno naquela época, nem tinha três anos, mas os médicos disseram que alguma coisa na cabeça dele não estava em ordem. Ele iria crescer retardado. Sveta chorou a noite toda, e de manhã Sergei voltou para casa e pediu para o peixe dar um jeito. Ele nunca contou isto para Sveta, e alguns meses depois ela o trocou por um policial, um marroquino, que tinha um Honda brilhante. Em seu coração, Sergei dizia que não tinha feito aquilo por Sveta, que formulara o desejo pelo menino. Mas, em sua mente, estava menos seguro, e todos os tipos de pensamentos sobre outras coisas que poderia ter feito com aquele desejo continuaram a corroê-lo, quase enlouquecendo-o. Ainda não formulara o terceiro desejo.
Posso trazê-lo de volta à vida – diz o peixe. – Posso fazer o tempo voltar para um instante antes de ele bater à sua porta. Posso fazer isso. Tudo o que precisa é fazer o pedido.
O peixe move a barbatana de um lado ao outro, um movimento que Sergei sabe que ele só faz quando está realmente emocionado. Entendeu que ele já estava farejando a liberdade. Depois do último desejo, Sergei não teria alternativa, seria obrigado a liberar o seu peixe mágico, o seu amigo.
Tudo ficará bem, de verdade – diz Sergei, meio para o peixe e meio para si. – Só preciso enxugar o sangue. E de noite, quando eu for pescar, vou amarrá-lo a uma pedra e jogá-lo ao mar. Ninguém jamais irá encontrá-lo. É isto. Não vou desperdiçar um pedido com isso.
Você matou uma pessoa, Sergei – diz o peixe –, mas não é um assassino de verdade. Se não vai desperdiçar um desejo com isso, então para que ele vai servir?
Foi em Tira que Yonatan encontrou finalmente o árabe cujo primeiro pedido era paz. Chamava-se Munir, era gordo, com um enorme bigode branco. Superfotogênico. O modo como formulou o desejo foi emocionante. Já durante a filmagem, Yonatan soube que ele seria sua peça promocional.
Ou ele ou o russo com as tatuagens que ele tinha encontrado em Jafa, aquele que olhou diretamente para a câmera e disse que, se encontrasse um peixe dourado falante, não iria lhe pedir nada, só o colocaria em uma grande jarra de vidro em uma prateleira e falaria com ele o dia todo, não importa sobre o quê. Talvez esporte, talvez política, sobre o que quer que um peixe estivesse interessado em falar.
Qualquer coisa, disse o russo, só para não ficar sozinho.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

Migalhas

          Dédalo o havia advertido claramente, dito e repetido dezenas de vezes: “Põe-te a meia altura, meu Ícaro, nem muito perto do mar nem próximo do sol. Nem tão perto do mar que as asas te pesem, nem tão perto do sol que derretam. Não te ponhas a contemplar Bootes ou a Hélice ou a espada desembainhada de Órion”. Mas o filho começa a achar gozo no audacioso voo e, arrastado pelo fascínio do céu, segue para as alturas, para de lá cair, restando ao pai apenas a visão das penas que abundam sobre as águas.
Solitário e impotente, só lhe cabe prosseguir em seu voo rumo à Sicília, o destino planejado. Ao aterrissar, Dédalo é festejado por todos, uns maravilhados e outros temerosos com o voo humano, coisa jamais antes vista. Dédalo desfaz-se rapidamente das asas, larga-as de qualquer jeito e ainda faz menção de chutá-las, porém contém-se, ele que é o mestre do avanço calculado. Mas não resiste a xingá-las: “Malditas asas, maldita cera, maldito engenho humano”. E desata a soltar disparates contra si mesmo, contra o rei Minos, o minotauro, Ariadne, sem que ninguém entenda do que se trata nem o porquê daquela raiva desmedida.
Tirésias, que, não se sabe como, surge inopinadamente nas mais desencontradas tragédias e mitos, abusando de qualquer nexo narrativo, por acaso também está no meio da multidão, que testemunha tanto o milagre do voo e aterrissagem do arquiteto como seu irado desabafo. E, como não podia deixar de ser, aproxima-se dele, caminhando por entre os curiosos, que respeitosamente lhe abrem passagem, enquanto perguntam ao velho sábio o motivo de tamanha cólera. Dédalo, que já o conhecia como mediador da discussão entre Zeus e Hera, como vidente em Ulisses e também por sua participação em Édipo rei, não pode deixar de assustar-se com sua presença ali, pois o engenheiro não se considera à altura de tão ilustre visita.
E narra tudo ao cego. O labirinto, a prisão, o projeto e a construção das asas, suas repetidas advertências ao filho, o voo vaidoso de Ícaro e a consequente queda. Tudo entremeado de imprecações dirigidas a todos os deuses, aos homens, mas principalmente a si mesmo.
Você maldiz a todos, compreensivelmente. Afinal, perdeu seu filho amado sobre todas as coisas. Mas não enxerga o único verdadeiro culpado, que é ele próprio, cego em sua desmedida, perdido por sua húbris.
Um minuto, Tirésias. Você me critica por não enxergar o culpado, meu filho, Ícaro, cego de vaidade, mas o único cego aqui é você mesmo. Desculpe se o desrespeito, sei que você é importante e tem boas relações com os principais deuses do Olimpo, mas não posso deixar de dizê-lo.
Você já deveria saber, a essa altura do campeonato e da história, que é justamente minha cegueira que me permite enxergar além de todos vocês, ofuscados que estão pela visão apenas superficial de todas as coisas. Pois não ver a luz é a única forma de enxergar o que se passa na escuridão das almas e, acima de tudo, o que nelas transcorre é seu maior problema, o que desgraça a todos: a desmedida. Quem não se recusa a ver as sombras sabe que no fundo do coração de todos os seres mora ela, a soberba. Não há criatura que escape a isso, e Ícaro, talvez pela juventude, talvez pela proximidade do sol, que o seduziu, perdeu o sentido capaz de nos afastar da presunção, a moderação, que só se pratica através do pensamento reto e contido.
Mas como você consegue continuar repetindo essa ladainha, mito atrás de mito, tragédia atrás de tragédia? Não percebe que esse é o destino de todos os heróis, em todas elas? Desafiar o lote programado pelos deuses para nós, pobres mortais, e terminar sendo punidos com toda a crueldade do mundo, por quererem, ainda que às vezes inadvertidamente, igualar-se a eles? Você não entende que isso é soberba e ciúme, mas da parte dos deuses, que pregam a moderação para que nós, humanos, não possamos obter os mesmos prazeres, sentir o mesmo êxtase que eles, restando a nós apenas moderar, moderar, moderar? Ah, para o daemon que o carregue com tanta moderação. Você não se cansa de dizer sempre a mesma coisa? Será que ao longo de todos esses anos, quer dizer, milênios, não aprendeu alguma coisa nova?
Não. Não me canso com a mesmidão de tudo, pois é também o destino da humanidade repetir-se. E, sim, você tem razão quando fala dos deuses, cuja maior diversão é mesmo observar as travessuras humanas e jactar-se da sua incapacidade em aprender. Eles sabem que vocês não vão se cansar de desafiá-los e eles não se cansarão de puni-los. Mas o que têm vocês com isso? Essa é uma questão puramente divina. O problema humano, a falta de moderação, é só seu e posso lhe garantir, quanto mais a praticarem, mais próximos vocês estarão do que chamam de felicidade, a maior entre todas as imoderações.
Mas quem me garante que Ícaro não foi feliz em sua contemplação tão próxima do sol? Como posso saber se esse prazer intenso, ainda que fugaz, não foi maior e melhor do que toda uma vida moderada? E por que não podem os deuses divertir-se com outras coisas? A medida pode ser necessária para meu trabalho, a engenharia, mas para a vida é preciso que haja o que eu chamaria de instâncias de perdição e de erro; a vida, como você já deveria saber, é feita de luz e escuridão e ninguém consegue suportar somente a meia-luz. Dane-se sua filosofia de cego que enxerga. Quero ver aqui mesmo, em meio à luz. Quero ver o que viu meu filho, quero morrer por ele e, como ele, aproximar-me do que parece impossível. Ou será que não só ele, mas também eu estou sendo punido por ter voado, por ter atingido o que somente os deuses sabem fazer? Chega de tanta inveja. O que eles temem, que nós os superemos em inteligência e, por isso, recomendam-nos tanta mornidão? Pois vá para o inferno, Tirésias, você e todos os seus mitos.
Dédalo deixou o sábio ali, falando sozinho, tentando argumentar. Desgovernou-se solitário em sua imprudência, sem redenção possível, pelos caminhos da Sicília, da Ática e da Beócia, sem jamais voltar a usar as malditas asas. Entretanto, sem que percebesse, foi deixando cair, por entre frestas imperceptíveis de seus novos inventos, migalhas de desproporção e ousadia que, mais tarde, seriam fartamente usadas por outros heróis, como Ahab, Quixote e Pantagruel.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

Das palavras

Quando as quero, do jeito que as quero, escrevo-as, domando-as e sendo por elas domado: leão com o chicote de domador entre os dentes, fera que não se deixa domar, palavras que a noite açoita sem escrúpulos, que o dia sorve sem malícias e que a tarde, bem, a tarde, tudo cai na normalidade das coisas da tarde, ainda assim, nunca é tarde para se querer aquilo que as estações estão sempre sonegando às próximas penitências da carne, e toda carne é palavra lavrada em submersa vontade da alma, essa espécie de corpo desossado pelas horas pretéritas que o futuro, em insana fúria, soterrou. Palavras, quantas andam por aí, de boca em boca, de mão em mão, de folha em folha, árvore esculpida em brancas páginas de longas quimeras. Quantas ainda quero, se mal elas chegam, já pensam em partir, dominá-las, quem ousaria, se na amplitude do desejo arrebentam as comportas de tudo quanto se pode aguentar: palavras, sei, convicto, que as quero em cada momento do dia, seja tarde seja noite, são sempre palavras desejadas, como verbo, elemento ancestral do muito querer.

R. Leontino Filho, in As ruas arejadas do verbo impuro

A Arte do francês Monvel

 

Delfina tocando violão (data desconhecida), de Bernard Boutet de Monvel

Espírito forte

A ninguém nada acontece que não possa ser naturalmente suportado. As mesmas coisas acontecem a outra pessoa e seja porque esta não as percebe, seja porque mostra um espírito forte, ela se mantém firme e não sofre mal algum. É uma lástima, então, que a ignorância e a altivez sejam mais fortes que a sabedoria.

Marco Aurélio, in Meditações

O mundo

             Jenny sempre gostou de andar de ônibus.
Ela gostava de se sentar à janela e ver a paisagem passar. As montanhas, o fiorde, as casas, as vitrinas, as pessoas...
Era como se estivesse folheando um livro.
No ônibus ela podia ficar sentada sem ser perturbada e ouvir em segredo a conversa-fiada das pessoas, e não precisava arrumar alguma desculpa para isso.
As horas em que Jenny refletia mais intensamente eram durante as viagens de ônibus que fazia todos os dias entre Asane e Bergen. As poucas ocasiões em que seus pensamentos giravam em torno de outros temas além de economia e das bagatelas do cotidiano eram no ônibus.
No ônibus ela vira o nascer do sol. No ônibus vivera o crepúsculo. No ônibus tinha se dado conta do paradoxo que é um ser humano não viver eternamente.
Jenny estava sentada atrás de uma mãe e de seu falante filho de seis ou sete anos.
O menino acabara de atingir o estágio da vida em que havia se acostumado à realidade. O mundo não era mais algo novo em folha ou inexplorado. Ele ainda podia descobrir muitas coisas novas, mas há tempo o mundo já não oferecia mais motivos para se maravilhar. Ele havia deixado de ser uma permanente revelação.
Duas fileiras à frente, uma menina de dois anos estava sentada no colo de seu pai. Num momento, ela puxava a barba de seu papai; no momento seguinte, soltava-se dele e apontava entusiasmada para fora da janela.
Essa menininha era um ser totalmente diferente do garoto de sete anos. Ela ainda estava nos anos mágicos. Para ela, o mundo era ainda tão novo como no sétimo dia, em que o Senhor descansou. E a menina via que tudo era bom...
Se o motorista de repente tivesse colocado o ônibus no piloto automático para sair flutuando pelo teto do ônibus sobre a cabeça dos passageiros, talvez ela apontasse para ele e dissesse: “Olha, papai, o homem está voando!”.
O pai, um professor universitário ou educador social com seus trinta e poucos anos, provavelmente teria sofrido um choque. Simplesmente porque estava no mundo havia mais de trinta anos sem nunca antes ter vivido nada semelhante. Sim, apenas por isso.
Agora a menina apontava para uma ambulância com sinal luminoso e sirene tocando. O veículo passou pelo ônibus a toda velocidade na direção de Soreide. Para a menina pequena, tudo isso era extraordinário.
O pai deixava-se guiar e olhava para tudo o que sua filha apontava. Certamente ele participava das experiências de sua filha apenas por considerações de ordem pedagógica. Ele já vira inúmeras ambulâncias.
Mal a menina havia se sentado, já se soltava novamente. Agora ela apontava, sem caber em si de tanto entusiasmo, para um cavalo em frente a um grande estábulo.
Au-au! — disse.
Cavalo, Camila, é um cavalo. O professor tinha razão.
Se tivesse visto um Canguru pela janela do ônibus, com certeza ele teria cocado a cabeça intrigado — sem dúvida, apenas porque já havia feito a viagem para Fjosanger muitas vezes sem nunca ter deparado com um Canguru.
A menininha, por sua vez, provavelmente teria exclamado novamente com todo o entusiasmo: “Au-au!”.
Ver um Canguru para ela não teria sido nem mais nem menos emocionante. Ela ainda não possuía conhecimentos de zoologia tão bons assim.
Na verdade, nesse momento ela estava vendo um Canguru. Com um filhote dentro da pequena bolsa em sua barriga. Ou um elefante. Um elefante cor-de-rosa. Com asas douradas e prateadas...
A pequena Camila mergulhou em seu conto de fadas. Um conto em que o professor universitário talvez apenas conseguisse mergulhar se de repente o espaço à sua volta se enchesse de anjinhos.
Ter uma doença incurável significava um aguçamento incrível da memória. De repente, Jenny podia se lembrar tão bem de sua infância, que não tinha nenhuma dificuldade em se identificar com aquela menininha de dois anos tão maravilhada com tudo o que via.
Jenny tinha a sensação de estar vendo o mundo pela primeira vez. Muito embora fosse a última. Mas no fundo não era a mesma coisa? Como a garotinha à sua frente no ônibus, ela estava na extrema fronteira do mundo.
Jenny olhou para fora da janela.
A grama estava tão verde, a montanha tão alta e seus contornos tão definidos, o céu vespertino de um azul tão deslumbrante e as pessoas e os animais tão vivazes.
O mundo parecia ter sido criado havia apenas poucos minutos. Como se um mágico tivesse acabado de tirar a realidade da manga do paletó.
Lá em cima na encosta, ainda se viam algumas manchas de neve. Uma última saudação do ano passado.
De uma vida...
Jenny não veria mais a neve caindo em flocos do céu. Seu ciclo fora interrompido e soara o aviso da última rodada.
Neve!
Jenny ainda se lembrava da primeira vez em que vira algo branco sobre a terra. Na primeira de todas as manhãs de inverno do mundo. Um espesso tapete de uma geada de grãos graúdos cobrira tudo como um cobertor gelado.
Açúcar! — ela exclamara.
Ela se aprumara em seu carrinho e sacudira vivamente os braços.
Açúcar!
Isso havia sido no tempo em que ela ainda desfrutava desse esplendor. Ela não vira outra coisa senão uma paisagem confeitada.
O mundo é um enigma, pensava Jenny agora. Mas nós nos acostumamos a esse enigma quando crescemos. Até que ao final não nos acontece mais absolutamente nada enigmático. O mundo torna-se constante e previsível. E precisamos refletir profundamente para destituir o mundo de sua aparente compreensibilidade. Precisamos nos aprofundar intensamente em nós mesmos se quisermos vivenciar o mundo como mistério...
Não é engraçado?
O único verdadeiro mistério é aquele que vemos. Mas é o único que nunca é mencionado.
Isso diz respeito a todas as pessoas. Mas não é um tema de conversa. Nada é tão obscuro quanto o que é cristalino.
Nada é tão oculto quanto o que vivemos em cada um dos dias.
Aqui despertamos num globo terrestre no Universo. Num globo flutuante. Uma esfera mágica. Com lagos, florestas e montanhas. E uma pitada de vida em todas as formas e tamanhos.
Aqui a matéria espalha-se pelo campo. Aqui ela desponta do solo entre pedras e árvores. Aqui ela fervilha em rios e lagos. Aqui ela tremula no ar entre o céu e a terra. E mais ainda, mais: a matéria neste misterioso planeta é consciente de si mesma. Ela abre os braços e diz: “Opa! Lá vou eu!”.
E, apesar de tudo, depois é assim. Nos acostumamos a tudo o que está à nossa volta e agimos como se tivesse que ser assim. Consideramos a vida neste planeta a forma mais racional de existência. Talvez ainda consideremos os dodos e os dinossauros algo extraordinário, mas apenas porque eles não existem mais.
Ainda na terceira ou na quarta série, Jenny admirava-se de que na Austrália as pessoas não despencassem da superfície da terra. Ela achava isso espantoso, do mesmo modo que teria ficado perplexa com o contrário: caso os australianos de fato caíssem no espaço sideral.
O que ela sabia naquela época sobre “leis da natureza” — leis da natureza, o que era isso?
Camila e o “au-au” lembraram a Jenny salas de leitura e grupos de trabalho.
Quinze ou vinte anos antes, ela lera os dois volumes da História da filosofia, de Arne Naess, para um exame. Ela só conseguia se lembrar de uma frase — talvez porque tivesse lhe parecido verdadeira logo à primeira vista: “Nada existe na consciência que antes não tenha existido nos sentidos”.
Algum filósofo havia formulado mais ou menos assim. Agora ela pensava de novo nessa frase — e ela lhe parecia a quintessência de tudo o que é possível dizer sobre este mundo.
Todos nascemos com uma série de expectativas perante o mundo, que depois se concretizam ou não. Assim, aceitaríamos também qualquer outro tipo de ordem no mundo.
No que diz respeito à racionalidade, a realidade não leva nenhuma vantagem sobre qualquer conto de fadas. Do ponto de vista da lógica, todas as ordens são igualmente possíveis no mundo. Ou impossíveis. Mas o homem é dotado de uma capacidade de adaptação inconcebível. Se conseguimos nos manter a cada dia na realidade sem perder o entendimento, sem nem ao menos piscar os olhos, é porque somente a realidade é real, somente ela é um fato.
Quem é que acreditaria na realidade sem que fossem apresentadas provas de que ela existe?
O mundo, pensou Jenny, o mundo vira um hábito. Tudo é inflacionado. Se começar a acontecer um milagre após o outro, ao final só poderemos estar indiferentes. Até que chega o dia em que simplesmente não vemos mais que existe um mundo.
Uma coisa só pode nos parecer enigmática se contrastada com nossas expectativas. Somente nos surpreendemos ainda quando a longa série de nossas expectativas é quebrada. O mundo precisa dar uma guinada. E nós precisamos viver algo “sobrenatural” para sentir na própria pele que existimos.
Jenny olha novamente para fora da janela.
Soreide. Uma cidadezinha a dez quilômetros ao sul de Bergen. Algumas lojas, uma escola, uma agência de correio. Uma noite quieta de um dia de trabalho. Jenny olha para tudo com a visão aguçada de uma criança.
A única coisa que torna este mundo mais plausível do que a mais alucinada fantasia é o fato de que ele existe. Deixando essa diferença de lado, Soreide é tão incompreensível para a razão quanto a Terra Média dos hobbits ou o País das Maravilhas de Alice.
Isso também deve ter sido formulado mais ou menos assim por algum filósofo. O grande mistério não consiste em como o mundo é, mas apenas em que ele existe.
Essa tese também marcou Jenny na época em que ela se preparava para o exame de filosofia. Essa frase parecia abranger tudo o que se podia imaginar.
Mas em todos os anos que desde então se passaram ela nunca mais havia pensado nisso. Estava ocupada demais em viver. O mundo em si não é um tema com o qual se deva quebrar a cabeça todos os dias.
Mas quando de repente alguém descobre que está com câncer, a coisa fica bem diferente. Então, palavras como mundo, vida ou morte passam a ter mais importância. Os doentes de câncer muitas vezes desenvolvem uma apurada sensibilidade para as grandes questões existenciais. Muitos chegam a afirmar que isso faz parte do quadro da doença.
No Wesselstue, porém, esses pensamentos não estavam exatamente na ordem do dia. Essas idéias eram estranhas aos médicos e professores de Finse. Eles eram saudáveis demais para elas. Eles eram um pouco animais demais para elas.
O que os diferenciava, então, das vacas e ovelhas em Blomsterdalen? Eles simplesmente estavam lá. Absolutamente sem notar isso. Sem recuar um passo.
O que teria movido Siri em Finse se existisse apenas um sexo sobre a terra? Talvez ela tivesse ficado observando as estrelas. Talvez ela tivesse deitado a cabeça para trás para olhar o Universo. Talvez tivesse descoberto a si mesma e se perguntado de onde teria vindo.
Quase toda sua vida na terra Jenny vivera como uma personagem de história em quadrinhos, sem uma consciência de si mesma. Apenas uma rara vez, a consciência da própria existência lhe percorrera o corpo como um calafrio.
Uma pessoa vive no máximo oitenta ou noventa anos, ela pensou agora. Uma geração sucede a outra... Todos temos que morrer... Não vivemos para sempre — no trato entre as pessoas existem muito floreios.
Se vivêssemos apenas três ou quatro anos, precisaríamos nos conformar com isso exatamente da mesma maneira. Seria essa então a nossa natureza. Mesmo se vivêssemos mil ou dez mil anos, também estaríamos insatisfeitos quando o final se aproximasse.
Trinta e seis anos...
Um dia na eternidade. Um piscar de olhos no tempo. Não fazia muito tempo que Jenny tinha a sensação de ser adulta. Ela ainda era uma principiante.
E, mesmo assim, não invejava mais os outros pela indulgência de alguns parcos dias a mais. Ter mais uma semana ou mil anos de vida no fundo não fazia diferença, se de qualquer forma ela deixaria de existir um dia. Afinal de contas, existiam questões mais importantes do que o exato momento em que a vida de um único indivíduo chega ao fim. Tratava-se de algo mais do que simplesmente regatear a hora de partir.
Não sou eu quem está doente, ela pensou. O mundo está doente. Pois, afinal de contas, “tudo o que vem a ser é digno de perecer”.
Buda também se referiu a isso quando disse que tudo no mundo está preenchido por sofrimento. Existem muitas coisas boas no mundo. Muito a que nos afeiçoamos. Mas nada daquilo que amamos e a que nos apegamos perdura.
Será que não existia um remédio contra seu medo de se perder de si mesma? Não havia nada que curasse Jenny de seu desejo intenso de viver, nada que a libertasse de sua sede de vida? Não existia uma perspectiva que fosse mais importante do que a questão do ser ou não ser?
Com essa questão ocupava-se Jenny no último posto avançado do mundo.

Jostein Gaarder, in O pássaro raro

A vida

A vida é o dia de hoje,
A vida é o ai que mal soa,
A vida é nuvem que voa.
A vida é sonho tão leve,
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai.
A vida dura um momento.
Mais leve que o pensamento,
A vida, leva-a o vento.

A vida é folha que cai.
A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave.
Nuvem que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida — pena caída
Da asa de ave ferida —
De vale em vale impelida,
A vida, o vento a levou.

João de Deus

Guardei meu cuspe

          Mais digo ao senhor? Atirei, minhas vezes. Aí, tomei ar. O senhor já viu guerra? A mesmo sem pensar, a gente esbarra e espera! espera o que vão responder. A gente quer porções. Demais é que se está! muito no meio de nada. A morte? A coisa que o que era xô e bala. Que qual, agora não se podia mais ter outros lados. Agora era só gritar ódio, caso quisesse, e o ar se estragou, trançado de assovios de ferro metal. O senhor ali não tem mãe, não vê que a vida é só brabeza. Revém ramo cortado de árvore, aí e o comum que cavacam poeiras e terras. Digo ao senhor, dou conversa. Aquilo era. Artes que carreguei o rifle, escorei, repetente. Aquele povo inimigo nosso esperdiçava muita munição, atiravam com nervosia. Não queriam morrer por nossa mão, não queriam. Ri me ri, e o Hermógenes me chamou com assombro. Em isso ele me crendo endoidado. Mas eu estava era de repente pensando em meu padrinho Selorico Mendes.
Agora, tu mesmo vai lá, vai! Tu não quer?! ― foi o que arranjei vontade de gritar com o Hermógenes. Cão, que ele. Ri mais. Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o Hermógenes era um como eu, igual, igual, até pior atirava. E aqueles bebelos tinham feito madrugada para levar fogo. Fiquei meu.
...Se todos passam mão em arma e fecham volta de tiroteio, uns contra os outros, então o mundo se acaba... ― acho que pensei. Eram só tolicezinhas, que por minha mente marinhavam. Os tiros peguei a querer contar. Aquilo como durou, demorava um oco. O dia tinha clareado saído: eu todo podendo descrever o Montesclarense, atrás dum toro de pau e moitas de anduzinho. Para que conto isto ao senhor? Vou longe. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber? São coisas que não cabem em fazer ideia.
Combate quanto, combate grande. Ser menos, que a gente não rastejava alterando de lugar, que não era o caso. Quase que só quando se pega no defendimento é que isso é de se fazer: para pensarem que se vai em número maior que a verdade. Como não, mais valia garantir o bom do posto, sem desguar. Tiro de lá chama tiro de cá, e vira em vira. Disparo que eu dava, era catando mover alheio, cujo descuido, como malandro malandrêia. Nem cento-e-cinquenta braças era o eito, jaculação minha. Aquilo servia até para carga de bocamorte. E mais de um, eu etcétera, aí, pelo que sei, pelo que vejo. Mas só aqueles que para morrer estavam com dia marcado. Minto? O senhor releve ideias. Era assim.
Deu vez de, os muitos tiros se assanhavam, de prão, em riba dum trecho só. Queriam costurar. Aí, e as horas não acabavam. O sol encostava na nuca da gente. Sol, solão, debaixo eu suava, transpirava dos cabelos, e pelo dentro das roupas, de sentir as cócegas grossas no meio do lombo; e essas dormências numas partes do corpo. Então, eu atirava. Não se ia avançar? Não, nem. Os outros picavam forte, o fogo deles não desmerecia. Cachorrada! Xingar, mesmo, ia servir só para mostrar mais alvo. Ao que, eu descansava meus olhos nas costas do Garanço, ali quase em minha frente. O Garanço tinha arrumado no chão o bissaco e o cobertor, estava sem jaleco, só com a camisa de xadrezim. Eu vi o suor minar em mancha, na camisa, no meio das costas dele, Garanço, aquela nódoa escura ia crescendo, arredondada, alargada. O Garanço disparava, sacudia o corpo, ele era amigo meu, com minúcia de valentia. Rapaz de como se querer, homem de leal qualidade. Então, eu atirava, também. Bala e chumbo... ― eu peguei a dizer. Bala e chumbo... Bala e chumbo... O lugar do coração me apertando ― eu era carne muita e calor bravo. ― O que foi? Que é? ― o Hermógenes me perguntou. ― Nada não! ― respondi. Bala e chumbo... Chumbo e bala... Estrumes! Pelo que foi, de repente! bem apartado, da banda esquerda de nós, uns homens dos nossos deram figura, se pulando para diante, aos gritos, investiram ― contra o contra!
Ao que, eram dois... Três... ― Diá! ― o Hermógenes rosnou! ― Deu a fúria nesses, bute! Raspa que eles por lá entraram, iam de coronhada e faca... Não se atirou, suspende mos fôlego. E, vai, o Hermógenes me segurou tente: que o Montesclarense ― coitado! ― também tinha crescido para avante, no igual, e, de lá, nele balearam. Caíu, catando cacos. Pobre. Deu doidice? Antes aí, os outros nossos, que se danando no vespeiro dos bebelos, roncavam em poeira deles, decerto se acabavam estraçalhados que nem coelho com a cainça. Tomara tivessem aprontado seus alguns! Assim aquilo sossegou, povo nosso demos raiva de fogo ― aí é que foi atirar. O Hermógenes me resignou os ímpetos: ― Tatarana, te trava, não dá de esquentar arma, gasta munição não. Só os tiros bons poucos. Só cobrar o dizmo. Aquele homem fazia frio, feito caramujo de sombra. A ver que tive sede, mas minha cabaça não dava gota mais. Guardei meu cuspe.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas