segunda-feira, 30 de novembro de 2020

"E"

Na origem da humanidade, o homem não sabia distinguir a si mesmo dos outros que o circundavam. Não havia pronomes, já que não havia diferenciação entre os seres. O homem, assim, pensava, se é que se pode atribuir a ele essa ação tão recente na história da humanidade, que os outros eram extensões ou modificações de si mesmo. Quando alguém não gostava do que via, atacava a si próprio, achando que, com isso, conseguiria extirpar o que lhe desagradava. Da mesma maneira, quando um homem encontrava uma mulher que lhe aprazia, buscava encontrar em seu próprio corpo, coçando-se, mexendo-se, a fonte daquele prazer. Também acontecia com muita frequência, é claro, de os indivíduos tocarem-se uns aos outros, atacarem-se ou conhecerem-se, mas sempre com a sensação de que aqueles encontros não eram nada mais que o corpo de cada um agregado à natureza. Assim, também não havia distinção entre os seres e as manifestações naturais ou cósmicas, como as árvores, o sol e o trovão. Tudo era um só corpo; o que não significava a ausência de disputas e guerras. Aconteceu, entretanto, que um desses seres, habitante de uma caverna de folhelho no interior da atual França, enquanto roía um osso e acompanhava o barulho da chuva, percebeu que o som da chuva batendo nas paredes mais finas da caverna, acompanhado das mordidas compassadas que aplicava às últimas carnes que restavam do osso, produzia uma batida regular que lhe agradava e que ele não se lembrava de ter provado antes. Como que à sua revelia, começou a percutir aquele ritmo e acompanhá-lo com as pontas dos dedos. Assustou-se. Quem estava produzindo aquele som, idêntico ao barulho ritmado que escutava? Olhou para seus dedos e sentiu o ar que saía de sua boca e se deu conta, para seu espanto e medo, de que era o seu corpo mesmo que o fabricava. Experimentou novamente aqueles sons e viu que podia modificá-los, decidindo-se por imitar ou não os sons externos. Essa foi, creem os cientistas, a primeira vez que um ser humano conseguiu compreender precariamente a distinção entre o lado de dentro e o de fora. Dali em diante, aquele homem passou a aplicar aquela temerária e ainda incipiente descoberta a muitas outras coisas. Em segredo, emitia sons imitando vários outros barulhos da natureza, e foi percebendo as diferenças de ruídos que os indivíduos produziam. Ia também acompanhando alguns ritmos com os dedos das mãos, e, logo em seguida, com os dedos dos pés. Deu para assustar seus companheiros, emitindo sons que ecoavam no folhelho e repercutiam nas paredes da caverna. Todos procuravam em si mesmos a origem daqueles barulhos e reagiam desorientados. Numa dessas vezes, o homem riu. Sentiu seu corpo se contraindo, a urina apertando-lhe as entranhas, e um misto de medo e prazer tomou conta dele. Todas essas experiências, que aquele homem, não se sabe por quê, praticava em segredo, levaram-no a, fortuitamente, experimentar riscar, com um pedaço de galho, o folhelho macio da caverna onde costumava dormir. O folhelho respondeu e aceitou o risco de maneira dócil, permitindo que se formasse um traço grosso que, aos olhos do homem, lembrava o voo de um pássaro atravessando o céu, movimento que gostava de passar horas observando. A partir daí, Tortr, que seria seu futuro nome, por ele mesmo criado e adotado, começou a desenhar muitas formas de que gostava, a cantarolar, imitar sons e emitir ruídos cada vez mais numerosos e menos secretos. Assustava os mais velhos com gritos, contagiava as crianças, que por sua vez também o imitavam, e atraía as mulheres, que se aproximavam dele para aprender a rir e sentavam-se para escutá-lo. Foi assim, no meio de uma tarde de brigas e algazarra, que Tortr teve a súbita e dolorida compreensão do que se passava. Aqueles seres que o rodeavam eram como ele, iguais a ele, mas não eram ele. Cada um era um corpo separado, capaz de produzir as mesmas coisas que ele, Tortr, e ainda outras. Correu para o seu canto da caverna de folhelho e foi às pressas procurar aquela outra criatura que o imitava perfeitamente, no interior da caverna. Ele estava ali, esperando por ele, e imitando todos os seus gestos à perfeição. Tortr tentava agarrá-lo, mas, por sua vez, o outro também tentava, e nenhum dos dois conseguia. Tortr reparou em suas mãos, suas pernas, seu rosto, e viu que o homem atrás do folhelho era em tudo idêntico a ele. Uma ideia, e essa foi a primeira ideia a surgir na mente de um homem, passou raspando pela imaginação de Tortr. Aquele homem era ele, ele mesmo. Tortr empalideceu, riu, começou a se mexer compulsivamente e a soltar breves ruídos de alegria e curiosidade. Não dormiu naquela noite e passou a madrugada inteira riscando traços diante daquele homem, que também riscava. De manhã cedo, Tortr já havia compreendido tudo. Ele era um e os outros eram outros. Aquela imagem no folhelho era ele mesmo. Seria preciso agora mostrar isso a todos e ensinar cada um a diferenciar-se. Entre os riscos produzidos durante aquela noite, Tortr encontrou uma combinação casual que o alegrava. Era um risco vertical e reto, cortado por três riscos horizontais e paralelos. Era a letra E, que nascia naquele momento e que, alguns dias mais tarde, serviu para que Tortr inventasse também o pronome “eu”, com que podia discriminar-se de todos, possibilitar a todos que também se discriminassem e que, mais tarde, inventassem em conjunto as primeiras canções, os poemas, as guerras e as palavras “elefante”, “ébano” e “ecgonina”, cujo significado ninguém conhece até os dias de hoje.

Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto

O gozo de criar

Uso um deformante para a voz.
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de
uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de
uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca.
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com palavras até meu retrato aparecer.
Apareço de costas.
Preciso de atingir a escuridão com clareza.
Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar
o meu aspro.
Palavras têm que adoecer de mim
para que se tornem mais saudáveis.
Vou sendo incorporado pelas formas
pelos cheiros pelo som pelas cores.
Deambulo aos esgarços.
Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora para mim uma importância
de Catedral.

Manoel de Barros

Tudo bem

          O ministro do Otimismo reuniu os repórteres e declarou:
         A situação não é tão grave como vocês estão dizendo. Aliás, a situação não é nada grave. Quem foi que inventou que a situação é grave?
Ministro, os números…
Nunca ouvi os números dizerem alguma coisa. Número não fala. Se falasse, reconheceria que tudo está sob controle.
Perdão, sob controle de quem? — indaga um repórter.
Quando parece que as coisas estão sem controle, é porque estão sob controle de si mesmas, e esta é uma questão muito delicada. É o controle intestinal, entendem? Se não entenderem, não faz mal.
O custo de vida…
O custo de vida é ilusão. Não há custo de vida. O governo sustenta maternidades gratuitas. Ninguém paga para nascer. Além disto, para facilitar ainda mais a vida, cogitamos de estabelecer o imposto de morte. Todos os mortos pagarão este imposto. Assim, ninguém mais vai querer morrer, e está salva a pátria. Eu não disse?

Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Despedida

          Dias depois, Pedro Guarany também apertava os arreios do seu pingo. Muito embora estivesse gostando da rotina na venda, teria que partir. Sabia que João Fôia estava pelas redondezas em busca de serviço e já não se sentia seguro. Estava nublado e abafado. Prenúncio de chuvarada. Atou o violão bem firme para não cair. Já estava com o pagamento pelo serviço escondido na guaiaca. Deu uma última caminhada, despediu-se dos animais e, por fim, foi dar adeus ao velho Geraldo.
Gracias pela ajuda, guri — disse o pulpero.
Quando Pedro Guarany lhe estendeu a mão para a despedida, foi surpreendido pelo abraço fraternal do outro que, com os olhos marejados, encarou aquele visitante, a quem já queria como um filho.
Quando cansar da estrada, volta aqui pra minha casa para seguirmos nossas conversas e me ajudares. Por aqui, sempre tem o que fazer.
Constrangido pela demonstração de afeto, Pedro não conseguiu agradecer como queria. As palavras ficaram trancadas em sua garganta. Mesmo assim, Geraldo entendeu tudo.
Pedro vestiu seu poncho e desabou as abas do sombreiro.
Hasta siempre, amigo! — gritou, antes de esporear seu cavalo e partir rumo ao horizonte que trovejava.

R. Tavares, in Andarilhos

O general Loewenhielm

          O general Loewenhielm percorrera o trajeto de Fossum a Berlevaag num estranho estado de espírito. Não visitava aquela parte do país havia trinta anos. Viera agora para um descanso de sua atribulada vida na corte, mas não encontrara descanso algum. A velha casa de Fossum era bastante tranquila e parecia de certo modo pateticamente pequena em comparação às Tulherias e ao Palácio de Inverno. Mas havia ali uma figura nada tranquila: o jovem tenente Loewenhielm passeava por seus aposentos.
O general Loewenhielm via a figura bela e esbelta passar diante dele. E, ao fazer isso, o jovem lançava ao homem mais velho um rápido relance de olhos e um sorriso, o sorriso altivo e arrogante que a juventude lança à idade. O general poderia ter sorrido de volta, gentil e um pouco triste, como a idade sorri para a juventude, não fosse o fato de que não estava com a menor disposição para sorrisos; estava, como a tia escrevera, deprimido.
O general Loewenhielm conseguira tudo o que almejara na vida e era admirado e invejado por todos. Somente ele tinha conhecimento de um fato esquisito, que trazia inquietação à sua próspera existência: o de que não era perfeitamente feliz. Alguma coisa estava errada em algum lugar e ele cuidadosamente apalpava o próprio eu espiritual aqui e ali, assim como alguém aperta com o dedo para determinar o local de um espinho profundamente encravado, invisível.
Gozava de grande favor junto à realeza, saíra-se bem em sua vocação, tinha amigos por toda parte. O espinho não estava em nenhum desses lugares
Sua esposa era uma mulher inteligente e ainda bonita. Talvez negligenciasse um pouco a casa em prol das visitas e festas; trocava de criados de três em três meses e as refeições do general na casa careciam de pontualidade. O general, que tinha a boa comida em alta conta na vida, sentia por isso uma certa amargura contra a mulher e secretamente a culpava pela dispepsia de que às vezes sofria. Ainda assim, o espinho não estava aí, tampouco.
Não, mas uma coisa absurda vinha acontecendo ultimamente com o general Loewenhielm: pegava-se preocupado com sua alma imortal. Haveria alguma razão para que o fizesse? Era uma pessoa de moral, leal a seu rei, sua esposa e seus amigos, um exemplo para todos. Mas havia momentos em que o mundo lhe parecia não uma questão moral, mas mística. Olhava-se no espelho, examinava o monte de condecorações em seu peito e suspirava: “Vaidade, vaidade, tudo é vaidade!”.
O estranho encontro em Fossum impelira-o a fazer o balanço de sua vida.
O Lorens Loewenhielm jovem atraíra sonhos e fantasias como uma flor atrai abelhas e borboletas. Lutara para se libertar deles; fugira e eles o seguiram. Tivera medo da huldre da lenda familiar e declinara de seu convite para acompanhá-la à montanha; rejeitara firmemente o dom da clarividência.
O Lorens Loewenhielm velho pegou-se a desejar que um pequeno sonho cruzasse seu caminho e uma cinzenta mariposa do crepúsculo fosse visitá-lo antes que a noite caísse. Pegou-se desejando a faculdade da clarividência, assim como um cego almeja a faculdade normal da visão.
Pode a soma de inúmeras vitórias em muitos anos e em muitos países constituir uma derrota? O general Loewenhielm cumprira os desejos do tenente Loewenhielm e mais do que satisfizera suas ambições. Podia-se dizer que ganhara o mundo todo. E acontecia agora que o imponente e vivido homem mais velho virava-se para a jovem e ingênua figura a fim de lhe perguntar, gravemente e até com amargura, com que proveito? Em algum lugar alguma coisa se perdera.
Quando a senhora Loewenhielm contara ao sobrinho a respeito do aniversário do deão e ele resolvera acompanhá-la a Berlevaag, sua decisão não se resumira a aceitar um convite para jantar.
Estava determinado, nessa noite, a fazer um ajuste de contas com o Lorens Loewenhielm jovem, que se mostrara uma figura tímida e triste na casa do deão e que, no fim, sacudira o pó das botas de equitação. Deixaria o jovem lhe provar, de uma vez por todas, que trinta e um anos antes tomara a escolha acertada. Os cômodos baixos, o hadoque e o copo d’água na mesa diante dele seriam chamados todos a testemunhar que em seu meio a existência de Lorens Loewenhielm teria se tornado em pouco tempo pura infelicidade.
Deixava sua mente divagar para longe. Em Paris, ganhara certa vez um concours hippique e fora aclamado por altos oficiais da cavalaria francesa, entre eles, príncipes e duques. Um jantar em sua homenagem fora dado no restaurante mais elegante da cidade. À sua frente, na mesa, estava uma dama da nobreza, uma famosa beldade a quem havia tempos cortejava. Na metade do jantar, ela erguera os olhos negros aveludados acima da borda de sua taça de champanhe e, sem dizer palavras, prometera-lhe a felicidade. No trenó ele agora de repente lembrava-se de que, por um segundo, vira o rosto de Martine diante dele e o rejeitara. Por uns instantes ficou ouvindo o tilintar dos sininhos do trenó, depois sorriu ligeiramente ao refletir como iria nessa noite dominar as conversas em torno daquela mesma mesa onde o jovem Lorens Loewenhielm se sentara mudo.
Grandes flocos de neve caíam densamente; na esteira do trenó as marcas sumiam rapidamente. O general Loewenhielm permanecia sentado imóvel ao lado da tia, o queixo afundado no espesso colarinho de pelo de seu casaco.

Karen Blixen, in A festa de Babette

sábado, 28 de novembro de 2020

Filosofia Pessoana

          Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, sentir as pessoas com ternura, esta é a verdadeira filosofia.
1. Não tenhas opiniões firmes, nem creias demasiadamente no valor das tuas opiniões.
2. Sê tolerante, porque não tens certeza de nada.
3. Não julgues ninguém, porque não vês os motivos, mas sim os atos.
4. Espera o melhor e prepara-te para o pior.
5. Não mates nem estragues, porque não sabes o que é a vida, exceto que é um mistério.
6. Não queiras reformar nada, porque não sabes a que leis as coisas obedecem.
7. Faz por agir como os outros e pensar diferentemente deles.

Fernando Pessoa, in Anotações de Fernando Pessoa (sem data)

Poema sobre absorvências no totalmente perplexas de Guimarães Rosa

Ah, pois, no conforme miro e vejo,
o por dentro de mim,
Segundo o consentir
dos desarrazoados meus pensares,
é o brabo cavalo em as ventas arfando,
se querendo ir,
permanecido apenas no ajuste das leis do bem viver comum,
por causa de uma total garantia se faltando em quem m’as dê.
Ad’formas que em tréguas assisto e assino
e o todo exterior desta minha pessoa recomponho.
Porém chega o só sinal mais leve
de que aquilo ou isso é verdadeiro
pra a reta eu alimpar com o meu brabo cavalo.
Ara! que eu não nasci pra permanência desta duvidação,
mas só pra o ser eu mesmo, o de todo mundo desigual,
afirmador e consequente, Riobaldo, o Tatarana.
Ixi!

Adélia Prado

Diderot, Jacques, le Fataliste

         O espaço de Diderot entre os pais da literatura contemporânea vem aumentando continuamente e por mérito sobretudo de seu antirromance-metarromance-hiper-romance Jacques, o Fatalista, e seu amo, cuja riqueza e carga de novidade jamais se terminará de explorar.
Comecemos por dizer que, invertendo aquilo que já então era a intenção principal de todo romancista — fazer o leitor esquecer que está lendo um livro, para que se abandone à história narrada como se a estivesse vivendo —, Diderot põe em primeiro plano o duelo entre o autor que está contando sua história e o leitor que não deseja nada além de ouvi-la: as curiosidades, as expectativas, as desilusões, os protestos do leitor e as intenções, as polêmicas, os arbítrios do autor ao decidir a sequência da história são um diálogo que serve de moldura para o diálogo dos dois protagonistas, por sua vez moldura de outros diálogos…
Transformar a relação com o livro de aceitação passiva para questionamento contínuo ou até uma espécie de ducha escocesa que mantenha aceso o espírito crítico: esta é a operação com a qual Diderot antecipa de dois séculos aquilo que Brecht quis fazer com o teatro. Com a diferença de que Brecht o fará em função de suas pretensões didáticas precisas, ao passo que Diderot aparenta querer apenas eliminar todo preconceito.
Convém observar que Diderot joga um pouco com o leitor como o gato com o rato, abrindo-lhe o leque das várias possibilidades a cada nó da história, como para deixar-lhe a liberdade de escolher a continuação que mais lhe agradar, para depois desiludi-lo descartando todas exceto uma que é sempre a menos “romanesca”. Aqui Diderot se adianta à ideia de “literatura potencial” cara a Queneau, mas também a desmente um pouco; de fato, Queneau irá elaborar um modelo de Conto à sua maneira em que parecem ecoar os convites de Diderot ao leitor para que escolha ele a continuação, mas na realidade Diderot queria demonstrar que a história só podia ser uma. (O que correspondia a uma opção filosófica precisa, como veremos.)
Obra que não se enquadra em nenhuma regra nem classificação, Jacques le fataliste é uma espécie de termo de comparação para testar um bom número de definições cunhadas pelos teóricos da literatura. O esquema do “relato diferido” (é Jacques que começa a narrar a história de seus amores e, entre interrupções, divagações, outras histórias colocadas em cena, só termina no final do livro), articulado em numerosos emboîtements de um relato no outro (“contos encadeados”), não é só ditado pelo gosto por aquilo que Bakhtin chamará de “conto polifônico” ou “menipeu” ou “rabelaisiano”: é para Diderot a única imagem verdadeira do mundo vivo, que não é nunca linear, estilisticamente homogênea, mas cujas coordenações embora descontínuas revelam sempre uma lógica.
Em tudo isso não se pode negligenciar a influência de Tristram Shandy de Sterne, novidade explosiva daquele período no plano da forma literária e da atitude em relação às coisas do mundo, exemplo de uma narrativa livre e errante, antípoda do gosto setecentista francês. A anglofilia literária foi sempre um estímulo vital para as literaturas do continente; Diderot fez dela sua bandeira na cruzada pela “verdade” expressiva. Os críticos assinalaram frases e episódios que do romance de Sterne passaram para Jacques; e o próprio Diderot, para demonstrar quão pouco lhe importavam as acusações de plágio, antepõe a uma das cenas finais a declaração de tê-la copiado do Shandy. Na realidade, algumas páginas tomadas ao pé da letra ou parafraseadas não significam muito; em linhas gerais, Jacques, história picaresca de uma vagabundagem de duas personagens a cavalo que contam, ouvem e vivem várias aventuras, é bastante diferente do Shandy, que borda sobre episódios domésticos de um grupo de familiares e conterrâneos, especialmente sobre os detalhes grotescos de um parto e sobre as primeiras desventuras de uma criança. O parentesco entre as duas obras deve ser buscado num nível mais profundo: o verdadeiro tema de uma e de outra é a concatenação das causas, o inextricável conjunto de circunstâncias que determinam até o mínimo acontecimento e que tem para os modernos o papel de Fado.
Na poética de Diderot, não contava tanto a originalidade quanto o fato de que os livros se respondem, se combatem, se completam reciprocamente: é no conjunto do contexto cultural que cada operação do escritor ganha sentido. O grande legado de Sterne não só a Diderot mas à literatura mundial, que em seguida passaria a explorar o filão da ironia romântica, é o corte desenvolto, o desabafo de humores, as acrobacias da escritura.
E recordemos que um grande modelo declarado tanto por Sterne quanto por Diderot era a obra-prima de Cervantes; mas diversas são as heranças que dela extraem: um valendo-se da feliz mestria inglesa em criar personagens plenamente caracterizadas na singularidade de poucos traços caricaturais, o outro recorrendo ao repertório das aventuras picarescas de estalagem e de estrada principal na tradição do roman comique.
Jacques, o servidor, o escudeiro, vem antes — já no título —, precedendo o patrão, o cavaleiro (do qual não se sabe nem o nome, como se só existisse em função de Jacques, enquanto son maître; e também como personagem permanece mais apagado). Que as relações entre os dois sejam aquelas de patrão e empregado é certo, mas são também as de dois amigos sinceros; as relações hierárquicas não foram ainda postas em discussão (a Revolução Francesa ainda há de tardar pelo menos dez anos), porém foram esvaziadas por dentro. (Sob todos esses aspectos, leia-se a ótima introdução de Michele Rago a Jacques il fatalista e il suo padrone, na coleção Einaudi “Centopagine”, uma completa e precisa exposição tanto do quadro histórico quanto da poética e da filosofia desse livro.) É Jacques quem toma todas as decisões importantes; e, quando o patrão se torna imperioso, pode também recusar-se a obedecer, mas até um certo ponto e não demais. Diderot descreve um mundo de relações humanas baseadas nas influências recíprocas das qualidades individuais, que não cancelam os papéis sociais mas não se deixam esmagar por eles: um mundo que não é de utopia nem de denúncia dos mecanismos sociais, mas como se fosse visto de modo transparente numa situação de passagem.
(A mesma coisa se pode dizer quanto às relações entre os sexos: Diderot é “feminista” por sua mentalidade natural, não pelo partido tomado: para ele a mulher está no mesmo plano moral e intelectual que o homem, bem como no direito a uma felicidade dos sentimentos e dos sentidos. E aqui a diferença com Tristram Shandy, alegre e obstinadamente misógino, é insuperável.)
Quanto ao “fatalismo” do qual Jacques se faz porta-voz (tudo aquilo que acontece estava escrito no céu), vemos que, longe de justificar resignação ou passividade, leva Jacques a dar sempre provas de iniciativa e a jamais se dar por vencido, ao passo que o patrão, que parece inclinar-se mais para o livre-arbítrio e a vontade individual, tende a desencorajar-se e a deixar-se levar pelos acontecimentos. Como diálogos filosóficos, os deles são um tanto rudimentares, mas alusões esparsas remetem à ideia de necessidade em Spinoza e em Leibniz. Contra Voltaire, que polemiza com Leibniz em Cândido ou Do otimismo, Diderot em Jacques, o Fatalista parece tomar o partido de Leibniz e mais ainda o de Spinoza, que sustentara a racionalidade objetiva de um mundo único, geometricamente inelutável. Se para Leibniz esse mundo era um dentre os muitos possíveis, para Diderot o único mundo possível é este, bom ou mau que seja (ou melhor, mesclado sempre de mal e de bem), e a conduta do homem, bom ou mau que seja (ou melhor, mesclado sempre também ele), vale enquanto está em condições de responder ao conjunto das circunstâncias em que se encontra. (Inclusive com a astúcia, o engano, a ficção enganosa; ver os “romances no romance” inseridos em Jacques: as intrigas de mme. de La Pommeraye e do padre Hudson que põem em cena na vida uma calculada ficção teatral. Estamos muito distantes de Rousseau, que exaltava a bondade e a sinceridade na natureza e no homem de natureza.)
Diderot intuíra que é justamente das concepções do mundo mais rigidamente deterministas que se pode extrair uma carga propulsora para a liberdade individual, como se vontade e livre escolha pudessem ser eficazes só se abrissem suas passagens na dura pedra da necessidade. Isso era verdadeiro nas religiões que mais exaltavam o querer de Deus acima do homem e será também verdadeiro nos dois séculos que se sucederão ao de Diderot e que hão de ver novas teorias tendencialmente deterministas serem afirmadas na biologia, na economia e sociedade, na psique. Podemos hoje dizer que elas abriram caminho para liberdades reais justamente quando estabeleciam a consciência da necessidade, ao passo que voluntarismos e ativismos só conduziram a desastres.
Contudo, não se pode absolutamente dizer que Jacques, o Fatalista “ensine” ou “demonstre” isso ou aquilo. Não existe axioma teórico que coincida com as variações e arrancos dos heróis diderotianos. Se por duas vezes o cavalo pega Jacques pela mão e o transporta a uma colina onde há forcas preparadas e, uma terceira vez, à casa de seu antigo proprietário, o carrasco, esse é certamente um epílogo iluminista contra a crença nos sinais premonitórios, mas é também uma antecipação do romantismo “negro” com os enforcados espectrais no alto de colinas áridas (embora ainda estejamos longe dos efeitos de Potocki). E se o final se precipita numa sequência de aventuras condensadas em poucas frases, com o patrão que mata um homem em duelo, Jacques que se torna bandido junto com Mandrin e depois reencontra o patrão e salva o castelo dele de um saque, reconhecemos a concisão setecentista que se choca com o pathos romântico do imprevisto e do destino como acontecerá em Kleist. Os casos da vida em sua singularidade e variedade são irredutíveis a normas e classificações, embora cada um responda a uma lógica própria. A história dos dois oficiais inseparáveis, que não podem viver longe um do outro mas que, de vez em quando, precisam bater-se em duelo, é contada por Diderot com uma objetividade lacônica que não esconde a ambivalência de uma ligação passional.
Se Jacques é o anti-Candide, é porque pretende ser o anti-conte philosophique: Diderot está convencido de que não se pode encerrar a verdade numa forma, numa fábula que demonstre uma tese; a homologia que sua invenção literária quer atingir é aquela com uma vida inexaurível, não com uma teoria enunciável em termos abstratos.
A escritura livre de Diderot se opõe tanto à “filosofia” quanto à “literatura”, mas hoje aquela que nós reconhecemos como a verdadeira estrutura literária é justamente a sua. Não é uma casualidade que Jacques e seu amo tenha sido recentemente “refeito” sob forma teatral e moderna por um escritor inteligente como Milan Kundera. E que o romance de Kundera, A insustentável leveza do ser, o revele como o mais diderotiano dos escritores contemporâneos por sua arte ao mesclar romance de sentimentos, romance existencial, filosofia, ironia.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

Escolha uma cor

          Um homem negro se mudou para uma rua de brancos. Morava em uma casa preta com uma varanda preta onde costumava sentar-se todas as manhãs e tomar o seu café preto. Até que em uma noite escura, seus vizinhos brancos entraram em sua casa e o espancaram violentamente. Fizeram-no em pedaços. Ficou ali enrolado como um cabo curvo de guarda-chuva em uma poça de sangue negro, e eles continuaram a espancá-lo. Até que um deles começou a gritar que era bom parar porque, se ele morresse de repente em suas mãos, eles poderiam acabar na prisão.
O homem negro não morreu nas mãos deles. Uma ambulância chegou e o levou para bem longe, para um hospital encantado no topo de um vulcão inativo. O hospital era branco. O portão era branco, as paredes dos quartos eram brancas, assim como os lençóis. O negro começou a se recuperar. A se recuperar e a se apaixonar. A se apaixonar pela enfermeira branca, de uniforme branco, que cuidou dele com a maior devoção e bondade. Ela também o amava. E o amor deles se fortaleceu, exatamente como ele, a cada dia que passava; fortaleceu-se e aprendeu a sair da cama e a se arrastar. Como um bebê. Como uma criancinha. Como um homem negro que tinha sido espancado.
Casaram-se em uma igreja amarela. Um padre amarelo os casou. Seus pais amarelos tinham chegado àquele país em um navio amarelo. Eles também haviam sido espancados por seus vizinhos brancos. Mas o padre não falou sobre isso com o homem negro. Mal o conhecia e, de qualquer maneira, não parecia ser realmente o melhor momento para dizer algo, havia a cerimônia e tudo mais. O padre amarelo planejou dizer que Deus os ama e deseja-lhes tudo de melhor. Ele não tinha plena certeza dessas coisas, apesar de ter tentado muitas vezes se convencer disso. Que Deus ama a todos e deseja a todos apenas o melhor. Mas naquele dia, quando casou o homem negro espancado que ainda não tinha nem trinta anos e já estava coberto de cicatrizes e sentado em uma cadeira de rodas, foi mais difícil para ele acreditar. “Deus ama vocês”, ele finalmente disse. “Deus ama vocês e deseja-lhes tudo de melhor”, disse e envergonhou-se.
O homem negro e a mulher branca viveram juntos e felizes. Até que um dia, quando a mulher voltou do armazém, um homem marrom, com uma faca marrom, que a esperava na escada disse a ela que entregasse tudo o que tinha. Quando o homem negro chegou em casa, encontrou-a morta. Ele não entendeu por que o homem marrom a esfaqueara, ele poderia simplesmente ter pego o dinheiro dela e fugido. O funeral teve lugar na igreja amarela do sacerdote amarelo, e quando o homem negro o viu, agarrou-o pelo manto amarelo e disse: “Mas você disse. Você nos disse que Deus nos ama. Se Ele nos ama, por que fez tudo isso?” O sacerdote amarelo tinha uma resposta pronta. Uma resposta que tinham lhe ensinado ainda no seminário. Algo sobre os misteriosos caminhos de Deus e que, agora que a mulher estava morta, ela certamente está mais perto d’Ele. Mas em vez de usar essa resposta, o padre começou a praguejar. Amaldiçoou Deus violentamente. Insultos ofensivos e dolorosos que nunca tinham sido escutados antes no mundo. Maldições tão ofensivas e dolorosas que até Deus se sentiu ofendido.
Deus entrou na igreja amarela pela rampa para deficientes. Ele também estava em uma cadeira de rodas, também já havia perdido alguém certa vez. Ele, Deus, era prateado. Não o prateado brilhante de uma BMW, era um prateado fosco. Uma vez, quando Ele estava deslizando entre as estrelas prateadas com sua amada prateada, um bando de deuses dourados os atacou. Quando eram crianças, Deus havia espancado um deles, um deus dourado baixo e mirrado, e agora este deus tinha crescido e voltado com seus amigos. Os deuses dourados bateram n’Ele com bastões dourados de sol e não pararam enquanto não acabaram de quebrar cada um dos ossos do Seu corpo divino. Levou anos até que Ele se recuperasse. A amada nunca se recuperou. Tornou-se um vegetal. Conseguia ver e ouvir tudo, mas não conseguia dizer nada. O Deus prateado decidiu criar uma raça à Sua própria imagem, assim ela assistiria para passar o tempo. Esta raça realmente se parecia com Ele: golpeava e vitimava exatamente como Ele. E a amada prateada, de olhos arregalados, olhava extasiada por horas as pessoas daquela raça, olhava sem derramar sequer uma lágrima.
O que é que você acha?”, o Deus prateado, frustrado, perguntou ao padre amarelo, “Acha que criei vocês assim pois foi o que escolhi? Que sou uma espécie de pervertido ou sádico que curte todo este sofrimento? Criei vocês assim porque isto é o que eu sei. É o melhor que posso fazer.”
O padre amarelo se pôs de joelhos e implorou Seu perdão. Se à sua igreja tivesse vindo um deus mais forte, ele certamente continuaria a xingar mesmo que tivesse que ir para o inferno por conta disso. Mas ver o Deus prateado, aleijado, despertou nele arrependimento e dor, e ele realmente desejou ser perdoado. O homem negro não se pôs de joelhos. Com a parte inferior do corpo paralisada, já não era capaz de fazer coisas assim. Continuou sentado na sua cadeira de rodas e imaginou uma deusa prateada em algum lugar do céu olhando para ele de olhos arregalados. Foi dominado então por uma sensação de propósito, e até de esperança. Ele não conseguiu explicar para si mesmo por quê, mas o pensamento de que sofria exatamente como um deus fez com que se sentisse abençoado.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

O fogo

            As noites eram de gelo e os deuses tinham levado o fogo embora. O frio cortava a carne e as palavras dos homens. Eles suplicavam, tiritando, com a voz quebrada; e os deuses se faziam de surdos.
Uma vez lhes devolveram o fogo. Os homens dançaram de alegria e alçaram cânticos de gratidão. Mas de repente os deuses enviaram chuva e granizo e apagaram as fogueiras.
Os deuses falaram e exigiram: para merecer o fogo, os homens deveriam abrir peitos com um punhal de pedra e entregar corações.
Os índios quichés ofereceram o sangue de seus prisioneiros e se salvaram do frio. Os cakchiqueles não aceitaram o preço.
Os cakchiqueles, primos dos quichés e também herdeiros dos maias, deslizaram com pés de pluma através da fumaça e roubaram o fogo e o esconderam nas covas de suas montanhas.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Maria chorando ao telefone

          O telefone toca aqui em casa, atendo, uma voz de mulher estranhíssima pergunta por mim, e antes que eu tome providências para dizer que é minha irmã que fala, ela me diz: é você mesma. O jeito foi eu ficar sendo eu própria. Mas... ela chorava? ou o quê? Pois a voz era claramente de choro contido. “Porque você escreveu dizendo que não ia mais escrever romances.” “Não se preocupe, meu bem, talvez eu escreva mais uns dois ou três, mas é preciso saber parar. Que é que você já leu de mim?” “Quase tudo, só faltam A cidade sitiada e A legião estrangeira.” “Não chore, venha buscar aqui os dois livros.” “Não vou não, vou comprar.” “Você está bobeando, eu estou oferecendo de graça dois livros autografados e mais um cafezinho ou um uísque.” “Então você pode fazer uma coisa por mim – autografe os dois livros e entregue-os a seu cunhado, dizendo que é para Maria.” “Maria de quê?” “Só Maria.” “Está bem, mas não chore mais e cuide dessa gripe.” Pois é, meu Deus. Depois, através de meu cunhado, soube que se trata de uma médica (ginecologista) chamada Dra. Maria B. Que depois me mandou as rosas mais lindas do mundo, que eu misturei com as vermelho-sangue mandadas por H. M. Minha casa está linda e perfumada, tenho o prazer de ter feito, com o auxílio dos outros e de minha amiga S. M., um verdadeiro lar para mim e para os meus filhos.
Quanto às rosas de H. M., que me telefonou depois para desejar que eu dormisse bem, vieram com um bilhete muito bonito: “Aqui é a casa de flores. Era só para confirmar que dona Clarice não está viajando. Não, está aqui em casa. Obrigado, disse eu vermelho e mal suportando tanto amor sozinho. (É que acabara de ler A legião estrangeira.) Obrigado, Clarice Lispector. No momento só preciso que você me sobreviva. Obrigado também pela minha convicção quanto ao seu amor por rosas. Agradeço-lhe ainda a certeza que me vem dando de que existo. Tanto que posso me lembrar de você, sem remorso por ter mentido ao telefone. A necessidade de oferecer rosas foi minha mas quero que a alegria seja inteirinha sua.”
Obrigado, H. M. Minha alegria foi tão completa e tenho tanta confiança na sua, que vou lhe pedir um favor: ando atrás de rosas brancas em botão para dar a uma amiguinha que nasceu há dias e cujo nome é Letícia, o que quer dizer, Alegria. Se você souber onde se encontram, me dê um telefonema, eu agradeço.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Culpado

Todo o homem é culpado do bem que não fez.”

Voltaire

Concluímos coisas

            Dentre as conversas que fazem parte da nossa rotina — e é tanta sorte ter encontrado um parceiro com quem quero dividir impressões sobre o corte de uma toalha, o barulho da geladeira, o bigode de um ator e os destinos do país —, uma das que mais aguardo é a que estabelecemos diariamente antes de dormir.
Como se sabe, é considerável a quantidade de hábitos que se desenvolve nesse momento do dia, quando a idade vai aumentando. Trancam-se portas, tiram-se as chaves, verifica-se o gás, a ração da gata e da cachorra e procede-se à higiene pré-sono. Comigo são cremes, lavar os pés e é, claro, a boca. Passo o fio dental, escovo os dentes seguindo uma disciplina rigorosa, para então me dedicar ao misterioso enxaguador bucal. Não sei para que serve, talvez ninguém saiba ao certo, mas, ao menos para mim, ele adquiriu o status de indispensável. E o mesmo para ele que, se não usa o fio dental, gasta muito mais tempo escovando os dentes e bochechando com o enxaguador.
E é justamente nesses instantes que nos comunicamos tão bem.
Ele escova os dentes e passeia pelo quarto, assistindo a um resto de programa de televisão, corrigindo a posição de um travesseiro. E gesticula para mim, porque não pode falar. Eu não entendo direito e respondo. Ele continua. Eu assinto, discordo, duvido. Concluímos coisas. Ele volta para o banheiro e logo reaparece, bochechando com discrição. A fala, então, se torna impossível. Os restos de palavras, antes perceptíveis, agora viram apenas sons inarticulados. Mas não sei por quê, nossa comunicação funciona ainda melhor. 
O que é mais produtivo, sem dúvida, é quando coincide de nós dois estarmos bochechando. Já decidimos muitas coisas assim. A pena é que eu bochecho só durante uns dez segundos, enquanto ele chega a ficar um minuto ou mais. Se eu adquirir o hábito saudável de manter o enxaguador por mais tempo na boca, será ótimo. Vamos poder tratar de muitas outras coisas importantes, daquelas que esquecemos, ou não temos coragem de mencionar, por exemplo, na hora do almoço.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou 

Falta de reza

Por insuficiência de reza,
por falsidade de crença
meu anjo me culpou
e vaticinou eterna penitência.

Mas não ajoelho
nem peço desculpa.
Não quero um deus
que vigie os vivos
e peça contas aos mortos.

Um deus amigo
que me chame por tu
e que espere por mim
para um copo de riso e abraços:
esse é o deus que eu quero ter.

Um deus
que nem precise de existir.

Mia Couto

Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres… Que vão investigar sua vida na internet

            Nós, mulheres… as amáveis criaturas que vão jogar seu nome no Google.
E que, num piscar de olhos, vão descobrir o nome da sua mãe, o emprego do seu pai, com quem sua irmã está saindo e em quais vestibulares você passou.
E, sim, nós já sabemos o nome do seu cachorro por causa de um comentário da sua tia numa foto que seu primo postou no Facebook, daquela festa de Natal de 2009 na sua casa.
E lembra daquele vídeo da sua viagem de formatura do colegial que está esquecido no YouTube? Nós já vimos. Umas quatro vezes, por sinal (a terceira e a quarta visualizações foram para descobrir se aquela menina que aparece ao seu lado aos 56 segundos é a mesma que curtiu um post seu da semana passada).
Também sabemos que a camisa que você estava usando na noite em que nos conhecemos é a sua favorita, uma vez que você aparece com ela numa foto do réveillon desse ano, num show do Seu Jorge e no aniversário daquele seu amigo de infância que está meio careca (no vídeo da formatura ele ainda tinha cabelo).
E a sua ex… Ah, a sua ex. Uma querida, ela. Descobrimos, em uma fração de segundos, se ela usa unhas postiças, se ainda gosta de você, se tem bolsas cafonas, se já fez plástica e se só tira fotos da cintura pra cima (quem nunca?). Mas não se preocupe, ela também já puxou nossa ficha. Sabe tipo sanguíneo, antecedentes criminais, tom de base e se está na hora de retocarmos nossos reflexos.
Mulheres dominam a gestão estratégica das curtidas no Facebook. Tem horário certo, nada de curtir um minuto depois da postagem. E as curtidas devem ser espaçadas e bem distribuídas, não pode sair distribuindo like que nem uma louca.
Já os comentários em fotos, que são atos bastante delicados, precisam ser previamente aprovados por uma comissão de sete amigas num grupo de WhatsApp (que, por sinal, neste momento tem 243 novas mensagens, dentre as quais fotos de jogadores de futebol seminus, gravações de áudio que não se deve ouvir em público e algumas – só algumas – críticas às fotos de conhecidos no Instagram).
Por falar em WhatsApp, algo muito parecido acontece com certas respostas que damos no chat com você. Dependendo da gravidade do assunto, a comissão é ampliada para 11 ou 14 amigas, podendo até haver uma assembleia extraordinária regada a cerveja numa terça-feira à noite para discutir a construção ideal do texto de resposta, incluindo análise sintática e minuciosa atenção às expressões empregadas (“Esses dias” é absolutamente diferente de “Um dia desses”, assim como “A gente se fala” é quase o oposto de “Até mais tarde”).
Importante frisar que também sabemos que, se você visualizou o WhatsApp às 4h41 da manhã, aí tem. (Não trabalhamos com a hipótese de que tenha sido um mero xixi de madrugada, vislumbramos algo mais grave.)
Temos também um total e detalhado controle sobre o significado emocional existente por trás da dinâmica “online/ digitando…/ digitando…/ online/ digitando…”.
Ah, e Print screen de tela do WhatsApp para as amigas darem uma olhadinha é algo absolutamente normal e corriqueiro, tá? Se a conversa for muito importante, rola tipo uma metralhadora de prints – pá-pá-pá-pá-pá-pá-pá-pá, congestionada nas paradas.
Aceite, amigo, mulheres vão saber tudo isso muito antes de você imaginar que elas um dia pudessem imaginar. Como dizem por aí, se ela quiser descobrir uma coisa, ela vai e descobre dez. Não tem jeito, somos assim. E não é por mal… É algo tão inevitável quanto celulite na parte externa na coxa.
E não pense que é fácil! Temos que fazer um verdadeiro malabarismo para lembrar o que foi você que nos contou e o que nós descobrimos fuxicando, para não dar fora. É quase um jogo de xadrez mental.
Mas você deve se perguntar: “Meu Deus, elas não têm mais o que fazer?” Fique sossegado. Averiguamos tudo isso ao mesmo tempo em que pintávamos a unha, assistíamos à nossa série preferida, destacávamos com marca-texto os trechos principais do texto da pós, comíamos um iogurte grego e, claro, falávamos com você no WhatsApp para poder te conhecer melhor. Tranquilo.
P.S.: Escrevi isso numa outra fase da minha vida. Hoje já não faço mais essas coisas. Mentira.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Babel

Se tivesse sido possível construir a torre de Babel sem escalá-la até o topo, ela teria sido permitida.

Franz Kafka, in Aforismos reunidos

Tentativa de posse

            Chegou ao palácio e disse que queria tomar posse.
Posse de quê? — perguntaram-lhe.
De tudo. De qualquer coisa. Eu quero é tomar posse.
Todos os cargos estão ocupados. O senhor chegou tarde.
Atrasei-me por causa da greve dos alfaiates, pois eu não podia tomar posse com uma roupa qualquer. Agora estou convenientemente trajado e venho empossar-me.
Já lhe dissemos que não há nenhum posto vago. Não só foram todos preenchidos como há uma relação de duzentos e cinquenta mil aspirantes a substituir algum dos titulares que eventualmente se afastar por motivo de reumatismo ou esclerose cerebral.
Posso inscrever-me como duzentos e cinquenta mil e um aspirante. Talvez sobrevenha um terremoto e eu, se der sorte, passarei ao primeiro lugar e finalmente me darão posse.
Nunca. Todos os terremotos foram previstos, todas as inundações etc. Escapará muita gente e haverá no máximo vinte substituições em nossos quadros. Portanto, o senhor jamais será aproveitado. Venda o seu terno escuro e passe muito bem.
Voltou para casa e, à falta de outra coisa, tomou posse de si mesmo.

Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Um homem

            George estava deitado em seu trailer, estirado de costas, vendo televisão em um pequeno aparelho portátil. Os pratos da janta não estavam lavados, a louça do café da manhã não estava lavada, ele precisava se barbear e as cinzas de seu cigarro de palha caíam na camiseta de dormir que ele estava usando. Algumas das cinzas ainda estavam queimando. Às vezes as cinzas não caíam na camiseta que vestia, mas sim na própria pele, então ele praguejava enquanto as empurrava para longe com pequenos tapas.
Bateram à porta do trailer. Lentamente ele se levantou e foi atender. Era Constance. Trazia consigo uma garrafa de uísque em uma sacola.
George, deixei aquele cretino, não dava mais para aguentar aquele filho da puta.
Sente-se.
George abriu a garrafa, pegou dois copos, encheu cada um com um terço de uísque e dois terços de água. Sentou-se na cama com Constance. Ela pegou um cigarro de sua bolsa e o acendeu. Estava bêbada, e suas mãos tremiam.
Levei o dinheiro dele também. Peguei a porra do dinheiro e fugi enquanto ele estava no trabalho. Você não sabe como sofri nas mãos daquele filho da puta.
Deixe-me fumar um pouco – disse George.
Ela alcançou o cigarro para ele e, como ela inclinou o corpo ao se aproximar, George enlaçou-a com um braço, puxou-a e deu-lhe um beijo.
Seu filho da puta – ela disse. – Senti a sua falta.
Senti falta dessas suas pernas gostosas, Connie. Realmente senti falta dessas pernas.
Ainda gosta delas?
Fico de pau duro só de olhar.
Eu nunca teria dado certo com um sujeito que estudou em universidade – disse Connie. – São muito moles, são como biscoitinho molhado no leite. E ele mantinha a casa limpa. George, era como ter uma empregada. Ele fazia tudo. O lugar era impecável. Dava para comer um cozido de carne feito na privada. Ele era antisséptico, é isso o que ele era.
Beba mais. Vai se sentir melhor.
E ele não conseguia fazer amor.
Quer dizer que ele não conseguia ter uma ereção?
Oh não. Ele conseguia ter uma ereção. Tinha o tempo todo. Mas não sabia fazer uma mulher feliz, sabe. Não sabia o que fazer. Com todo aquele dinheiro, todo aquele estudo, ele era um inútil.
Eu queria ter estudado em uma universidade.
Você não precisa. Você já tem tudo de que precisa, George.
Sou apenas um peão. Com empreguinhos de merda.
Eu disse que você tem tudo o que precisa, George. Você sabe como fazer uma mulher feliz.
É?
Sim. E sabe do que mais? A mãe dele vinha nos visitar! A mãe! Duas ou três vezes por semana. E ficava sentada lá me olhando, fingindo que gostava de mim, mas passava o tempo todo me tratando como se eu fosse uma puta, como se eu fosse uma grande puta, uma puta malvada que estava roubando o filhinho dela! O precioso Walter! Que confusão!
Beba, Connie.
George tinha terminado. Esperou que Connie esvaziasse seu copo, então pegou ambos e os encheu novamente.
Ele dizia que me amava. E eu dizia: “Olha a minha buceta, Walter!”. E ele não olhava pra minha buceta. Ele dizia: “Não quero olhar pra essa coisa”. Essa coisa! Assim ele a chamava! Você não tem medo da minha buceta, não é mesmo, George?
Ela nunca me mordeu.
Mas você já mordeu ela, já mordiscou, não é, George?
Acho que sim.
E lambeu e chupou?
Suponho que sim.
Você sabe muito bem, George, o que fez.
Quanto dinheiro você pegou?
Seiscentos dólares.
Não gosto de pessoas que roubam dos outros, Connie.
É por isso que você não passa de um lavador de pratos. Você é honesto. Mas ele era tão idiota, George. E ele tinha dinheiro, e eu mereci a grana... ele e a mãe dele e o amor dele, seu amor maternal, suas pias pequenas e limpas e privadas e sacos de lixo e carros novos e as pastilhas contra mau hálito e as loções pós-barba e as pequenas ereções e a preciosa fazeção de amor. Tudo para ele, você entende, tudo para ele! Você sabe o que uma mulher quer, George...
Obrigado pelo uísque, Connie. Me dá outro cigarro.
George encheu os copos mais uma vez.
Senti falta das suas pernas, Connie. Realmente senti falta dessas pernas. Gosto do jeito que você usa esses saltos altos. Me deixa louco. Essas mulheres modernas não sabem o que estão perdendo. O salto alto modela a panturrilha, a coxa, a bunda; põe ritmo na caminhada. Realmente me excita!
Você fala como um poeta, George. Às vezes você fala assim. Você é um tremendo lavador de pratos.
Sabe o que eu realmente gostaria de fazer?
O quê?
Gostaria de chicotear suas pernas com o meu cinto, as pernas, a bunda, as coxas. Gostaria de fazer você tremer e chorar e então, quando estivesse tremendo e chorando, eu ia te arrebentar com amor puro.
Não quero isso, George. Você nunca falou assim antes. Sempre foi correto comigo.
Levanta um pouco o vestido.
O quê?
Levanta um pouco o vestido, quero ver mais as suas pernas.
Gosta delas, não é, George?
Deixa a luz bater nelas!
Constance levantou o vestido.
Jesus Cristo nosso Senhor – disse George.
Gosta das minhas pernas?
Amo suas pernas!
Então George se espichou através da cama e deu uma bofetada na cara de Constance. O cigarro caiu de sua boca.
Por que você fez isso?
Você trepou com o Walter! Trepou com o Walter!
E daí?
Levanta mais esse vestido!
Não!
Faz o que eu estou mandando!
George deu outro tapa ainda mais forte. Constance levantou a saia um pouco mais.
Um pouco abaixo da calcinha! – gritou George. – Não quero ver a calcinha!
Cristo, George, o que você tem?
Você trepou com Walter!
George, eu juro, você está louco. Quero ir embora. Deixe-me sair daqui, George!
Não se mexa ou mato você!
Você me mataria?
Juro que sim!
George levantou e se serviu de outro copo cheio de uísque puro, bebeu e sentou-se ao lado de Constance. Ele pegou seu cigarro e o segurou contra o pulso dela. Ela gritou. Segurou o cigarro ali, firmemente, então o afastou.
Sou um homem, gata, dá pra entender isso?
Sei que você é homem, George.
Aqui, olha para os meus músculos!
George levantou-se e flexionou os dois braços.
Lindo, né, gata? Olha para esses músculos! Sente isso! Sente isso!
Constance apalpou e sentiu um de seus braços e depois o outro.
Sim, você tem um corpo lindo, George.
Sou um homem. Sou um lavador de pratos, mas sou um homem, um homem de verdade.
Eu sei, George.
Não sou como aquele merdinha que você deixou.
Eu sei disso.
E também sei cantar. Você precisa ouvir a minha voz. Constance ficou ali sentada. George começou a cantar. Cantou “Old Man River”. Depois “Nobody Knows the Trouble I’ve Seen”. Cantou “Saint Louis Blues” e “God Bless America”, parando várias vezes e rindo. Então se sentou ao lado de Constance e disse:
Connie, você tem pernas lindas.
Pediu outro cigarro. Fumou, bebeu mais dois copos, então colocou sua cabeça no colo dela, em cima das coxas, contra as meias, e disse:
Connie, acho que não sou bom, acho que sou louco, sinto muito por ter batido em você, me desculpe por tê-la queimado com aquele cigarro.
Constance permaneceu sentada. Passou seus dedos pelos cabelos de George, afagando-o e reconfortando-o. Logo ele estava dormindo. Ela esperou um pouco mais. Então levantou sua cabeça e a recostou em um travesseiro, levantou suas pernas e as endireitou na cama. Ela levantou-se, caminhou até a garrafa de uísque, serviu uma boa dose em seu copo, acrescentou um toque de água e bebeu tudo de uma vez. Caminhou até a porta do trailer, abriu-a, saiu e a fechou às suas costas. Caminhou pelo jardim, abriu o portão da cerca, caminhou pela viela sob o luar da uma da madrugada. O céu estava limpo e sem nuvens. O mesmo céu cheio de estrelas estava lá. Chegou ao bulevar e caminhou para leste, chegou até a entrada do Blue Mirror. Entrou, olhou ao redor e lá estava Walter sentado na ponta do balcão do bar, sozinho e bêbado. Caminhou até ele e sentou-se ao seu lado.
Sentiu a minha falta, amor? – ela perguntou.
Walter ergueu os olhos e a reconheceu. Não respondeu. Ele olhou para o balconista e o balconista olhou para eles. Todos se conheciam.

Charles Bukowski, in Ao sul de lugar nenhum 

Um asno singular

             Hâytham bin ‘Uday contou o seguinte:

Eu estava no depósito de lixo da cidade de Kufa quando um cego parou diante de um vendedor de montarias e lhe disse:
Venda-me um asno que não seja tão pequeno que se despreze, nem tão grande que se destaque; se o caminho estiver livre, que avance com velocidade; se congestionado, que se desvie com destreza; se eu lhe der pouca ração, que tenha paciência, mas, se eu lhe der muita, que seja agradecido; se for montado por mim, que deslanche; se por outrem, que durma.
O vendedor lhe respondeu:
Tenha paciência, ó servo de Deus: quando Deus transformar o juiz da cidade em asno, seu pedido será então atendido, se Deus quiser!

Mamede Mustafa Jarouche (trad.), in Histórias para Ler Sem Pressa