O doping dos pobres

Parte da minha família é da zona rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.
Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão a lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu suportava com brios de filósofo estoico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “Fulana sofre dos nervos”.
Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento e recusavam-se a juntar o marido bêbado no bolicho do povoado. Rebelavam-se. Por culpa dos nervos.
Eu criava ouvidos de Dumbo — não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério dos ataques de nervos. Será que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã, perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram nervos e pronto. E não eram assunto de criança.
Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível. Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico não tratasse com alguma beberagem de cor estranha. Minha teoria pessoal é que não existiam vírus, bactéria ou até mesmo nervos capazes de suportar o cheiro daqueles troços. Mas o velho Chico morreu, não sei dizer se antes ou depois dos nervos. E agora tudo é tratado com comprimidos de cores variadas.
Quando comecei minha aventura de repórter, no final dos anos 80, ainda encontrava referência aos nervos por onde andasse, fosse em zonas rurais de norte a sul, fosse na periferia das grandes cidades. Com o tempo, especialmente a partir de meados dos anos 90, as mesmas queixas começavam a ser embaladas em termos médicos. Nos últimos anos, tenho ficado embasbacada ao entrevistar gente analfabeta que fala em depressão como se fosse o nome de alguém da família. A terminologia psiquiátrica invadiu a linguagem em todas as classes sociais e regiões — e se inscreveu na cultura.
Há algum tempo penso nos muitos significados dessa mudança. Significa que as pessoas estão sendo mais bem tratadas e tendo acesso a medicamentos? Talvez. Mas não me parece que seja isso. Ou pelo menos apenas isso. Estou preocupada com o que tenho testemunhado pelas periferias do Brasil. Antes, quando batia na casa das pessoas mais humildes, os pais de família me apresentavam sua carteira de trabalho. Isso sempre me devastou, porque revelava a violência silenciosa que vitimava os mais pobres. Com o gesto, eles queriam provar que eram trabalhadores, gente de bem — e não vagabundos ou bandidos porque eram pobres. Eu tentava explicar que não era autoridade nem tinha direito algum de ver seus documentos. Mas o homem diante de mim, estendendo a carteira de trabalho, carregava na alma séculos de humilhação. Então, eu examinava e elogiava seu documento.
Hoje, quase não acontece mais. De uns tempos para cá, o que muita gente tem me mostrado são, adivinhem: seus medicamentos. Com um sentido diverso. Acreditam que, por ser jornalista, tenho um conhecimento que eles não têm, sou capaz de esclarecer suas dúvidas. Estou lá, sentada no único sofá ou na melhor cadeira da casa, quando acontece. Depois da prosa inicial, que no meu caso leva umas duas horas, já estamos todos bem à vontade. Então o pai ou a mãe ou a avó fazem sinal para a menina mais nova. E lá vem a criança carregando uma lata da cozinha. Deposita entre as minhas mãos, como uma hóstia. Olho e já sei o que vou encontrar: cartelas de comprimidos até a boca.
Querem saber se faz bem mesmo. Se posso explicar como devem tomar. Se acho que o guri que só apronta na escola deveria tomar também. Me arrepio. Examino o conteúdo. Procuro as bulas. Boa parte são antidepressivos e tranquilizantes. Pergunto quem toma e por que toma. O avô porque não dorme, a mãe e a avó porque estão deprimidas, o pai porque é nervoso e o filho porque é “muito agitado”. Com variações, claro. Mas em geral as deprimidas são as mulheres. Lembro que eram elas também as que mais sofriam dos nervos. Não que os homens não sofram, mas sinto que resistem mais antes de assumir publicamente que são “deprimidos”. Em geral eles não dormem ou são “nervosos”. Muitas vezes, os pais bebem álcool, os filhos são usuários de drogas.
Com delicadeza, explico que não sou médica, que precisam procurar o posto de saúde. Respondem que a próxima consulta é só daqui a três meses. Descubro então que trocam de medicamentos. Quando acham que o seu não está resolvendo, tentam o do outro. Consciente da minha ignorância, afirmo apenas o que posso afirmar: não tomem o medicamento que é do outro nem deem para as crianças. Semanas atrás uma mulher me perguntou se podia dar um tranquilizante para a sua sobrinha, de nove anos, que estava muito agitada. Eu disse que de jeito nenhum, “é muito forte”. Minutos depois, veio me contar com um sorriso. Tinha encontrado uma solução: “Dei só a metade”.
A medicalização da dor de existir não é nenhuma novidade. Antidepressivos e tranquilizantes estão disseminados em todas as classes sociais. Para boa parte das pessoas, tomar uma pílula para conseguir “aguentar a pressão” é tão trivial quanto tomar um cafezinho. Mas penso que, se você é de classe média, tem mais acesso à informação, à terapia, a um tratamento mais competente. Tem mais acesso à escuta da sua dor.
É importante fazer a ressalva. Não sou contra antidepressivos e tranquilizantes. Nem tenho autoridade para ser. Acho que medicamentos têm sua hora e seu lugar. Mas não é preciso ser médico para saber que, em geral, seu uso deve ser temporário, monitorado e acompanhado por outros recursos. Como psicoterapia e análise, em muitos casos. Devem ser usados com muita parcimônia, critério e acompanhamento. E não como se fossem pílulas de açúcar que podem ser tomadas por todos a qualquer sinal de dor psíquica.
O que tenho visto é um doping social. Combate-se a cocaína, o crack, até o cigarro, ótimo. Mas e as drogas médicas que estão pelos barracos e pelos palácios? São menos drogas porque dadas por um doutor?
Minha percepção é de quem anda bastante por aí. Por ser repórter, tenho o privilégio de entrar por várias portas, escutar a narrativa de muitas e diferentes vidas. Para escrever esse texto conversei com psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que trabalham na rede pública de saúde. Queria ir além do meu testemunho. Seus relatos são mais assustadores que o meu.
Basta chorar”, afirma uma psiquiatra muito conceituada. “Há poucos psiquiatras na rede pública, em qualquer parte do país. Em geral, as pessoas vão ao médico por algum outro motivo. Então choram. E o médico, seja qual for a sua especialidade, receita um antidepressivo ou um tranquilizante. Meses depois a pessoa volta. E continua chorando. Aí ganha um mais forte. Ou ganha dois. E ela continua chorando. Mas tudo o que ouve é que é doente e tudo o que lhe dão são remédios. Só que ela continua chorando.”
As pessoas estão sendo viciadas em ansiolíticos nos postos de saúde, afirma uma psicóloga. “São levadas a acreditar que o remédio pode acabar com a sua dor, uma dor que tem causas muito concretas. Não resolve, claro. Um exemplo. Uma mulher tinha dois empregos, um de dia, outro de noite. O que ganhava não dava para pagar as contas. Os ônibus que pegava para chegar até esses empregos eram lotados. Ela vivia num barraco. Aí procurou o posto de saúde e lhe trataram com antidepressivos. Não adiantou. Deram-lhe outro medicamento. Nada. Um dia, sem nenhuma esperança ou recurso, ela tentou suicídio”, conta. “A questão é que não há promoção de saúde, porque isso implicaria se preocupar com projeto de vida, com perspectiva de vida, com melhoria das condições de vida. O que há é medicalização da vida.”
Nossa época é marcada por uma espécie de sedativo social, afirma um psiquiatra. “A gente vê um monte de gente sofrendo. E sofrendo muito. Mas o atendimento funciona assim: está chorando?, toma um antidepressivo; não dorme?, pega um benzodiazepínico. É uma supermedicalização sem critério. As pessoas estão tomando remédios como se fossem bolinhos”, diz. “O médico não tem tempo de escutar, dá um remédio para que parem de chorar ou de reclamar, e as pessoas vivem a fantasia de que são atendidas. Não funciona, claro. Elas continuam sofrendo. Então voltam e o procedimento se repete. E assim vai diminuindo a pressão social.”
Vale a pena parar e refletir. Nossa época está produzindo gerações de anestesiados? A medicalização da dor psíquica é um fenômeno relativamente recente. Pelo menos nessa proporção, com essa enorme variedade de drogas disponíveis e muito mais sendo produzido em escala industrial e vendido em licitações para a rede pública em suas variadas instâncias. Cada comprimido de Diazepam (benzodiazepínico), por exemplo, custa menos de um centavo para a rede pública. Bem mais barato, digamos, que uma sessão de psicoterapia.
Se pensarmos que a medicação da população com antidepressivos e tranquilizantes se acentuou a partir dos anos 90, que tipo de sociedade teremos daqui, digamos, a uma ou duas décadas? O que acontece com as pessoas quando têm a sua dor de existir abafada, mascarada, calada a golpes de pílulas? Não sei. Mas acredito que são perguntas que devemos nos fazer. Nós todos, não apenas os governantes ou os profissionais da saúde. Estamos vivendo uma mudança cultural das mais profundas. E não me parece que estamos suficientemente atentos a suas causas, significados e implicações. Que tipo de mundo e de gente estamos criando quando a resposta para toda dor é uma pílula?
De novo, não sou contra o uso responsável de medicamentos. E me sinto bastante satisfeita por viver numa época em que é possível curar — ou pelo menos controlar — muitas doenças graças ao avanço da ciência. Mas não é disso que se trata. O que tenho testemunhado não é tratamento — mas doping. E do pior tipo, o legalizado, aquele que é travestido como promoção de saúde e promovido pelo Estado, sob a pressão da indústria farmacêutica. E, atenção: cada vez mais cedo. Em todas as classes sociais, as crianças começam a ser medicadas nos primeiros anos de vida, bastando para isso não ter um comportamento na escola considerado “normal”.
Na passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos. Desde criança, convivo com as muitas dores de existir. Como quase todo mundo. Às vezes “a vida dói como uma afta”. Mas talvez raramente seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são doença. Sentimos tristeza, melancolia, angústia, medo. Vivemos lutos, tanto pela perda de quem amamos quanto pela perda de amantes, assim como pelas pequenas perdas de cada dia.
A dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que conseguimos transformar dor em criação. Elaboramos nossas muitas dores criando poesia, pintura, escultura, música, vestidos, bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência, histórias. Cada um à sua maneira muito particular. Se em vez de elaborar a dor e transformá-la em expressão, tomamos comprimidos que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos fazendo com nós mesmos e com o nosso mundo?
Se você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é humilhado pelo seu chefe, mora num barraco e não tem dinheiro para pagar as contas, você tem depressão porque não encontra mais forças para suportar esse cotidiano ou tem um transtorno mental porque não consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para saber que ninguém pode estar bem em condições de vida como essas. Seria preocupante se estivesse. A alternativa não é se entupir de tarjas-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma existência mais digna, pressionar o poder público, formar uma associação comunitária para exigir seus direitos, construir um projeto de vida com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se tornar possível.
Ser protagonista e ser parte da transformação é ter saúde. Não há nada mais aniquilador do que o sentimento de impotência. E, quando a questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e mudadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. Por isso, fico muito preocupada quando entro nas casas e os moradores me mostram suas pílulas em latas de comida.
Tenho o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do Brasil. Em especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. Das mais diversas regiões da Grande São Paulo, toda noite de quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o criador da Cooperifa, pode passar horas contando sobre gente que chegou lá aniquilada, com a espinha dobrada, a vida por um triz. E, ao ser escutada, sentir-se parte, transformou-se. Gostaria que alguém fizesse uma pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a saraus de poesia, rodas de samba, posses de hip-hop, oficinas de arte, associações comunitárias e a população que não pertence a nada, nem a si mesma.
Penso que o conceito de saúde — e de saúde mental — não existe se não abarcar projeto de vida.
O primeiro texto que escrevi, aos nove anos, foi inspirado pela abissal melancolia de um domingo de manhã em que eu estava sozinha enquanto todos em casa dormiam. Era escrever ou a melancolia me engolir. Aos 11 anos, eu já tinha um livro de poesias. Todas elas elaboravam momentos diversos da minha dor de existir. Para mim, a escrita foi a maneira que encontrei de elaborar a minha angústia, “os meus nervos”. Acabei fazendo disso um projeto de vida.
Já vivi muitos momentos duros, inúmeros traumas. Posso afirmar, sem exagero, que fui vítima da maioria dos artigos do Código Penal, com exceção de assassinato. Me descobri algumas vezes dançando à beira do precipício. E por duas vezes na minha vida precisei de medicamentos. Tive a sorte de encontrar profissionais competentes, humanistas, que acreditavam no que faziam, no que eram. O uso de medicamentos foi pontual, parcimonioso, controlado e com tempo para acabar. Sempre acompanhado por sessões de psicanálise. Superei cada um deles não me anestesiando, mas elaborando a dor. E criando furiosamente.
Tudo o que vivi uso para escrever. E tudo o que vivi me ensinou a escutar. Quando entro na casa das pessoas como repórter e elas me mostram seus medicamentos, o que esperam de mim é que as escute. E é o que talvez eu faça de melhor. Fico horas em suas casas, apenas ouvindo. Escutando de verdade. A narrativa da vida é um reconhecimento da vida. A escuta da dor é um reconhecimento da dor. Se alguém que sofre procura um médico e, em vez de escutá-lo, o profissional o entope de comprimidos, o que aconteceu ali não é promoção de saúde, é promoção de doença. E o médico que se sujeita a isso pode estar tão doente quando aquele que o procura. O sistema de saúde não pode funcionar como um reprodutor de impotências. Uma linha de produção de impotências, que em vez de apertar parafusos, coloca bolinhas na boca. Como sabemos por pesquisas, é significativo o número de médicos que não apenas dopa, mas também se dopa.
Promover saúde é promover vida. E a vida começa pela escuta da vida. É o que faço como contadora de histórias reais. Mas quando as pessoas me mostram uma lata de comprimidos, que todos tomam, da criança mais nova ao avô, não é de mim que elas precisam. Para não me sentir impotente, escrevo este texto. Na esperança de que alguém me escute.
Eliane Brum, in A Menina Quebrada

Queijo para dois

A Situação comia o queijo sozinha, a Oposição tinha fome e também lhe apetecia comer do queijo.
Negativo — respondeu a Situação. — O queijo não dá para todos. Mesmo que desse, o queijo nunca é para todos.
Então eu vou aí e tiro o queijo todo para mim — ameaçou a Oposição.
E a Situação continuava comendo queijo, comendo queijo. Até que ele acabou. Vendo que tinha acabado, ela se queixou da Oposição:
Viu o que você me arrumou? De tanto reclamar uma fatia de queijo, ele foi minguando, minguando, e me deixou com fome. Você botou olho grande. Quando eu arranjar outro queijo, vou comê-lo escondido.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

De Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria


Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do engenho, deitados em couros e esteiras ― nem se tinha o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores. Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na beira da rebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo, Fafafa e JoãoVaqueiro não esbarravam de falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens da Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava sempre naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos pensávamos as mesmas coisas; o que cada um sonhava, quem é que sabia?
Aquilo é poço que promete peixe... ― o Jesualdo disse. Dela devia de ser. ― Amigo, não toque no nome dessa moça, amigo!... ― eu falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a sério fatal, deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por longe, a mãe-da-lua suspirou o grito: ― Floriano, foi, foi, foi... ― que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva. De repente.
Riobaldo, você está gostando dessa moça?
Aí era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A voz dele vinha pelos dentes.
Não, Diadorim. Estou gostando não... ― eu disse, neguei que reneguei, minha alma obedecia.
Você sabe do seu destino, Riobaldo?
Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má loucura de tudo aquilo. Tremi não.
Você sabe do seu destino, Riobaldo? ― ele reperguntou. Aí estava ajoelhado na beira de mim.
Se nanja, sei não. O demônio sabe... ― eu respondi. ― Pergunta...
Me diga o senhor! por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece ― vivo no momento. Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele dansar produziam, de estar brilhando. E ele devia de estar mordendo o correiame de couro.
Assisado, me enrolei bem no cobertor; mas não adormeci. Eu tinha dó de Diadorim, eu ia com meu pensamento para Otacília. Me balanceei assim, adiantado na noite, em tanto gaio, em tanto piongo, com todas as novas dúvidas e ideias, e esperanças, no claro de uma espertina. Com muito, me levantei. Saí. Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a lua subia estada, abençoando redondo o friinho de maio. Era da borda-do-campo que a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto de árvores da mata cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas se sumiam para dentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar. Ao que fiquei bom tempo encostado no cajueiro da beira do curral. Só olhava para a frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília deitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençois lavados e soltos, ela devia de sonhar assim. E, de repente, pressenti que alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava. Diadorim, fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio. Nunca posso ter medo das pessoas de quem eu gosto. Digo. Esperei mais, outro tempo. Daí, vim voltando. Mas lá não estava pessoa nenhuma, entre claridade e sombras. Ilusão minha, a fantasiação. Bebi água do rego, com o frio da noite ela corria morna. Tornei a entrar na rebaixa. Diadorim permanecia lá, jogado de dormir. De perto, senti a respiração dele, remissa e delicada. Eu aí gostava dele. Não fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e beijava. E, com o vago, devo de ter adormecido ― porque acordei quando Diadorim no mexe leve se levantou, saíu sem rumor, levando a capanga, ia tomar seu banho em poço de córrego, das barras no clarear. Desde o que, depressa eu tornei a me dormir.
Mas, cedo no amanhecer, o sôr Amadeu tinha chegado, e com notícia urgente: que o grosso do bando de Medeiro Vaz recruzava, de lá a quinze léguas, da Vereda-Funda para a Ratragagem, e nós tínhamos de seguir, sem folga, supraditamente. No que Nhô Vô Anselmo me deu um dito afeiçoado e diferente ― entendi que o velhozinho sabia de alguma coisa, e que não desgostava que eu viesse a ficar neto dele. Nós almoçamos e montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João Vaqueiro se retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eu cacei melhor coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha, disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse vir com jús. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-do-verde no coração. Por breve ― pensei ― era que eu me despedia daquela abençoada fazenda Santa Catarina, excelentes produções. Não que eu acendesse em mim ambição de têres e havêres; queria era só mesma Otacília, minha vontade de amor. Mas, com um significado de paz, de amizade de todos, de sossegadas boas regras, eu pensava: nas rezas, nas roupagens, na festa, na mesa grande com comedorias e doces; e, no meio do solene, o sôr Amadeu, pai dela, que apartasse ― destinado para nós dois ― um buritizal em dote, conforme o uso dos antigos.
Vim. Diadorim nada não me disse. A poeira das estradas pegava pesada de orvalho. O birro e o jesus-meu-deus cantavam. O melosal maduro alto, com toda sua roxidão, roxura. Mas, o mais, e do que sei, eram mesmo meus fortes pensamentos. Sentimento preso. Otacília. Por que eu não podia ficar lá, desde vez? Por que era que eu precisava de ir por adiante, com Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte, nestes Gerais meus? Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim; de rota abatida. Mas, desse dia desde, sempre uma parte de mim ficou lá, com Otacília. Destino. Pensava nela. As vezes menos, às vezes mais, consoante é da vida. As vezes me esquecia, às vezes me lembrava. Foram esses meses, foram anos. Mas Diadorim, por onde queria, me levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

A Arte de Cézanne

O golfo de Marselha visto de L'estaque (1885), de Paul Cézanne, que afirmou: "Eu pinto, de fato, o vazio entre dois objetos".

Obsessão



A culpa não é minha, delegado. É do nariz dela. Ela tem um nariz arrebitado, mas isso não é nada. Nariz arrebitado a gente resiste. Mas a ponta do nariz se mexe quando ela fala, delegado. Isso quem resiste? Eu não. Nunca pude resistir a mulher que quando fala a ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É preciso prestar atenção, é preciso ser um obsessivo como eu.
•••

O nariz mexe milímetros, delegado. Para quem não está vidrado, não há movimento algum. Às vezes só se nota de determinada posição, quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meu Deus. Subindo e descendo. No caso dela também se via de frente. Uma vez ela reclamou, “Você sempre olha para a minha boca quando eu falo”. Não era a boca, era a ponta do nariz. Eu ficava vidrado no nariz. Nunca disse pra ela que era o nariz. Eu sou louco, delegado? Ela ia dizer que era mentira, que seu nariz não mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer mais.
•••

Mas a culpa mesmo, delegado, não é do nariz, não é dela e não é minha. A culpa é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só, nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um homem sensível como eu, um homem que chora quando o Brasil ganha bronze, delegado, bronze? Que se emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição condensada ou o CD? Mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era outras.
•••

A multiplicidade humana é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são só dois, são dezessete de cada lado. E quando você pensa que conhece todos, aparece o décimo oitavo. Como eu podia adivinhar, vendo a ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar o Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homem sensível? Porque ela não era uma, delegado. Tinha outra, outras, por dentro. Tudo bem, eu também tenho outros por dentro. Por exemplo: nós já estávamos juntos havia um tempão quando ela descobriu que eu sabia imitar o Silvio Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte passável, mas ninguém sabe, é um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba, disse “Eu não sabia que você era artista”. E eu também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi a causa da nossa briga final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina as outras ficam lá dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo, ressentidas. E, vez que outra, querendo aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir descobrindo o que cada um tem por dentro, os dezessete outros de cada um, e aprendendo a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus dezessete pode não combinar com um dos dezessete dela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade é sempre uma acomodação.
•••

Eu estava disposto a conviver com ela e suas dezessete outras, a desculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela fala. Mas aí surgiu a décima oitava ela. Nós estávamos discutindo as minhas obsessões. Ela estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a discussão derivou para a semântica, eu disse que “obsedante” e “obcecante” eram a mesma coisa, ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse “Rará”, depois disse que “obcecante” era com “c” depois do “b”, eu disse que não, que também era com “s”, fomos consultar o dicionário e ela estava certa, e aí ela deu outra risada ainda mais debochada e eu não me aguentei e o Aurelião voou. Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela. A gente aguenta tudo, não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a gente.
Arrogância intelectual, não.
Luís Fernando Veríssimo, in Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos

Escrita



Tenho fome de um nome
e procuro-o para além dos idiomas
como garimpeiro de vozes
esgravatando um chão de silêncios.

Ecoa em mim
um búzio sem mar,
um peixe agoniza
no estremecer da página nua.

Hoje fui beijado por serpente.
E me espelhei,
água sobre a lua.

Hoje escrevi mel
sobre a picada da abelha:
isso a que outros chamam poesia.
Mia Couto

Misto-Quente / 28

O tempo do colégio passou com rapidez suficiente. Por volta da oitava série, indo para a nona, comecei a ter acne. Muitos dos caras tinham esse problema, mas não no mesmo grau que eu. Meu caso era realmente terrível. Era o mais grave em toda a cidade. Eu tinha espinhas e erupções por toda a face, costas, todo pescoço e um pouco no peito. Isto aconteceu no exato momento em que eu começava a ser aceito como um cara durão e um líder. Eu continuava durão, mas não era a mesma coisa. Tive que me retirar. Observava as pessoas à distância, como numa peça de teatro. Apenas eles estavam no palco, e eu era plateia de um homem só. Eu sempre tivera problema com as garotas, mas agora, coberto de acnes, eu estava condenado. As garotas ficaram mais distantes do que nunca. Algumas delas eram verdadeiramente belas – seus vestidos, seus cabelos, seus olhos, o jeito como se moviam. Simplesmente caminhar rua abaixo durante uma tarde com uma delas, você sabe, falando qualquer coisa sobre qualquer assunto, creio que isso teria me feito sentir bastante bem.
Além disso, havia algo em mim que continuava sendo fonte de constantes problemas. A maioria dos professores não gostava ou não confiava em mim, especialmente as professoras. Nunca disse nada fora do convencional, mas alegavam que se tratava da minha “atitude”. Era algo relacionado com o modo como eu sentava com desleixo na cadeira e também meu “tom de voz”. Eu era frequentemente acusado de estar “escarnecendo”, embora eu não tivesse consciência disso. Constantemente, me faziam ficar do lado de fora da sala, de pé, no corredor, ou me mandavam para a sala da direção. O diretor sempre fazia a mesma coisa. Ele tinha uma cabine telefônica em sua sala. Obrigava-me a ficar de pé dentro da cabine e a fechava. Passei muitas horas dentro daquela cabine. A única coisa que havia para ler ali dentro era a Ladies Home Journal. Era tortura deliberada. De qualquer forma, eu acabava lendo as revistas. Tinha que ler cada novo número. Eu esperava que talvez pudesse aprender alguma coisa sobre as mulheres.
Eu devia ter uns cinco mil deméritos acumulados à época da graduação, mas isso não teve importância. Queriam se livrar de mim. Eu estava de pé do lado de fora, na fila que entrava no auditório ao ritmo de um por vez. Todos nós está vamos com a toga e o barrete vagabundos que já tinham atravessado gerações e gerações de formandos antes de nós. Podíamos ouvir o nome de cada pessoa à medida que ela entrava no palco. Estavam transformando nossa graduação numa maldita comédia. A banda tocou o hino do colégio:

Ó, Mt. Justin, Ó, Mt. Justin
Nós seremos leais
Nossos corações cantam fervorosos
A certeza de amanhãs celestiais...

Ficamos alinhados, cada qual esperando sua hora de marchar pelo palco. Na plateia estavam nossos pais e amigos.
Estou quase vomitando – disse um dos caras.
Saímos de uma merda para nos metermos em outra – disse um segundo.
As garotas pareciam encarar a coisa com maior seriedade. Era por isso que não se podia confiar nelas. Pareciam compactuar com as coisas erradas. Elas e o colégio pareciam cantar em uníssono o mesmo hino.
Esse negócio me deixa deprimido – disse um dos caras. – Queria fumar um cigarro.
Aqui tem um...
Um dos outros caras lhe alcançou um cigarro. Nós o passamos, éramos quatro ou cinco. Dei uma tragada e exalei a fumaça pelo nariz. Então vi Curly Wagner se aproximar.
Apaguem o cigarro! – eu disse. – Aí vem o cabeça de vômito!
Wagner caminhou reto na minha direção. Usava o seu abrigo cinza, incluindo a camiseta, exatamente como eu o vira da primeira vez e em todas as oportunidades seguintes. Parou na minha frente.
Escute – ele disse –, se você acha que está se livrando de mim porque está saindo daqui está muito enganado! Vou seguir você pelo resto da vida. Vou seguir você até os confins da Terra e vou pegá-lo!
Simplesmente o encarei, sem nenhum comentário, e ele se afastou. O discursinho de Wagner serviu para aumentar meu prestígio entre os rapazes. Pensaram que eu tinha feito algo realmente diabólico para deixá-lo tão irritado. Mas não era verdade. Wagner era simplesmente maluco.
Nos aproximávamos cada vez mais da porta do auditório. Não só podíamos ouvir cada nome que era pronunciado e os aplausos na sequência, mas também víamos a plateia. Então, chegou a minha vez.
Henry Chinaski – o diretor disse ao microfone.
E avancei. Não houve nenhum aplauso. Então uma alma gentil na plateia bateu duas ou três palmas.
Havia algumas filas de cadeiras dispostas no palco para a turma que se graduava. Sentamos lá e esperamos. O diretor fez o seu discurso sobre a América ser a terra das oportunidades e do sucesso. Então tudo acabou. A banda atacou novamente o hino do colégio Mt. Justin. Os estudantes e seus pais e seus amigos se ergueram e se congregaram. Andei por ali, procurando. Meus pais não estavam lá. Quis ter certeza. Dei mais uma volta, procurando com afinco.
Estava tudo bem. Um cara durão não precisava dessas coisas. Tirei o barrete e a toga e o alcancei ao cara no fim do corredor – o porteiro. Guardou as peças para a próxima formatura.
Ganhei a rua. O primeiro a sair. Mas para onde eu poderia ir? Tinha onze centavos no bolso. Segui de volta para o lugar em que eu vivia.
Charles Bukowski, in Misto-Quente

sábado, 29 de agosto de 2020

Desejo doido de voltar à terrinha

Esse desejo doido de voltar para a aldeola que ficou lá, muito longe, entre montanhas, é uma coisa muito natural. Ele, eu, todos enfim, temos essa nostalgia que nos faz ver a torre da igreja, as paredes brancas do cemitério, os atalhos verdes semeados de florzinhas. Mas a gente reage, faz-se forte e... fica. O que é preciso é o sujeito estar preparado para receber todos os choques da adversidade”.
Graciliano Ramos

Ahab e Starbuck na cabine

Segundo o costume, eles bombeavam o navio na manhã seguinte; e, oh!, uma quantidade nem um pouco pequena de óleo subiu com a água; os tonéis embaixo deviam estar com um sério vazamento. Via-se muita preocupação; e Starbuck desceu à cabine para reportar o infausto incidente.*
Ora, pelo Sul e pelo Oeste o Pequod rolava próximo a Formosa e às ilhas Bashi, entre as quais se situa uma das saídas tropicais dos mares da China para o Pacífico. E assim Starbuck encontrou Ahab diante de um mapa geral dos arquipélagos orientais; e uma outra carta separada representando a longa costa oriental das ilhas japonesas – Nippon, Matsmai e Shikoku. Com sua nova perna de marfim, branca como a neve, apoiada à perna fixa da mesa, e com o podão de um grande canivete à mão, o velho notável, de costas para a porta do corredor, franzia a testa e traçava mais uma vez suas velhas rotas.
Quem vem?”, ao ouvir passos à porta, mas sem se virar. “Ao convés! Fora!”
O Capitão Ahab se engana; sou eu. O óleo no porão está vazando, senhor. Temos de subir os Burtons e retirar a carga do navio.”
Subir os Burtons e retirar a carga do navio? Agora que estamos chegando perto do Japão; lançar a âncora aqui por uma semana para remendar um lote de argolas velhas?”
Ou fazemos isso, senhor, ou perderemos em um dia mais óleo do que conseguimos juntar em um ano. Vale a pena salvar aquilo que buscamos por vinte mil milhas, senhor.”
Certo, certo, se a pegarmos.”
Eu estava falando do óleo no porão, senhor.”
E eu não estava falando ou pensando em nada disso. Vá embora! Que vaze! Eu também estou vazando. Sim! Vazamentos em vazamentos! Não apenas cheio de barris com vazamentos, mas os barris com vazamentos estão num navio com vazamentos; e esse é um apuro muito pior do que o do Pequod, homem. E todavia não me detenho para tapar meu vazamento; pois quem pode encontrá-lo num casco tão carregado; e como esperaria tapá-lo, mesmo se o encontrasse, nessa tormenta assustadora da vida? Starbuck! Não içarei os Burtons.”
Que dirão os proprietários, senhor?”
Que os proprietários fiquem na praia de Nantucket e gritem mais alto que os Tufões! Que importa a Ahab? Proprietários, proprietários? Estás sempre a me falar desses proprietários sovinas, Starbuck, como se os proprietários fossem minha consciência. Mas, atenta, o único verdadeiro proprietário de alguma coisa é seu comandante; e escuta, minha consciência está na quilha deste navio – ao convés!”
Capitão Ahab”, disse o imediato enrubescido, entrando na cabine com uma audácia tão estranhamente prudente e respeitosa que não só parecia querer fazer todo o possível para evitar a mais leve manifestação exterior de si mesma, como também indicava mais do que alguma desconfiança de si mesma: “Um homem melhor do que eu poderia te perdoar por aquilo que o ofenderia prontamente num homem mais jovem; sim, e mais feliz, capitão Ahab”.
Que inferno! Como ousas pensar em me criticar? – Ao convés!”
Não, senhor, ainda não; rogo-lhe. Senhor, atrevo-me a – ser indulgente! Não seria possível entendermo-nos melhor, Capitão Ahab?”
Ahab pegou um mosquete carregado que estava no cabide de armas (parte da mobília da maioria das cabines dos marinheiros dos Mares do Sul), e apontando-o na direção de Starbuck exclamou: “Só existe um Deus que é Senhor da terra e um Capitão que é senhor do Pequod – Ao convés!”.
Por um instante, pelos olhos flamejantes do oficial e seu rosto inflamado, você quase teria pensado que ele de fato recebera a carga do cano apontado. Porém, controlando a emoção, levantou-se quase calmo e, saindo da cabine, parou um instante e disse: “Não me insultaste, senhor, mas me ultrajaste; contudo, por isso não te peço que tenhas cuidado com Starbuck; pois apenas te ririas; mas que Ahab tenha cuidado com Ahab; tem cuidado contigo mesmo, velho”.
Ele demonstra coragem, e contudo obedece; trata-se de uma valentia muito cautelosa!”, murmurou Ahab, enquanto Starbuck desaparecia. “O que disse – que Ahab tenha cuidado com Ahab –, há alguma coisa aí!” Então, usando sem perceber o mosquete como bengala, com um duro semblante ele andou de um lado para o outro na pequena cabine; logo as rugas espessas da testa relaxaram e, devolvendo a arma ao cabide, ele voltou ao convés.
És muito bom sujeito, Starbuck”, ele disse em voz baixa ao imediato; então, levantando a voz, disse à tripulação: “Ferrai as velas dos joanetes, rizai forte as gáveas, à proa e à ré; trazei a verga principal; subi os Burtons e descarregai os barris do porão principal.”
Talvez seja inútil querer saber o motivo por que, respeitando Starbuck, Ahab agia desse modo. Poderia ter sido um ímpeto de honestidade; ou simples protocolo de prudência, que, sob tais circunstâncias, proibia imperiosamente o menor sinal de inimizade declarada, ainda que temporária, contra o importante primeiro oficial de seu navio. Em todo caso, as ordens foram executadas e os Burtons subiram.

*Nos navios baleeiros usados para a pesca de Cachalotes que têm grande quantidade de óleo a bordo, é um dever colocar uma mangueira no porão regularmente duas vezes por semana e banhar os tonéis com água do mar, que, em seguida, a intervalos variáveis, é retirada pelas bombas do navio. Dessa forma procura-se manter os tonéis fechados e úmidos, enquanto, pelas características alteradas da água retirada, os marujos detectam rapidamente qualquer vazamento sério na carga preciosa. [N. A]
Herman Melville, in Moby Dick

Aos que não gostam de ler

Nada tenho a dizer aos que gostam de ler. Eles já sabem. Mas tenho muito a dizer aos que não gostam de ler. Pena é que, por não gostarem de ler, é provável que não leiam isso que vou escrever. O que tenho a dizer é simples: “Vocês não sabem o que estão perdendo”. Ler é uma das maiores fontes de alegria. Claro, há uns livros chatos. Não os leiam. Borges dizia que, se há tantos livros deliciosos de serem lidos, por que gastar tempo lendo um livro que não dá prazer? Na leitura fazemos turismo sem sair de casa, gastando menos dinheiro e sem correr os riscos das viagens. Shogun me levou por uma viagem ao Japão do século XVI, em meio aos ferozes samurais e às sutilezas do amor nipônico. Cem anos de solidão, que reli faz alguns meses, me produziu espantos e ataques de riso. Achei que o Gabriel García Márquez deveria estar sob o efeito de algum alucinógeno quando o escreveu. Lendo, você experimenta o assombro do seu mundo fantástico sem precisar cheirar pó. É isso: quem lê não precisa cheirar pó. Nunca tinha pensado nisso. A poesia de Alberto Caeiro me ensina a ver, me faz criança e fico parecido com árvores e regatos. Agora, essa maravilha de delicadeza e pureza, do Gabriel velho com dores no peito e medo de morrer: Memórias de minhas putas tristes. Li, ri, me comovi, fiquei leve e fiquei triste de o ter lido porque agora não poderei ter o prazer de lê-lo pela primeira vez. Pena que vocês, não leitores, sejam castrados para os prazeres que moram nos livros. Mas, se quiserem, há remédio...
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

A testemunha

Ele tinha o olhar fixo no anúncio luminoso, suspenso no fundo negro de um céu sem estrelas. Já fazia uma hora que linha o olhar fixo no anúncio onde um cisne branco aparecia fosforescente em primeiro plano no espaço tumultuado de nuvens. Logo em seguida, com ondulações de pétalas mansas, abria-se em torno do cisne um pequeno lago que chegava até quase a meia-lua branca da qual saía o letreiro. Cortado pelo perfil de um edifício. Só as cinco primeiras letras do anúncio eram visíveis, as outras desapareciam detrás do cimento armado.
Belon — disse ele antes que as letras se apagassem Voltou-se devagar para o recém-chegado. — Belon, Belon... O que será que vem depois desse Belon? Vai, Rold, me ajude.
Belonave — disse o outro voltando-se para o luminoso. Encarou o amigo. E inclinou-se para o banco de pedra — Mas este banco está molhado, você vai pegar um resfriado pelo traseiro. Que ideia. Miguel, por que um encontro aqui? Este parque deve ser bom no verão.
Não é Belonave, é outra coisa, Belon...
Belominal. Contra dores, enxaquecas. Você está aqui há muito tempo? Detesto umidade, as juntas começam a endurecer. Que noite!
Não vou saber nunca Pode ser o nome de um colchão de molas. Ou de uma geladeira. Ou de um uísque, tanta coisa já passou pela minha cabeça. Assim como um sino, hem, Rolf? Belon, Belon...
Rolf tirou a folha seca que se colara ao sobretudo do amigo.
Se formos nesta direção, no fim da alameda a gente pode saber.
Não é preciso, Rolf. Você sabe.
Rolf tomou o amigo pelo braço. Estava bem-humorado.
O que é que eu sei?
Mancando um pouco, Miguel deixou-se conduzir. Ainda olhou o cisne lá no alto do seu lago fosforescente.
Você sabe.
Mas sei o que, meu Deus!
O que aconteceu ontem à noite. Você sabe. Devo ter tido um acesso. Então, não vai me dizer?
Rolf levantou a gola do casaco. Esfregou as mãos com energia — Umidade desgraçada. A gente podia ir comer um peixe com um bom vinho tinto, besteira isso de vinho branco com peixe. Quero um tinto ligeiramente aquecido, uau!
Não vai me dizer, Rolf?
Dizer o quê rapaz?
O que aconteceu ontem.
Ora, o que aconteceu! Mas então você não sabe?
Não, não sei. Não me lembro de nada, nada.
Mas como não se lembra?
Não me lembro, simplesmente não lembro
repetiu Miguel torcendo as mãos muito brancas. Fechou-as contra o peito.
Sei que você foi me visitar, isso eu sei. Mas depois não me lembro de mais nada, minha memória breca de repente justo nesse pedaço, fica tudo escuro. Como aquele luminoso, olha lá, agora apagou completamente... Sei que aconteceu alguma coisa mas não lembro, não lembro. Você vai me dizer, não vai, Rolf? Responde, não vai me dizer? Hem?!
Rolf desviou o olhar da cara lívida, em suspenso na sua freme. Um vinco profundo formou-se entre suas sobrancelhas. Ainda assim, conseguiu sorrir. Segurou com firmeza o amigo pelo braço, obrigando-o a andar.
Mas não aconteceu nada de especial, rapaz.. Não lenho o que contar.
Não? Não tive um acesso, não fiz coisas?... Não banquei o...
Não. Lógico que não. Se quiser mesmo saber, presta atenção, cheguei em sua casa por volta das nove. Comentei a beleza da noite, tanta estrela... Você me pareceu enfarruscado, se queixou de dor de cabeça, lembra?
Disso eu me lembro. E daí?
Daí você foi buscar uma aspirina, parece que a dor passou de repente. Então veio a hora da animação, você ficou todo excitado com o livro de um húngaro que estava lendo, não sei que livro é esse nem vem ao caso, o fato é que você desatou a falar. Falou, falou...
Falei o quê?
Falou sobre tudo. Sobre esse tal livro, sobre outros livros.
Enveredou pela política, fez uma análise fulgurante da situação do país...
Fulgurante?
Fulgurante. Comentou depois sobre uma fita de ficção científica, falou sobre a morte de Otávio. Milhares de coisas.
E então...
Então, acabou. Fiquei cheio, me deu vontade de tomar um café e fui até a cozinha, lembra?
Não, desse pedaço não lembro mais. Vejo você chegando e dizendo uma coisa qualquer ligada à garrafa térmica, que o café se degradava na garrafa, não sei se usou essa palavras, degradar. Mas foi a palavra que me veio agora. E eu me queixando de uma dor bem aqui...
Na nuca.
Isso, na nuca — confirmou Miguel, apressando o passo para ficar ao lado do outro que tinha pernas compridas, andava mais rápido.
Afastou com um gesto exasperado o ramo de salgueiro que pendia no meio da alameda. — O resto esqueci, não sei de mais nada. Não sei.
Pois quando voltei com o café você se queixou dessa dor, se estendeu no sofá e ficou dormindo feito uma criancinha. Fechei a luz e saí. Acabou.
Por favor, Rolf, não fique com pena de mim que é pior ainda, pode dizer!
Mas dizer o quê, se não aconteceu mais nada. Quer que eu invente, é isso? Posso inventar, se quiser.
Seguiram andando. Rolf alguns passos adiante de Miguel que mancava um pouco.
Sei que tinha uma pessoa por perto e essa pessoa só pode ser você — disse Miguel num tom indiferente. Baixou a aba do chapéu de feltro. Levantou a gola do sobretudo e enfiou as mãos nos bolsos. — Você sabe o que eu fiz. Mas não vai me dizer nunca.
Rolf chutou com irritação um pedregulho e abriu os braços. Cerrou os maxilares quando levantou a face para o céu e de repente pareceu se distrair com algumas estrelas que vislumbrou num rombo da nuvem.
Milagre! Elas conseguiram mas não vai durar, olha aquela nuvem preta que já vem correndo e cobrindo tudo. Só vai chover mesmo lá pela madrugada, gosto de dormir ouvindo a chuva.
Miguel olhava em frente. O outro teve que se inclinar para ouvir o que ele dizia agora: — Hoje cedo encontrei o relógio despedaçado, aquele relógio em formulo de oito. Completamente despedaçado. E um rasgão no lençol. O relógio e o lençol.
O lençol?
Também não encontrei mais o Rex. A tigela de água virada, a porta da cozinha aberta... Eu tinha paixão por aquele cachorro. Sai procurando, perguntei na vizinhança, andei dando voltas pelo quarteirão. Nada. Você sabe, mas não vai me dizer. Estou vendo nos seus olhos a minha loucura, mas você não vai me dizer nada.
Caminharam algum tempo em silêncio. Pararam diante do lago de água verde-negra, aninhado entre as árvores. Os ramos mais longos do salgueiro chegavam a tocar na superfície estagnada, com coágulos finos como lâminas de vidro fosco. Rolf acendeu um cigarro, fez um comentário sobre a água que devia estar podre e tomou o amigo pelo braço. Sacudiu-o afetuosamente. Riu.
Com esses elementos você pode reconstituir tudo, não pode? O relógio, o lençol. O cachorro. Você gostava de livro policial, não gostava? Então é simples, estou preocupado é com o cachorro.
Não brinca, Rolf. É sério. Eu preciso saber.
Mas não estou brincando — disse e empurrou enérgico o amigo para a frente. — Vamos, rapaz, tudo bobagem, chega de se atormentar. Não pensa mais nisso, não aconteceu nada. Acho que você está precisando é de mulher, essa nossa vida, uma solidão miserável. Se tivesse por aí umas putinhas simpáticas, hum? Por onde andam nesta cidade as putinhas simpáticas, antigamente tinha tanta gueixa, vem me esquentar, vem me agradar! Elas vinham. Agora só encontro umas meninas chatas, tudo intelectual. Mania de feminismo, competição. Andei aí com uma nortista que me deixou tonto, falava feito uma patativa. Era socióloga, já pensou?
Um jovem de tênis e abrigo de inverno passou correndo e bufando entre os dois homens, que se afastaram para lhe dar passagem. Quando o jovem desapareceu na curva da alameda. Miguel Voltou-se para o amigo.
Curioso isso. Como você sabe o que aconteceu, sempre que olho para você vejo que aconteceu alguma coisa.
Ah, mas minha cara é muito expressiva! Miguel começou a torcer as mãos feito trapos. A silhueta atarracada, parecia maior devido ao sobretudo que vinha de um tempo em que era mais gordo. Levantou a face de um branco úmido.
Por favor, Rolf, por favor! Preciso saber até que ponto eu cheguei, preciso.
Mas o que você quer que eu faça? Só se eu tive o acesso junto, nós dois completamente loucos, quebrando coisas, espancando o cachorro. E agora esqueci tudo, os dois sem memória, esses ataques podem dar de parceria. Ou não, sei lá.
Miguel enfiou as mãos nos bolsos e prosseguiu no seu andar meio incerto. Sorriu para o amigo.
Nós dois juntos. Rolf? Um acesso na mesma hora? Sacudiu-se de repente num riso reprimido. Enterrou o chapéu de feltro até as orelhas e acendeu o cigarro, divertia o a ideia do acesso em conjunto, “Nós dois. Rolf? Ao mesmo tempo?” Rolf estava sério, andando no seu passo largo, cadenciado. Olhava o chão.
Vamos sair deste parque. Sugiro comer alguma coisa.
Isso mesmo. Rolf, também estou com fome. Peixe com vinho tinto meio aquecido, acho genial. Conheci outro dia um restaurante fabuloso, é meio longe mas Vale a pena. Vinho tinto italiano, o vinho eu ofereço.
Machucou o pé, Miguel?
Por quê?
Você está mancando.
Estou? — Ele se surpreendeu. Olhou espantado para os próprios pés. — Sabe que não sinto nada. Você disse que estou mancando?
Um pouco.
Não sinto nada.
Rolf tirou o lenço do bolso da japona e limpou o nariz. Olhou para o lenço enquanto o dobrava. Olhou para o amigo.
Esse restaurante. É muito longe? Já está meio tarde, será que ainda servem a gente?
Claro que servem, fica aberto até de madrugada. É a dona mesmo quem cozinha, uma espanhola chamada Esmeralda. Não sei o nome da rua mas sei onde fica, já fui lá um monte de vezes.
Rolf atirou a ponta do cigarro no canteiro. A fisionomia se desanuviou. Apertou os olhos de novo zombeteiros — Tive uma namorada chamada Esmeralda. Você não conheceu a Esmeralda?
Não. Essa não.
Ela era engraçada, só pensava em casar, acordava com esse pensamento, dormia com esse pensamento, casar. Então eu avisei, só me caso quando chegar aos quarenta, faltam dois anos. Nessa noite fizemos um amor tão perfeito, dormimos contentes. Me acordou de madrugada, descobriu não sei como minha cédula de identidade e montou em mim, seu mentiroso, você tem 45 anos, vamos casar Imediatamente!
Imediatamente, Rolf?
Miguel tomara a dianteira, o passo curto, o cigarro apagado no canto da boca. Quando saíram da avenida e entraram numa rua mais tranquila, esperou pelo amigo até se emparelhar com ele. Sacudiu na mão uma caixa de fósforos.
A marca que meu pai usava tinha um olho dentro de um triângulo, eu ficava fascinado quando ele guardava o olho suplementar dentro do bolso. Será que ainda existe essa marca?
Rolf mordiscou o lábio superior até prender nos dentes um fio do bigode. Contornou com o braço o ombro do amigo.
Presta atenção, Miguel, o que passou, passou. Não se preocupe mais, somos todos normalmente loucos. Fingimos até uma loucura maior mas não tem importância, faz parte do sistema, é preciso. De vez em quando, dá aquela piorada e piora mesmo, que diabo. E daí? O tal cotidiano acaba prevalecendo sobre todas as coisas que nem na Bíblia. Isso de dizer que só um fio de cabelo nos separa da loucura total é tolice.
Claro. Rolf, claro. Você tem razão Com as pontas dos dedos. Rolf começou a consertar o bigode.
Tirou de Miguel a caixa de fósforos que ele ainda sacudia.
Você está com 51 anos.
Cinquenta e dois.
Certo. Eu tenho três mais que você. E sua família, rapaz? Continua por aqui?
Não, mudou-se para Casa Branca. Por quê?
Lembrei agora da sua mãe. Ela fazia uns pastéis deliciosos.
Fazia melhor o amor.
Rolf desviou do amigo o olhar oblíquo.
Ai! meu Hamlet, que cansaço. E esse seu restaurante que não chega nunca. Hoje você está muito chato, cansei.
Acho que é fome, Rolf, perdão, perdão! — E Miguel tomou o amigo pelo braço, ficou de repente descontraído, alegre, — Faz tempo que não como direito, deve ser isso. Mas juro que depois ainda vou cantar para você um tango inteirinho, Cuesta Abajo, tenho uma voz linda, com vinho então fica um esplendor.
Nem diga.
Enveredaram por uma rua escura, quase deserta. No fim da rua, a ponte, um curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa subia mais densa na altura da água. Rolf parou de assobiar — Ainda está longe?
O quê?
O restaurante, rapaz.
Ah, fica logo depois da ponte — disse Miguel. E inclinou-se pura amarrar o cordão do sapato. — Conheço tanto esse rio, eu morava aqui por perto quando criança. Todo sábado vinha nadar com a molecada. A água era suja mas imagine se me importava. Também remava, sempre tive mania de esportes. Não cresci muito mas olha só a largura do meu ombro.
Eu sei, já vi.
Um cachorro perdido passou a uma certa distância. Estava enlameado e tinha uma pequena corda dependurada no pescoço. Miguel ficou olhando o cachorro.
Podia ser o Rex — disse, e voltou-se para o amigo. Animou-se.
Cheguei a ser campeão de bola ao cesto.
Acho que foi por isso que você ficou desse jeito, vida muito saudável não dá certo. Sempre tive horror de clubes, uma chateação.
Miguel aproximou-se e puxou o outro pela manga. Riu.
Um bicho-de-concha. Você devia ter aprendido ao menos a nadar.
Namorei uma nadadora. Cheirava a cloro, por mais que se lavasse, tinha sempre um pouco daquele cheiro, principalmente no cabelo. É curioso, não me lembro da sua cara, só do cheiro.
Tinham atingido a ponte. Miguel parou. Olhou em redor.
A gente se esquece de certas coisas e de outras... Ainda tem um cigarro?
Rolf tirou do maço o último cigarro, que veio amassado.
Fuma este.
E você?
Agora não quero.
Miguel abrigou na gruta da mão a chama do fósforo. A face avermelhou, esbraseada.
Mas veja. Rolf, esqueci por completo o que aconteceu ontem e isso não teria a menor importância se não fosse você. Você e esta ponte. A única ponte que me liga a véspera — disse e abaixou-se como se fosse amarrar o sapato.
Rolf abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bolsos, um pouco encolhido. Miguel então veio por detrás e ainda agachado, agarrou o outro pelas pernas, ergueu-o rapidamente por cima do parapeito de ferro e atirou-o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito afogado, se engasgando.
Debruçado no gradil, Miguel ficou olhando o rio. Vislumbrou seu chapéu que tinha caído e agora flutuava meio de banda na água agitada. Flutuou um instante com movimentos de um pequeno barco negro.
Desapareceu, Um resto de espuma foi se diluindo na superfície acalmada. Miguel apanhou no chão o cigarro ainda aceso e soprou, avivando a brasa. Amarfanhou devagar o maço vazio. Durante algum tempo ficou fumando e contemplando a água. Fez do maço uma bola e atirou-a longe. Não se voltou quando ouviu passos atrás de si. Sentiu a mão tocar-lhe o ombro.
É proibido atirar coisas no rio.
Ele mostrou para o policial a cara pasmada.
Mas era um maço de cigarro, um maço vazio.
Eu sei, mas não pode. É a lei. Miguel sorriu, concordando.
O senhor tem razão — disse e levantou a mão para a aba do chapéu. Interrompeu o gesto. — Toda razão. Não vou repetir isso, prometo.
Mancando um pouco, atravessou a ponte e sumiu no nevoeiro.
Lygia Fagundes Telles, in A estrutura da bolha de sabão