quinta-feira, 30 de abril de 2020

Falsificação de Deus

Agora que temos uma compreensão melhor do que é religião, podemos voltar a examinar o relacionamento entre religião e ciência. Há duas interpretações extremas para esse relacionamento. De acordo com uma delas, ciência e religião são inimigos jurados e a história moderna foi moldada pela luta de vida ou morte entre o conhecimento científico e a superstição religiosa. Ao longo do tempo, a luz da ciência desfez a escuridão da religião, e o mundo tornou-se cada vez mais secular, racional e próspero. Porém, ainda que algumas descobertas científicas solapem dogmas religiosos, isso não é inevitável. Por exemplo, um dogma muçulmano afirma que o Islã foi fundado pelo profeta Maomé na Arábia do século VII , e amplas evidências científicas sustentam isso.
Mais importante, a ciência sempre precisou da ajuda da religião para criar instituições humanas viáveis. Os cientistas estudam como o mundo funciona, mas não há um método científico para determinar como os humanos devem se comportar. A ciência nos diz que os humanos não podem sobreviver sem oxigênio. No entanto, será aceitável executar criminosos por asfixia? A ciência não sabe como responder a essa pergunta. Somente as religiões nos fornecem a orientação necessária.
Cada projeto prático que cientistas empreendem também se baseia em insights religiosos. Tome-se, por exemplo, a construção da represa das Três Gargantas no rio Yangtzé. Quando o governo chinês decidiu construí-la, em 1992, físicos calcularam as pressões que a represa teria de suportar; economistas previram quanto dinheiro ela custaria; e engenheiros eletricistas predisseram quanta eletricidade ela produziria. Contudo, o governo precisava levar em conta fatores adicionais. A construção da represa causaria a inundação de territórios extensos, que abrigavam muitas aldeias e cidades, milhares de sítios arqueológicos, além de paisagens e habitats únicos. Mais de 1 milhão de pessoas seriam deslocadas e centenas de espécies correriam perigo. Parece que a represa causou diretamente a extinção do golfinho-do-rio chinês. Independentemente do que se poderia pensar sobre a represa das Três Gargantas, sua construção era uma questão ética e não puramente científica. Nenhum experimento da física, nenhum modelo econômico e nenhuma equação matemática seriam capazes de determinar se a geração de milhares de megawatts e de bilhões de yuans era mais valiosa do que salvaguardar um pagode antigo ou o golfinho-do-rio chinês. Consequentemente, a China não pode funcionar com base apenas em teorias científicas. Ela precisa de alguma religião ou de alguma ideologia.
Alguns saltam para o extremo oposto e afirmam que ciência e religião são reinos totalmente separados. A ciência estuda os fatos, a religião versa sobre valores, e esse par nunca se encontra. A religião nada tem a dizer sobre fatos científicos, e a ciência deve manter a boca fechada no que concerne a convicções religiosas. Se o papa acredita que a vida humana é sagrada, e o aborto é pecado, os biólogos não podem validar ou refutar essa alegação. Como indivíduo privado, todo biólogo é bem-vindo para discutir com o papa. Mas, como cientista, o biólogo não pode entrar nessa briga.
Essa abordagem pode parecer sensata, porém ela interpreta equivocadamente o conceito de religião. Embora a ciência lide somente com fatos, a religião não se restringe a conceitos éticos. A religião não é capaz de fornecer nenhuma orientação prática, a menos que disponha de alegações factuais também, e nisso ela pode muito bem ir de encontro à ciência. As partes mais importantes de muitos dogmas religiosos não são seus princípios éticos, e sim declarações factuais do tipo “Deus existe”, “A alma é castigada por seus pecados no pós-vida”, “A Bíblia foi escrita por uma divindade e não por humanos”, “O papa é infalível”. Essas alegações são factuais. Muitos dos debates religiosos mais candentes, e muitos dos conflitos entre ciência e religião, envolvem tais alegações e não conceitos éticos.
Tome-se o aborto, por exemplo. Cristãos devotos opõem-se ao aborto, enquanto muitos liberais o apoiam. O cerne da questão é mais factual do que ético. Tanto cristãos como liberais acreditam que a vida humana é sagrada e que assassinato é crime hediondo. Mas discordam quanto a certos fatos biológicos: a vida humana começa no momento da concepção, no momento do nascimento ou em algum ponto intermediário? Na verdade, algumas culturas humanas sustentam que a vida não se inicia nem mesmo no nascimento. Segundo os Kung do deserto de Kalahari e vários grupos inuítes no Ártico, a vida humana só começa depois que o bebê recebe um nome. Quando nasce uma criança, os familiares esperam algum tempo antes de lhe darem um nome. Se decidem não ficar com o bebê (porque sofre de alguma deformidade ou por motivos econômicos), eles o matam. Contanto que o façam antes da cerimônia em que lhe é dado um nome, esse ato não é considerado assassinato. Pessoas de tais culturas podem muito bem concordar com liberais e cristãos em que a vida humana é sagrada e o assassinato é um crime terrível — e ainda assim sancionar o infanticídio.
Quando uma religião faz publicidade de si mesma, ela tende a enfatizar os valores belos. Mas não raro Deus se esconde nas letras miúdas de declarações factuais. A religião católica se apresenta em seu marketing como a religião do amor e da compaixão universais. Que maravilha! Quem poderia se opor a isso? Por que, então, nem todos os humanos são católicos? Porque, quando se leem as letras miúdas, descobre-se que o catolicismo exige também obediência cega ao papa “que nunca comete erros”, mesmo quando ordena a seus seguidores que saiam em cruzadas e queimem hereges na estaca. Essas instruções práticas não resultam somente de conceitos éticos, e sim da combinação de conceitos éticos com declarações factuais.
Quando saímos da esfera etérea da filosofia e observamos as realidades históricas, descobrimos que os relatos religiosos quase sempre incluem três partes:

1. Conceitos éticos, tais como “A vida humana é sagrada”.
2. Declarações factuais, como “A vida humana começa no momento da concepção”.
3. Uma combinação de conceitos éticos com declarações factuais, que resulta em orientações práticas, tais como “O aborto jamais deve ser permitido, mesmo um único dia após a concepção”.

A ciência não tem autoridade nem capacidade para refutar ou corroborar os conceitos éticos elaborados pelas religiões. Entretanto, os cientistas têm muito a dizer sobre declarações factuais religiosas. Por exemplo, os biólogos são mais qualificados que os sacerdotes para responder a questões factuais do tipo “Os fetos humanos têm sistema nervoso uma semana após a concepção? Eles podem sentir dor?”.
Para esclarecer melhor essa ideia, examinemos em profundidade um exemplo histórico real sobre o qual raramente se ouve em comerciais religiosos, mas que teve imenso impacto social e político em sua época. Na Europa medieval, os papas desfrutavam de uma autoridade política de longo alcance. Quando um conflito irrompia em algum lugar da Europa, eles invocavam autoridade para decidir a questão. A fim de estabelecer sua reivindicação de autoridade, eles repetidamente lembravam aos europeus a Doação de Constantino. De acordo com esse relato, em 30 de março de 315 o imperador romano Constantino assinou um decreto oficial assegurando ao papa Silvestre I e a seus herdeiros o controle perpétuo da parte ocidental do Império Romano. Os papas guardaram esse documento precioso em seu arquivo e o usavam como poderoso instrumento de propaganda sempre que enfrentavam a oposição de príncipes ambiciosos, cidades contenciosas ou camponeses rebeldes.
Na Europa medieval, as pessoas tinham grande respeito por decretos imperiais antigos e acreditavam que, quanto mais antigo o documento, mais autoridade ele encerrava. Também acreditavam ferrenhamente que reis e imperadores eram representantes de Deus. Constantino era especialmente reverenciado porque transformou o Império Romano de reino pagão em império cristão. Num conflito entre as vontades de algum conselho municipal atual e um decreto emitido pelo próprio grande Constantino, para os europeus medievais obviamente era ao documento antigo que teriam de obedecer. Por isso, sempre que o papa enfrentava oposição política, ele acenava com a Doação de Constantino, exigindo obediência. Não que funcionasse o tempo todo. Mas a Doação de Constantino era uma pedra fundamental da propaganda papal e da ordem política medieval.
Quando se examina atentamente a Doação de Constantino, descobrimos que seu relato se divide em três partes distintas:

1. Juízo ético: As pessoas devem respeitar os decretos imperiais antigos mais do que opiniões populares atuais.
2. Declaração factual: Em 30 de março de 315, o imperador Constantino assegurou aos papas o domínio sobre a Europa.
3. Orientação prática: Em 315, os europeus devem obedecer às ordens do papa.

A autoridade ética dos decretos imperiais antigos está longe de ser óbvia. A maioria dos europeus do século XXI pensa que a vontade dos cidadãos atuais prevalece sobre os ditames de monarcas mortos há muito tempo. Contudo, a ciência não pode juntar-se a esse debate ético porque nenhum experimento nem equação podem resolver a questão. Se uma cientista do presente retrocedesse setecentos anos no tempo até a Europa medieval, ela não seria capaz de demonstrar aos europeus medievais que os decretos de imperadores antigos são irrelevantes nas disputas políticas contemporâneas.
Mas a história da Doação de Constantino baseia-se não apenas em conceitos éticos. Envolve também algumas declarações factuais muito concretas, as quais a ciência é altamente qualificada tanto para confirmar quanto para refutar. Em 1441, Lorenzo Valla — um sacerdote católico e pioneiro da linguística — publicou um estudo científico demonstrando que a Doação de Constantino era uma falsificação. Valla analisou o estilo gramatical do documento, assim como as várias palavras e termos que continha. Ele demonstrou que o documento incluía palavras que eram desconhecidas no latim do século IV e que muito provavelmente fora forjado cerca de quatrocentos anos após a morte de Constantino. Além disso, a data que consta no documento é “30 de março, no ano em que Constantino era cônsul pela quarta vez, e Galicano foi cônsul pela primeira vez”. No Império Romano, eram eleitos dois cônsules a cada ano, e era costume datar os documentos com os respectivos anos de consulado. Infelizmente o quarto consulado de Constantino foi em 315, enquanto Galicano fora eleito cônsul pela primeira vez apenas em 317. Se esse documento tão importante realmente tivesse sido escrito no tempo de Constantino, nunca iria conter um erro tão evidente. É como se Thomas Jefferson e seus colegas tivessem datado a Declaração de Independência Americana em “34 de julho de 1776”.
Hoje todos os historiadores aceitam que a Doação de Constantino foi forjada na corte papal em algum momento do século VIII. Mesmo que Valla nunca tenha contestado a autoridade moral de antigos decretos imperiais, sua análise científica comprometeu a orientação prática de que os europeus teriam de obedecer ao papa.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

A sabedoria da loucura

Não é significativo que a língua inglesa chame as bebidas alcoólicas pelo nome de “spirits”? Donde essa curiosa sugestão? Penso que ela tem origens religiosas. No Pentecostes, os discípulos foram possuídos pelo Espírito, falaram e entenderam línguas que até então lhes eram desconhecidas, e os circunstantes tiveram a nítida impressão de que estavam bêbados. Pentecostes é loucura, nonsense, a quebra das regras familiares de compreensão, a revelação de um conhecimento que havia permanecido oculto até então, é Babel ao contrário. A sabedoria emerge da loucura. Aquilo a que damos o nome de “realidade” é “feitiço”. “É preciso fazer parar o mundo”, dizia D. Juan, o bruxo. Se isso não acontecer, ele não poderá ser visto com olhos diferentes.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

Fup e o Velho Sussurro da Morte



Desde as primeiras semanas em que esteve com eles, Fup demonstrou rígida paixão pelo equilíbrio e pela ordem no cotidiano doméstico. Dormia numa almofada grande de espuma, no corredor, equidistante dos quartos de Miúdo e de vovô Jake. Acordava Miúdo precisamente uma hora antes do nascer do sol, saltitando no seu peito para cima e para baixo. Comia um balde cheio de milho como pré-refeição, enquanto Miúdo cozinhava ovos, linguiça e panquecas para o desjejum que repartiam meio a meio, Fup comia lá fora na varanda, Miúdo acompanhava nas manhãs amenas. Depois do desjejum, ao nascer do sol, partiam para o dia de trabalho nas cercas. Fup ficava olhando Miúdo, acrescentando aqui e ali um comentário quacal. Às vezes ajudava, examinando o prumo de uma estaca com o olho meio torto, tangendo o fio de arame para testar a tensão, ou ocasionalmente segurando a ponta da arena; com a mesma frequência, porém, fuçava por toda parte, espetava um inseto errante, ou descansava. Quando Miúdo cavava buracos para as estacas, ela enfiava a cabeça debaixo da asa.
Exatamente entre o nascer do sol e o meio-dia, eles faziam um intervalo de meia hora para o sanduíche e o chá gelado que Miúdo preparava na noite anterior. Depois do intervalo, continuavam o trabalho até o meio-dia, e daí voltavam para casa, para o almoço. Miúdo começava a refeição enquanto Fup acordava vovô mordiscando-lhe os dedos do pé. Depois do almoço, Miúdo voltava para o trabalho nas cercas enquanto Fup acordava vovô mordiscando-lhe is dedos do pé. Depois do almoço, miúdo voltava para o trabalho nas cercas enquanto vovô e Fup se refugiavam na varanda para bebericar um pouco do Sussurro da Morte, ficar de papo pro ar e meditar sobre o fluxo das coisas em geral. Fup bebia num pires raso; Jake, direto da garrafa. Agradava profundamente a vovô o fato de tanto Miúdo quanto Fup apreciarem seu uísque. Miúdo ele sabia, usava a bebida para enfrentar a insônia e acalmar os sonhos. No caso de Fup, estava convencido de que a gota de emergência do Velho Sussurro da Morte lhe salvara a vida e, tinha certeza, ela continuava a usá-lo em homenagem aos seus poderes revitalizantes. Ela bebia cerca de três colheres de sopa por dia, e raramente mais que cinco, a não ser que o dia estivesse frio ou nebuloso. Sua única reação evidente ao uísque era bater o bico nas canelas de vovô quando queria mais.
Jim Dodge, in Fup

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Linhas tortas

Prefiro as linhas tortas, como Deus.
Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta
(Só pra poder andar torto).
Eu via o velho farmacêutico de tarde,
a subir a ladeira do beco, torto e deserto… toc ploc toc ploc.
Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta,
todo mundo haveria de olhar para mim:
lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.
Manoel de Barros

O levantar

Já eram cinco e meia quando eu disse pra ela “eu vou pular da cama” mas ela então se enroscou em mim feito uma trepadeira, suas garras se fechando onde podiam, e ela tinha as garras das mãos e as garras dos pés, e um visgo grosso e de cheiro forte por todo o corpo, e como a gente já estava quase se engalfinhando eu disse “me deixe, trepadeirinha”, sabendo que ela gostava que eu falasse desse jeito, pois ela em troca me disse fingindo alguma solenidade “eu não vou te deixar, meu mui grave cypressus erectus”, gabando-se com os olhos de tirar efeito tão alto no repique (se bem que ela não fosse lá versada em coisas de botânica, menos ainda na geometria das coníferas, e o pouco que atrevia sobre plantas só tivesse aprendido comigo e mais ninguém), e como eu sabia que não há rama nem tronco, por mais vigor que tenha a árvore, que resista às avançadas duma reptante, eu só sei que me arranquei dela enquanto era tempo e fui esquivo e rápido pra janela, subindo imediatamente a persiana, e recebendo de corpo ainda quente o arzinho frio e úmido que começou a entrar no quarto, mas mesmo assim me debrucei no parapeito, e, pensativo, vi que o dia lá fora mal se espreguiçava sob o peso de uma cerração fechada, e, só esboçadas, também notei que as zínias do jardim embaixo brotavam com dificuldade dos borrões de fumaça, e estava assim na janela, de olhos agora voltados pro alto da colina em frente, no lugar onde o Seminário estava todo confuso no meio de tanta neblina, quando ela veio por trás e se enroscou de novo em mim, passando desenvolta a corda dos braços pelo meu pescoço, mas eu com jeito, usando de leve os cotovelos, amassando um pouco seus firmes seios, acabei dividindo com ela a prisão a que estava sujeito, e, lado a lado, entrelaçados, os dois passamos, aos poucos, a trançar os passos, e foi assim que fomos diretamente pro chuveiro.
Raduan Nassar, in Um copo de cólera

A morte e a morte de Quincas Berro D’água - X



Às dez horas a noite, Leonardo, levantando-se do caixão de querosene, aproximou-se das velas, viu as horas. Acordou Eduardo a dormir de boca aberta, incômodo, na cadeira:
Vou embora. Às seis da manhã estarei de volta para você ter tempo de ir em casa mudar a roupa.
Eduardo estirou as pernas, pensou em sua cama. Doía-lhe o pescoço. No canto do quarto, Curió, Pé-de-Vento e cabo Martim conversavam em voz baixa, numa discussão apaixonante: qual deles substituiria Quincas no coração e no leito de Quitéria do Olho Arregalado? Cabo Martim, revelando um egoísmo revoltante, não aceitava ser riscado da lista de herdeiros pelo fato de possuir o coração e o corpo esbelto da negrinha Carmela. Eduardo, quando o eco dos passos de Leonardo perdeu-se na rua, fitou o grupo. A discussão parou, cabo Martim sorriu para o comerciante. Este olhava, invejoso, Negro Pastinha no melhor dos sonos. Acomodou-se novamente na cadeira, pôs os pés sobre o caixão de querosene. Doía-lhe o pescoço. Pé-de-Vento não resistiu, retirou a jia do bolso, colocou-a no chão. Ela saltou, era engraçada. Parecia uma assombração solta no quarto. Eduardo não conseguia dormir. Olhou o morto no caixão, imóvel. Era o único a estar comodamente deitado. Por que diabo estava ele ali, fazendo sentinela? Não era suficiente vir ao enterro, não estava pagando parte das despesas? Cumpria seu dever de irmão até bem demais em se tratando de um irmão como Quincas, um incômodo em sua vida.
Levantou-se, movimentou pernas e braços, abriu a boca num bocejo. Pé-de-Vento escondia na mão a pequena jia verde. Curió pensava em Quitéria do Olho Arregalado. Mulher e tanto... Eduardo parou ante eles:
Me digam uma coisa...
Cabo Martim, psicólogo por vocação e necessidade, perfilou-se:
Às suas ordens, meu comandante.
Quem sabe não iria o comerciante mandar comprar uma bebidinha para ajudar a travessia da noite longa?
Vocês vão ficar a noite toda?
Com ele? Sim senhor. A gente era amigo.
Então vou em casa, descansar um pouco – meteu a mão no bolso, retirou uma nota. Os olhos do Cabo, de Curió e Pé-de-Vento acompanhavam seus gestos. – Tá aí para vocês comprarem uns sanduíches. Mas não deixem ele sozinho. Nem um minuto, hein!
Pode ir descansado, a gente faz companhia a ele.
Negro Pastinha acordou quando sentiu o cheiro de cachaça. Antes de começar a beber, Curió e Pé-de-Vento acenderam cigarros; cabo Martim, um daqueles charutos de cinquenta centavos, negros e fortes, que só os verdadeiros fumantes sabem apreciar. Passara a fumaça poderosa sob o nariz do negro, nem assim ele acordara. Mas apenas destamparam a garrafa (a discutida primeira garrafa que, segundo a família, o Cabo levara escondida sob a camisa) o negro abriu os olhos e reclamou um trago.
Os primeiros tragos despertaram nos quatro amigos um acentuado espírito crítico. Aquela família de Quincas, tão metida a sebo, revelara-se mesquinha e avarenta. Fizera tudo pela metade. Onde as cadeiras para as visitas sentarem? Onde as bebidas e comidas habituais, mesmo em velórios pobres? Cabo Martim comparecera a muita sentinela de defunto, nunca vira uma tão vazia de animação. Mesmo nas mais pobres serviam pelo menos um cafezinho e um gole de cachaça. Quincas não merecia tal tratamento. De que adiantava arrotar importância e deixar o morto naquela humilhação, sem nada para oferecer aos amigos? Curió e Pé-deVento saíram em busca de assentos e mantimentos. Cabo Martim achava necessário organizar o velório com um mínimo de decência, pelo menos. Sentado na cadeira, dava ordens: caixões e garrafas. Negro Pastinha ocupara o caixão de querosene, aprovava com a cabeça. Devia-se confessar que, em relação ao cadáver propriamente dito, a família comportara-se bem. Roupa nova, sapatos novos, uma elegância. E velas bonitas, das de igreja. Ainda assim haviam esquecido as flores, onde já se viu cadáver sem flores?
Está um senhor – gabou Negro Pastinha. – Um defunto porreta!
Quincas sorriu com o elogio, o negro retribuiu-lhe o sorriso:
Paizinho... – disse comovido e cutucou-lhe as costelas com o dedo, como costumava fazer ao ouvir uma boa piada de Quincas.
Curió e Pé-de-Vento voltaram com caixões, um pedaço de salame e algumas garrafas cheias. Fizeram um semicírculo em torno ao morto e então Curió propôs rezarem em conjunto o Padre-Nosso. Conseguira, num surpreendente esforço de memória, recordar-se da oração quase completa. Os demais concordaram, sem convicção. Não lhes parecia fácil. Negro Pastinha conhecia variados toques de Oxum e Oxalá, mais longe não ia sua cultura religiosa. Pé-de-Vento não rezava há uns trinta anos. Cabo Martim considerava preces e igrejas como fraquezas pouco condizentes com a vida militar. Ainda assim tentaram, Curió puxando a reza, os outros respondendo como melhor podiam. Finalmente Curió (que se havia posto de joelhos e baixara a cabeça contrita) irritou-se:
Cambada de burros...
Falta de treino... – disse o Cabo. – Mas já foi alguma coisa. O resto o padre faz amanhã.
Quincas parecia indiferente à reza, devia estar com calor, metido naquelas roupas quentes. Negro Pastinha examinou o amigo, precisavam fazer alguma coisa por ele já que a oração não dera certo. Talvez cantar um ponto de candomblé? Alguma coisa deviam fazer. Disse a Pé-de-Vento:
Cadê o sapo? Dá pra ele...
Sapo, não. Jia. Agora, pra que lhe serve?
Talvez ele goste.
Pé-de-Vento tomou delicadamente a jia, colocou-a nas mãos cruzadas de Quincas. O animal saltou, escondeu-se no fundo do caixão. Quando a luz oscilante das velas batia no seu corpo, fulgurações verdes percorriam o cadáver.
Entre cabo Martim e Curió recomeçou a discussão sobre Quitéria do Olho Arregalado. Com a bebida, Curió ficava mais combativo, elevava a voz em defesa dos seus interesses. Negro Pastinha reclamou:
Vocês não têm vergonha de disputar a mulher dele na vista dele? Ele ainda quente e vocês que nem urubu em carniça?
Ele é que pode decidir... – disse Pé-de-Vento. Tinha esperanças de ser escolhido por Quincas para herdar Quitéria, seu único bem. Não lhe trouxera uma jia verde, a mais bela de quantas já caçara?
Hum! – fez o defunto.
Tá vendo? Ele não está gostando dessa conversa – zangou-se o negro.
Vamos dar um gole a ele também... – propôs o Cabo, desejoso das boas graças do morto.
Abriram-lhe a boca, derramaram a cachaça. Espalhou-se um pouco pela gola do paletó e o peito da camisa.
Também nunca vi ninguém beber deitado...
É melhor sentar ele. Assim pode ver a gente direito.
Sentaram Quincas no caixão, a cabeça movia-se para um e outro lado. Com o gole de cachaça ampliara-se seu sorriso.
Bom paletó... – cabo Martim examinou a fazenda. – Besteira botar roupa nova em defunto. Morreu, acabou, vai pra baixo da terra. Roupa nova pra verme comer, e tanta gente por aí precisando...
Palavras cheias de verdade, pensaram. Deram mais um gole a Quincas, o morto balançou a cabeça, era homem capaz de dar razão a quem a possuía, estava evidentemente de acordo com as considerações de Martim.
Ele está é estragando a roupa.
É melhor tirar o paletó pra não esculhambar.
Quincas pareceu aliviado quando lhe retiraram o paletó negro e pesado, quentíssimo. Mas, como continuava a cuspir a cachaça, tiraram-lhe também a camisa. Curió namorava os sapatos lustrosos, os seus estavam em pandarecos. Pra que morto quer sapato novo, não é, Quincas?
Dão direitinho nos meus pés.
Negro Pastinha recolheu no canto do quarto as velhas roupas do amigo, vestiram-no e reconheceram-no então:
Agora, sim, é o velho Quincas.
Sentiam-se alegres. Quincas parecia também mais contente, desembaraçado daquelas vestimentas incômodas. Particularmente grato a Curió, pois os sapatos apertavam-lhe os pés. O camelô aproveitou para aproximar sua boca do ouvido de Quincas e sussurrar-lhe algo sobre Quitéria. Pra que o fez? Bem dizia Negro Pastinha que aquela conversa sobre a rapariga irritava Quincas. Ficou violento, cuspiu uma golfada de cachaça no olho de Curió. Os outros estremeceram, amedrontados.
Ele se danou.
Eu não disse?
Pé-de-Vento terminava de vestir as calças novas, cabo Martim ficara com o paletó. A camisa Negro Pastinha trocaria, num botequim conhecido, por uma garrafa de cachaça. Lastimavam a falta de cuecas. Com muito jeito, cabo Martim disse a Quincas:
Não é para falar mal, mas essa sua família é um tanto quanto econômica. Acho que o genro abafou as cuecas...
Unhas-de-fome... – precisou Quincas.
Já que você mesmo diz, é verdade. A gente não queria ofender eles, afinal são seus parentes. Mas que pão-durismo, que sumiticaria... Bebida por conta da gente, onde já se viu sentinela desse jeito?
Nem uma flor... – concordou Pastinha. – Parentes dessa espécie eu prefiro não ter.
Os homens, uns bestalhões. As mulheres, umas jararacas – definiu Quincas, preciso.
Olha, paizinho, a gorducha até que vale uns trancos... Tem uma padaria que dá gosto.
Um saco de peidos.
Não diga isso, paizinho. Ela tá um pouco amassada mas não é pra tanto desprezo. Já vi coisa pior.
Negro burro. Nem sabe o que é mulher bonita.
Pé-de-Vento, sem nenhum senso de oportunidade, falou:
Bonita é Quitéria, hein, velhinho? O que é que ela vai fazer agora? Eu até...
Cala a boca, desgraçado! Não vê que ele se zanga?
Quincas, porém, nem ouvia. Atirava a cabeça para o lado do cabo Martim, que pretendera subtrair-lhe, naquela horinha mesmo, um trago na distribuição da bebida. Quase derruba a garrafa com a cabeçada.
Dá a cachaça do paizinho... – exigia Negro Pastinha.
Ele estava esperdiçando – explicava o Cabo.
Ele bebe como quiser. É um direito dele.
Cabo Martim enfiava a garrafa pela boca aberta de Quincas:
Calma, companheiro. Não tava querendo lhe lesar. Tá aí, beba a sua vontade. A festa é mesmo sua...
Tinham abandonado a discussão sobre Quitéria. Pelo jeito, Quincas não admitia nem que se tocasse no assunto.
Boa pinga! – elogiou Curió.
Vagabunda! – retificou Quincas, conhecedor.
Também pelo preço...
A jia saltara para o peito de Quincas. Ele a admirava, não tardou a guardá-la no bolso do velho paletó sebento.
A lua cresceu sobre a cidade e as águas, a lua da Bahia em seu desparrame de prata entrou pela janela. Veio com ela o vento do mar, apagou as velas, já não se via o caixão. Melodia de violões andava pela ladeira, voz de mulher cantando penas de amor. Cabo Martim começou também a cantar.
Ele adora ouvir uma cantiga...
Cantavam os quatro, a voz de baixo do Negro Pastinha ia perder-se mais além da ladeira, no rumo dos saveiros. Bebiam e cantavam. Quincas não perdia nem um gole, nem um som, gostava de cantigas.
Quando já estavam fartos de tanto cantar, Curió perguntou:
Não era hoje de noite a moqueca de Mestre Manuel?
Hoje mesmo. Moqueca de arraia – acentuou Pé-de-Vento.
Ninguém faz moqueca igual a Maria Clara – afirmou o Cabo.
Quincas estalou a língua. Negro Pastinha riu:
Tá doidinho pela moqueca.
E por que a gente não vai? Mestre Manuel é até capaz de ficar ofendido. Entreolharam-se. Já estavam um pouco atrasados pois ainda tinham de ir buscar as mulheres. Curió expôs sua dúvidas:
A gente prometeu não deixar ele sozinho.
Sozinho? Por quê? Ele vai com a gente.
Tou com fome – disse Negro Pastinha.
Consultaram Quincas:
Tu quer ir?
Tou por acaso aleijado, pra ficar aqui?
Um trago para esvaziar a garrafa. Puseram Quincas de pé. Negro Pastinha comentou:
Tá tão bêbedo que não se aguenta. Com a idade tá perdendo a força pra cachaça. Vambora, paizinho.
Curió e Pé-de-Vento saíram na frente. Quincas, satisfeito da vida, num passo de dança ia entre Negro Pastinha e cabo Martim de braço dado.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D’água

Forma e conteúdo

Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com o conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única.
Clarice Lispector, in Crônicas para jovens: de escrita e vida

Viagens

Quando os famas saem em viagem, seus costumes ao pernoitarem numa cidade são os seguintes: um fama vai ao hotel e indaga cautelosamente os preços, a qualidade dos lençóis e a cor dos tapetes. O segundo se dirige à delegacia e lavra uma ata declarando os móveis e imóveis dos três, assim como o inventário do conteúdo de suas malas. O terceiro fama vai ao hospital e copia as listas dos médicos de plantão e suas especializações.
Terminadas estas providências, os viajantes se reúnem na praça principal da cidade, comunicam-se suas observações e entram no café para beber um aperitivo. Mas antes eles se seguram pelas mãos e dançam em roda. Esta dança recebe o nome de Alegria dos famas.
Quando os cronópios saem em viagem, encontram os hotéis cheios, os trens já partiram, chove a cântaros e os táxis não querem levá-los ou lhes cobram preços altíssimos. Os cronópios não desanimam porque acreditam piamente que estas coisas acontecem a todo mundo, e na hora de dormir dizem uns aos outros:
Que bela cidade, que belíssima cidade.”
E sonham a noite toda que na cidade há grandes festas e que eles foram convidados. E no dia seguinte levantam contentíssimos, e é assim que os cronópios viajam.
As esperanças, sedentárias, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que é preciso vê-las, porque elas não vêm até nós.
Júlio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas

Samuel Smiles


Eu tinha visto esse nome várias vezes na seleta, mas, como não sabia pronunciá-lo, acostumei-me a tossir no fim das lições em que ele E aparecia subscrevendo medonhas trapalhadas. Deviam ser regras importantes, imaginei, regras úteis se me entrassem na cabeça; mas naquele tempo não adivinhei o que Samuel Smiles exigia de mim. Aborrecendo-o, respeitei-o demais, por não perceber o que ele dizia e até por ignorar como se chamava.
Esse caso rendeu-me decepções e algum proveito. Cantarolei bocejando os nebulosos conselhos. A professora me corrigia. Quando, porém, eu engrolava, tossindo, o nome do autor, faltava a emenda — e em consequência presumi que, pelo menos nesse ponto, a rudeza da mulher coincidia com a minha. Certifiquei-me disso deixando de tossir e pronunciando Smiles de várias maneiras, sem que D. Agnelina me repreendesse.
Afinal percebi nela um procedimento esquisito: antes que eu largasse barbaramente a extraordinária palavra, fechava o livro e desconversava. Nasceu daí uma espécie de cumplicidade, que a tornou razoável durante meses. Em aritmética eu era um selvagem, pouco mais ou menos um selvagem, mas fui tolerado, e creio que devo isto a Samuel Smiles.
Essa professora atrasada possuía raro talento para narrar histórias de Trancoso. Visitava-nos, prendia-nos até meia-noite com lendas e romances, que estirava e coloria admiravelmente. Nada me ensinou, mas transmitiu-me afeição às mentiras impressas.
Talvez a prenda notável de D. Agnelina tenha induzido meu pai a afastar-me do mau caminho, confiar-me ao Professor Rijo, aposentado, rábula distinto.
Éramos apenas dois alunos, eu e meu primo José, um pouco mais bruto que eu. Na ausência do mestre, bocejávamos, olhávamos as andorinhas no céu, as lagartixas brancas na parede e os lombos temerosos dos livros nas estantes. O homem aparecia de salto, tomava as nossas lições rapidamente, encoivarava algumas perguntas e dava logo as respostas, sem esperar que acertássemos ou errássemos.
Aí me caiu a leitura de uma das maçadas de Samuel Smailes. Tossi e resmunguei a segunda palavra enchendo a boca de língua. O professor interrompeu-me, separando as sílabas com bastante clareza: Samuel Smailes.
Arregalei o olho, o sujeito repetiu: Smailes. Balbuciei o nome encrencado sem nenhuma segurança. Imaginei um engano: tinha por erro o que divergia da minha maneira habitual de falar. Realmente pronunciara Smiles de vários modos, mas supunha que alguns deles estivesse direito. Julguei o professor uma besta — e meu primo José concordou.
Finda, porém, essa manifestação de rebeldia, chegaram-me dúvidas, grande espanto em seguida, por fim mistura vaga de resistência e admiração àquele homem que alterava as letras. A firmeza séria me deu a suspeita de que me achava na presença de uma autoridade. E como não me seria possível discernir razões profundas, contentei-me com as aparências — e a suspeita se transformou em convicção.
Eu afirmava com facilidade. Lera um romance e conseguira entendê-lo. Entendera pedaços, que o meu vocabulário era insignificante. Pois julguei-o, seguro, o maior romance do mundo. Depois a certeza se abalou, assaltaram-me vacilações dolorosas.
O professor não podia comparar-se aos viventes comuns. Grave, o dedo na página, articulara: Smailes. Nas lições seguintes percebi que ele não se contradizia. Comecei então a admirá-lo. Procurei outras palavras em que o i se pronunciasse daquele jeito. Inutilmente. Apesar de tudo Smiles era Smailes, e ninguém me tirava daí.
Ora, um dia, na loja, achava-me remoendo um jornal em voz alta, só para me familiarizar com a literatura, sem notar que me escutavam. De repente o meu conhecido avultou no papel. Temperei a goela e exclamei: Samuel Smailes. Um dos caixeiros censurou-me a ignorância e corrigiu: Samuel Símiles. Outro caixeiro hesitou entre Símiles e Simíles. Repeti que era Smailes, e isto produziu hilaridade.
O moço que dizia Simíles costumava zombar de mim com barulho. Qualquer dito meu o excitava: mordia os beiços, avermelhava-se como um peru, lacrimejava, enfim não se continha, caía num riso convulso, rolava sobre o balcão, meio sufocado. Certamente eu era ridículo: alguma tolice provocara a manifestação ruidosa. Que tolice? Não a enxergava. Inteligência curta.
O empregado que dizia Simíles, mulato vaidoso e seco, nunca me olhava de frente. Quando eu lhe falava, virava-se para outro lado e rosnava ofensas em linguagem escolhida. Entre os indivíduos que frequentavam a loja, havia um particularmente desagradável: Fernando. Esse monstro sentia prazer em martirizar-me. Grosseiro demais, insultava-me sem precisão.
Eu tinha o juízo fraco e em vão tentava emendar-me: provocava risos, muxoxos, palavrões. Encolhia-me, esfriava, a vista escurecia. Calava-me na presença desses entes ruins, escapulia-me como um rato, mas não conseguia livrar-me. Sentava-me num canto, em silêncio, folheando o dicionário para interpretar o romance de capa e espada, e eles se chegavam, pouco a pouco tomavam conta de mim, quase sempre referindo-se a vagos disparates meus.
Algumas vezes busquei desembaraçar-me reproduzindo molemente, com as orelhas pegando fogo, os insultos de Fernando. Sempre me dei mal: as risadas cresciam, os muxoxos engrossavam, Fernando se tornava mais feroz. Inútil reagir.
Naquele dia, porém, quando o mulato me replicou duramente, jurei que ele estava errado. O tipo branco foi-se avermelhando, acabou explodindo na risada ordinária. Asseverei de novo que Samuel era Smailes, perfeitamente Smailes, mas falei bambo, muito infeliz e com vontade de chorar. O rapaz continuava a rir, o mulato resmungava e franzia as ventas, Fernando me injuriava.
Diante disso, invoquei a autoridade do professor, que devia conhecer bem Samuel Smiles. O professor dizia Smailes. Mentira, gritou Fernando — injustiça, pois eu não sabia mentir. Cobriram-me de motejos e resolveram adotar a opinião do mulato: Samuel Símiles. Arriei, vencido.
Mas sosseguei. Aquela vaia não me alcançava: feria uma pessoa sabida. Achei apoio, indaguei se as bobagens que a trinca maliciosa me atribuía eram bobagens. Cresci um pouco, esteado no homem que só me ensinou o nome de Samuel Smiles, e ensinou muito. Sentado num caixão, o dicionário nas pernas, ri-me dos três. Idiotas. Eu era meio parvo, todos se impacientavam com a minha falta de espírito. Rude, sem dúvida. Vocabulário mesquinho, entendimento escasso.
Mas Samuel Smiles impunha-se facilmente. Era Smailes porque a voz do professor me chegava clara, porque a unha amarela do professor riscava a página com energia. Samuel Smailes, pois não.
E as pilhérias dos sujeitos resvalaram por mim sem fazer mossa. O coração aliviou. Isolei-me, o rosto metido no dicionário. Imbecis. Tinham decidido por maioria que Samuel era Símiles.
Pus-me a ler baixo, inteiramente desanuviado. Imbecis. Samuel Smailes, com certeza. E enrosquei-me, embrenhei-me no dicionário, eximi-me da influência dos três malvados. Samuel Smiles, escritor cacete, prestou-me serviço imenso.
Graciliano Ramos, in Infância

Satélite

Imagem: Daniel Lopes

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.
Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.
Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!
Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
– Satélite.
Manuel de Barros

Uma vela para Dario

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros que se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca. Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede — não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que faça um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados — com vários objetos — de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra cidade. Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes. O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo — os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio — quando vivo — só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.
A última boca repete — Ele morreu, ele morreu. E a gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto. Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.
Dalton Trevisan, in Os cem melhores contos brasileiros do século

As torres do Morandi

  Natureza morta (copos e caixas) - 1951, de Giorgio Morandi

Fui visitar o Giorgio Morandi, porque sempre gostei muito dele e porque ele se mudou para o nosso bairro e achei que devia lhe dar as boas-vindas, como um bom vizinho. O pintor italiano Giorgio Morandi está morto desde 1964, claro, e o que chegou ao Museu de Arte Moderna de Paris foi uma exposição das suas pinturas e desenhos, mas tudo transcorreu como num encontro com um velho amigo: nenhuma surpresa — Morandi pintou essencialmente a mesma coisa a vida inteira, fui vê-lo porque sabia exatamente o que ia encontrar — e muito prazer. Só não posso dizer que botamos os nossos assuntos em dia porque não teríamos sobre o que conversar. Depois do 11 de setembro, nenhum vivo tem assunto com qualquer morto antigo, fora as banalidades de sempre. A destruição do World Trade Center acabou com toda a possibilidade de diálogo entre as gerações. Nossas referências não batem, quem viu as torres se esfarelarem e quem não viu vivem em universos diferentes, sem comunicação possível. Quem já estava morto na ocasião, então, nem conseguiria conceber de que catzo falamos. Mas entre todos os mortos que não nos entenderiam, Morandi talvez não nos entendesse de uma maneira especial.
O que ele pintou quase que exclusivamente a vida inteira foram naturezas-mortas, conjuntos de garrafas, caixas, vasos, vasilhames que ao mesmo tempo se integravam ao fundo e entre si abstratamente e mantinham sua distinção concreta e sólida de coisas. Não foi só porque durante alguns anos aquelas torres em chamas não nos sairão da cabeça que pensei imediatamente nelas vendo as formas verticais de Morandi, as caixas e garrafas longilíneas firmemente postas numa superfície real, com volume, presença e peso, e magicamente postas em outra dimensão, a salvo do tempo, da história, até da interpretação. Tem-se a impressão que os próprios objetos que Morandi reproduzia nos seus conjuntos repetidos eram sempre os mesmos, que ele estava na verdade pintando a sua permanência enquanto a vida e o pintor passavam por eles. Não são as garrafas e as caixas, é a sua existência silenciosa que está nos quadros de Morandi, as coisas que ele retratou são apenas o signo do que nelas é irretratável. Quem acompanhava a sua obra ano a ano devia se divertir com a reincidência dos objetos — aquela cumbuca de novo! — que ele pintava obsessivamente, e era como se cada pintura fosse apenas um novo registro daquele mistério, uma coisa existindo, persistindo em ex istir. Morandi é o último morto com quem você poderia falar de caixas de ferro eva nescentes, de formas que se declaram triunfalmente eternas desaparecendo, e o seu significado mudando, em minutos.
Natureza-morta” em inglês é still life, vida parada, vida em silêncio. O inglês descreve melhor do que o italiano ou o francês o que Morandi fazia. Não aparecem figuras humanas na sua obra. A vida que há nos seus quadros é toda inferida: a mudança na perspectiva de um conjunto, uma ou outra marca de uso na superfície de um dos seus objetos domésticos, um sombreado denunciando a existência de uma fonte de luz em algum lugar real fora do quadro. Nenhum movimento, e tudo se repetindo. O humano só existe na obra de Morandi como contraponto ao que se vê, às coisas reduzidas a elas mesmas e também significando a sua irredutibilidade. Ou: o humano é tudo na obra de Morandi que não se vê. O próprio pintor interfere o menos possível com seu próprio trabalho e deixa que a obsessão o guie. Ou: a única coisa humana na obra de Morandi é a obsessão.
Ele levou uma vida parada. Raramente se afastou de Bolonha, sua cidade natal. Nunca se casou e morava com três irmãs, também solteiras, na casa em que se criaram. Tudo se repetindo. Era um homem comprido e elegante — uma torre incongruente — de hábitos conservadores. Depois de se envolver, na juventude, com o movimento artístico fascista, imagino que mais por ingenuidade do que por convicção, nunca mais se manifestou sobre política ou mesmo, que eu saiba, sobre arte. Não sei se entendia a sua própria obsessão. Gostei de pensar, ao visitá-lo no museu, que estava visitando talvez o último homem tranqüilo do nosso tempo. Na vida parada captada nos seus quadros estava o desprezo das coisas pelo drama humano, mas confesso que eu estava ali justamente para me convencer da transitoriedade da angústia, o sentimento mais humano do momento, e esquecer o drama. Se pudesse passaria o dia com ele, tentando armazenar tranquilidade para enfrentar o que vem aí. Mas manda a boa educação que as visitas de cortesia sejam curtas e, mesmo, o museu fechava às cinco e meia. De qualquer maneira, é bom pensar que as caixas do Morandi continuavam lá depois do museu fechado, independente mente do nosso olhar e da nossa passagem, sólidas, indestrutíveis, significando apenas sua própria permanência — e silêncio.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Um vasto subúrbio

A televisão dispara imagens que reproduzem o sistema e vozes que lhe fazem eco; e não há recanto do planeta onde ela não chegue. O mundo inteiro é um vasto subúrbio de Dallas. Nós comemos emoções importadas como se fossem salsichas em lata, enquanto os jovens filhos da televisão, treinados para contemplarem a vida em vez de a fazerem, encolhem os ombros.
Na América Latina, a liberdade de expressão consiste no direito ao protesto inútil nalguma rádio e em jornais de pequena tiragem. Quanto aos livros, já não é necessário que a polícia os proíba: proíbe-os o preço.
Eduardo Galeano, in O Livro dos Abraços

Tempos sombrios

Há neste momento uma espécie de fragmentação, de pulverização, na qual as ideias não têm consistência, em que tudo escapa pelos dedos de nossas mãos. É um período negro. É claro que se trata de um período negro, mas isso não é definitivo.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

Ainda Otacília

Desde esse primeiro dia, Diadorim guardou raiva de Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme. O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro. Que Diadorim tinha ciúme de mim com qualquer mulher, eu já sabia, fazia tempo, até. Quase desde o princípio. E, naqueles meses todos, a gente vivendo em par a par, por altos e baixos, amarguras e perigos, o roer daquilo ele não conseguia esconder, bem que se esforçava. Vai, e vem, me intimou a um trato: que, enquanto a gente estivesse em ofício de bando, que nenhum de nós dois não botasse mão em nenhuma mulher. Afiançado, falou: ― Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo, feito jurado nos Santos-Evangelhos! Severgonhice e airado avêjo servem só para tirar da gente o poder da coragem... Você cruza e jura?! Jurei. Se nem toda a vez cumpri, ressalvo é as poesias do corpo, malandragem. Mas Diadorim dava como exemplo a regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem ― o sempre sem mulher, mas valente em qualquer praça. Prometi. Por um prazo, jejuei de nem não ver mulher nenhuma. Mesmo. Tive penitência. O senhor sabe o que isso é? Desdeixei duma rôxa, a que me suplicou os carinhos vantajosos. E outra, e tantas. E uma rapariga, das de luxo, que passou de viagem, e serviu aos companheiros quase todos, e era perfumada, proseava gentil sobre as sérias imoralidades, tinha beleza. Não acreditei em juramento, nem naquilo de seo Joãozinho Bem-Bem; mas Diadorim me vigiava. De meus sacrifícios, ele me pagava com seu respeito, e com mais amizade. Um dia, no não poder, ele soube, ele quase viu! eu tinha gozado hora de amores, com uma mocinha formosa e dianteira, morena cor de dôce-de-burití. Diadorim soube o que soube, me disse nada menos nada. Um modo, eu mesmo foi que uns dias calado passei, na asperidão sem tristeza. De déu em demos, falseando; sempre tive fogo bandoleiro. Diadorim não me acusava, mas padecia. Ao que me acostumei, não me importava. Que direito um amigo tinha, de querer de mim um resguardo de tamanha qualidade? As vezes, Diadorim me olhasse com um desdém, fosse eu caso perdido de lei, descorrigido em bandalho. Me dava raiva. Desabafei, disse a ele coisas pesadas. ― Não sou o nenhum, não sou frio, não… Tenho minha força de homem! Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saíu para longe de mim; desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para eu ter pena? Homem não chora! ― eu pensei, para formas. Então, eu ia deixar para a boca dos outros aquela menina que se agradou de mim, e que tinha cor de dôce-de-burití e os seios tão grandes?! Ah, essa agora não estava a meu dispor, tínhamos viajado muito para longe de onde ela morava. Mas entramos num arraial maior, com progresso de bordel, no hospedado daquilo usufruí muito, sou senhor. Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele arraial, me lembro. Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se não tinham chá de mate seco, comercial; e um homem tirou instantâneo nosso retrato. Se chamava o lugar: São João das Altas. Mulher esperta, cinturinhazinha, que me fez bem. O senhor releve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as lembranças da mocidade. Não estou contando? Pois minha vida em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu ― como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim.
E ainda falhamos dois dias na Fazenda Santa Catarina. Naquele primeiro dia, eu pude conversar outras vezes com Otacília, que, para mim, hora em mais hora embelezava. Minha alma, que eu tive; e minha ideia esbarrada. Conheci que Otacília era moça direta e opiniosa, sensata mas de muita ação. Ela não tinha irmão nem irmã. Sôr Amadeu chefiava largo: grandes gados em léguas de alqueires. Otacília não estava nôiva de ninguém. E ia gostar de mim? De moça-de-família eu pouco entendesse. A ser, a Rosauarda? Assim igual eu Otacília não queria querer; salvante assente que da Rosauarda nunca me lembrei com desprezo: não vê, não cuspo no prato em que o bom já comi. Sete voltas, sete, dei; pensamentos eu pensava.
Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas coisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria ― como em fala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. O que uma mocinha assim governa, sem precisão de armas e galopes, guardada macia e fina em sua casa-grande, sorrindo santinha no alto da alpendrada... E ela queria saber tudo de mim, mais ainda me perguntava. ― Donde é mesmo que o senhor é, donde? Se sorria. E eu não medi meus alforges! fui contando que era filho de Seô Selorico Mendes, dono de três possosas fazendas, assistindo na São Gregório. E que não tinha em minhas costas crime nenhum, nem estropelias, mas que somente por cálculos de razoável política era que eu vinha conduzindo aqueles jagunços, para Medeiro Vaz, o bom foro e patente fiel de todos estes Gerais. Aqueles? Diadorim e os outros? Eu era diferente deles.
Fiquei esperando o que ela desse em resposta. Nem nada não acreditava? Mas Otacília mudou para séria a feição do rosto, não queria mais de minha vida só assim meiamente indagar. Os de todos lindos olhos dela estavam me assinalando o céu com essas nuvens. Eu tinha renegado Diadorim, travei o que tive vergonha. Já era para entardecendo.Vindo na vertente, tinha o quintal, e o mato, com o garrulho de grandes maracanãs pousadas numa embaúba, enorme, e nas mangueiras, que o sol dourejava. Da banda do serro, se pegava no céu azul, com aquelas peças nuvens sem movimento. Mas, da parte do poente, algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, como que com eles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas beiras matas escuras e águas todas do Urucúia, e nesse céu sertanejo azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar rajas feito de ferro quente e sangues. Digo, porque até hoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, como a mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu, senhor? Lhe ensino! porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo logo depois era de Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti. O sol entrado.
Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do engenho, deitados em couros e esteiras ― nem se tinha o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores. Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na beira da rebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo, Fafafa e J oãoVaqueiro não esbarravam de falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens da Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava sempre naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos pensávamos as mesmas coisas; o que cada um sonhava, quem é que sabia?
Aquilo é poço que promete peixe... ― o Jesualdo disse. Dela devia de ser. ― Amigo, não toque no nome dessa moça, amigo!... ― eu falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a sério fatal, deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por longe, a mãe-da-lua suspirou o grito: ― Floriano, foi, foi, foi... ― que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva. De repente.
Riobaldo, você está gostando dessa moça?
Aí era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A voz dele vinha pelos dentes.
Não, Diadorim. Estou gostando não... ― eu disse, neguei que reneguei, minha alma obedecia.
Você sabe do seu destino, Riobaldo?
Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má loucura de tudo aquilo. Tremi não.
Você sabe do seu destino, Riobaldo? ― ele reperguntou. Aí estava ajoelhado na beira de mim.
Se nanja, sei não. O demônio sabe... ― eu respondi. ― Pergunta...
Me diga o senhor! por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece ― vivo no momento. Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele dansar produziam, de estar brilhando. E ele devia de estar mordendo o correiame de couro.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas