Linguagem

A Torre de Babel (1563), de Pieter Bruegel, o Velho

Antes da Torre de Babel não havia intérpretes porque todos entendiam o que todos falavam. Os intérpretes se tornaram necessários depois da confusão de línguas. “Interpretar” é dizer em linguagem que se entende aquilo que uma pessoa disse numa linguagem que não se entende. Os presidentes, embaixadores e reitores se valem de intérpretes. Acho que os intérpretes, quando os presidentes e reitores dizem besteiras, deveriam mentir, para não passar vergonha. Já vi intérpretes envergonhados. A interpretação começa com esta pergunta: “O que é que ele – ou ela – quis dizer?”. Versos da Cecília: “E no fundo dessa fria luz marinha nadam meus olhos, baços peixes à procura de mim mesma”. O que é que ela queria dizer? Para se fazer essa pergunta, é preciso se admitir que ela, a poeta, quis dizer algo mas não conseguiu. A poeta sofria de deficiência linguística. Mas o fato é que um poeta nunca “quer dizer algo”. O que ele diz é o que ele quer dizer. A resposta a um poema não é uma interpretação, é outro poema.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

Monumentar

Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho.
Manoel de Barros

O come e não engorda



Ninguém é mais admirado ou invejado do que o come e não engorda. Você o conhece. É o que come o dobro do que nós comemos e tem a metade da circunferência e ainda se queixa: — Não adianta. Não consigo engordar.
O come e não engorda é meu ídolo. Só não lhe peço autógrafo por inibição. Meu sonho é emagrecer e depois nunca mais engordar, por mais que tente. Quando eu diminuir, quero ser um come e não engorda.
Não se deve confundir o come e não engorda com o enfastiado. Este pertence a outra espécie. Não é humano. Pode até ser melhor do que nós, um aperfeiçoamento, mas não é humano. Afinal, o que une a humanidade é o seu apetite comum. Não é por nada que partilhar da comida com o próximo tem sido um símbolo de concórdia desde as primeiras cavernas. Até hoje as conferências de paz se fazem em volta de uma mesa onde a comida, se não está presente, está implícita. Desconfie do enfastiado. Ele será um agente de outra galáxia ou um poço de perversões, ou as duas coisas. De qualquer maneira, mantenha-o longe das crianças. Quando encontrar alguém na frente de um prato cheio só emparelhando as ervilhas com a ponta da faca, notifique os órgãos de segurança. É um enfastiado e pode ser perigoso. Sempre achei que as pessoas que comem como um passarinho deviam ser caçadas a bodoque. O seu fastio, inclusive, é um escárnio aos que querem comer e não podem.
Já o come e não engorda compartilha do nosso apetite, só não compartilha das consequências. Ele repete a massa e não tem remorso. Pede mais chantilly e sua voz não treme. Molha o pão no café com leite! E ainda se queixa:
Há 15 anos tenho o mesmo peso.
O come e não engorda só parou de mamar no peito porque proibiram sua mãe de ficar junto no quartel. Quando o come e não engorda nasceu, uma estrela misteriosa apareceu no Guide Michelin de restaurantes para aquele ano. O come e não engorda caminha sobre a sauce bernaise e não afunda. Multiplica os filés de peixe à meunière e os pães de queijo. Por onde o come e não engorda passa, as ovelhas se atiram para trás e pedem “me assa!”. O come e não engorda tem o segredo da Vida e da Morte e, suspeita-se, o telefone da Bruna Lombardi. E ainda se queixa:
Tenho que tomar quatro milk-shakes entre as refeições. Dieta.
Dieta! E você ali, de olho arregalado.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

Hermógenes


Digo tudo, disse! matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo era que eu não pensava. Descarecia. Era assim! eu ia indo, cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as armas; acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não é sina? Nanja não queria me alembrar, de nenhum, nenhuma. Com meia-légua andada, por um trilho. E preciso não roçar forte nas ramagens, não partir galhos. Caminhar de noite, no breu, se jura sabença! o que preza o chão ― o pé que adivinha. A gente imagina uns buracões disformes. A gente espera vozes. Eh. Pouquinhas estrelas dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao senhor! a noite é da morte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba o que eu mais pensei. No seguinte! como é que curiango canta. Que o curiango canta é! Curí-angú!
A obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes esbarrou. Conchegamos. E com as mãos apalpávamos uns os outros. Dali em diante, era junto a junto. O Hermógenes, puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem o de suindara. Cada um com punhal a ponto, atravessamos o córrego, pulando pelas alpondras; mais para baixo, sabíamos de uma estiva, mas lá se temia que tivessem botado sentinelas. Ali era o lugar pior! um estremecimento me desceu, senti o espaço da minha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. No outro lado, o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, passante por suas pedras. Naquela espera, carecíamos de persistir horas, dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles acordam com o cheiro da cara da gente, não concedem sossego. Acender cigarro e pitar, não se podia. A noite é uma grande demora. Ah o que os mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, direi, era que o Hermógenes tinha escolhido ali: que ninguém pegasse no sono, que a mosquitada não deixava? Mas não seria de mim que pudesse ferrar no sono assim perto daquele homem, príncipe das tantas maldades. O que eu queria era que tudo sucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo de terminada. ― Tá aqui, toma... ― ouvi. Era o Hermógenes, um taco de fumo me dando, que em forte cachaça ele tinha acabado de empapar. Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de comer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do serviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os mosquitos deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me divertindo de beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í. Daí, os pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar narração: retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas tolas, coisas em vago das viagens que eu tinha feito. A noite durava.
Haja de contar o que foi ― o todo de se escorregar para cima a encosta ― até ao ponto, donde a espera de tocaia devia de ser? Aquilo o igual, sempre sendo. Um homem se arraiga em terra, no capim, no chão, e vai, vai ― sendo serepente ― de gato-em-caça. Carece de repartir frouxo o peso do corpo, semelhante fosse nadando; cotovêlo e joelho é que transpõem. Tudo um ái de vagar, que chega aporreia, tem que ser. Não vale arranco de pressa, o senhor tem de ficar o comprido que pode, por mais de. As juntas da gente estalam, o senhor mesmo escuta. Se coça a canela com o calcanhar; ― estando com polâina não adianta. De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta. Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado em moita, que se assusta forte a voo, dá aviso ao inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no mesmo lugar ― dão muito aviso. Aí quando é tempo de vagalume, esses são mil demais, sobre toda a parte! a gente mal chega, eles vão se esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra ― é o pior aviso. O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?! sem querer, a gente rosna. As guardas, qualquer mato ameaçava que ia bulir! com o inimigo vindo dele. Arvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme com gosto ― que é o que mais defende dele não se cravar. O inimigo pode estar engatinhando também, versa por detrás, nunca se tem certeza. O cheiro da terra agoura mal. Capim de beira em fio, que corta a cara. E uns gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu figurava que era das estrelas remexidas, titique delas, caindo por minhas costas. Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da noite, lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento, se pode premer mão numa rodilha grossa de cascavél, numa certa morte dessas. Pior é a surucucú, que passeia longe, noturnazã, monstro! essa é o que há com mais dôida ligeireza neste mundo. Rezei a jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava, da macega, das folhas, ― é o que digo ao senhor; me desgostava. Raio de um repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu encolhi. Era um tatú, que ia entrando no buraco, fungou e escutei o esfrego de suas muxibas. Tatú-peba, e eu no rés dele. Que modo que? Rastejando de minha banda da direita, o Hermógenes rompia, eu sentia o bafo duma boca, e aquele avultar deitado de bicho duro, braço por braço. O Garanço e o Montesclarense espigavam vez mais adiante, vez mais atrás. Quando de sem-menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um murmo ― me cochichou de mão em concha. ― E aqui mesmo... ― ele redisse. Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e os macios pássaros da noite? ― pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheiro dum araçá-branco formava bolas. Quietei.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Filantropia



Os famas são capazes de gestos de grande generosidade, como por exemplo quando esse fama encontra uma pobre esperança caída ao pé de um coqueiro, e pondo-a em seu automóvel a leva para sua casa e se ocupa de alimentá-la e oferecer-lhe distração até que a esperança ganhe forças e se atreva a subir outra vez no coqueiro. O fama se acha muito bom depois deste gesto, e na realidade é muito bom, só que não lhe ocorre pensar que daí a poucos dias a esperança vai cair outra vez do coqueiro. Então, enquanto a esperança está novamente caída ao pé do coqueiro, esse fama no seu clube se acha muito bom e pensa na maneira como ajudou a pobre esperança quando a encontrou tombada.
Os cronópios não são generosos por princípio. Passam ao largo das coisas mais comoventes, como seja uma pobre esperança que não sabe amarrar os cordões dos sapatos e geme, sentada na beira da calçada. Esses cronópios nem olham para a esperança, ocupadíssimos que estão em seguir com os olhos uma baba do diabo. Com seres como esses não se pode praticar a caridade de modo coerente; por isso nas sociedades filantrópicas as autoridades são todas famas e a bibliotecária é uma esperança. Dos seus cargos, os famas ajudam muito os cronópios, que nem ligam.
Julio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas

A porca


Era uma vez um meninozinho, que tinha muito medo. Era só soprar um vento forte, desses de levantar poeira no fundo do quintal e bater com os postigos da janela; era só haver uma nuvem escura, uma única, que tampasse o sol; era só esbarrar com a pipa d’água e ouvir o rico e pesado sacolejar da água dentro, para que o menino se encolhesse bem no centro de seu ventre, orelhas retesas, olhos muito abertos ou obstinadamente fechados. Depois, o menino levantava, limpava o pó do fundilho das calças e ia para o quintal.
Conhecia as galinhas, os porcos, mas nenhum lhe pertencia. Achava mesmo engraçado quando via os irmãos abraçarem um leitãozinho, a irmã mais nova tentando, por força, enfiar uma de suas saias no bicho. Bicho é bicho, sabia ele. Bicho tem vida sua, diferente da de gente. Os irmãos não sabiam. Fingiam que eram bonecas, criancinhas pequenas e, nos dias de matança, todos já eram petiscos, brinquedo esquecido.
O menino preferia olhá-los de longe. Tremia, quando a velha porca gorda fuçava por entre as tábuas do chiqueiro; corria, se ela estava solta, com sua gorda barriga pendente, seu gordo cachaço lanhado.
A mãe também era gorda. Rachando lenha, carregando água, enorme e pesada bolota de carne. Tinha um rosto comprido, sulcado de rugas, boca sempre aberta, gritando com alguém. A porca não gritava, só roncava, mesmo quando o pai passava e lhe dava um pontapé. Um dia botou sangue — disseram que ia abortar. Ele teve medo de ver. Escondeu-se em casa, na cama, sob a colcha de fustão.
E de repente, foi o grande choque. Cama sacudiu. Lastro despencou, e ele caiu, sufocado pelos travesseiros. Era o pai. A mãe lhe batia com um resto de vassoura... pela loucura... quatorze leitões... quatorze... e todos perdidos... o pai grunhia e protegia a cabeça. Ao redor, tudo era escuro. Sabia agora o que era um nené de bicho. Havia sangue. Sempre havia sangue.
Era um dia escuro. E em dias escuros, o menino tinha medo. O escuro era espesso, profundo, pegajoso, e sombras mais escuras eram manchas coaguladas.
Havia um fio de luz, cinza-claro, sobre a pipa d’água. O menino se atreveu a ir bem junto dela. Puxou um banquinho e foi olhar. Como lhe doía a barriga, só de espichar, só de ver... a boca preta da pipa, a água grossa, molhada... E o menino caiu dentro da pipa... Não de verdade, de mentira... E encontrou uma porção de leitõezinhos lá no fundo, mas estavam pretos e encarquilhados.
E ao pular de volta sobre seu banquinho, ao sentir toda a pipa sacudindo, o menino teve a ideia. Balançou forte, cada vez mais forte, a pipa veio pelo chão, despedaçando uma aranha, molhando a lenha, assustando a galinha choca que dormia debaixo do fogão. O pé do menino ficou preso, uma unha esmagada. Mas ele não chorou, fugiu. E fugiu para a rua... Porém o terreiro estava iluminado com uma luz muito pálida, a areia lisa, fina, as bananeiras imóveis e densas... Sentou-se no chão, sobre uma pedra pontuda, um pé em cima do outro, as mãos cruzadas no joelho.
De noite, eram os corpos dos irmãos que se apertavam contra o dele. Mesmo de olhos fechados, sabia quem estava junto de si. A irmã tinha o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava que ele se distraísse para puxar-lhe aquilo. Depois ria, dizendo: “Por mais que se puxe, é uma coisinha de nada”, e mostrava o seu, orgulhoso.
Às vezes, o menino ia dormir no chão. Esperava que os grandes passassem para trás da cortina, ameaçava os irmãos e ia deitar na cozinha ou contra o cabide. Era pequeno, mas também sabia fazer coisas malvadas. Escutava o pai e a mãe. Suas vozes eram grossas, por vezes estridentes, e palavras feias estremeciam o ar, penduravam-se nas teias de aranha, nos arremates das mata-juntas. O lastro estalava, e havia risadas, de gengivas descobertas, de profundos ocos de garganta.
Ir embora, era o que o menino desejava. Ir para um lugar onde a água fosse grande e livre, um mar infinito, como ouvira contar certa vez. Não haveria aves, nem porcos nem cachorros, apenas peixes, dourados e lisos... O menino habituou-se a correr. Corria ao ouvir as xingações da mãe, corria ao ouvir os tamancos do pai, corria ao ouvir as risadas dos irmãos. Corria ainda quando ouviu a voz da porca velha.
Gritava. Não grunhidos, não roncos, mas gritos. O menino sentiu sua barriguinha encolher, aquilo se levantar em franco protesto. Na esquina da casa, lá estava o grupo: o pai, o empregado, a mãe, um vizinho, e qualquer coisa que rebolava feito doida na areia. As crianças se conservavam longe, as mãos nos ouvidos, as caras estúpidas. A mãe se afobava, a saia descosida arrastando no chão, dando ordens, xingando, gritando mais alto que a porca. O pai se remexia, o chapéu sobre a nuca, o nariz pingando de suor.
E foi a mãe que arrancou a faca das mãos do vizinho num gesto brusco. E como gritava a porca... o menino só lhe via o rabinho e as patas trêmulas. E num instante, tudo ficou imóvel. Os homens forcejando, a mulher adquirindo impulso, gorda, redonda, enorme, sua saia de grandes flores desbotadas roçando o ventre da porca, os irmãos sumindo ao longe, a barriguinha do menino se retesando.
E foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha, impetuosa, que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o vizinho, sufocou o empregado... foi aspirado por bocas, nariz, escorreu por pescoços e ombros. Agora era o pai quem batia na mãe, descompunha-a... “a camisa... a roupa do empregado, do vizinho... velha porcalhona...”
O menino se agachou atrás da bananeira, com muita dor em sua barriguinha. E nunca mais beijou a mãe.
Tânia Jamardo Faillace, in Os cem melhores contos brasileiros do século

Aventura

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo d’água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever.
Clarice Lispector, in Crônicas para jovens: de escrita e vida

São

A vista sã deve ver tudo que pode ser visto e não dizer: “Quero o verde”. Isso equivaleria a ter a vista doente. Da mesma forma a audição e o olfato sãos devem estar preparados para tudo que pode ser ouvido e cheirado e o estômago são deve sê-lo para todos os alimentos, como o moinho para tudo que foi feito para ser moído. Então a inteligência sã deve estar preparada para todos os acontecimentos. Mas aquela que diz: “Que meus filhos se salvem!” “Que todos me elogiem, faça eu o que fizer!” é uma vista que reclama o verde ou dentes que reclamam o tenro.
Marco Aurélio, in Meditações

sexta-feira, 29 de maio de 2020

É preciso fazer alguma coisa

Escrevo esta canção porque é preciso.
Se não a escrevo, falho com um pacto
que tenho abertamente com a vida.
E é preciso fazer alguma coisa
para ajudar o homem.
Mas agora.
Cada vez mais sozinho e mais feroz,
a ternura extraviada de si mesma,
o homem está perdido em seu caminho.
É preciso fazer alguma coisa
para ajudá-lo. Ainda é tempo.
É tempo.
Apesar do próprio homem, ainda é tempo.
Apesar dessa crosta que cultivas
com amianto e medo, ainda é tempo.
Apesar da reserva delicada
das toneladas cegas mas perfeitas
de TNT pousada sobre o centro
de cada coração — ainda é tempo.

No Brasil, lá na Angola, na Alemanha,
na ladeira mais triste da Bolívia,
nesta poeira que embaça a tua sombra,
na janela fechada, no mar alto,
no Próximo Oriente e no Distante,
na nova madrugada lusitana
e na avenida mais iluminada
de New Yoirk. No Cuzco desolado
e nas centrais atômicas atônitas,
em teu quarto e nas naves espaciais
— é preciso ajudá-lo.
Nas esquinas
onde se perde o amor publicamente,
nas cantigas guardadas no porão,
nas palavras escritas com acrílico,
quando fazes o amor para ti mesmo.
Na floresta amazônica, nas margens
do Sena e nos dois lados deste muro
que atravessa a esperança da cidade
onde encontrei o amor
— o homem está
ficando seco como um sapo seco
e a sua casa já se transformou
em apenas local de seu refúgio.

Lá na Alameda de Bernardo O′Higgins
e no sangue chileno que escorria
dos corpos dos obreiros fuzilados,
levados para a fossa em caminhões
pela ferocidade que aos domingos
sabe se ajoelhar e cantar salmos.
Lá na terra marcada como um boi
pela brasa voraz do latifúndio.

Dentro do riso torto que disfarça
a amargura da tua indiferença,
na mágica eletrônica dourada,
no milagre que acende os altos-fornos,
no desamor das mãos, das tuas mãos,
no engano diário, pão de cada noite,
o homem agora está, o homem autômato,
servo soturno do seu próprio mundo,
como um menino cego, só e ferido,
dentro da multidão.
Ainda é tempo.
Sei por que canto: se raspas o fundo
do poço antigo da tua esperança,
acharás restos de água que apodrece.
É preciso fazer alguma coisa,
livrá-lo dessa situação voraz
da engrenagem organizada e fria
que nos devora a todos a ternura,
a alegria de dar e receber,
o gosto de ser gente e de viver.

É preciso ajudar.
Porém primeiro,
para poder fazer o necessário,
é preciso ajudar-me, agora mesmo,
a ser capaz de amor, de ser um homem.
Eu que também me sei ferido e só,
mas aconchego este animal sonoro
que reina poderoso em meu peito.
Thiago de Mello

Misto-Quente - 14



Mais tarde, no hospital, eles esfregavam meus joelhos com pedaços de algodão embebido em alguma coisa. Queimava. Meus cotovelos ardiam também.
O médico se curvava sobre mim, junto com uma en fermeira. Eu estava na cama, e a luz do sol entrava através da janela. Parecia muito agradável. O médico sorriu para mim. A enfermeira se endireitou e também me sorriu. Era legal estar ali.
Você tem um nome? – perguntou o médico.
Henry.
Henry do quê?
Chinaski.
Polonês, não é?
Alemão.
Por que ninguém quer ser polonês?
Nasci na Alemanha.
Onde você mora? – perguntou a enfermeira.
Com meus pais.
Sério? – perguntou o médico. – E onde fica isso?
O que aconteceu com meus joelhos e cotovelos?
Um carro o atropelou. Por sorte, as rodas não o pegaram. As testemunhas dizem que o motorista parecia bêbado. Atropelou e fugiu. Mas eles anotaram o número da placa. Dessa ele não escapa.
O senhor tem uma enfermeira muito bonita... – eu disse.
Bem, obrigada – ela disse.
Você quer marcar um encontro com ela? – perguntou o médico.
Como assim marcar um encontro?
Você quer sair com ela?
Não sei se conseguiria fazer com ela. Sou muito jovem.
Fazer o quê?
Você sabe.
Bem – sorriu a enfermeira –, venha me ver depois que seus joelhos sararem e veremos o que podemos fazer.
Me perdoe – disse o médico –, mas tenho que ver um outro caso de acidente.
Ele saiu do quarto.
Agora – disse a enfermeira –, em que rua você mora? – Na Estrada Virgínia.
Preciso do número, doçura.
Eu disse a ela o número da casa. Ela perguntou se lá havia telefone. Falei que não sabia o número.
Tudo bem – ela disse –, vamos dar um jeito de conseguir. E não se preocupe. Você teve sorte. Levou apenas uma pancada na cabeça e se arranhou um pouco.
Ela era bacana, mas eu sabia que depois que meus joelhos sarassem ela não ia querer me ver outra vez.
Quero ficar aqui – falei.
O quê? Está dizendo que não quer voltar para casa com seus pais?
Não. Deixa eu ficar aqui.
Não podemos fazer isso, doçura. Precisamos desses leitos para as pessoas que estão realmente doentes ou machucadas.
Sorriu e deixou o quarto.
Quando meu pai chegou, seguiu direto para meu quarto e, sem uma palavra, me arrastou para fora da cama. Carregou-me pelo corredor em direção ao hall.
Seu pequeno desgraçado! Não lhe ensinei a olhar para os DOIS lados antes de atravessar a rua?
Ele me levou até a recepção. Passamos pela enfermeira.
Adeus, Henry.
Adeus.
Entramos num elevador com um velho numa cadeira de rodas. Tinha uma enfermeira parada atrás dele. O elevador começou a descer.
Acho que vou morrer – disse o velho. – Não quero morrer. Tenho medo de morrer...
Você já viveu o bastante, velho cretino! – resmungou meu pai.
O velho olhou, espantado. O elevador parou. A porta continuou fechada. Então percebi o ascensorista. Estava sentado num banquinho. Era um anão vestido num resplandecente uniforme vermelho com um boné da mesma cor.
O anão olhou para meu pai.
Cavalheiro – ele disse –, o senhor é um sujeito repugnante!
Tampinha – replicou meu pai –, abra já essa merda de porta ou vou abrir é o seu cu.
A porta se abriu. Passamos pelo saguão. Meu pai me arrastou pelo gramado do hospital. Eu ainda usava o camisolão do hospital. Ele levava minhas roupas numa sacola. O vento soprou, erguendo meu camisolão, e pude ver meus joelhos esfolados, sem ataduras, apenas cobertos por iodo. Meu pai estava quase correndo pelo gramado.
Quando eles pegarem aquele filho-da-puta – ele disse –, vou processá-lo! Vou tirar até o último centavo! Ele vai me sustentar pelo resto da vida! Estou cansado daquele maldito caminhão de leite! Leiteria Golden State! Golden State o meu rabo cabeludo! Vamos nos mudar para os Mares do Sul. Vamos viver de cocos e abacaxis!
Meu pai chegou no carro e me colocou no assento da frente. Então ele entrou pelo lado do motorista. Deu a partida.
Odeio bêbados! Meu pai era um bêbado. Meus irmãos são bêbados. Bêbados são fracos. Bêbados são covardes. E esses que atropelam e fogem deveriam receber a prisão perpétua!
Enquanto seguíamos para casa ele continuava a falar comigo.
Você sabe que nos Mares do Sul os nativos moram em cabanas de palha? Eles se levantam pela manhã e a comida cai das árvores. Eles só pegam e comem, cocos e abacaxis. E os nativos acham que os homens brancos são deuses! Eles pescam, assam javalis, e as garotas dançam e vestem saias de palha e acariciam os homens atrás das orelhas. Leiteria Golden State o meu rabo cabeludo!
Mas o sonho do meu pai não iria se realizar. Eles pegaram o homem que me atropelou e o colocaram atrás das grades. Tinha mulher e três filhos e estava desempregado. Era um bêbado que não tinha nem onde cair morto. O homem ficou preso durante algum tempo, mas meu pai não apresentou queixa. Como ele disse:
Não se pode tirar leite de uma maldita pedra!
Charles Bukowski, in Misto-Quente

Rosa em Moçambique


Caros amigos:

Interrogo-me sobre o que poderei dizer sobre Guimarães Rosa, eu que venho de tão longe e quando tanto estudo abalizado foi já produzido sobre o grande escritor mineiro. Essa dúvida marcou a preparação desta minha fala.
Vocês conhecem o escritor brasileiro melhor do que eu e não teria nenhum sentido eu, moçambicano, vir ao Brasil filosofar sobre um autor brasileiro. Sobretudo, não sendo eu um estudioso de literatura nem brasileira nem nenhuma outra.
Decidi, então, que não iria falar de um escritor nem da sua escrita. Falaria, sim, das razões que creio assistirem a essa poderosa influência que João Guimarães Rosa teve em alguma da literatura africana de língua portuguesa. Falarei também da minha relação com a escrita, falarei da minha atitude perante a produção de histórias (com h minúsculo) e a desconstrução da História (com H maiúsculo).
Na realidade, reconheço algumas razões pessoais que fizeram do meu encontro com Rosa uma espécie de abalo sísmico na minha alma. Algumas dessas razões eu as reconheço hoje. Enunciarei a seguir essas razões, uma por uma:

A importância do escritor poder não ser escritor.
Rosa não foi apenas escritor. Enquanto médico e diplomata, ele visitou, e tardiamente, a literatura mas nela não fixou residência exclusiva e permanente. Ao ler Rosa percebe-se que, para se chegar àquela relação de intimidade com a escrita, é preciso ser-se escritor e muito escritor. Mas por um tempo é preciso ser-se um não-escritor.
É preciso estar livre para mergulhar no lado da não-escrita, é preciso capturar a lógica da oralidade, é preciso escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema de pensamento. Esse é o desafio de desequilibrista — ter um pé em cada um dos mundos: o da escrita e o da oralidade. Não se trata de visitar o mundo da oralidade. Trata-se de deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios.

O exemplo de uma obra que se esquivou da obra.
João Guimarães Rosa não fez da literatura a sua carreira. Interessava-o sim a intensidade, a experiência quase religiosa. A maior parte dos seus nove livros foi publicada postumamente. Para Rosa não são os livros que importam, mas o processo da escrita. No momento em que ele se incorpora na instituição que simbolizava a solenidade da obra — a Academia Brasileira de Letras — essa luz parece ser demasiada e o faz sucumbir.

A sugestão de uma língua que se liberta dos seus regulamentos.
Eu já bebia na poesia um gosto pela desobediência da regra, mas foi com o autor da Terceira margem do rio que eu experimentei o gosto pelo namoro entre língua e pensamento, o gosto do poder divino da palavra.
Mas decidi não falar de mim, nem de Rosa, nem de escritores. O meu propósito aqui é sobretudo entender por que razão um autor brasileiro influenciou tanto escritores africanos de língua portuguesa (o caso paradigmático será o Luandino Vieira, mas há outros como o angolano Boaventura Cardoso, os moçambicanos Ascêncio de Freitas e Tomaz Vieira Mário). Haverá por certo uma necessidade histórica para essa influência. Há razões que ultrapassam o autor. Haveria uma predisposição orgânica em Moçambique e Angola para receber essa influência, e essa predisposição está para além da literatura. Tentarei neste encontro listar alguns dos factores que podem ajudar a compreender o modo como Rosa se tornou referência no outro lado do mundo.
Mia Couto, in Encontros e encantos — Guimarães Rosa (Intervenção na UFMG, Belo Horizonte, 2007).

Nas ilhas bem-aventuradas



Os figos caem das árvores, são bons e doces; ao caírem, rasga-se a sua pele rubra. Um vento do norte sou eu para os figos maduros.
Assim, como figos vos caem estes ensinamentos, meus amigos: bebei do seu sumo e da sua doce polpa! É outono ao redor, e puro céu e tarde.
Vede a plenitude ao nosso redor! E a partir da abundância é belo olhar para os mares distantes.
Um dia se falou “Deus”, ao olhar para os mares distantes; mas agora vos ensinei a falar: “super-homem”.
Deus é uma conjectura; mas eu quero que vossas conjecturas não excedam vossa vontade criadora.
Podeis criar um deus? — Então não me faleis de deuses! Mas bem poderíeis criar o supra-homem.
Talvez não vós mesmos, irmãos! Mas podeis vos converter em pais e ancestrais do super-homem: e que esta seja a vossa melhor criação! —
Deus é uma conjectura: mas quero que vossas conjecturas se mantenham nos limites do pensável.
Podeis pensar um deus? — Mas que a vontade de verdade signifique isto para vós, que tudo seja transformado em humanamente pensável, humanamente visível, humanamente sensível! Vossos próprios sentidos deveis pensar até o fim!
E o que chamais de Mundo, isso deve ser criado primeiramente por vós: vossa razão, vossa imagem, vossa vontade, vosso amor deve ele próprio se tornar! E, em verdade, para vossa bem-aventurança, homens do conhecimento!
E como queríeis aguentar a vida sem tal esperança, ó homens do conhecimento? Nem no incompreensível nem no irracional poderíeis haver nascido.
Mas, para vos revelar inteiramente meu coração, meus amigos: caso houvesse deuses, como suportaria eu não ser deus? Portanto, não há deuses.
É certo que tirei a conclusão; mas agora ela me arrasta.
Deus é uma conjectura: mas quem beberia todo o tormento dessa conjectura sem morrer? Deve o criador ser privado de sua fé, e a águia, de seu pairar em distâncias aquilinas?
Deus é um pensamento que torna curvo o que é reto e faz girar o que está parado. Como? O tempo não existiria mais e tudo transitório seria apenas mentira?
Pensar isso é turbilhão e vertigem para esqueletos humanos, e também um vômito para o estômago: em verdade, sofrer de tontura é como denomino conjecturar assim.
Chamo isso de mau e inimigo do homem: todos esses ensinamentos sobre o uno, pleno, saciado, imóvel e intransitório!
Tudo intransitório — é apenas símile! E os poetas fingem demais. —
Mas os melhores símiles devem falar do tempo e do devir: devem ser louvor e justificação de toda transitoriedade!
Criar — eis a grande libertação do sofrer, e o que torna a vida leve. Mas, para que haja o criador, é necessário sofrimento, e muita transformação.
Sim, é preciso que haja muitos amargos morreres em vossa vida, ó criadores! Assim sereis defensores e justificadores de toda a transitoriedade.
Para ser ele próprio a criança recém-nascida, o criador também deve querer ser a parturiente e a dor da parturiente.
Em verdade, através de cem almas percorri meu caminho, e de cem berços e dores de parto. Muitas vezes me despedi, conheço as pungentes horas finais.
Mas assim quer minha vontade criadora, meu destino. Ou, para dizê-lo mais honestamente: é justamente esse destino — o que deseja minha vontade.
Tudo o que sente sofre comigo e está em cadeias: mas meu querer sempre vem como meu libertador e portador de alegria.
Querer liberta: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade — assim Zaratustra a ensina a vós.
Não-mais-querer e não-mais-estimar e não-mais-criar! Ah, fique sempre longe de mim esse grande cansaço!
Também no conhecer sinto apenas o prazer de gerar e vir a ser de minha vontade; e, se há inocência em meu conhecimento, isso ocorre porque há nele vontade de gerar.
Para longe de Deus e dos deuses me atraiu essa vontade; que haveria para criar, se houvesse — deuses!
Mas para o ser humano sempre me impele minha fervorosa vontade de criar; assim o martelo é impelido para a pedra.
Ó humanos, na pedra dorme uma imagem, a imagem de minhas imagens! Ah, que ela tenha de dormir na mais dura e feia das pedras!
Agora meu martelo investe furiosamente contra a sua prisão. A pedra solta estilhaços; que me importa?
Quero completar isso: pois uma sombra veio até mim — a mais silenciosa e mais leve das coisas veio um dia até mim!
A beleza do super-homem veio até mim como sombra. Ah, meus irmãos! Que me concernem ainda — os deuses!
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

Da observação indireta

Não acredito em observação direta. Observação direta é reportagem — o lamentável equívoco dos naturalistas. Flaubert descrevia o vestuário de seus personagens — coisa que ao homem comum pouco importa. Ponha o leitor a mão na consciência ou no olho e veja se recorda hoje a cor do casaco da pessoa com quem falou ontem, ou no caso de um primeiro encontro, se o homem usava óculos ou tinha um bigodinho. Talvez eu esteja gabando minha deficiência. Confesso-me tão mau observador que, um dia destes, tendo sido depositado provisoriamente no quarto de banho do hotel um espelho de corpo inteiro, este, a quem nada escapa, revelou-me que eu não tenho uma coisa que todos têm, isto é: pelos nas axilas.
Ora, como a minha linguagem não é uma abstração algébrica, perguntarão como consigo escrever poemas, os quais, no seu estado mais puro, em vez de se expressarem por associações de ideias, expressam-se por imagens, figuras, coisas vistas... Mas foram vistas subliminarmente e depois, na montagem do poema, exsurgem num mundo mais real porque despojadas de acessórios insignificativos. Tanto assim que, dentre as coisas que mais agradaram a este escriba, está o testemunho de Donaldo Schüler: “M. Q. não cai nunca na facilidade do descritivo.”
Ah, as descrições! O que muito concorreu para o seu descrédito foi o cinema. Para que “ler” uma cascata, agora que as podemos “ver”? Também o cinema acabou com isso de abrir portas para entrar. Quando a gente vê, o personagem já está lá dentro! Só nos filmes de faroeste, por natureza tão primitivos, é que o herói monta no cavalo e apeia do mesmo, como se não bastasse mostrá-lo em plena cavalgada. E, como agora o substituto do cavalo é o automóvel, por que raios temos ainda de ver o mocinho entrar no carro e depois descer? Cavalo ou carro, o primitivismo é o mesmo. Mas eu estava falando era na observação indireta, por sinal que há tempos o título de um de meus futuros livros era O Viajante Adormecido. Só não o utilizei pelo receio de que o chamassem O Leitor Adormecido. Foi, como se vê, uma fraqueza que não me perdoo.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

Santa Milagrosa


Sábado de Carnaval. O índio entrou no bar Caras e Bocas, pintura de guerra feita com esparadrapo, sentou em frente a mim e suspirou:
Canalha.
Estendi a mão.
Prazer. Canalha de quê?
Ele riu. Fiz um sinal pro Davi trazer dois chopes.
Minha vida era aquela criança e agora...
Morreu?
Não, foi morar com a tia.
Bebi um gole e relaxei. Adoro drama contado em buteco.
Durante a gravidez a mãe dela não passou bem. Eu disfarçava meu próprio sofrimento bebendo e bancando o macho. Uma noite a mãe dela me pediu que fosse a um supermercado e comprasse mamão papaia, tava com muito desejo. Eu disse pra ela não encher meu saco. Ela me olhou com uns olhos de mágoa que eu não consigo esquecer. Senti que tinha perdido a mulher. Era só uma questão de tempo. A criança nasceu de sete meses, foi pra incubadora. Fiz promessa: se a menina vingasse, eu pararia de fumar charuto, ela se chamaria Aparecida e, durante três anos, sairia vestida igualzinha a santa, com andor e o escambau, no meio da bateria do bloco onde eu era o faz-tudo, o Grêmio Carnavalesco Quem Nunca Sentiu Vai Sentir Agora. Quando Aparecida fez cinco anos, a mãe fugiu com um protético. Disse que nunca mais queria me ver. Senti que era hora de começar a cumprir minha promessa. No carnaval seguinte, armamos o Bloco, na Praça Mauá, pra atravessar a Rio Branco de cabo a rabo. Caiu um toró desgraçado. Quando colocamos Aparecida, de manto e coroa, no andor, a chuva parou como que por encanto. Tava todo mundo meio de porre. Dorinha Valium-10 gritou: “Milagre”! Teve gente que se ajoelhou. De farra. Não choveu uma gota até que tirei Aparecida do andor, lá perto do Obelisco. Foi pousar a menina no chão e o pé d'água desabar. Dava pra ver respeito, medo até, nos olhos das pessoas. Eu tava engatilhando uma piada pra desanuviar o astral quando Aparecida fez um gesto tipo cala-essa-boca, e avisou a todos, com voz suave e adulta: “Esse ano foi a chuva, ano que vem serão os pombos”.
Nunca tive tanta vontade de fumar um charuto na minha vida.
Eu quis mandar buscar uns charutos no buteco da esquina, já que o Caras não vendia nada de fumo. O índio riu:
Não, obrigado. Parei de vez. Eu tive vontade naquela hora, lá na avenida.
Pedi mais dois.
Bom, durante o resto do ano, Aparecida se comportou como uma criança perfeitamente saudável, sem problema. Nem pesadelo tinha. Chegou o Carnaval. Desfilamos outra vez na Rio Branco. Quando estávamos passando pela Cinelândia, um monte de pombos pousou no andor. Há quem diga que foram três ou quatro. Outros juram que foram dezenas. Eu não sei mais. No meio do tumulto, gente chorando, um menino que saía de cadeiras de roda, com uma cuíca, levantou e agradeceu a graça conquistada. Eu quase tive um troço. Me deu uma vontade de fumar tão grande que a minha boca entortou. Olhei pra Aparecida: tinha crescido. A roupa de santinha tava na altura das canelas dela. Dava pra ver o tênis rosa-sujo. Fiquei com os olhos cheio de lágrimas e pensei: nessa terra até Nossa Senhora tem chulé. Aparecida sorriu docemente pra mim e orou: “Madrinha, faz eu voar ano que vem! Nem que seja só um pouquinho."
O índio pediu pra ir ao banheiro. Sabia cortar na hora certa. Quando voltou, ficou calado um tempão. Não forcei a barra. De repente, começou a chorar. Mais dois e ele contou o resto da história.
Era o último desfile dela. Na concentração, na Praça Mauá, tinha até Televisão. Vários jornais publicaram reportagens sobre os milagres. Muita gente tinha recortes, com fotografia da menina, presos no peito com alfinetes, colados, eu sei lá. Até o cardeal falou sobre o bloco em seu programa de rádio e aproveitou a deixa pra esculhambar a Xuxa. A praça fervia. Tinha PM em traje de gala, representante do Prefeito, bandeiras do PT, uma loucura. Nunca vi tanto aleijado junto. O malandro do repique era surdo-mudo. A maior mistura de cabrochas seminuas e beatas com vela, terço, ex-voto... Que zona, parceirinho! Depois de muita confusão, o bloco saiu. O refrão do samba era assim:

Santos Dumont deu motivo pro Brasil se orgulhar
Abre alas Ponte Aérea, que a Santa vai voar”.

É mole? Eu ouvia tão fascinado que o chope esquentou. Mais dois!
Perto do Avenida Central ela abriu os braços e começou a tremer. Foi indescritível. O povo cantava o refrão como se estivesse numa igreja, a bateria sentando a lenha. A turma da corda não conseguia conter os fiéis. Pintou um turista alemão filmando a cena, baita charuto na boca. Não aguentei. Tirei o palhaço da boca do gringo e puxei fundo. O andor todo balançava. Os foliões todos gritavam: “É agora! É agora!” Perto do Teatro Municipal uns babacas ensaiaram o corinho: “Mar-me-la-da! Mar-me-la-da!”. Saiu um cacete pra Maguila nenhum botar defeito, todo mundo dando e levando. O único jeito de acabar com aquilo era Aparecida levantar voo. Perdi a cabeça. Me pendurei no andor e dei um tremendo esporro: “Tá rateando, merda? Decola logo, sua filha da...!” E aí...
Eu quase sem ar:
E... aí?
Foi um voo curto mas valeu. Aparecida soltou um berro medonho, despregou do andor, planou uns dois metros, o manto azul de cetim feito asa-delta de pobre, e caiu de cabeça no meio da bateria. A massa delirou. Aparecida levou seis pontos na testa e, na Quarta-feira de Cinzas, foi morar com a tia. Disse que nunca mais queria me ver.
Por causa dos palavrões? - mas
Não. Por ter enfiado a brasa do charuto na perninha dela. Eu costumo dizer que santa voadora não admite co-piloto.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo