segunda-feira, 31 de agosto de 2020
O doping dos pobres
Parte
da minha família é da zona rural e lá está até hoje. Na roda de
conversas, chimarrão girando de mão em mão, os tios com um cigarro
de palha pendurado no canto da boca, ficava encasquetada com um
comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou
do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano,
quicava por quanto fulano e beltrano estavam plantando e, por fim,
chegava ao ponto que me interessava.
Eu
era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e
do fogão a lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois
desses assuntos chatérrimos, que eu suportava com brios de filósofo
estoico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus pais
sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha
descarrilado. Vinha então a voz meio sussurrada, em tom de sentença:
“Fulana sofre dos nervos”.
Pronto,
estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os
tais dos nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a
ordem daquele pequeno mundo rural. Depois de “atacadas dos nervos”,
pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não achavam mais que
acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja
era a vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as
panelas e os filhos ao vento e recusavam-se a juntar o marido bêbado
no bolicho do povoado. Rebelavam-se. Por culpa dos nervos.
Eu
criava ouvidos de Dumbo — não para voar, mas para ficar plantada
bem ali, ouvindo até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as
bolachas de confeito branco, paridas na cozinha das tias para as
visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de
bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites,
eu nem dormia. Parte por causa dos borrachudos que tinham esfolado a
minha pele. Parte por causa do mistério dos ataques de nervos. Será
que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã, perguntava a um e
outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram
nervos e pronto. E não eram assunto de criança.
Cresci,
apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que
possível. Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os
nervos desapareceram. Não há mais nervos em parte alguma. Agora há
depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de nervos, as
pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por
um arsenal de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não
tinha nada que o finado Chico não tratasse com alguma beberagem de
cor estranha. Minha teoria pessoal é que não existiam vírus,
bactéria ou até mesmo nervos capazes de suportar o cheiro daqueles
troços. Mas o velho Chico morreu, não sei dizer se antes ou depois
dos nervos. E agora tudo é tratado com comprimidos de cores
variadas.
Quando
comecei minha aventura de repórter, no final dos anos 80, ainda
encontrava referência aos nervos por onde andasse, fosse em zonas
rurais de norte a sul, fosse na periferia das grandes cidades. Com o
tempo, especialmente a partir de meados dos anos 90, as mesmas
queixas começavam a ser embaladas em termos médicos. Nos últimos
anos, tenho ficado embasbacada ao entrevistar gente analfabeta que
fala em depressão como se fosse o nome de alguém da família. A
terminologia psiquiátrica invadiu a linguagem em todas as classes
sociais e regiões — e se inscreveu na cultura.
Há
algum tempo penso nos muitos significados dessa mudança. Significa
que as pessoas estão sendo mais bem tratadas e tendo acesso a
medicamentos? Talvez. Mas não me parece que seja isso. Ou pelo menos
apenas isso. Estou preocupada com o que tenho testemunhado pelas
periferias do Brasil. Antes, quando batia na casa das pessoas mais
humildes, os pais de família me apresentavam sua carteira de
trabalho. Isso sempre me devastou, porque revelava a violência
silenciosa que vitimava os mais pobres. Com o gesto, eles queriam
provar que eram trabalhadores, gente de bem — e não vagabundos ou
bandidos porque eram pobres. Eu tentava explicar que não era
autoridade nem tinha direito algum de ver seus documentos. Mas o
homem diante de mim, estendendo a carteira de trabalho, carregava na
alma séculos de humilhação. Então, eu examinava e elogiava seu
documento.
Hoje,
quase não acontece mais. De uns tempos para cá, o que muita gente
tem me mostrado são, adivinhem: seus medicamentos. Com um sentido
diverso. Acreditam que, por ser jornalista, tenho um conhecimento que
eles não têm, sou capaz de esclarecer suas dúvidas. Estou lá,
sentada no único sofá ou na melhor cadeira da casa, quando
acontece. Depois da prosa inicial, que no meu caso leva umas duas
horas, já estamos todos bem à vontade. Então o pai ou a mãe ou a
avó fazem sinal para a menina mais nova. E lá vem a criança
carregando uma lata da cozinha. Deposita entre as minhas mãos, como
uma hóstia. Olho e já sei o que vou encontrar: cartelas de
comprimidos até a boca.
Querem
saber se faz bem mesmo. Se posso explicar como devem tomar. Se acho
que o guri que só apronta na escola deveria tomar também. Me
arrepio. Examino o conteúdo. Procuro as bulas. Boa parte são
antidepressivos e tranquilizantes. Pergunto quem toma e por que toma.
O avô porque não dorme, a mãe e a avó porque estão deprimidas, o
pai porque é nervoso e o filho porque é “muito agitado”. Com
variações, claro. Mas em geral as deprimidas são as mulheres.
Lembro que eram elas também as que mais sofriam dos nervos. Não que
os homens não sofram, mas sinto que resistem mais antes de assumir
publicamente que são “deprimidos”. Em geral eles não dormem ou
são “nervosos”. Muitas vezes, os pais bebem álcool, os filhos
são usuários de drogas.
Com
delicadeza, explico que não sou médica, que precisam procurar o
posto de saúde. Respondem que a próxima consulta é só daqui a
três meses. Descubro então que trocam de medicamentos. Quando acham
que o seu não está resolvendo, tentam o do outro. Consciente da
minha ignorância, afirmo apenas o que posso afirmar: não tomem o
medicamento que é do outro nem deem para as crianças. Semanas atrás
uma mulher me perguntou se podia dar um tranquilizante para a sua
sobrinha, de nove anos, que estava muito agitada. Eu disse que de
jeito nenhum, “é muito forte”. Minutos depois, veio me contar
com um sorriso. Tinha encontrado uma solução: “Dei só a metade”.
A
medicalização da dor de existir não é nenhuma novidade.
Antidepressivos e tranquilizantes estão disseminados em todas as
classes sociais. Para boa parte das pessoas, tomar uma pílula para
conseguir “aguentar a pressão” é tão trivial quanto tomar um
cafezinho. Mas penso que, se você é de classe média, tem mais
acesso à informação, à terapia, a um tratamento mais competente.
Tem mais acesso à escuta da sua dor.
É
importante fazer a ressalva. Não sou contra antidepressivos e
tranquilizantes. Nem tenho autoridade para ser. Acho que medicamentos
têm sua hora e seu lugar. Mas não é preciso ser médico para saber
que, em geral, seu uso deve ser temporário, monitorado e acompanhado
por outros recursos. Como psicoterapia e análise, em muitos casos.
Devem ser usados com muita parcimônia, critério e acompanhamento. E
não como se fossem pílulas de açúcar que podem ser tomadas por
todos a qualquer sinal de dor psíquica.
O
que tenho visto é um doping social. Combate-se a cocaína, o crack,
até o cigarro, ótimo. Mas e as drogas médicas que estão pelos
barracos e pelos palácios? São menos drogas porque dadas por um
doutor?
Minha
percepção é de quem anda bastante por aí. Por ser repórter,
tenho o privilégio de entrar por várias portas, escutar a narrativa
de muitas e diferentes vidas. Para escrever esse texto conversei com
psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que trabalham na rede
pública de saúde. Queria ir além do meu testemunho. Seus relatos
são mais assustadores que o meu.
“Basta
chorar”, afirma uma psiquiatra muito conceituada. “Há poucos
psiquiatras na rede pública, em qualquer parte do país. Em geral,
as pessoas vão ao médico por algum outro motivo. Então choram. E o
médico, seja qual for a sua especialidade, receita um antidepressivo
ou um tranquilizante. Meses depois a pessoa volta. E continua
chorando. Aí ganha um mais forte. Ou ganha dois. E ela continua
chorando. Mas tudo o que ouve é que é doente e tudo o que lhe dão
são remédios. Só que ela continua chorando.”
As
pessoas estão sendo viciadas em ansiolíticos nos postos de saúde,
afirma uma psicóloga. “São levadas a acreditar que o remédio
pode acabar com a sua dor, uma dor que tem causas muito concretas.
Não resolve, claro. Um exemplo. Uma mulher tinha dois empregos, um
de dia, outro de noite. O que ganhava não dava para pagar as contas.
Os ônibus que pegava para chegar até esses empregos eram lotados.
Ela vivia num barraco. Aí procurou o posto de saúde e lhe trataram
com antidepressivos. Não adiantou. Deram-lhe outro medicamento.
Nada. Um dia, sem nenhuma esperança ou recurso, ela tentou
suicídio”, conta. “A questão é que não há promoção de
saúde, porque isso implicaria se preocupar com projeto de vida, com
perspectiva de vida, com melhoria das condições de vida. O que há
é medicalização da vida.”
Nossa
época é marcada por uma espécie de sedativo social, afirma um
psiquiatra. “A gente vê um monte de gente sofrendo. E sofrendo
muito. Mas o atendimento funciona assim: está chorando?, toma um
antidepressivo; não dorme?, pega um benzodiazepínico. É uma
supermedicalização sem critério. As pessoas estão tomando
remédios como se fossem bolinhos”, diz. “O médico não tem
tempo de escutar, dá um remédio para que parem de chorar ou de
reclamar, e as pessoas vivem a fantasia de que são atendidas. Não
funciona, claro. Elas continuam sofrendo. Então voltam e o
procedimento se repete. E assim vai diminuindo a pressão social.”
Vale
a pena parar e refletir. Nossa época está produzindo gerações de
anestesiados? A medicalização da dor psíquica é um fenômeno
relativamente recente. Pelo menos nessa proporção, com essa enorme
variedade de drogas disponíveis e muito mais sendo produzido em
escala industrial e vendido em licitações para a rede pública em
suas variadas instâncias. Cada comprimido de Diazepam
(benzodiazepínico), por exemplo, custa menos de um centavo para a
rede pública. Bem mais barato, digamos, que uma sessão de
psicoterapia.
Se
pensarmos que a medicação da população com antidepressivos e
tranquilizantes se acentuou a partir dos anos 90, que tipo de
sociedade teremos daqui, digamos, a uma ou duas décadas? O que
acontece com as pessoas quando têm a sua dor de existir abafada,
mascarada, calada a golpes de pílulas? Não sei. Mas acredito que
são perguntas que devemos nos fazer. Nós todos, não apenas os
governantes ou os profissionais da saúde. Estamos vivendo uma
mudança cultural das mais profundas. E não me parece que estamos
suficientemente atentos a suas causas, significados e implicações.
Que tipo de mundo e de gente estamos criando quando a resposta para
toda dor é uma pílula?
De
novo, não sou contra o uso responsável de medicamentos. E me sinto
bastante satisfeita por viver numa época em que é possível curar —
ou pelo menos controlar — muitas doenças graças ao avanço da
ciência. Mas não é disso que se trata. O que tenho testemunhado
não é tratamento — mas doping. E do pior tipo, o legalizado,
aquele que é travestido como promoção de saúde e promovido pelo
Estado, sob a pressão da indústria farmacêutica. E, atenção:
cada vez mais cedo. Em todas as classes sociais, as crianças começam
a ser medicadas nos primeiros anos de vida, bastando para isso não
ter um comportamento na escola considerado “normal”.
Na
passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos.
Desde criança, convivo com as muitas dores de existir. Como quase
todo mundo. Às vezes “a vida dói como uma afta”. Mas talvez
raramente seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações
de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são
doença. Sentimos tristeza, melancolia, angústia, medo. Vivemos
lutos, tanto pela perda de quem amamos quanto pela perda de amantes,
assim como pelas pequenas perdas de cada dia.
A
dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que
conseguimos transformar dor em criação. Elaboramos nossas muitas
dores criando poesia, pintura, escultura, música, vestidos,
bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência,
histórias. Cada um à sua maneira muito particular. Se em vez de
elaborar a dor e transformá-la em expressão, tomamos comprimidos
que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos fazendo
com nós mesmos e com o nosso mundo?
Se
você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é
humilhado pelo seu chefe, mora num barraco e não tem dinheiro para
pagar as contas, você tem depressão porque não encontra mais
forças para suportar esse cotidiano ou tem um transtorno mental
porque não consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para
saber que ninguém pode estar bem em condições de vida como essas.
Seria preocupante se estivesse. A alternativa não é se entupir de
tarjas-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma existência mais
digna, pressionar o poder público, formar uma associação
comunitária para exigir seus direitos, construir um projeto de vida
com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se tornar
possível.
Ser
protagonista e ser parte da transformação é ter saúde. Não há
nada mais aniquilador do que o sentimento de impotência. E, quando a
questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse
legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e
mudadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de
saúde. Por isso, fico muito preocupada quando entro nas casas e os
moradores me mostram suas pílulas em latas de comida.
Tenho
o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do
Brasil. Em especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo.
Das mais diversas regiões da Grande São Paulo, toda noite de
quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam
o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o
criador da Cooperifa, pode passar horas contando sobre gente que
chegou lá aniquilada, com a espinha dobrada, a vida por um triz. E,
ao ser escutada, sentir-se parte, transformou-se. Gostaria que alguém
fizesse uma pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a
saraus de poesia, rodas de samba, posses de hip-hop, oficinas de
arte, associações comunitárias e a população que não pertence a
nada, nem a si mesma.
Penso
que o conceito de saúde — e de saúde mental — não existe se
não abarcar projeto de vida.
O
primeiro texto que escrevi, aos nove anos, foi inspirado pela abissal
melancolia de um domingo de manhã em que eu estava sozinha enquanto
todos em casa dormiam. Era escrever ou a melancolia me engolir. Aos
11 anos, eu já tinha um livro de poesias. Todas elas elaboravam
momentos diversos da minha dor de existir. Para mim, a escrita foi a
maneira que encontrei de elaborar a minha angústia, “os meus
nervos”. Acabei fazendo disso um projeto de vida.
Já
vivi muitos momentos duros, inúmeros traumas. Posso afirmar, sem
exagero, que fui vítima da maioria dos artigos do Código Penal, com
exceção de assassinato. Me descobri algumas vezes dançando à
beira do precipício. E por duas vezes na minha vida precisei de
medicamentos. Tive a sorte de encontrar profissionais competentes,
humanistas, que acreditavam no que faziam, no que eram. O uso de
medicamentos foi pontual, parcimonioso, controlado e com tempo para
acabar. Sempre acompanhado por sessões de psicanálise. Superei cada
um deles não me anestesiando, mas elaborando a dor. E criando
furiosamente.
Tudo
o que vivi uso para escrever. E tudo o que vivi me ensinou a escutar.
Quando entro na casa das pessoas como repórter e elas me mostram
seus medicamentos, o que esperam de mim é que as escute. E é o que
talvez eu faça de melhor. Fico horas em suas casas, apenas ouvindo.
Escutando de verdade. A narrativa da vida é um reconhecimento da
vida. A escuta da dor é um reconhecimento da dor. Se alguém que
sofre procura um médico e, em vez de escutá-lo, o profissional o
entope de comprimidos, o que aconteceu ali não é promoção de
saúde, é promoção de doença. E o médico que se sujeita a isso
pode estar tão doente quando aquele que o procura. O sistema de
saúde não pode funcionar como um reprodutor de impotências. Uma
linha de produção de impotências, que em vez de apertar parafusos,
coloca bolinhas na boca. Como sabemos por pesquisas, é significativo
o número de médicos que não apenas dopa, mas também se dopa.
Promover
saúde é promover vida. E a vida começa pela escuta da vida. É o
que faço como contadora de histórias reais. Mas quando as pessoas
me mostram uma lata de comprimidos, que todos tomam, da criança mais
nova ao avô, não é de mim que elas precisam. Para não me sentir
impotente, escrevo este texto. Na esperança de que alguém me
escute.
Eliane
Brum, in A Menina Quebrada
Queijo para dois
A
Situação comia o queijo sozinha, a Oposição tinha fome e também
lhe apetecia comer do queijo.
— Negativo
— respondeu a Situação. — O queijo não dá para todos. Mesmo
que desse, o queijo nunca é para todos.
— Então
eu vou aí e tiro o queijo todo para mim — ameaçou a Oposição.
E
a Situação continuava comendo queijo, comendo queijo. Até que ele
acabou. Vendo que tinha acabado, ela se queixou da Oposição:
— Viu
o que você me arrumou? De tanto reclamar uma fatia de queijo, ele
foi minguando, minguando, e me deixou com fome. Você botou olho
grande. Quando eu arranjar outro queijo, vou comê-lo escondido.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
De Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria
Daí,
sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do
engenho, deitados em couros e esteiras ― nem se tinha o espaço de
lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria
conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores.
Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na beira da rebaixa, a
fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo
em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo, Fafafa e JoãoVaqueiro não
esbarravam de falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens
da Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava sempre
naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos
pensávamos as mesmas coisas; o que cada um sonhava, quem é que
sabia?
― Aquilo
é poço que promete peixe... ― o Jesualdo disse. Dela devia de
ser. ― Amigo, não toque no nome dessa moça, amigo!... ― eu
falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a sério fatal,
deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por longe, a
mãe-da-lua suspirou o grito: ― Floriano, foi, foi, foi... ―
que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava se
saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada
abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio
pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva.
De repente.
― Riobaldo,
você está gostando dessa moça?
Aí
era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me
procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A
voz dele vinha pelos dentes.
― Não,
Diadorim. Estou gostando não... ― eu disse, neguei que reneguei,
minha alma obedecia.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo?
Não
respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não
tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má
loucura de tudo aquilo. Tremi não.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo? ― ele reperguntou. Aí estava
ajoelhado na beira de mim.
― Se
nanja, sei não. O demônio sabe... ― eu respondi. ― Pergunta...
Me
diga o senhor! por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de
Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz
esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece ― vivo no
momento. Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e
deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele dansar produziam, de estar
brilhando. E ele devia de estar mordendo o correiame de couro.
Assisado,
me enrolei bem no cobertor; mas não adormeci. Eu tinha dó de
Diadorim, eu ia com meu pensamento para Otacília. Me balanceei
assim, adiantado na noite, em tanto gaio, em tanto piongo, com todas
as novas dúvidas e ideias, e esperanças, no claro de uma espertina.
Com muito, me levantei. Saí. Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a
lua subia estada, abençoando redondo o friinho de maio. Era da
borda-do-campo que a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto
de árvores da mata cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas se
sumiam para dentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar.
Ao que fiquei bom tempo encostado no cajueiro da beira do curral. Só
olhava para a frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília
deitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençois
lavados e soltos, ela devia de sonhar assim. E, de repente, pressenti
que alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava. Diadorim,
fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio. Nunca posso ter
medo das pessoas de quem eu gosto. Digo. Esperei mais, outro tempo.
Daí, vim voltando. Mas lá não estava pessoa nenhuma, entre
claridade e sombras. Ilusão minha, a fantasiação. Bebi água do
rego, com o frio da noite ela corria morna. Tornei a entrar na
rebaixa. Diadorim permanecia lá, jogado de dormir. De perto, senti a
respiração dele, remissa e delicada. Eu aí gostava dele. Não
fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e beijava.
E, com o vago, devo de ter adormecido ― porque acordei quando
Diadorim no mexe leve se levantou, saíu sem rumor, levando a
capanga, ia tomar seu banho em poço de córrego, das barras no
clarear. Desde o que, depressa eu tornei a me dormir.
Mas,
cedo no amanhecer, o sôr Amadeu tinha chegado, e com notícia
urgente: que o grosso do bando de Medeiro Vaz recruzava, de lá a
quinze léguas, da Vereda-Funda para a Ratragagem, e nós tínhamos
de seguir, sem folga, supraditamente. No que Nhô Vô Anselmo me deu
um dito afeiçoado e diferente ― entendi que o velhozinho sabia de
alguma coisa, e que não desgostava que eu viesse a ficar neto dele.
Nós almoçamos e montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João
Vaqueiro se retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eu cacei melhor
coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha,
disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse
me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse
vir com jús. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-do-verde no
coração. Por breve ― pensei ― era que eu me despedia daquela
abençoada fazenda Santa Catarina, excelentes produções. Não que
eu acendesse em mim ambição de têres e havêres; queria era só
mesma Otacília, minha vontade de amor. Mas, com um significado de
paz, de amizade de todos, de sossegadas boas regras, eu pensava: nas
rezas, nas roupagens, na festa, na mesa grande com comedorias e
doces; e, no meio do solene, o sôr Amadeu, pai dela, que apartasse ―
destinado para nós dois ― um buritizal em dote, conforme o uso dos
antigos.
Vim.
Diadorim nada não me disse. A poeira das estradas pegava pesada de
orvalho. O birro e o jesus-meu-deus cantavam. O melosal maduro alto,
com toda sua roxidão, roxura. Mas, o mais, e do que sei, eram mesmo
meus fortes pensamentos. Sentimento preso. Otacília. Por que eu não
podia ficar lá, desde vez? Por que era que eu precisava de ir por
adiante, com Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte,
nestes Gerais meus? Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim; de rota
abatida. Mas, desse dia desde, sempre uma parte de mim ficou lá, com
Otacília. Destino. Pensava nela. As vezes menos, às vezes mais,
consoante é da vida. As vezes me esquecia, às vezes me lembrava.
Foram esses meses, foram anos. Mas Diadorim, por onde queria, me
levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim
adivinhava, sabia, sofria.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
domingo, 30 de agosto de 2020
A Arte de Cézanne
O golfo de Marselha visto de L'estaque (1885), de Paul Cézanne, que afirmou: "Eu pinto, de fato, o vazio entre dois objetos".
Obsessão
A
culpa não é minha, delegado. É do nariz dela. Ela tem um nariz
arrebitado, mas isso não é nada. Nariz arrebitado a gente resiste.
Mas a ponta do nariz se mexe quando ela fala, delegado. Isso quem
resiste? Eu não. Nunca pude resistir a mulher que quando fala a
ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É preciso prestar
atenção, é preciso ser um obsessivo como eu.
•••
O
nariz mexe milímetros, delegado. Para quem não está vidrado, não
há movimento algum. Às vezes só se nota de determinada posição,
quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do nariz se
mexendo, meu Deus. Subindo e descendo. No caso dela também se via de
frente. Uma vez ela reclamou, “Você sempre olha para a minha boca
quando eu falo”. Não era a boca, era a ponta do nariz. Eu ficava
vidrado no nariz. Nunca disse pra ela que era o nariz. Eu sou louco,
delegado? Ela ia dizer que era mentira, que seu nariz não mexia. Era
até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer mais.
•••
Mas
a culpa mesmo, delegado, não é do nariz, não é dela e não é
minha. A culpa é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só,
nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se
deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um
homem sensível como eu, um homem que chora quando o Brasil ganha
bronze, delegado, bronze? Que se emocionava com a penugem nas coxas
dela? Que agora mesmo não pode pensar na ponta do nariz dela se
mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar um
dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não
a edição condensada ou o CD? Mas atirei. Porque ela também se
revelou. Ela era ela e era outras.
•••
A
multiplicidade humana é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são
só dois, são dezessete de cada lado. E quando você pensa que
conhece todos, aparece o décimo oitavo. Como eu podia adivinhar,
vendo a ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me
faria atirar o Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo?
Eu, um homem sensível? Porque ela não era uma, delegado. Tinha
outra, outras, por dentro. Tudo bem, eu também tenho outros por
dentro. Por exemplo: nós já estávamos juntos havia um tempão
quando ela descobriu que eu sabia imitar o Silvio Santos. Sou um bom
imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte
passável, mas ninguém sabe, é um lado meu que ninguém conhece.
Ela ficou boba, disse “Eu não sabia que você era artista”. E eu
também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi a causa da
nossa briga final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha
teoria é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma
predomina as outras ficam lá dentro, como alternativas descartadas,
definhando em segredo, ressentidas. E, vez que outra, querendo
aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir descobrindo o que cada um tem
por dentro, os dezessete outros de cada um, e aprendendo a viver com
eles. A gente se adapta. Um dos meus dezessete pode não combinar com
um dos dezessete dela, então a gente cuida para eles nunca se
encontrarem. A felicidade é sempre uma acomodação.
•••
Eu
estava disposto a conviver com ela e suas dezessete outras, a
desculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela
fala. Mas aí surgiu a décima oitava ela. Nós estávamos discutindo
as minhas obsessões. Ela estava se queixando das minhas obsessões.
Não sei como, a discussão derivou para a semântica, eu disse que
“obsedante” e “obcecante” eram a mesma coisa, ela disse que
não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse
“Rará”, depois disse que “obcecante” era com “c” depois
do “b”, eu disse que não, que também era com “s”, fomos
consultar o dicionário e ela estava certa, e aí ela deu outra
risada ainda mais debochada e eu não me aguentei e o Aurelião voou.
Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela. A gente aguenta
tudo, não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a
gente.
Arrogância
intelectual, não.
Luís
Fernando Veríssimo,
in Os
últimos quartetos de Beethoven e outros contos
Escrita
Tenho
fome de um nome
e
procuro-o para além dos idiomas
como
garimpeiro de vozes
esgravatando
um chão de silêncios.
Ecoa
em mim
um
búzio sem mar,
um
peixe agoniza
no
estremecer da página nua.
Hoje
fui beijado por serpente.
E
me espelhei,
água
sobre a lua.
Hoje
escrevi mel
sobre
a picada da abelha:
isso
a que outros chamam poesia.
Mia
Couto
Misto-Quente / 28
O
tempo do colégio passou com rapidez suficiente. Por volta da oitava
série, indo para a nona, comecei a ter acne. Muitos dos caras tinham
esse problema, mas não no mesmo grau que eu. Meu caso era realmente
terrível. Era o mais grave em toda a cidade. Eu tinha espinhas e
erupções por toda a face, costas, todo pescoço e um pouco no
peito. Isto aconteceu no exato momento em que eu começava a ser
aceito como um cara durão e um líder. Eu continuava durão, mas não
era a mesma coisa. Tive que me retirar. Observava as pessoas à
distância, como numa peça de teatro. Apenas eles estavam no palco,
e eu era plateia de um homem só. Eu sempre tivera problema com as
garotas, mas agora, coberto de acnes, eu estava condenado. As garotas
ficaram mais distantes do que nunca. Algumas delas eram
verdadeiramente belas – seus vestidos, seus cabelos, seus olhos, o
jeito como se moviam. Simplesmente caminhar rua abaixo durante uma
tarde com uma delas, você sabe, falando qualquer coisa sobre
qualquer assunto, creio que isso teria me feito sentir bastante bem.
Além
disso, havia algo em mim que continuava sendo fonte de constantes
problemas. A maioria dos professores não gostava ou não confiava em
mim, especialmente as professoras. Nunca disse nada fora do
convencional, mas alegavam que se tratava da minha “atitude”. Era
algo relacionado com o modo como eu sentava com desleixo na cadeira e
também meu “tom de voz”. Eu era frequentemente acusado de estar
“escarnecendo”, embora eu não tivesse consciência disso.
Constantemente, me faziam ficar do lado de fora da sala, de pé, no
corredor, ou me mandavam para a sala da direção. O diretor sempre
fazia a mesma coisa. Ele tinha uma cabine telefônica em sua sala.
Obrigava-me a ficar de pé dentro da cabine e a fechava. Passei
muitas horas dentro daquela cabine. A única coisa que havia para ler
ali dentro era a Ladies Home Journal. Era tortura deliberada.
De qualquer forma, eu acabava lendo as revistas. Tinha que ler cada
novo número. Eu esperava que talvez pudesse aprender alguma coisa
sobre as mulheres.
Eu
devia ter uns cinco mil deméritos acumulados à época da graduação,
mas isso não teve importância. Queriam se livrar de mim. Eu estava
de pé do lado de fora, na fila que entrava no auditório ao ritmo de
um por vez. Todos nós está vamos com a toga e o barrete vagabundos
que já tinham atravessado gerações e gerações de formandos antes
de nós. Podíamos ouvir o nome de cada pessoa à medida que ela
entrava no palco. Estavam transformando nossa graduação numa
maldita comédia. A banda tocou o hino do colégio:
Ó,
Mt. Justin, Ó, Mt. Justin
Nós
seremos leais
Nossos
corações cantam fervorosos
A
certeza de amanhãs celestiais...
Ficamos
alinhados, cada qual esperando sua hora de marchar pelo palco. Na
plateia estavam nossos pais e amigos.
– Estou
quase vomitando – disse um dos caras.
– Saímos
de uma merda para nos metermos em outra – disse um segundo.
As
garotas pareciam encarar a coisa com maior seriedade. Era por isso
que não se podia confiar nelas. Pareciam compactuar com as coisas
erradas. Elas e o colégio pareciam cantar em uníssono o mesmo hino.
– Esse
negócio me deixa deprimido – disse um dos caras. – Queria fumar
um cigarro.
– Aqui
tem um...
Um
dos outros caras lhe alcançou um cigarro. Nós o passamos, éramos
quatro ou cinco. Dei uma tragada e exalei a fumaça pelo nariz. Então
vi Curly Wagner se aproximar.
– Apaguem
o cigarro! – eu disse. – Aí vem o cabeça de vômito!
Wagner
caminhou reto na minha direção. Usava o seu abrigo cinza, incluindo
a camiseta, exatamente como eu o vira da primeira vez e em todas as
oportunidades seguintes. Parou na minha frente.
– Escute
– ele disse –, se você acha que está se livrando de mim porque
está saindo daqui está muito enganado! Vou seguir você pelo resto
da vida. Vou seguir você até os confins da Terra e vou pegá-lo!
Simplesmente
o encarei, sem nenhum comentário, e ele se afastou. O discursinho de
Wagner serviu para aumentar meu prestígio entre os rapazes. Pensaram
que eu tinha feito algo realmente diabólico para deixá-lo tão
irritado. Mas não era verdade. Wagner era simplesmente maluco.
Nos
aproximávamos cada vez mais da porta do auditório. Não só
podíamos ouvir cada nome que era pronunciado e os aplausos na
sequência, mas também víamos a plateia. Então, chegou a minha
vez.
– Henry
Chinaski – o diretor disse ao microfone.
E
avancei. Não houve nenhum aplauso. Então uma alma gentil na plateia
bateu duas ou três palmas.
Havia
algumas filas de cadeiras dispostas no palco para a turma que se
graduava. Sentamos lá e esperamos. O diretor fez o seu discurso
sobre a América ser a terra das oportunidades e do sucesso. Então
tudo acabou. A banda atacou novamente o hino do colégio Mt. Justin.
Os estudantes e seus pais e seus amigos se ergueram e se congregaram.
Andei por ali, procurando. Meus pais não estavam lá. Quis ter
certeza. Dei mais uma volta, procurando com afinco.
Estava
tudo bem. Um cara durão não precisava dessas coisas. Tirei o
barrete e a toga e o alcancei ao cara no fim do corredor – o
porteiro. Guardou as peças para a próxima formatura.
Ganhei
a rua. O primeiro a sair. Mas para onde eu poderia ir? Tinha onze
centavos no bolso. Segui de volta para o lugar em que eu vivia.
Charles
Bukowski, in Misto-Quente
sábado, 29 de agosto de 2020
Desejo doido de voltar à terrinha
“Esse
desejo doido de voltar para a aldeola que ficou lá, muito longe,
entre montanhas, é uma coisa muito natural. Ele, eu, todos enfim,
temos essa nostalgia que nos faz ver a torre da igreja, as paredes
brancas do cemitério, os atalhos verdes semeados de florzinhas. Mas
a gente reage, faz-se forte e... fica. O que é preciso é o sujeito
estar preparado para receber todos os choques da adversidade”.
Graciliano
Ramos
Ahab e Starbuck na cabine
Segundo
o costume, eles bombeavam o navio na manhã seguinte; e, oh!, uma
quantidade nem um pouco pequena de óleo subiu com a água; os tonéis
embaixo deviam estar com um sério vazamento. Via-se muita
preocupação; e Starbuck desceu à cabine para reportar o infausto
incidente.*
Ora,
pelo Sul e pelo Oeste o Pequod rolava próximo a Formosa e às
ilhas Bashi, entre as quais se situa uma das saídas tropicais dos
mares da China para o Pacífico. E assim Starbuck encontrou Ahab
diante de um mapa geral dos arquipélagos orientais; e uma outra
carta separada representando a longa costa oriental das ilhas
japonesas – Nippon, Matsmai e Shikoku. Com sua nova perna de
marfim, branca como a neve, apoiada à perna fixa da mesa, e com o
podão de um grande canivete à mão, o velho notável, de costas
para a porta do corredor, franzia a testa e traçava mais uma vez
suas velhas rotas.
“Quem
vem?”, ao ouvir passos à porta, mas sem se virar. “Ao convés!
Fora!”
“O
Capitão Ahab se engana; sou eu. O óleo no porão está vazando,
senhor. Temos de subir os Burtons e retirar a carga do navio.”
“Subir
os Burtons e retirar a carga do navio? Agora que estamos
chegando perto do Japão; lançar a âncora aqui por uma semana para
remendar um lote de argolas velhas?”
“Ou
fazemos isso, senhor, ou perderemos em um dia mais óleo do que
conseguimos juntar em um ano. Vale a pena salvar aquilo que buscamos
por vinte mil milhas, senhor.”
“Certo,
certo, se a pegarmos.”
“Eu
estava falando do óleo no porão, senhor.”
“E
eu não estava falando ou pensando em nada disso. Vá embora! Que
vaze! Eu também estou vazando. Sim! Vazamentos em vazamentos! Não
apenas cheio de barris com vazamentos, mas os barris com vazamentos
estão num navio com vazamentos; e esse é um apuro muito pior do que
o do Pequod, homem. E todavia não me detenho para tapar meu
vazamento; pois quem pode encontrá-lo num casco tão carregado; e
como esperaria tapá-lo, mesmo se o encontrasse, nessa tormenta
assustadora da vida? Starbuck! Não içarei os Burtons.”
“Que
dirão os proprietários, senhor?”
“Que
os proprietários fiquem na praia de Nantucket e gritem mais alto que
os Tufões! Que importa a Ahab? Proprietários, proprietários? Estás
sempre a me falar desses proprietários sovinas, Starbuck, como se os
proprietários fossem minha consciência. Mas, atenta, o único
verdadeiro proprietário de alguma coisa é seu comandante; e escuta,
minha consciência está na quilha deste navio – ao convés!”
“Capitão
Ahab”, disse o imediato enrubescido, entrando na cabine com uma
audácia tão estranhamente prudente e respeitosa que não só
parecia querer fazer todo o possível para evitar a mais leve
manifestação exterior de si mesma, como também indicava mais do
que alguma desconfiança de si mesma: “Um homem melhor do que eu
poderia te perdoar por aquilo que o ofenderia prontamente num homem
mais jovem; sim, e mais feliz, capitão Ahab”.
“Que
inferno! Como ousas pensar em me criticar? – Ao convés!”
“Não,
senhor, ainda não; rogo-lhe. Senhor, atrevo-me a – ser indulgente!
Não seria possível entendermo-nos melhor, Capitão Ahab?”
Ahab
pegou um mosquete carregado que estava no cabide de armas (parte da
mobília da maioria das cabines dos marinheiros dos Mares do Sul), e
apontando-o na direção de Starbuck exclamou: “Só existe um Deus
que é Senhor da terra e um Capitão que é senhor do Pequod – Ao
convés!”.
Por
um instante, pelos olhos flamejantes do oficial e seu rosto
inflamado, você quase teria pensado que ele de fato recebera a carga
do cano apontado. Porém, controlando a emoção, levantou-se quase
calmo e, saindo da cabine, parou um instante e disse: “Não me
insultaste, senhor, mas me ultrajaste; contudo, por isso não te peço
que tenhas cuidado com Starbuck; pois apenas te ririas; mas que Ahab
tenha cuidado com Ahab; tem cuidado contigo mesmo, velho”.
“Ele
demonstra coragem, e contudo obedece; trata-se de uma valentia muito
cautelosa!”, murmurou Ahab, enquanto Starbuck desaparecia. “O que
disse – que Ahab tenha cuidado com Ahab –, há alguma coisa aí!”
Então, usando sem perceber o mosquete como bengala, com um duro
semblante ele andou de um lado para o outro na pequena cabine; logo
as rugas espessas da testa relaxaram e, devolvendo a arma ao cabide,
ele voltou ao convés.
“És
muito bom sujeito, Starbuck”, ele disse em voz baixa ao imediato;
então, levantando a voz, disse à tripulação: “Ferrai as velas
dos joanetes, rizai forte as gáveas, à proa e à ré; trazei a
verga principal; subi os Burtons e descarregai os barris do
porão principal.”
Talvez
seja inútil querer saber o motivo por que, respeitando Starbuck,
Ahab agia desse modo. Poderia ter sido um ímpeto de honestidade; ou
simples protocolo de prudência, que, sob tais circunstâncias,
proibia imperiosamente o menor sinal de inimizade declarada, ainda
que temporária, contra o importante primeiro oficial de seu navio.
Em todo caso, as ordens foram executadas e os Burtons subiram.
*Nos
navios baleeiros usados para a pesca de Cachalotes que têm grande
quantidade de óleo a bordo, é um dever colocar uma mangueira no
porão regularmente duas vezes por semana e banhar os tonéis com
água do mar, que, em seguida, a intervalos variáveis, é retirada
pelas bombas do navio. Dessa forma procura-se manter os tonéis
fechados e úmidos, enquanto, pelas características alteradas da
água retirada, os marujos detectam rapidamente qualquer vazamento
sério na carga preciosa. [N. A]
Herman
Melville, in Moby Dick
Aos que não gostam de ler
Nada
tenho a dizer aos que gostam de ler. Eles já sabem. Mas tenho muito
a dizer aos que não gostam de ler. Pena é que, por não gostarem de
ler, é provável que não leiam isso que vou escrever. O que tenho a
dizer é simples: “Vocês não sabem o que estão perdendo”. Ler
é uma das maiores fontes de alegria. Claro, há uns livros chatos.
Não os leiam. Borges dizia que, se há tantos livros deliciosos de
serem lidos, por que gastar tempo lendo um livro que não dá prazer?
Na leitura fazemos turismo sem sair de casa, gastando menos dinheiro
e sem correr os riscos das viagens. Shogun me levou por uma
viagem ao Japão do século XVI, em meio aos ferozes samurais e às
sutilezas do amor nipônico. Cem anos de solidão, que reli
faz alguns meses, me produziu espantos e ataques de riso. Achei que o
Gabriel García Márquez deveria estar sob o efeito de algum
alucinógeno quando o escreveu. Lendo, você experimenta o assombro
do seu mundo fantástico sem precisar cheirar pó. É isso: quem lê
não precisa cheirar pó. Nunca tinha pensado nisso. A poesia de
Alberto Caeiro me ensina a ver, me faz criança e fico parecido com
árvores e regatos. Agora, essa maravilha de delicadeza e pureza, do
Gabriel velho com dores no peito e medo de morrer: Memórias de
minhas putas tristes. Li, ri, me comovi, fiquei leve e fiquei
triste de o ter lido porque agora não poderei ter o prazer de lê-lo
pela primeira vez. Pena que vocês, não leitores, sejam castrados
para os prazeres que moram nos livros. Mas, se quiserem, há
remédio...
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
A testemunha
Ele
tinha o olhar fixo no anúncio luminoso, suspenso no fundo negro de
um céu sem estrelas. Já fazia uma hora que linha o olhar fixo no
anúncio onde um cisne branco aparecia fosforescente em primeiro
plano no espaço tumultuado de nuvens. Logo em seguida, com
ondulações de pétalas mansas, abria-se em torno do cisne um
pequeno lago que chegava até quase a meia-lua branca da qual saía o
letreiro. Cortado pelo perfil de um edifício. Só as cinco primeiras
letras do anúncio eram visíveis, as outras desapareciam detrás do
cimento armado.
— Belon
— disse ele antes que as letras se apagassem Voltou-se devagar para
o recém-chegado. — Belon, Belon... O que será que vem depois
desse Belon? Vai, Rold, me ajude.
— Belonave
— disse o outro voltando-se para o luminoso. Encarou o amigo. E
inclinou-se para o banco de pedra — Mas este banco está molhado,
você vai pegar um resfriado pelo traseiro. Que ideia. Miguel, por
que um encontro aqui? Este parque deve ser bom no verão.
— Não
é Belonave, é outra coisa, Belon...
— Belominal.
Contra dores, enxaquecas. Você está aqui há muito tempo? Detesto
umidade, as juntas começam a endurecer. Que noite!
— Não
vou saber nunca Pode ser o nome de um colchão de molas. Ou de uma
geladeira. Ou de um uísque, tanta coisa já passou pela minha
cabeça. Assim como um sino, hem, Rolf? Belon, Belon...
Rolf
tirou a folha seca que se colara ao sobretudo do amigo.
— Se
formos nesta direção, no fim da alameda a gente pode saber.
— Não
é preciso, Rolf. Você sabe.
Rolf
tomou o amigo pelo braço. Estava bem-humorado.
— O
que é que eu sei?
Mancando
um pouco, Miguel deixou-se conduzir. Ainda olhou o cisne lá no alto
do seu lago fosforescente.
— Você
sabe.
— Mas
sei o que, meu Deus!
— O
que aconteceu ontem à noite. Você sabe. Devo ter tido um acesso.
Então, não vai me dizer?
Rolf
levantou a gola do casaco. Esfregou as mãos com energia — Umidade
desgraçada. A gente podia ir comer um peixe com um bom vinho tinto,
besteira isso de vinho branco com peixe. Quero um tinto ligeiramente
aquecido, uau!
— Não
vai me dizer, Rolf?
— Dizer
o quê rapaz?
— O
que aconteceu ontem.
— Ora,
o que aconteceu! Mas então você não sabe?
— Não,
não sei. Não me lembro de nada, nada.
— Mas
como não se lembra?
— Não
me lembro, simplesmente não lembro
— repetiu
Miguel torcendo as mãos muito brancas. Fechou-as contra o peito.
— Sei
que você foi me visitar, isso eu sei. Mas depois não me lembro de
mais nada, minha memória breca de repente justo nesse pedaço, fica
tudo escuro. Como aquele luminoso, olha lá, agora apagou
completamente... Sei que aconteceu alguma coisa mas não lembro, não
lembro. Você vai me dizer, não vai, Rolf? Responde, não vai me
dizer? Hem?!
Rolf
desviou o olhar da cara lívida, em suspenso na sua freme. Um vinco
profundo formou-se entre suas sobrancelhas. Ainda assim, conseguiu
sorrir. Segurou com firmeza o amigo pelo braço, obrigando-o a andar.
— Mas
não aconteceu nada de especial, rapaz.. Não lenho o que contar.
— Não?
Não tive um acesso, não fiz coisas?... Não banquei o...
— Não.
Lógico que não. Se quiser mesmo saber, presta atenção, cheguei em
sua casa por volta das nove. Comentei a beleza da noite, tanta
estrela... Você me pareceu enfarruscado, se queixou de dor de
cabeça, lembra?
— Disso
eu me lembro. E daí?
— Daí
você foi buscar uma aspirina, parece que a dor passou de repente.
Então veio a hora da animação, você ficou todo excitado com o
livro de um húngaro que estava lendo, não sei que livro é esse nem
vem ao caso, o fato é que você desatou a falar. Falou, falou...
— Falei
o quê?
— Falou
sobre tudo. Sobre esse tal livro, sobre outros livros.
Enveredou
pela política, fez uma análise fulgurante da situação do país...
— Fulgurante?
— Fulgurante.
Comentou depois sobre uma fita de ficção científica, falou sobre a
morte de Otávio. Milhares de coisas.
— E
então...
— Então,
acabou. Fiquei cheio, me deu vontade de tomar um café e fui até a
cozinha, lembra?
— Não,
desse pedaço não lembro mais. Vejo você chegando e dizendo uma
coisa qualquer ligada à garrafa térmica, que o café se degradava
na garrafa, não sei se usou essa palavras, degradar. Mas foi a
palavra que me veio agora. E eu me queixando de uma dor bem aqui...
— Na
nuca.
— Isso,
na nuca — confirmou Miguel, apressando o passo para ficar ao lado
do outro que tinha pernas compridas, andava mais rápido.
Afastou
com um gesto exasperado o ramo de salgueiro que pendia no meio da
alameda. — O resto esqueci, não sei de mais nada. Não sei.
— Pois
quando voltei com o café você se queixou dessa dor, se estendeu no
sofá e ficou dormindo feito uma criancinha. Fechei a luz e saí.
Acabou.
— Por
favor, Rolf, não fique com pena de mim que é pior ainda, pode
dizer!
— Mas
dizer o quê, se não aconteceu mais nada. Quer que eu invente, é
isso? Posso inventar, se quiser.
Seguiram
andando. Rolf alguns passos adiante de Miguel que mancava um pouco.
— Sei
que tinha uma pessoa por perto e essa pessoa só pode ser você —
disse Miguel num tom indiferente. Baixou a aba do chapéu de feltro.
Levantou a gola do sobretudo e enfiou as mãos nos bolsos. — Você
sabe o que eu fiz. Mas não vai me dizer nunca.
Rolf
chutou com irritação um pedregulho e abriu os braços. Cerrou os
maxilares quando levantou a face para o céu e de repente pareceu se
distrair com algumas estrelas que vislumbrou num rombo da nuvem.
— Milagre!
Elas conseguiram mas não vai durar, olha aquela nuvem preta que já
vem correndo e cobrindo tudo. Só vai chover mesmo lá pela
madrugada, gosto de dormir ouvindo a chuva.
Miguel
olhava em frente. O outro teve que se inclinar para ouvir o que ele
dizia agora: — Hoje cedo encontrei o relógio despedaçado, aquele
relógio em formulo de oito. Completamente despedaçado. E um rasgão
no lençol. O relógio e o lençol.
— O
lençol?
— Também
não encontrei mais o Rex. A tigela de água virada, a porta da
cozinha aberta... Eu tinha paixão por aquele cachorro. Sai
procurando, perguntei na vizinhança, andei dando voltas pelo
quarteirão. Nada. Você sabe, mas não vai me dizer. Estou vendo nos
seus olhos a minha loucura, mas você não vai me dizer nada.
Caminharam
algum tempo em silêncio. Pararam diante do lago de água
verde-negra, aninhado entre as árvores. Os ramos mais longos do
salgueiro chegavam a tocar na superfície estagnada, com coágulos
finos como lâminas de vidro fosco. Rolf acendeu um cigarro, fez um
comentário sobre a água que devia estar podre e tomou o amigo pelo
braço. Sacudiu-o afetuosamente. Riu.
— Com
esses elementos você pode reconstituir tudo, não pode? O relógio,
o lençol. O cachorro. Você gostava de livro policial, não gostava?
Então é simples, estou preocupado é com o cachorro.
— Não
brinca, Rolf. É sério. Eu preciso saber.
— Mas
não estou brincando — disse e empurrou enérgico o amigo para a
frente. — Vamos, rapaz, tudo bobagem, chega de se atormentar. Não
pensa mais nisso, não aconteceu nada. Acho que você está
precisando é de mulher, essa nossa vida, uma solidão miserável. Se
tivesse por aí umas putinhas simpáticas, hum? Por onde andam nesta
cidade as putinhas simpáticas, antigamente tinha tanta gueixa, vem
me esquentar, vem me agradar! Elas vinham. Agora só encontro umas
meninas chatas, tudo intelectual. Mania de feminismo, competição.
Andei aí com uma nortista que me deixou tonto, falava feito uma
patativa. Era socióloga, já pensou?
Um
jovem de tênis e abrigo de inverno passou correndo e bufando entre
os dois homens, que se afastaram para lhe dar passagem. Quando o
jovem desapareceu na curva da alameda. Miguel Voltou-se para o amigo.
— Curioso
isso. Como você sabe o que aconteceu, sempre que olho para você
vejo que aconteceu alguma coisa.
— Ah,
mas minha cara é muito expressiva! Miguel começou a torcer as mãos
feito trapos. A silhueta atarracada, parecia maior devido ao
sobretudo que vinha de um tempo em que era mais gordo. Levantou a
face de um branco úmido.
— Por
favor, Rolf, por favor! Preciso saber até que ponto eu cheguei,
preciso.
— Mas
o que você quer que eu faça? Só se eu tive o acesso junto, nós
dois completamente loucos, quebrando coisas, espancando o cachorro. E
agora esqueci tudo, os dois sem memória, esses ataques podem dar de
parceria. Ou não, sei lá.
Miguel
enfiou as mãos nos bolsos e prosseguiu no seu andar meio incerto.
Sorriu para o amigo.
— Nós
dois juntos. Rolf? Um acesso na mesma hora? Sacudiu-se de repente num
riso reprimido. Enterrou o chapéu de feltro até as orelhas e
acendeu o cigarro, divertia o a ideia do acesso em conjunto, “Nós
dois. Rolf? Ao mesmo tempo?” Rolf estava sério, andando no seu
passo largo, cadenciado. Olhava o chão.
— Vamos
sair deste parque. Sugiro comer alguma coisa.
— Isso
mesmo. Rolf, também estou com fome. Peixe com vinho tinto meio
aquecido, acho genial. Conheci outro dia um restaurante fabuloso, é
meio longe mas Vale a pena. Vinho tinto italiano, o vinho eu ofereço.
— Machucou
o pé, Miguel?
— Por
quê?
— Você
está mancando.
— Estou?
— Ele se surpreendeu. Olhou espantado para os próprios pés. —
Sabe que não sinto nada. Você disse que estou mancando?
— Um
pouco.
— Não
sinto nada.
Rolf
tirou o lenço do bolso da japona e limpou o nariz. Olhou para o
lenço enquanto o dobrava. Olhou para o amigo.
— Esse
restaurante. É muito longe? Já está meio tarde, será que ainda
servem a gente?
— Claro
que servem, fica aberto até de madrugada. É a dona mesmo quem
cozinha, uma espanhola chamada Esmeralda. Não sei o nome da rua mas
sei onde fica, já fui lá um monte de vezes.
Rolf
atirou a ponta do cigarro no canteiro. A fisionomia se desanuviou.
Apertou os olhos de novo zombeteiros — Tive uma namorada chamada
Esmeralda. Você não conheceu a Esmeralda?
— Não.
Essa não.
— Ela
era engraçada, só pensava em casar, acordava com esse pensamento,
dormia com esse pensamento, casar. Então eu avisei, só me caso
quando chegar aos quarenta, faltam dois anos. Nessa noite fizemos um
amor tão perfeito, dormimos contentes. Me acordou de madrugada,
descobriu não sei como minha cédula de identidade e montou em mim,
seu mentiroso, você tem 45 anos, vamos casar Imediatamente!
— Imediatamente,
Rolf?
Miguel
tomara a dianteira, o passo curto, o cigarro apagado no canto da
boca. Quando saíram da avenida e entraram numa rua mais tranquila,
esperou pelo amigo até se emparelhar com ele. Sacudiu na mão uma
caixa de fósforos.
— A
marca que meu pai usava tinha um olho dentro de um triângulo, eu
ficava fascinado quando ele guardava o olho suplementar dentro do
bolso. Será que ainda existe essa marca?
Rolf
mordiscou o lábio superior até prender nos dentes um fio do bigode.
Contornou com o braço o ombro do amigo.
— Presta
atenção, Miguel, o que passou, passou. Não se preocupe mais, somos
todos normalmente loucos. Fingimos até uma loucura maior mas não
tem importância, faz parte do sistema, é preciso. De vez em quando,
dá aquela piorada e piora mesmo, que diabo. E daí? O tal cotidiano
acaba prevalecendo sobre todas as coisas que nem na Bíblia. Isso de
dizer que só um fio de cabelo nos separa da loucura total é tolice.
— Claro.
Rolf, claro. Você tem razão Com as pontas dos dedos. Rolf começou
a consertar o bigode.
Tirou
de Miguel a caixa de fósforos que ele ainda sacudia.
— Você
está com 51 anos.
— Cinquenta
e dois.
— Certo.
Eu tenho três mais que você. E sua família, rapaz? Continua por
aqui?
— Não,
mudou-se para Casa Branca. Por quê?
— Lembrei
agora da sua mãe. Ela fazia uns pastéis deliciosos.
— Fazia
melhor o amor.
Rolf
desviou do amigo o olhar oblíquo.
— Ai!
meu Hamlet, que cansaço. E esse seu restaurante que não chega
nunca. Hoje você está muito chato, cansei.
— Acho
que é fome, Rolf, perdão, perdão! — E Miguel tomou o amigo pelo
braço, ficou de repente descontraído, alegre, — Faz tempo que não
como direito, deve ser isso. Mas juro que depois ainda vou cantar
para você um tango inteirinho, Cuesta Abajo, tenho uma voz
linda, com vinho então fica um esplendor.
— Nem
diga.
Enveredaram
por uma rua escura, quase deserta. No fim da rua, a ponte, um curvo
traço de união entre as margens do rio. A névoa subia mais densa
na altura da água. Rolf parou de assobiar — Ainda está longe?
— O
quê?
— O
restaurante, rapaz.
— Ah,
fica logo depois da ponte — disse Miguel. E inclinou-se pura
amarrar o cordão do sapato. — Conheço tanto esse rio, eu morava
aqui por perto quando criança. Todo sábado vinha nadar com a
molecada. A água era suja mas imagine se me importava. Também
remava, sempre tive mania de esportes. Não cresci muito mas olha só
a largura do meu ombro.
— Eu
sei, já vi.
Um
cachorro perdido passou a uma certa distância. Estava enlameado e
tinha uma pequena corda dependurada no pescoço. Miguel ficou olhando
o cachorro.
— Podia
ser o Rex — disse, e voltou-se para o amigo. Animou-se.
— Cheguei
a ser campeão de bola ao cesto.
— Acho
que foi por isso que você ficou desse jeito, vida muito saudável
não dá certo. Sempre tive horror de clubes, uma chateação.
Miguel
aproximou-se e puxou o outro pela manga. Riu.
— Um
bicho-de-concha. Você devia ter aprendido ao menos a nadar.
— Namorei
uma nadadora. Cheirava a cloro, por mais que se lavasse, tinha sempre
um pouco daquele cheiro, principalmente no cabelo. É curioso, não
me lembro da sua cara, só do cheiro.
Tinham
atingido a ponte. Miguel parou. Olhou em redor.
— A
gente se esquece de certas coisas e de outras... Ainda tem um
cigarro?
Rolf
tirou do maço o último cigarro, que veio amassado.
— Fuma
este.
— E
você?
— Agora
não quero.
Miguel
abrigou na gruta da mão a chama do fósforo. A face avermelhou,
esbraseada.
— Mas
veja. Rolf, esqueci por completo o que aconteceu ontem e isso não
teria a menor importância se não fosse você. Você e esta ponte. A
única ponte que me liga a véspera — disse e abaixou-se como se
fosse amarrar o sapato.
Rolf
abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bolsos, um pouco encolhido.
Miguel então veio por detrás e ainda agachado, agarrou o outro
pelas pernas, ergueu-o rapidamente por cima do parapeito de ferro e
atirou-o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito
afogado, se engasgando.
Debruçado
no gradil, Miguel ficou olhando o rio. Vislumbrou seu chapéu que
tinha caído e agora flutuava meio de banda na água agitada. Flutuou
um instante com movimentos de um pequeno barco negro.
Desapareceu,
Um resto de espuma foi se diluindo na superfície acalmada. Miguel
apanhou no chão o cigarro ainda aceso e soprou, avivando a brasa.
Amarfanhou devagar o maço vazio. Durante algum tempo ficou fumando e
contemplando a água. Fez do maço uma bola e atirou-a longe. Não se
voltou quando ouviu passos atrás de si. Sentiu a mão tocar-lhe o
ombro.
— É
proibido atirar coisas no rio.
Ele
mostrou para o policial a cara pasmada.
— Mas
era um maço de cigarro, um maço vazio.
— Eu
sei, mas não pode. É a lei. Miguel sorriu, concordando.
— O
senhor tem razão — disse e levantou a mão para a aba do chapéu.
Interrompeu o gesto. — Toda razão. Não vou repetir isso, prometo.
Mancando
um pouco, atravessou a ponte e sumiu no nevoeiro.
Lygia
Fagundes Telles, in A estrutura da bolha de sabão