domingo, 31 de maio de 2020
Linguagem
A
Torre de Babel (1563), de Pieter Bruegel, o Velho
Antes
da Torre de Babel não havia intérpretes porque todos entendiam o
que todos falavam. Os intérpretes se tornaram necessários depois da
confusão de línguas. “Interpretar” é dizer em linguagem que se
entende aquilo que uma pessoa disse numa linguagem que não se
entende. Os presidentes, embaixadores e reitores se valem de
intérpretes. Acho que os intérpretes, quando os presidentes e
reitores dizem besteiras, deveriam mentir, para não passar vergonha.
Já vi intérpretes envergonhados. A interpretação começa com esta
pergunta: “O que é que ele – ou ela – quis dizer?”. Versos
da Cecília: “E no fundo dessa fria luz marinha nadam meus olhos,
baços peixes à procura de mim mesma”. O que é que ela queria
dizer? Para se fazer essa pergunta, é preciso se admitir que ela, a
poeta, quis dizer algo mas não conseguiu. A poeta sofria de
deficiência linguística. Mas o fato é que um poeta nunca “quer
dizer algo”. O que ele diz é o que ele quer dizer. A resposta a um
poema não é uma interpretação, é outro poema.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
Monumentar
Venho
de nobres que empobreceram.
Restou-me
por fortuna a soberbia.
Com
esta doença de grandezas:
Hei
de monumentar os insetos!
(Cristo
monumentou a Humildade quando beijou os
pés
dos seus discípulos.
São
Francisco monumentou as aves.
Vieira,
os peixes.
Shakespeare,
o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles
Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com
esta mania de grandeza:
Hei
de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho.
Manoel
de Barros
O come e não engorda
Ninguém
é mais admirado ou invejado do que o come e não engorda.
Você o conhece. É o que come o dobro do que nós comemos e tem a
metade da circunferência e ainda se queixa: — Não adianta. Não
consigo engordar.
O
come e não engorda é meu ídolo. Só não lhe peço autógrafo por
inibição. Meu sonho é emagrecer e depois nunca mais engordar, por
mais que tente. Quando eu diminuir, quero ser um come e não engorda.
Não
se deve confundir o come e não engorda com o enfastiado. Este
pertence a outra espécie. Não é humano. Pode até ser melhor do
que nós, um aperfeiçoamento, mas não é humano. Afinal, o que une
a humanidade é o seu apetite comum. Não é por nada que partilhar
da comida com o próximo tem sido um símbolo de concórdia desde as
primeiras cavernas. Até hoje as conferências de paz se fazem em
volta de uma mesa onde a comida, se não está presente, está
implícita. Desconfie do enfastiado. Ele será um agente de outra
galáxia ou um poço de perversões, ou as duas coisas. De qualquer
maneira, mantenha-o longe das crianças. Quando encontrar alguém na
frente de um prato cheio só emparelhando as ervilhas com a ponta da
faca, notifique os órgãos de segurança. É um enfastiado e pode
ser perigoso. Sempre achei que as pessoas que comem como um
passarinho deviam ser caçadas a bodoque. O seu fastio, inclusive, é
um escárnio aos que querem comer e não podem.
Já
o come e não engorda compartilha do nosso apetite, só não
compartilha das consequências. Ele repete a massa e não tem
remorso. Pede mais chantilly e sua voz não treme. Molha o pão no
café com leite! E ainda se queixa:
— Há
15 anos tenho o mesmo peso.
O
come e não engorda só parou de mamar no peito porque proibiram sua
mãe de ficar junto no quartel. Quando o come e não engorda nasceu,
uma estrela misteriosa apareceu no Guide Michelin de restaurantes
para aquele ano. O come e não engorda caminha sobre a sauce
bernaise e não afunda. Multiplica os filés de peixe à
meunière e os pães de queijo. Por onde o come e não engorda
passa, as ovelhas se atiram para trás e pedem “me assa!”. O come
e não engorda tem o segredo da Vida e da Morte e, suspeita-se, o
telefone da Bruna Lombardi. E ainda se queixa:
— Tenho
que tomar quatro milk-shakes entre as refeições. Dieta.
Dieta!
E você ali, de olho arregalado.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
Hermógenes
Digo
tudo, disse! matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo era que eu não
pensava. Descarecia. Era assim! eu ia indo, cumprindo ordens; tinha
de chegar num lugar, aperrar as armas; acontecia o seguinte, o que
viesse vinha; tudo não é sina? Nanja não queria me alembrar, de
nenhum, nenhuma. Com meia-légua andada, por um trilho. E preciso não
roçar forte nas ramagens, não partir galhos. Caminhar de noite, no
breu, se jura sabença! o que preza o chão ― o pé que adivinha. A
gente imagina uns buracões disformes. A gente espera vozes. Eh.
Pouquinhas estrelas dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao
senhor! a noite é da morte? Nada pega significado, em certas horas.
Saiba o que eu mais pensei. No seguinte! como é que curiango canta.
Que o curiango canta é! Curí-angú!
A
obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes esbarrou.
Conchegamos. E com as mãos apalpávamos uns os outros. Dali em
diante, era junto a junto. O Hermógenes, puxando, enxergava por nós.
Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa,
olhar assim, que nem o de suindara. Cada um com punhal a ponto,
atravessamos o córrego, pulando pelas alpondras; mais para baixo,
sabíamos de uma estiva, mas lá se temia que tivessem botado
sentinelas. Ali era o lugar pior! um estremecimento me desceu, senti
o espaço da minha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. No
outro lado, o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás
duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, passante
por suas pedras. Naquela espera, carecíamos de persistir horas,
dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles acordam
com o cheiro da cara da gente, não concedem sossego. Acender cigarro
e pitar, não se podia. A noite é uma grande demora. Ah o que os
mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, direi, era que o Hermógenes
tinha escolhido ali: que ninguém pegasse no sono, que a mosquitada
não deixava? Mas não seria de mim que pudesse ferrar no sono assim
perto daquele homem, príncipe das tantas maldades. O que eu queria
era que tudo sucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo de
terminada. ― Tá aqui, toma... ― ouvi. Era o Hermógenes, um taco
de fumo me dando, que em forte cachaça ele tinha acabado de empapar.
Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de
comer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do
serviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os mosquitos
deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me divertindo de
beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í. Daí, os
pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de
dar narração: retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas
tolas, coisas em vago das viagens que eu tinha feito. A noite durava.
Haja
de contar o que foi ― o todo de se escorregar para cima a encosta ―
até ao ponto, donde a espera de tocaia devia de ser? Aquilo o igual,
sempre sendo. Um homem se arraiga em terra, no capim, no chão, e
vai, vai ― sendo serepente ― de gato-em-caça. Carece de repartir
frouxo o peso do corpo, semelhante fosse nadando; cotovêlo e joelho
é que transpõem. Tudo um ái de vagar, que chega aporreia, tem que
ser. Não vale arranco de pressa, o senhor tem de ficar o comprido
que pode, por mais de. As juntas da gente estalam, o senhor mesmo
escuta. Se coça a canela com o calcanhar; ― estando com polâina
não adianta. De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha,
escuta. Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro
pousado em moita, que se assusta forte a voo, dá aviso ao inimigo.
Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no
mesmo lugar ― dão muito aviso. Aí quando é tempo de vagalume,
esses são mil demais, sobre toda a parte! a gente mal chega, eles
vão se esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de
luz de fogo verde que tudo alastra ― é o pior aviso. O que nós
estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só
mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?!
sem querer, a gente rosna. As guardas, qualquer mato ameaçava que ia
bulir! com o inimigo vindo dele. Arvores branquiçadas,
traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e gravetos, é
preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme
com gosto ― que é o que mais defende dele não se cravar. O
inimigo pode estar engatinhando também, versa por detrás, nunca se
tem certeza. O cheiro da terra agoura mal. Capim de beira em fio, que
corta a cara. E uns gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu
figurava que era das estrelas remexidas, titique delas, caindo por
minhas costas. Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da
noite, lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento, se
pode premer mão numa rodilha grossa de cascavél, numa certa morte
dessas. Pior é a surucucú, que passeia longe, noturnazã, monstro!
essa é o que há com mais dôida ligeireza neste mundo. Rezei a
jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava, da macega,
das folhas, ― é o que digo ao senhor; me desgostava. Raio de um
repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu encolhi. Era um
tatú, que ia entrando no buraco, fungou e escutei o esfrego de suas
muxibas. Tatú-peba, e eu no rés dele. Que modo que? Rastejando de
minha banda da direita, o Hermógenes rompia, eu sentia o bafo duma
boca, e aquele avultar deitado de bicho duro, braço por braço. O
Garanço e o Montesclarense espigavam vez mais adiante, vez mais
atrás. Quando de sem-menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um
murmo ― me cochichou de mão em concha. ― E aqui mesmo... ― ele
redisse. Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e os macios
pássaros da noite? ― pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheiro
dum araçá-branco formava bolas. Quietei.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
sábado, 30 de maio de 2020
Filantropia
Os
famas são capazes de gestos de grande generosidade, como por exemplo
quando esse fama encontra uma pobre esperança caída ao pé de um
coqueiro, e pondo-a em seu automóvel a leva para sua casa e se ocupa
de alimentá-la e oferecer-lhe distração até que a esperança
ganhe forças e se atreva a subir outra vez no coqueiro. O fama se
acha muito bom depois deste gesto, e na realidade é muito bom, só
que não lhe ocorre pensar que daí a poucos dias a esperança vai
cair outra vez do coqueiro. Então, enquanto a esperança está
novamente caída ao pé do coqueiro, esse fama no seu clube se acha
muito bom e pensa na maneira como ajudou a pobre esperança quando a
encontrou tombada.
Os
cronópios não são generosos por princípio. Passam ao largo das
coisas mais comoventes, como seja uma pobre esperança que não sabe
amarrar os cordões dos sapatos e geme, sentada na beira da calçada.
Esses cronópios nem olham para a esperança, ocupadíssimos que
estão em seguir com os olhos uma baba do diabo. Com seres como esses
não se pode praticar a caridade de modo coerente; por isso nas
sociedades filantrópicas as autoridades são todas famas e a
bibliotecária é uma esperança. Dos seus cargos, os famas ajudam
muito os cronópios, que nem ligam.
Julio
Cortázar,
in Histórias
de Cronópios e de Famas
A porca
Era
uma vez um meninozinho, que tinha muito medo. Era só soprar um vento
forte, desses de levantar poeira no fundo do quintal e bater com os
postigos da janela; era só haver uma nuvem escura, uma única, que
tampasse o sol; era só esbarrar com a pipa d’água e ouvir o rico
e pesado sacolejar da água dentro, para que o menino se encolhesse
bem no centro de seu ventre, orelhas retesas, olhos muito abertos ou
obstinadamente fechados. Depois, o menino levantava, limpava o pó do
fundilho das calças e ia para o quintal.
Conhecia
as galinhas, os porcos, mas nenhum lhe pertencia. Achava mesmo
engraçado quando via os irmãos abraçarem um leitãozinho, a irmã
mais nova tentando, por força, enfiar uma de suas saias no bicho.
Bicho é bicho, sabia ele. Bicho tem vida sua, diferente da de gente.
Os irmãos não sabiam. Fingiam que eram bonecas, criancinhas
pequenas e, nos dias de matança, todos já eram petiscos, brinquedo
esquecido.
O
menino preferia olhá-los de longe. Tremia, quando a velha porca
gorda fuçava por entre as tábuas do chiqueiro; corria, se ela
estava solta, com sua gorda barriga pendente, seu gordo cachaço
lanhado.
A
mãe também era gorda. Rachando lenha, carregando água, enorme e
pesada bolota de carne. Tinha um rosto comprido, sulcado de rugas,
boca sempre aberta, gritando com alguém. A porca não gritava, só
roncava, mesmo quando o pai passava e lhe dava um pontapé. Um dia
botou sangue — disseram que ia abortar. Ele teve medo de ver.
Escondeu-se em casa, na cama, sob a colcha de fustão.
E
de repente, foi o grande choque. Cama sacudiu. Lastro despencou, e
ele caiu, sufocado pelos travesseiros. Era o pai. A mãe lhe batia
com um resto de vassoura... pela loucura... quatorze leitões...
quatorze... e todos perdidos... o pai grunhia e protegia a cabeça.
Ao redor, tudo era escuro. Sabia agora o que era um nené de bicho.
Havia sangue. Sempre havia sangue.
Era
um dia escuro. E em dias escuros, o menino tinha medo. O escuro era
espesso, profundo, pegajoso, e sombras mais escuras eram manchas
coaguladas.
Havia
um fio de luz, cinza-claro, sobre a pipa d’água. O menino se
atreveu a ir bem junto dela. Puxou um banquinho e foi olhar. Como lhe
doía a barriga, só de espichar, só de ver... a boca preta da pipa,
a água grossa, molhada... E o menino caiu dentro da pipa... Não de
verdade, de mentira... E encontrou uma porção de leitõezinhos lá
no fundo, mas estavam pretos e encarquilhados.
E
ao pular de volta sobre seu banquinho, ao sentir toda a pipa
sacudindo, o menino teve a ideia. Balançou forte, cada vez mais
forte, a pipa veio pelo chão, despedaçando uma aranha, molhando a
lenha, assustando a galinha choca que dormia debaixo do fogão. O pé
do menino ficou preso, uma unha esmagada. Mas ele não chorou, fugiu.
E fugiu para a rua... Porém o terreiro estava iluminado com uma luz
muito pálida, a areia lisa, fina, as bananeiras imóveis e densas...
Sentou-se no chão, sobre uma pedra pontuda, um pé em cima do outro,
as mãos cruzadas no joelho.
De
noite, eram os corpos dos irmãos que se apertavam contra o dele.
Mesmo de olhos fechados, sabia quem estava junto de si. A irmã tinha
o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava que
ele se distraísse para puxar-lhe aquilo. Depois ria, dizendo: “Por
mais que se puxe, é uma coisinha de nada”, e mostrava o seu,
orgulhoso.
Às
vezes, o menino ia dormir no chão. Esperava que os grandes passassem
para trás da cortina, ameaçava os irmãos e ia deitar na cozinha ou
contra o cabide. Era pequeno, mas também sabia fazer coisas
malvadas. Escutava o pai e a mãe. Suas vozes eram grossas, por vezes
estridentes, e palavras feias estremeciam o ar, penduravam-se nas
teias de aranha, nos arremates das mata-juntas. O lastro estalava, e
havia risadas, de gengivas descobertas, de profundos ocos de
garganta.
Ir
embora, era o que o menino desejava. Ir para um lugar onde a água
fosse grande e livre, um mar infinito, como ouvira contar certa vez.
Não haveria aves, nem porcos nem cachorros, apenas peixes, dourados
e lisos... O menino habituou-se a correr. Corria ao ouvir as
xingações da mãe, corria ao ouvir os tamancos do pai, corria ao
ouvir as risadas dos irmãos. Corria ainda quando ouviu a voz da
porca velha.
Gritava.
Não grunhidos, não roncos, mas gritos. O menino sentiu sua
barriguinha encolher, aquilo se levantar em franco protesto. Na
esquina da casa, lá estava o grupo: o pai, o empregado, a mãe, um
vizinho, e qualquer coisa que rebolava feito doida na areia. As
crianças se conservavam longe, as mãos nos ouvidos, as caras
estúpidas. A mãe se afobava, a saia descosida arrastando no chão,
dando ordens, xingando, gritando mais alto que a porca. O pai se
remexia, o chapéu sobre a nuca, o nariz pingando de suor.
E
foi a mãe que arrancou a faca das mãos do vizinho num gesto brusco.
E como gritava a porca... o menino só lhe via o rabinho e as patas
trêmulas. E num instante, tudo ficou imóvel. Os homens forcejando,
a mulher adquirindo impulso, gorda, redonda, enorme, sua saia de
grandes flores desbotadas roçando o ventre da porca, os irmãos
sumindo ao longe, a barriguinha do menino se retesando.
E
foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha, impetuosa,
que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que
explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o
braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou
no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o
vizinho, sufocou o empregado... foi aspirado por bocas, nariz,
escorreu por pescoços e ombros. Agora era o pai quem batia na mãe,
descompunha-a... “a camisa... a roupa do empregado, do vizinho...
velha porcalhona...”
O
menino se agachou atrás da bananeira, com muita dor em sua
barriguinha. E nunca mais beijou a mãe.
Tânia
Jamardo Faillace, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
Aventura
Minhas
intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em
palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade.
De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a
transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de
chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem
ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é
que não só o principal é não mentir o sentimento como porque
tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta —
mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim,
tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem
chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente
torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado,
respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não
substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito
que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo
d’água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água
fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o
risco. Aceitei risco bem maior, como todo mundo que vive. E se aceito
o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou
arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco.
Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está
aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o
que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e,
de cambulhada, a escrever.
Clarice
Lispector,
in Crônicas
para jovens: de escrita e vida
São
A
vista sã deve ver tudo que pode ser visto e não dizer: “Quero o
verde”. Isso equivaleria a ter a vista doente. Da mesma forma a
audição e o olfato sãos devem estar preparados para tudo que pode
ser ouvido e cheirado e o estômago são deve sê-lo para todos os
alimentos, como o moinho para tudo que foi feito para ser moído.
Então a inteligência sã deve estar preparada para todos os
acontecimentos. Mas aquela que diz: “Que meus filhos se salvem!”
“Que todos me elogiem, faça eu o que fizer!” é uma vista que
reclama o verde ou dentes que reclamam o tenro.
Marco
Aurélio, in Meditações
sexta-feira, 29 de maio de 2020
É preciso fazer alguma coisa
Escrevo
esta canção porque é preciso.
Se não a escrevo, falho com um
pacto
que tenho abertamente com a vida.
E é preciso fazer alguma coisa
para ajudar o homem.
Mas agora.
Cada vez mais sozinho e mais feroz,
a ternura extraviada de si mesma,
o homem está perdido em seu caminho.
É preciso fazer alguma coisa
para ajudá-lo. Ainda é tempo.
É tempo.
Apesar do próprio homem, ainda é tempo.
Apesar dessa crosta que cultivas
com amianto e medo, ainda é tempo.
Apesar da reserva delicada
das toneladas cegas mas perfeitas
de TNT pousada sobre o centro
de cada coração — ainda é tempo.
No Brasil, lá na Angola, na Alemanha,
na ladeira mais triste da Bolívia,
nesta poeira que embaça a tua sombra,
na janela fechada, no mar alto,
no Próximo Oriente e no Distante,
na nova madrugada lusitana
e na avenida mais iluminada
de New Yoirk. No Cuzco desolado
e nas centrais atômicas atônitas,
em teu quarto e nas naves espaciais
— é preciso ajudá-lo.
Nas esquinas
onde se perde o amor publicamente,
nas cantigas guardadas no porão,
nas palavras escritas com acrílico,
quando fazes o amor para ti mesmo.
Na floresta amazônica, nas margens
do Sena e nos dois lados deste muro
que atravessa a esperança da cidade
onde encontrei o amor
— o homem está
ficando seco como um sapo seco
e a sua casa já se transformou
em apenas local de seu refúgio.
Lá na Alameda de Bernardo O′Higgins
e no sangue chileno que escorria
dos corpos dos obreiros fuzilados,
levados para a fossa em caminhões
pela ferocidade que aos domingos
sabe se ajoelhar e cantar salmos.
Lá na terra marcada como um boi
pela brasa voraz do latifúndio.
Dentro do riso torto que disfarça
a amargura da tua indiferença,
na mágica eletrônica dourada,
no milagre que acende os altos-fornos,
no desamor das mãos, das tuas mãos,
no engano diário, pão de cada noite,
o homem agora está, o homem autômato,
servo soturno do seu próprio mundo,
como um menino cego, só e ferido,
dentro da multidão.
Ainda é tempo.
Sei por que canto: se raspas o fundo
do poço antigo da tua esperança,
acharás restos de água que apodrece.
É preciso fazer alguma coisa,
livrá-lo dessa situação voraz
da engrenagem organizada e fria
que nos devora a todos a ternura,
a alegria de dar e receber,
o gosto de ser gente e de viver.
É preciso ajudar.
Porém primeiro,
para poder fazer o necessário,
é preciso ajudar-me, agora mesmo,
a ser capaz de amor, de ser um homem.
Eu que também me sei ferido e só,
mas aconchego este animal sonoro
que reina poderoso em meu peito.
que tenho abertamente com a vida.
E é preciso fazer alguma coisa
para ajudar o homem.
Mas agora.
Cada vez mais sozinho e mais feroz,
a ternura extraviada de si mesma,
o homem está perdido em seu caminho.
É preciso fazer alguma coisa
para ajudá-lo. Ainda é tempo.
É tempo.
Apesar do próprio homem, ainda é tempo.
Apesar dessa crosta que cultivas
com amianto e medo, ainda é tempo.
Apesar da reserva delicada
das toneladas cegas mas perfeitas
de TNT pousada sobre o centro
de cada coração — ainda é tempo.
No Brasil, lá na Angola, na Alemanha,
na ladeira mais triste da Bolívia,
nesta poeira que embaça a tua sombra,
na janela fechada, no mar alto,
no Próximo Oriente e no Distante,
na nova madrugada lusitana
e na avenida mais iluminada
de New Yoirk. No Cuzco desolado
e nas centrais atômicas atônitas,
em teu quarto e nas naves espaciais
— é preciso ajudá-lo.
Nas esquinas
onde se perde o amor publicamente,
nas cantigas guardadas no porão,
nas palavras escritas com acrílico,
quando fazes o amor para ti mesmo.
Na floresta amazônica, nas margens
do Sena e nos dois lados deste muro
que atravessa a esperança da cidade
onde encontrei o amor
— o homem está
ficando seco como um sapo seco
e a sua casa já se transformou
em apenas local de seu refúgio.
Lá na Alameda de Bernardo O′Higgins
e no sangue chileno que escorria
dos corpos dos obreiros fuzilados,
levados para a fossa em caminhões
pela ferocidade que aos domingos
sabe se ajoelhar e cantar salmos.
Lá na terra marcada como um boi
pela brasa voraz do latifúndio.
Dentro do riso torto que disfarça
a amargura da tua indiferença,
na mágica eletrônica dourada,
no milagre que acende os altos-fornos,
no desamor das mãos, das tuas mãos,
no engano diário, pão de cada noite,
o homem agora está, o homem autômato,
servo soturno do seu próprio mundo,
como um menino cego, só e ferido,
dentro da multidão.
Ainda é tempo.
Sei por que canto: se raspas o fundo
do poço antigo da tua esperança,
acharás restos de água que apodrece.
É preciso fazer alguma coisa,
livrá-lo dessa situação voraz
da engrenagem organizada e fria
que nos devora a todos a ternura,
a alegria de dar e receber,
o gosto de ser gente e de viver.
É preciso ajudar.
Porém primeiro,
para poder fazer o necessário,
é preciso ajudar-me, agora mesmo,
a ser capaz de amor, de ser um homem.
Eu que também me sei ferido e só,
mas aconchego este animal sonoro
que reina poderoso em meu peito.
Thiago
de Mello
Misto-Quente - 14
Mais
tarde, no hospital, eles esfregavam meus joelhos com pedaços de
algodão embebido em alguma coisa. Queimava. Meus cotovelos ardiam
também.
O
médico se curvava sobre mim, junto com uma en fermeira. Eu estava na
cama, e a luz do sol entrava através da janela. Parecia muito
agradável. O médico sorriu para mim. A enfermeira se endireitou e
também me sorriu. Era legal estar ali.
– Você
tem um nome? – perguntou o médico.
– Henry.
– Henry
do quê?
– Chinaski.
– Polonês,
não é?
– Alemão.
– Por
que ninguém quer ser polonês?
– Nasci
na Alemanha.
– Onde
você mora? – perguntou a enfermeira.
– Com
meus pais.
– Sério?
– perguntou o médico. – E onde fica isso?
– O
que aconteceu com meus joelhos e cotovelos?
– Um
carro o atropelou. Por sorte, as rodas não o pegaram. As testemunhas
dizem que o motorista parecia bêbado. Atropelou e fugiu. Mas eles
anotaram o número da placa. Dessa ele não escapa.
– O
senhor tem uma enfermeira muito bonita... – eu disse.
– Bem,
obrigada – ela disse.
– Você
quer marcar um encontro com ela? – perguntou o médico.
– Como
assim marcar um encontro?
– Você
quer sair com ela?
– Não
sei se conseguiria fazer com ela. Sou muito jovem.
– Fazer
o quê?
– Você
sabe.
– Bem
– sorriu a enfermeira –, venha me ver depois que seus joelhos
sararem e veremos o que podemos fazer.
– Me
perdoe – disse o médico –, mas tenho que ver um outro caso de
acidente.
Ele
saiu do quarto.
– Agora
– disse a enfermeira –, em que rua você mora? – Na Estrada
Virgínia.
– Preciso
do número, doçura.
Eu
disse a ela o número da casa. Ela perguntou se lá havia telefone.
Falei que não sabia o número.
– Tudo
bem – ela disse –, vamos dar um jeito de conseguir. E não se
preocupe. Você teve sorte. Levou apenas uma pancada na cabeça e se
arranhou um pouco.
Ela
era bacana, mas eu sabia que depois que meus joelhos sarassem ela não
ia querer me ver outra vez.
– Quero
ficar aqui – falei.
– O
quê? Está dizendo que não quer voltar para casa com seus pais?
– Não.
Deixa eu ficar aqui.
– Não
podemos fazer isso, doçura. Precisamos desses leitos para as pessoas
que estão realmente doentes ou machucadas.
Sorriu
e deixou o quarto.
Quando
meu pai chegou, seguiu direto para meu quarto e, sem uma palavra, me
arrastou para fora da cama. Carregou-me pelo corredor em direção ao
hall.
– Seu
pequeno desgraçado! Não lhe ensinei a olhar para os DOIS lados
antes de atravessar a rua?
Ele
me levou até a recepção. Passamos pela enfermeira.
– Adeus,
Henry.
– Adeus.
Entramos
num elevador com um velho numa cadeira de rodas. Tinha uma enfermeira
parada atrás dele. O elevador começou a descer.
– Acho
que vou morrer – disse o velho. – Não quero morrer. Tenho medo
de morrer...
– Você
já viveu o bastante, velho cretino! – resmungou meu pai.
O
velho olhou, espantado. O elevador parou. A porta continuou fechada.
Então percebi o ascensorista. Estava sentado num banquinho. Era um
anão vestido num resplandecente uniforme vermelho com um boné da
mesma cor.
O
anão olhou para meu pai.
– Cavalheiro
– ele disse –, o senhor é um sujeito repugnante!
– Tampinha
– replicou meu pai –, abra já essa merda de porta ou vou abrir é
o seu cu.
A
porta se abriu. Passamos pelo saguão. Meu pai me arrastou pelo
gramado do hospital. Eu ainda usava o camisolão do hospital. Ele
levava minhas roupas numa sacola. O vento soprou, erguendo meu
camisolão, e pude ver meus joelhos esfolados, sem ataduras, apenas
cobertos por iodo. Meu pai estava quase correndo pelo gramado.
– Quando
eles pegarem aquele filho-da-puta – ele disse –, vou processá-lo!
Vou tirar até o último centavo! Ele vai me sustentar pelo resto da
vida! Estou cansado daquele maldito caminhão de leite! Leiteria
Golden State! Golden State o meu rabo cabeludo! Vamos nos mudar para
os Mares do Sul. Vamos viver de cocos e abacaxis!
Meu
pai chegou no carro e me colocou no assento da frente. Então ele
entrou pelo lado do motorista. Deu a partida.
– Odeio
bêbados! Meu pai era um bêbado. Meus irmãos são bêbados. Bêbados
são fracos. Bêbados são covardes. E esses que
atropelam e fogem deveriam receber a prisão perpétua!
Enquanto
seguíamos para casa ele continuava a falar comigo.
– Você
sabe que nos Mares do Sul os nativos moram em cabanas de palha? Eles
se levantam pela manhã e a comida cai das árvores. Eles só pegam e
comem, cocos e abacaxis. E os nativos acham que os homens brancos são
deuses! Eles pescam, assam javalis, e as garotas dançam e vestem
saias de palha e acariciam os homens atrás das orelhas. Leiteria
Golden State o meu rabo cabeludo!
Mas
o sonho do meu pai não iria se realizar. Eles pegaram o homem que me
atropelou e o colocaram atrás das grades. Tinha mulher e três
filhos e estava desempregado. Era um bêbado que não tinha nem onde
cair morto. O homem ficou preso durante algum tempo, mas meu pai não
apresentou queixa. Como ele disse:
– Não
se pode tirar leite de uma maldita pedra!
Charles
Bukowski, in Misto-Quente
Rosa em Moçambique
Caros
amigos:
Interrogo-me
sobre o que poderei dizer sobre Guimarães Rosa, eu que venho de tão
longe e quando tanto estudo abalizado foi já produzido sobre o
grande escritor mineiro. Essa dúvida marcou a preparação desta
minha fala.
Vocês
conhecem o escritor brasileiro melhor do que eu e não teria nenhum
sentido eu, moçambicano, vir ao Brasil filosofar sobre um autor
brasileiro. Sobretudo, não sendo eu um estudioso de literatura nem
brasileira nem nenhuma outra.
Decidi,
então, que não iria falar de um escritor nem da sua escrita.
Falaria, sim, das razões que creio assistirem a essa poderosa
influência que João Guimarães Rosa teve em alguma da literatura
africana de língua portuguesa. Falarei também da minha relação
com a escrita, falarei da minha atitude perante a produção de
histórias (com h minúsculo) e a desconstrução da História (com H
maiúsculo).
Na
realidade, reconheço algumas razões pessoais que fizeram do meu
encontro com Rosa uma espécie de abalo sísmico na minha alma.
Algumas dessas razões eu as reconheço hoje. Enunciarei a seguir
essas razões, uma por uma:
• A
importância do escritor poder não ser escritor.
Rosa
não foi apenas escritor. Enquanto médico e diplomata, ele visitou,
e tardiamente, a literatura mas nela não fixou residência exclusiva
e permanente. Ao ler Rosa percebe-se que, para se chegar àquela
relação de intimidade com a escrita, é preciso ser-se escritor e
muito escritor. Mas por um tempo é preciso ser-se um não-escritor.
É
preciso estar livre para mergulhar no lado da não-escrita, é
preciso capturar a lógica da oralidade, é preciso escapar da
racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema de pensamento.
Esse é o desafio de desequilibrista — ter um pé em cada um dos
mundos: o da escrita e o da oralidade. Não se trata de visitar o
mundo da oralidade. Trata-se de deixar-se invadir e dissolver pelo
universo das falas, das lendas, dos provérbios.
• O
exemplo de uma obra que se esquivou da obra.
João
Guimarães Rosa não fez da literatura a sua carreira. Interessava-o
sim a intensidade, a experiência quase religiosa. A maior parte dos
seus nove livros foi publicada postumamente. Para Rosa não são os
livros que importam, mas o processo da escrita. No momento em que ele
se incorpora na instituição que simbolizava a solenidade da obra —
a Academia Brasileira de Letras — essa luz parece ser demasiada e o
faz sucumbir.
• A
sugestão de uma língua que se liberta dos seus regulamentos.
Eu
já bebia na poesia um gosto pela desobediência da regra, mas foi
com o autor da Terceira margem do rio que eu experimentei o
gosto pelo namoro entre língua e pensamento, o gosto do poder divino
da palavra.
Mas
decidi não falar de mim, nem de Rosa, nem de escritores. O meu
propósito aqui é sobretudo entender por que razão um autor
brasileiro influenciou tanto escritores africanos de língua
portuguesa (o caso paradigmático será o Luandino Vieira, mas há
outros como o angolano Boaventura Cardoso, os moçambicanos Ascêncio
de Freitas e Tomaz Vieira Mário). Haverá por certo uma necessidade
histórica para essa influência. Há razões que ultrapassam o
autor. Haveria uma predisposição orgânica em Moçambique e Angola
para receber essa influência, e essa predisposição está para além
da literatura. Tentarei neste encontro listar alguns dos factores que
podem ajudar a compreender o modo como Rosa se tornou referência no
outro lado do mundo.
Mia
Couto, in Encontros e encantos — Guimarães Rosa
(Intervenção na UFMG, Belo Horizonte, 2007).
Nas ilhas bem-aventuradas
Os
figos caem das árvores, são bons e doces; ao caírem, rasga-se a
sua pele rubra. Um vento do norte sou eu para os figos maduros.
Assim,
como figos vos caem estes ensinamentos, meus amigos: bebei do seu
sumo e da sua doce polpa! É outono ao redor, e puro céu e tarde.
Vede
a plenitude ao nosso redor! E a partir da abundância é belo olhar
para os mares distantes.
Um
dia se falou “Deus”, ao olhar para os mares distantes; mas agora
vos ensinei a falar: “super-homem”.
Deus
é uma conjectura; mas eu quero que vossas conjecturas não excedam
vossa vontade criadora.
Podeis
criar um deus? — Então não me faleis de deuses! Mas bem
poderíeis criar o supra-homem.
Talvez
não vós mesmos, irmãos! Mas podeis vos converter em pais e
ancestrais do super-homem: e que esta seja a vossa melhor criação!
—
Deus
é uma conjectura: mas quero que vossas conjecturas se mantenham nos
limites do pensável.
Podeis
pensar um deus? — Mas que a vontade de verdade signifique
isto para vós, que tudo seja transformado em humanamente pensável,
humanamente visível, humanamente sensível! Vossos próprios
sentidos deveis pensar até o fim!
E
o que chamais de Mundo, isso deve ser criado primeiramente por vós:
vossa razão, vossa imagem, vossa vontade, vosso amor deve ele
próprio se tornar! E, em verdade, para vossa bem-aventurança,
homens do conhecimento!
E
como queríeis aguentar a vida sem tal esperança, ó homens do
conhecimento? Nem no incompreensível nem no irracional poderíeis
haver nascido.
Mas,
para vos revelar inteiramente meu coração, meus amigos: caso
houvesse deuses, como suportaria eu não ser deus? Portanto,
não há deuses.
É
certo que tirei a conclusão; mas agora ela me arrasta.
Deus
é uma conjectura: mas quem beberia todo o tormento dessa conjectura
sem morrer? Deve o criador ser privado de sua fé, e a águia, de seu
pairar em distâncias aquilinas?
Deus
é um pensamento que torna curvo o que é reto e faz girar o que está
parado. Como? O tempo não existiria mais e tudo transitório seria
apenas mentira?
Pensar
isso é turbilhão e vertigem para esqueletos humanos, e também um
vômito para o estômago: em verdade, sofrer de tontura é como
denomino conjecturar assim.
Chamo
isso de mau e inimigo do homem: todos esses ensinamentos sobre o uno,
pleno, saciado, imóvel e intransitório!
Tudo
intransitório — é apenas símile! E os poetas fingem demais. —
Mas
os melhores símiles devem falar do tempo e do devir: devem ser
louvor e justificação de toda transitoriedade!
Criar
— eis a grande libertação do sofrer, e o que torna a vida leve.
Mas, para que haja o criador, é necessário sofrimento, e muita
transformação.
Sim,
é preciso que haja muitos amargos morreres em vossa vida, ó
criadores! Assim sereis defensores e justificadores de toda a
transitoriedade.
Para
ser ele próprio a criança recém-nascida, o criador também deve
querer ser a parturiente e a dor da parturiente.
Em
verdade, através de cem almas percorri meu caminho, e de cem berços
e dores de parto. Muitas vezes me despedi, conheço as pungentes
horas finais.
Mas
assim quer minha vontade criadora, meu destino. Ou, para dizê-lo
mais honestamente: é justamente esse destino — o que deseja minha
vontade.
Tudo
o que sente sofre comigo e está em cadeias: mas meu querer sempre
vem como meu libertador e portador de alegria.
Querer
liberta: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade —
assim Zaratustra a ensina a vós.
Não-mais-querer
e não-mais-estimar e não-mais-criar! Ah, fique sempre longe de mim
esse grande cansaço!
Também
no conhecer sinto apenas o prazer de gerar e vir a ser de minha
vontade; e, se há inocência em meu conhecimento, isso ocorre porque
há nele vontade de gerar.
Para
longe de Deus e dos deuses me atraiu essa vontade; que haveria para
criar, se houvesse — deuses!
Mas
para o ser humano sempre me impele minha fervorosa vontade de criar;
assim o martelo é impelido para a pedra.
Ó
humanos, na pedra dorme uma imagem, a imagem de minhas imagens! Ah,
que ela tenha de dormir na mais dura e feia das pedras!
Agora
meu martelo investe furiosamente contra a sua prisão. A pedra solta
estilhaços; que me importa?
Quero
completar isso: pois uma sombra veio até mim — a mais silenciosa e
mais leve das coisas veio um dia até mim!
A
beleza do super-homem veio até mim como sombra. Ah, meus irmãos!
Que me concernem ainda — os deuses!
Assim
falou Zaratustra.
Friedrich
Nietzsche, in Assim falou Zaratustra
quinta-feira, 28 de maio de 2020
Da observação indireta
Não
acredito em observação direta. Observação direta é reportagem —
o lamentável equívoco dos naturalistas. Flaubert descrevia o
vestuário de seus personagens — coisa que ao homem comum pouco
importa. Ponha o leitor a mão na consciência ou no olho e veja se
recorda hoje a cor do casaco da pessoa com quem falou ontem, ou no
caso de um primeiro encontro, se o homem usava óculos ou tinha um
bigodinho. Talvez eu esteja gabando minha deficiência. Confesso-me
tão mau observador que, um dia destes, tendo sido depositado
provisoriamente no quarto de banho do hotel um espelho de corpo
inteiro, este, a quem nada escapa, revelou-me que eu não tenho uma
coisa que todos têm, isto é: pelos nas axilas.
Ora,
como a minha linguagem não é uma abstração algébrica,
perguntarão como consigo escrever poemas, os quais, no seu estado
mais puro, em vez de se expressarem por associações de ideias,
expressam-se por imagens, figuras, coisas vistas... Mas foram vistas
subliminarmente e depois, na montagem do poema, exsurgem num mundo
mais real porque despojadas de acessórios insignificativos. Tanto
assim que, dentre as coisas que mais agradaram a este escriba, está
o testemunho de Donaldo Schüler: “M. Q. não cai nunca na
facilidade do descritivo.”
Ah,
as descrições! O que muito concorreu para o seu descrédito foi o
cinema. Para que “ler” uma cascata, agora que as podemos “ver”?
Também o cinema acabou com isso de abrir portas para entrar. Quando
a gente vê, o personagem já está lá dentro! Só nos filmes de
faroeste, por natureza tão primitivos, é que o herói monta no
cavalo e apeia do mesmo, como se não bastasse mostrá-lo em plena
cavalgada. E, como agora o substituto do cavalo é o automóvel, por
que raios temos ainda de ver o mocinho entrar no carro e depois
descer? Cavalo ou carro, o primitivismo é o mesmo. Mas eu estava
falando era na observação indireta, por sinal que há tempos o
título de um de meus futuros livros era O Viajante Adormecido. Só
não o utilizei pelo receio de que o chamassem O Leitor Adormecido.
Foi, como se vê, uma fraqueza que não me perdoo.
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
Santa Milagrosa
Sábado
de Carnaval. O índio entrou no bar Caras e Bocas, pintura de guerra
feita com esparadrapo, sentou em frente a mim e suspirou:
– Canalha.
Estendi
a mão.
– Prazer.
Canalha de quê?
Ele
riu. Fiz um sinal pro Davi trazer dois chopes.
– Minha
vida era aquela criança e agora...
– Morreu?
– Não,
foi morar com a tia.
Bebi
um gole e relaxei. Adoro drama contado em buteco.
– Durante
a gravidez a mãe dela não passou bem. Eu disfarçava meu próprio
sofrimento bebendo e bancando o macho. Uma noite a mãe dela me pediu
que fosse a um supermercado e comprasse mamão papaia, tava com muito
desejo. Eu disse pra ela não encher meu saco. Ela me olhou com uns
olhos de mágoa que eu não consigo esquecer. Senti que tinha perdido
a mulher. Era só uma questão de tempo. A criança nasceu de sete
meses, foi pra incubadora. Fiz promessa: se a menina vingasse, eu
pararia de fumar charuto, ela se chamaria Aparecida e, durante três
anos, sairia vestida igualzinha a santa, com andor e o escambau, no
meio da bateria do bloco onde eu era o faz-tudo, o Grêmio
Carnavalesco Quem Nunca Sentiu Vai Sentir Agora. Quando
Aparecida fez cinco anos, a mãe fugiu com um protético. Disse que
nunca mais queria me ver. Senti que era hora de começar a cumprir
minha promessa. No carnaval seguinte, armamos o Bloco, na Praça
Mauá, pra atravessar a Rio Branco de cabo a rabo. Caiu um toró
desgraçado. Quando colocamos Aparecida, de manto e coroa, no andor,
a chuva parou como que por encanto. Tava todo mundo meio de porre.
Dorinha Valium-10 gritou: “Milagre”! Teve gente que se ajoelhou.
De farra. Não choveu uma gota até que tirei Aparecida do andor, lá
perto do Obelisco. Foi pousar a menina no chão e o pé d'água
desabar. Dava pra ver respeito, medo até, nos olhos das pessoas. Eu
tava engatilhando uma piada pra desanuviar o astral quando Aparecida
fez um gesto tipo cala-essa-boca, e avisou a todos, com voz suave e
adulta: “Esse ano foi a chuva, ano que vem serão os pombos”.
– Nunca
tive tanta vontade de fumar um charuto na minha vida.
Eu
quis mandar buscar uns charutos no buteco da esquina, já que o Caras
não vendia nada de fumo. O índio riu:
– Não,
obrigado. Parei de vez. Eu tive vontade naquela hora, lá na avenida.
Pedi
mais dois.
– Bom,
durante o resto do ano, Aparecida se comportou como uma criança
perfeitamente saudável, sem problema. Nem pesadelo tinha. Chegou o
Carnaval. Desfilamos outra vez na Rio Branco. Quando estávamos
passando pela Cinelândia, um monte de pombos pousou no andor. Há
quem diga que foram três ou quatro. Outros juram que foram dezenas.
Eu não sei mais. No meio do tumulto, gente chorando, um menino que
saía de cadeiras de roda, com uma cuíca, levantou e agradeceu a
graça conquistada. Eu quase tive um troço. Me deu uma vontade de
fumar tão grande que a minha boca entortou. Olhei pra Aparecida:
tinha crescido. A roupa de santinha tava na altura das canelas dela.
Dava pra ver o tênis rosa-sujo. Fiquei com os olhos cheio de
lágrimas e pensei: nessa terra até Nossa Senhora tem chulé.
Aparecida sorriu docemente pra mim e orou: “Madrinha, faz eu voar
ano que vem! Nem que seja só um pouquinho."
O
índio pediu pra ir ao banheiro. Sabia cortar na hora certa. Quando
voltou, ficou calado um tempão. Não forcei a barra. De repente,
começou a chorar. Mais dois e ele contou o resto da história.
– Era
o último desfile dela. Na concentração, na Praça Mauá, tinha até
Televisão. Vários jornais publicaram reportagens sobre os milagres.
Muita gente tinha recortes, com fotografia da menina, presos no peito
com alfinetes, colados, eu sei lá. Até o cardeal falou sobre o
bloco em seu programa de rádio e aproveitou a deixa pra esculhambar
a Xuxa. A praça fervia. Tinha PM em traje de gala, representante do
Prefeito, bandeiras do PT, uma loucura. Nunca vi tanto aleijado
junto. O malandro do repique era surdo-mudo. A maior mistura de
cabrochas seminuas e beatas com vela, terço, ex-voto... Que zona,
parceirinho! Depois de muita confusão, o bloco saiu. O refrão do
samba era assim:
“Santos
Dumont deu motivo pro Brasil se orgulhar
Abre
alas Ponte Aérea, que a Santa vai voar”.
– É
mole? Eu ouvia tão fascinado que o chope esquentou. Mais dois!
– Perto
do Avenida Central ela abriu os braços e começou a tremer. Foi
indescritível. O povo cantava o refrão como se estivesse numa
igreja, a bateria sentando a lenha. A turma da corda não conseguia
conter os fiéis. Pintou um turista alemão filmando a cena, baita
charuto na boca. Não aguentei. Tirei o palhaço da boca do gringo e
puxei fundo. O andor todo balançava. Os foliões todos gritavam: “É
agora! É agora!” Perto do Teatro Municipal uns babacas ensaiaram o
corinho: “Mar-me-la-da! Mar-me-la-da!”. Saiu um cacete pra
Maguila nenhum botar defeito, todo mundo dando e levando. O único
jeito de acabar com aquilo era Aparecida levantar voo. Perdi a
cabeça. Me pendurei no andor e dei um tremendo esporro: “Tá
rateando, merda? Decola logo, sua filha da...!” E aí...
Eu
quase sem ar:
– E...
aí?
– Foi
um voo curto mas valeu. Aparecida soltou um berro medonho, despregou
do andor, planou uns dois metros, o manto azul de cetim feito
asa-delta de pobre, e caiu de cabeça no meio da bateria. A massa
delirou. Aparecida levou seis pontos na testa e, na Quarta-feira de
Cinzas, foi morar com a tia. Disse que nunca mais queria me ver.
– Por
causa dos palavrões? - mas
– Não.
Por ter enfiado a brasa do charuto na perninha dela. Eu costumo dizer
que santa voadora não admite co-piloto.
Aldir
Blanc, in Brasil passado a sujo