Adelaide

A sociedade comercial Ramos & Costa, explorando o negócio de fazenda, miudeza, ferragem e perfumaria estabeleceu-se numa esquina do largo principal da cidade: prédio vistoso, com diversas portas, um letreiro vermelho e negro feito por Joaquim Correntão, que pintava índios empenachados e falava muito em chimpanzés e orango-tangos. Na loja havia dois caixeiros e um guarda-livros.
A família se instalou na Rua do Juazeiro, numa casa próxima à cadeia, e dissabores aí nos surgiram. Certamente meu pai se esforçava demais por agüentar-se e trepar. Começou a ter vertigens e síncopes, desacordava minutos compridos, e nós nos alarmávamos, órfãos, chorávamos olhando o corpo morto.
Levantava-se e revivia, continuava na faina de subir, nivelar-se aos parentes enraizados na lavoura. Alguns iam visitar-nos, duros, tesos. Findas essas cerimônias, meu pai caía num abatimento profundo. Ás vezes se deitava, enrolava-se nos cobertores, desalentava-se, em tremuras, anunciava aos gritos que ia morrer. Vinha o Dr. Mota Lima, dava-lhe um vomitório de substância, encorajava-o pregando lhe os óculos grossos de míope. O doente se envergonhava daquele barulho — e horas depois lisonjeava os proprietários, colaborava na política.
A terra era um lamaçal cheio de ladeiras. Em tempo de inverno a gente andava com dificuldade no calçamento de pedras soltas, entremeadas de barrocas.
Matricularam-me na escola pública da professora Maria do O, mulata fosca, robusta em demasia, uma das criaturas mais vigorosas que já vi. Esse vigor se manifestava em repelões, em berros, aos setenta ou oitenta alunos arrumados por todos os cantos.
Localizaram-me no corredor — e, pouco fiscalizado, quase despercebido, reabri desgostoso o terceiro livro do Barão de Macaúbas, tornei a encalhar nas regras de pontuação. As minhas deficiências ocultaram-se alguns dias: Dondom, mocinha pálida e misericordiosa, tomou-me as lições, protegeu-me, corrigiu-me a pronúncia, inutilmente, e fez por mim na ardósia as contas enigmáticas.
Mandavam-me rabiscar algumas linhas pela manhã. Logo no início desse terrível dever, o pior de todos, surgiu uma novidade que me levou a desconfiar da instrução de Alagoas: no interior de Pernambuco havia 1899 depois dos nomes da terra e do mês; escrevíamos agora 1900, e isto me embrulhou o espírito. Faltou-me a explicação necessária. Como a doce mestra sertaneja, clara, de belos caracóis imaculados, superava a outra, escura, agreste, de músculos rijos, nos olhos raivosos estrias amarelas, considerei a nova data um erro. Com certeza não foi esta reflexão que mo endureceu a munheca e povoou de borrões o traslado, mas pode ter tido influência: realmente não caprichei na fatura de sinais duvidosos.
Uma vez, notando-me o desânimo diante da folha machucada, Dondom tomou a pena, traçou vários caracteres em caligrafia direita, emagrecendo-os, maneira.
Conselho perdido: as garatujas de 1900 eram iguais às de 1899. E quando a professora foi julgar as escritas e viu o dolo, chamou-me, exigiu esclarecimento.
Desejei mentir, responsabilizar-me. Impossível. Olhei desesperado a minha cúmplice. D. Maria do O envolveu a mão nos cabelos da menina, deixando livres o indicador e o polegar, com que me agarrou uma orelha. E, tendo-nos seguros, agitou o braço violentamente: rodopiamos como dois bonecos e aluímos sobre os bancos.
Voltei ao anonimato e à sombra, contundido. Mas a benévola imprudência da moça e a raiva da enorme bruta falharam: permaneci obtuso, odiando as vírgulas e o catecismo, só abrindo os volumes sujos à hora da lição. Felizmente escapava entre dezenas de garotos rudes. Se não fosse a recordação de uns dedos que me apertavam a orelha, conseguiria achar paz e segurança. Na sala, vendo a mulata ou cafuza brandir a palmatória, precisaria comportar-me bem, simular atenção, molhar de saliva as páginas detestáveis. Ali, no encolhimento e na insignificância, os livros fechados, embrutecia-me em leves cochilos, quase só.
Desperto, bocejava, examinava o quintal estreito, que subia o morro do cemitério, argiloso e resvaladiço. Perto, na cozinha, três velhas, tias da professora, miúdas e cor de piche, torravam milho no caco, pisavam milho no pilão, enchiam de fubá caixinhas coloridas e franjadas. Os alunos astutos compravam aquilo, massa pegajosa, amarga, nauseabunda — e os ganhos da indústria caseira excediam talvez o vencimento que o Tesouro pingava. Constrangida no espartilho, branqueada a pó-de-arroz, D. Maria do O fingia humanizar-se lá fora: a voz amansava, a carne se reprimia, doméstica, os bugalhos amarelentos se ocultavam sob as pálpebras roxas — e a fera metia as garras nos cabelos das crianças, adulando.
Entre as vítimas desse diabo, a mais infeliz era minha prima Adelaide. Os pais não queriam separar-se dela. E, ricos, podendo confiá-la a estabelecimento que ensinasse línguas difíceis, tinham resolvido instruí-la sem perdê-la de vista.
Os colégios mais ou menos europeus ficavam longe. Iriam soltá-la por este mundo, sujeita a inconveniências? Não. A pequena conservaria, perto de casa, todas as virtudes: bordaria fronhas; ligar-se-ia no altar, sem namoro, a um rapaz de juízo e fortuna, bem apessoado. E diferençar-se-ia das mulheres que fumavam cachimbo de barro. Uma Adelaide letrada, não muito letrada, com as inovações e as letras necessárias. Uma Adelaide que se banhasse no riacho e falasse francês.
Ora, João Leite, dono do Cavalo-Escuro, não conhecia os degraus da ciência. Acreditara num diploma da escola normal, entregara a filha a D. Maria do O. E, em consequência, uma vez por semana, carros de bois e cargueiros derramavam na escola formas de açúcar, melado, sacos de grão, farinha. A princípio esse exagero fora recebido com alvoroço, mas habituaram-se a ele, esqueceram agradecimentos, enfim aboliram as gatimônias dispensadas ao portador risonho, o crioulo José Luís. Adelaide se rebaixara. Estava ali quase órfã — e a horrenda mulata inchava e se envaidecia, publicando por meios indiretos que fazia caridade a uma intrusa. Insensível ao pagamento largo, torturava-a.
Certamente não começara impondo-lhe maus tratos: afeita à liberdade, ao mando, às correrias, às injúrias a caboclos na bagaceira, Adelaide se rebelaria contra a nova autoridade, aparentemente igual às figuras que serviam na casa-grande. Indispensáveis meses e anos para dominar a criaturinha, degradá-la, enquanto o algoz se acomodava também à situação, experimentava as forças, apurava a maldade. No começo o jeito servil, o sorriso convencional; em seguida um olhar frio, gesto de enfado, palavra dura; a lisonja recomposta; novamente acrimônia e aspereza. Idas e vindas, intermitências. Um castigo — e logo o afã de obliterá-lo, explicá-lo como trabalho de educação. A covardia manhosa adoçava umas tréguas curtas. Não fosse a garota badalar, pedir aos pais que a retirassem daquele inferno. Não pedia. Talvez até ignorasse que estava nele. Tinham-na vencido, tinham-lhe gasto o fio em pedra de amolar. Afinal desapareceram as precauções. El a menina, triste, olhava a rua, os montes verdes. Silenciosa, descia, cada vez mais descia, esgueirava-se, tentava ocultar a magreza, na aula muito povoada. Tentativa inútil. D. Maria do O atravessava as pessoas com os olhos, achava num canto da sala o corpinho fugidio, imputava-lhe qualquer falta. Às vezes a casa não estava bem varrida. Marcas de poeira, visíveis entre os bancos, avultavam apontadas pelo grosso dedo severo, comentadas pela voz estridente. E a infeliz, vergando sob a cólera despropositada, ia buscar a vassoura, limpar o tijolo, havia-se reduzido à condição de criada. Na labuta doméstica, sofria a birra das três velhas miúdas e cor de piche. Essas fúrias boçais vinham de classe muito baixa, tinham decerto adquirido em senzalas o veneno que destilavam. Da subserviência, antiga, passavam às ordens brutais, vingavam-se numa possível descendente de senhores remotos. Adelaide curvava o espinhaço, calejava na obediência, esmorecia nos trabalhos mais humildes.
A estranha inversão de papéis me surpreendia e revoltava, mas a surpresa e a revolta nunca se manifestaram. Longe da escola, em arrancos de coragem, afrontei as megeras.
Ah! negras!
Ali no corredor, o livro esquecido nos joelhos, vendo o quintal, o morro, ouvindo as lições cantadas e a arrelia da mestra, anulava-me, colava-me à parede, pusilânime e esquivo. Não ousaria revelar afeto a minha prima, não me arriscaria sequer a observar o martírio dela. Nas horas de aflição, multiplicadas, baixava a cabeça, fingia não perceber os braços finos, o rosto murcho e pálido, a boca torcida, os grandes olhos assustados, sem lágrimas. Receava, mostrando qualquer sinal de interesse, magoar a pobre, humilhá-la ainda mais. Talvez isso fosse hipocrisia: o que eu receava intimamente era comprometer-me associando-me àquela fraqueza, receber cachações destinados a ela. Não me parecia que Adelaide pudesse reabilitar-se, recuperar a alma de proprietária, dominar os cambembes esvaídos no eito. O engenho perdera a grandeza, era uma sombra de engenho, e a sinhá-moça arrastaria anos de vexame, até o fim da vida.
Tinha-me chegado vagas notícias da escravidão, sem relho e sem tronco, aceitável, quase desejável. Maria Moleca e Vitória, livres, viviam sossegadas em casa de meu avô. Não me vinha a ideia de que se conservassem ali por hábito ou por não terem para onde ir. Estavam bem, sempre tinham estado bem. As tias da professora haviam sido mucamas de luxo, sem dúvida, antes da maluqueira de uma princesa odiosa. Ingratas. Não me ocorria que alguém manejara a enxada, suara no cultivo do algodão e da cana: as plantas nasciam espontaneamente. E não pensava no sacrifício necessário às três mulheres para levantar a sobrinha fusca, desbastá-la, vesti-la, escová-la, impingi-la na sociedade. Essa metamorfose era casual. E arrepiava-me.
Coitada de minha prima, tão boa, tão débil, suportando as enxaquecas das miseráveis. Lugar de negro era a cozinha. Por que haviam saído de lá, vindo para a sala, puxar as orelhas de Adelaide? Não me conformava. Que mal lhes tinha feito Adelaide? Por que procediam daquele modo? Por quê?
Graciliano Ramos, in Infância

Ao linotipista


Desculpe eu estar errando tanto na máquina. Primeiro é porque minha mão direita foi queimada. Segundo, não sei por quê.
Agora um pedido não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
Escrever é uma maldição.
Clarice Lispector, in Crônicas para jovens: de escrita e vida

Quando o Rio não era Rio

Naquele tempo o Rio não era o Rio. Eu me lembro muito bem quando começou essa moda de dizer: vou ao Rio, cheguei do Rio. Até então nós todos dizíamos solenemente: Rio de Janeiro. E nos debruçávamos sonhadoramente sobre os cartões-postais que as pessoas que iam ao Rio de Janeiro mandavam: o bondinho do Pão de Açúcar (que era de Assucar) e o Corcovado, ainda sem Cristo.
Mas havia dois palácios de maravilha para a nossa imaginação; seus nomes soavam belíssimos: a Galeria Cruzeiro e o Pavilhão Mourisco. Não consigo refazer a ideia que eu tinha da Galeria Cruzeiro, creio que era uma ideia que variava muito. Um grande recinto sem plateia mas com muitas galerias, ou um palácio em forma de túnel com um Cruzeiro do Sul aceso na fachada, algo de estranho e imenso, pois toda gente encontrava toda gente na Galeria Cruzeiro. O Pavilhão Mourisco, este para nós era feérico, cheio de minaretes; odaliscas, bandeiras e punhais, talvez camelos, pelo menos grandes camelos pintados entre oásis.
As pessoas grandes que chegavam do Rio traziam malas fabulosas, cheias de presentes para todos, além de dezenas de encomendas, todas escritas cuidadosamente em uma lista com letra feminina. Nós nos juntávamos todos para assistir à abertura das malas.
Isto é para você!” Era fascinante receber um embrulho de presente com o nome da loja impresso na fita que o amarrava.
Mas o que mais me impressionou foi uma sopa juliana. Eu nunca tinha ouvido falar de sopa juliana, não era prato que se usasse em minha casa. E não gostei da sopa: era de verduras e legumes. Mas o espantoso é que vinha seca, em um envelope, e quando se punha n’água crescia, tomava cores. As coisas do Rio de Janeiro eram assim, cheias de milagres e de astúcias. E à noite, quando vinham visitas, os viajantes contavam as últimas anedotas do Rio de Janeiro, pois naquele tempo não havia rádio.
Lembro-me que, apesar de sentir esse fascínio do Rio de Janeiro, eu não pensava nunca em vir aqui. Isso simplesmente não me passava pela cabeça; o Rio era um lugar maravilhoso, onde vinham pessoas grandes e até eu pensava vagamente que no Rio de Janeiro só devia haver pessoas grandes. Era verdade que havia, por exemplo, um menino, o Zezé, filho de seu Osvaldo, que vinha ao Rio de Janeiro; ele usava sapatos, quando nós todos usávamos botinas. Mas, mesmo pelo fato de usar sapatos e vir ao Rio era como se ele fosse uma pessoa de outra raça, não uma criança como nós. Eu não chegava sequer a invejá-lo, tão diferente de nós eu o achava. Zezé tinha até um sapato de duas cores, branco e vermelho; e nós com nossas botinas pretas, sempre de bico esbranquiçado de tanto chutar pedra na rua, sempre com os cadarços meio arrebentados, difíceis de enfiar.
Fiquei muito espantado quando minha irmã, que vinha ao Rio com o marido, me convidou para vir também. Ela disse que era um prêmio porque eu tinha tirado boas notas nos exames. Lembro-me de que minhas notas tinham sido apenas regulares, de maneira que achei aquele convite uma honra, uma distinção que eu mesmo sabia que não merecia muito. Eu tinha nove anos, e essa irmã era minha madrinha.
Ficamos em uma casa de parente, na Rua Lopes Trovão, em Icaraí, ao lado do Campo de S. Bento, que achei lindo. Lembro-me de passear na calçada da praia com uma roupa de marinheiro, que tinha escrito no gorro: “Encouraçado São Paulo.” E na proa da barca da Cantareira, ao chegar ao Cais Pharoux, Antônio Paraíso, que me trazia pela mão, dizer a um amigo: “Este cidadão vai pisar pela primeira vez o Rio de Janeiro.”
Fomos encontrar minha irmã e meu cunhado na hora do almoço, na Casa Heim. Era a primeira vez que eu entrava em um restaurante e achei engraçado o nome, que pensava que fosse “in”, então me corrigiram a pronúncia, dizendo que em alemão era assim: “ráim”.
Mas riram muito de mim em Cachoeiro quando perceberam que a coisa de que eu mais havia gostado no Rio foi me deixarem ajudar a lavar a casa lá em Icaraí, despejar baldes d’água no assoalho de tábuas largas; porque eu falava mais disso que da Exposição do Centenário da Independência.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

Os espantosos megálitos dos Andes

  Sacsayhuaman

Na porção plana de uma colina que avista o Vale de Cuzco, no Peru, há uma fortaleza colossal chamada Sacsayhuaman, um dos mais imponentes edifícios já construídos. Sacsayhuaman é formada por três ou quatro paredes em terraço que sobem pela colina, e as ruínas incluem portais, escadarias e rampas.
Gigantescos blocos de pedra, alguns pesando mais de 200 toneladas, estão perfeitamente encaixados. Os enormes blocos estão cortados, facetados e encaixados tão bem que até hoje não é possível enfiar uma lâmina de canivete, ou mesmo uma folha de papel entre eles. Não foi usado cimento, e não há dois blocos iguais. Contudo, eles se encaixam perfeitamente, e alguns engenheiros afirmaram que nenhum construtor moderno, com a ajuda de instrumentos e ferramentas do mais puro aço, seria capaz de produzir resultados mais precisos. Cada pedra teve de ser planejada com muita antecedência; uma pedra de 21 toneladas, para não falar de uma pesando de 80 a 200 toneladas, não pode apenas ser posta descuidadamente no lugar, esperando-se atingir aquele grau de precisão! As pedras estão encaixadas e ajustadas em suas posições, com entalhes do tipo rabo-de-andorinha, tornando-as à prova de terremotos. Com efeito, após muitos terremotos devastadores nos Andes ao longo dos últimos séculos, os blocos ainda estão encaixados perfeitamente, enquanto a catedral espanhola, em Cuzco, precisou ser reconstruída duas vezes.
O mais incrível é que os blocos não são feitos com pedras locais, mas, segundo alguns relatos, provêm de pedreiras do Equador, a mais de 2.400 quilômetros dali! Outros estudiosos localizaram pedreiras bem mais próximas, a cerca de 8 quilômetros, apenas. Embora se suponha que a fantástica fortaleza tenha sido feita há apenas alguns séculos pelos incas, não há registros de sua construção, e tampouco ela figura nas lendas nativas. Como se explica que os incas, que não tinham conhecimento de matemática superior, não possuíam linguagem escrita, não dispunham de ferramentas de ferro e nem usavam rodas, podem receber o crédito pela construção desse complexo ciclópico de muralhas e edificações? Francamente, é preciso fazer força para encontrar uma explicação, que tampouco seria simples.
Quando os espanhóis chegaram a Cuzco e viram essas estruturas, pensaram ser obras do próprio demônio, em virtude de sua grandeza. De fato, em nenhum outro lugar se vê blocos tão grandes encaixados com tamanha perfeição. Viajei pelo mundo todo à procura de mistérios antigos e cidades perdidas, mas nunca vi nada parecido.
Os construtores das muralhas não eram apenas bons pedreiros - eram incomparáveis! Trabalhos de cantaria similares podem ser vistos em todo o Vale de Cuzco. Geralmente, são feitos com blocos de pedra bem talhados e retangulares, pesando até 1 tonelada. Um grupo de pessoas fortes pode erguer um bloco e colocá-lo no lugar; sem dúvida, foi assim que algumas das menores estruturas foram feitas. Mas em Sacsayhuaman, Cuzco e outras cidades incas antigas, podemos ver blocos imensos com 30 ângulos ou mais em cada um.
Na época da conquista espanhola, Cuzco estava em seu apogeu, com população estimada em 100 mil incas. A fortaleza de Sacsayhuaman poderia abrigar todos os habitantes dentro de seus muros em caso de guerra ou de catástrofe natural. Alguns historiadores afirmaram que a fortaleza foi construída alguns anos antes da invasão espanhola, e creditaram a estrutura aos incas. Mas os incas não conseguem se lembrar exatamente como ou quando ela foi feita! Só resta um relato antigo do transporte das pedras, encontrado na obra de Garcilaso de la Vega, The inccus. Em seus comentários, Garcilaso fala de uma pedra monstruosa levada a Sacsayhuaman desde Ollantaytambo, a uma distância de cerca de 72 quilômetros.
Os índios dizem que, por causa do grande trabalho que teve para ser levada, a pedra ficou cansada e chorou lágrimas de sangue porque não conseguiu um lugar na edificação. A realidade histórica é transmitida pelos amantas (filósofos e médicos) dos incas, que costumavam falar sobre isso. Dizem que mais de 20 mil índios levaram a pedra até o local, arrastando-a com grossas cordas. A rota que seguiram para levar a pedra era muito difícil. Havia muitas colinas para subir e descer. Cerca de metade dos índios puxava a pedra com as cordas colocadas na frente. A outra metade segurava a pedra por trás, com medo de que ela pudesse se soltar e cair em uma ravina da qual não poderia ser removida.
Em uma dessas colinas, por falta de cautela e esforço mal coordenado, o peso da pedra foi excessivo para aqueles que a sustentavam por trás. A pedra rolou colina abaixo, matando 3 ou 4 mil índios que a sustentavam. Apesar desse infortúnio, eles conseguiram tornar a erguê-la. Ela foi posta na planície onde hoje repousa.
Embora Garcilaso de la Vega descreva o transporte da pedra, muitos duvidam da veracidade dessa história. Essa pedra não pertence à fortaleza de Sacsayhuaman e, segundo alguns pesquisadores, é menor do que aquelas lá usadas, embora a pedra nunca tenha sido identificada positivamente. Mesmo que a história seja real, talvez os incas tenham procurado reproduzir aquela que, segundo eles, teria sido a técnica de construção usada pelos antigos construtores. Apesar de não se poder negar a maestria dos artífices incas, para alguém acreditar nessa história precisa, antes, questionar como eles teriam transportado e colocado os blocos de 100 toneladas tão bem, tendo em conta o trabalho que tiveram com apenas uma pedra.
O fato de os incas terem descoberto essas ruínas megalíticas e construído algo sobre elas, afirmando que eram obra deles, não é lá uma teoria muito alarmante. Com efeito, é bem provável que seja verdade. Os antigos governantes egípcios, com frequência, reclamavam para si obeliscos, pirâmides e outras estruturas já existentes, chegando por vezes a apagar o cartucho do verdadeiro construtor, substituindo-o pelo seu. A Grande Pirâmide parece ter sido vítima de tal ardil. O faraó Kufu, ou Quéops, como era conhecido na Grécia, mandou gravar seu cartucho na base da Grande Pirâmide. Esse é o único texto que se pode encontrar nela, mas, ao que tudo indica, a pirâmide não foi construída por Quéops. Talvez nem seja um túmulo, mas isso é uma outra história.
Se os incas chegaram e descobriram muralhas e alicerces de cidades já existentes, por que não se instalaram por lá, pura e simplesmente? Até hoje, bastam algumas pequenas reformas e um teto em algumas das estruturas para torná-las habitáveis. De fato, quase tudo indica que os incas simplesmente encontraram as estruturas e acrescentaram-lhes alguns detalhes. Há muitas lendas andinas que relatam que Sacsayhuaman, Machu Picchu, Tiahuanaco e outras ruínas megalíticas teriam sido construídas por um povo gigante. Alain Gheerbrant comenta em suas notas ao livro de Garcilaso:
Foram usados três tipos de pedra para construir a fortaleza de Sacsayhuaman. Dois deles, inclusive os que foram usados para fazer os gigantescos blocos da muralha externa, foram encontrados praticamente no local. Só o terceiro tipo de pedra (andesito negro), para as edificações internas, foi levado de pedreiras relativamente distantes; as pedreiras de andesito negro mais próximas ficavam em Huaccoto e Rumicolca, a 14 e a 40 quilômetros de Cuzco, respectivamente. Com relação aos gigantescos blocos da muralha externa, nada prova que não tenham sido desbastados a partir de uma massa de pedras existente no local; isso solucionaria o mistério.
Gheerbrant acredita que os incas nunca chegaram a movimentar as pedras até Sacsayhuaman, mas, mesmo que as tenham cortado e preparado-as no local, um ajuste tão preciso exigiria aquilo que os engenheiros modernos chamam de esforço sobre-humano. Além disso, a gigantesca cidade de Tiahuanaco, na Bolívia, também foi erguida com blocos de pedra de 100 toneladas. As pedreiras ficavam longe dali, e o lugar é definitivamente pré-incaico. Proponentes da teoria de que os incas encontraram essas cidades nas montanhas e nelas se fixaram, diriam que os construtores de Tiahuanaco, Sacsayhuaman e de outras estruturas megalíticas da região de Cuzco eram o mesmo povo.
Citando novamente Garcilaso de la Vega, que escreveu sobre essas estruturas logo após a conquista:
[...] como podemos explicar o fato de os índios peruanos serem capazes de cortar, escavar, erguer, portar, içar e aplicar blocos de pedra tão imensos, fazendo-o, como disse antes, sem o auxílio de uma só máquina ou instrumento? Um enigma como esse não pode ser resolvido facilmente sem a ajuda da magia, especialmente se nos lembrarmos da grande familiaridade desses povos com os demônios.
Os espanhóis desmantelaram Sacsayhuaman o máximo que puderam. Quando Cuzco foi conquistada, Sacsayhuaman tinha três torres redondas no alto da fortaleza, por trás de três muralhas megalíticas concêntricas. Elas foram desmontadas pedra por pedra, que foram usadas para construir novas estruturas para os espanhóis.
Uma teoria interessante sobre as construções com pedras gigantescas e perfeitamente encaixadas é que foram produzidas por meio de uma técnica hoje perdida de amolecimento e moldagem da pedra. Hiram Bingham, descobridor de Machu Picchu, escreveu em seu livro Across South America sobre uma planta de que ouvira falar, cujos sumos amoleciam a pedra a ponto de ela poder ser encaixada em cantarias muito apertadas.
Em seu livro Exploration Fawcett, o coronel Fawcett comentou que ouvira falar de como as pedras eram encaixadas usando-se um líquido que as amoleciam até adquirirem a consistência do barro. Brian Fawcett, que editou o livro do pai, conta essa história em suas notas de rodapé: um amigo que trabalhava em uma mineradora a 4.600 metros em Cerro de Pasco, região central do Peru, descobriu um jarro em um túmulo incaico ou pré-incaico. Ele abriu o recipiente pensando que fosse chicha, uma bebida alcoólica, rompendo o antigo lacre de cera ainda intacto. Depois, por acidente, o jarro foi derrubado sobre uma pedra. Fawcett prossegue, mencionando o amigo:
Dez minutos depois, curvei-me sobre a pedra e casualmente examinei a poça de líquido derramado. Não era mais líquido; a pedra sobre a qual o jarro caíra estava macia como cimento fresco! E como se a pedra tivesse derretido, como cera aquecida.
Ao que parece, Fawcett acreditava que a planta poderia ser encontrada no rio Pirene, em Chuncho, Peru, e disse que tinha folhas vermelhas, escuras, e mais ou menos 30 centímetros de altura. Conta-se, ainda, a história de um biólogo que observava um pássaro raro na Amazônia. Ele viu quando a ave fez um ninho em uma rocha esfregando-a com um graveto. A seiva do graveto dissolveu a rocha, criando uma cavidade na qual a ave pôde acomodar seu ninho.
Toda essa especulação pode ser posta de lado por conta de descobertas mais recentes apresentadas na Scientific American (fevereiro de 1986). Em um fascinante artigo, o pesquisador francês, Jean-Pierre Protzen, apresenta suas experiências na duplicação da construção de Sacsayhuaman e Ollantaytambo. Protzen passou muitos meses perto de Cuzco fazendo experiências com diferentes métodos de modelagem e de encaixe, valendo-se dos mesmos tipos de pedras empregados pelos incas (ou por seus antecessores megalíticos). Descobriu que a extração e a formatação das pedras podem ser feitas com os martelos de pedra encontrados em abundância na região. O ajuste preciso das pedras foi uma questão relativamente simples, diz ele. Ele martelava as depressões côncavas nas quais as pedras se encaixavam por tentativas, até ficarem bem justas. Isso significava erguer e juntar as pedras continuamente, desbastando-as pouco a pouco. Esse processo consome um bom tempo, mas é simples e funciona.
Contudo, mesmo para Protzen restam alguns mistérios. Ele não conseguiu descobrir como os construtores megalíticos manuseavam as pedras maiores. O processo de ajuste exigiria repetidos movimentos de levantamento e deposição da pedra sendo encaixada, com uma sequência de marteladas entre um movimento e outro. Ele não sabe como pedras de 100 toneladas eram manipuladas nesse estágio, e algumas, na verdade, são até mais pesadas.
Segundo Protzen, para transportar as pedras desde as pedreiras foram construídas estradas e rampas especiais. Muitas das pedras foram arrastadas sobre estradas cobertas de pedregulhos, o que, segundo sua teoria, originou sua superfície polida. A maior pedra de Ollantaytambo pesa 150 toneladas. Ela pode ter sido puxada sobre uma rampa com uma força de 118 mil quilos. Tal proeza exigiria 2.400 homens, no mínimo. Reunir essa equipe parece possível, mas onde se apoiavam? Protzen diz que as rampas teriam, no máximo, 8 metros de largura. Mais espantoso ainda, para Protzen, é que as pedras de Sacsayhuaman tinham um acabamento fino, mas não foram polidas e não mostram sinais de arraste. Ele não conseguiu descobrir como foram transportadas desde a pedreira de Rumiqolqa, situada a 35 quilômetros dali.
O artigo de Protzen reflete uma pesquisa bem-feita, e mostra que a ciência moderna ainda não consegue explicar ou reproduzir as proezas de construção encontradas em Sacsayhuaman e Ollantaytambo. Erguer continuamente e desbastar um bloco de pedra de 100 toneladas para fazer com que se encaixe perfeitamente é uma tarefa de engenharia grandiosa demais para ter sido uma prática. A teoria de Protzen teria funcionado bem nas construções posteriores, menores e perfeitamente retilíneas, mas falha nas construções megalíticas mais antigas. Talvez teorias como levitação ou amolecimento de pedras ainda não devam ser descartadas! Uma última observação intrigante feita por Protzen é que as marcas de corte encontradas em algumas pedras são muito similares àquelas encontradas no pyramidion de um obelisco egípcio inacabado, descoberto em Assuã. Seria coincidência? Ou uma civilização antiga estaria associada aos dois locais?
David Hatcher Childress, in A Incrível Tecnologia dos Antigos

Leituras secretas

No Céu, os Anjos do Senhor leem poemas às escondidas... Os livros de poemas são os livros pornográficos dos anjos.
Mário Quintana, in Sapato florido

A tranquilidade requer poucas coisas

Ocupa-te de poucas coisas”, dizem “se queres estar tranquilo”. Mas pondera se não seria melhor dizer: “Faze o necessário e tudo que a razão de um ser naturalmente sociável prescrever e como ela prescrever”? Pois isso traz não somente a tranquilidade que advém de fazer o bem, mas também a que advém de fazer poucas coisas. Sendo desnecessárias a maioria das coisas que dizemos e fazemos, se adotarmos esse procedimento teremos mais lazer e tranquilidade. Nessa ordem de ideias em qualquer ocasião devemos perguntar a nós mesmos: “Não seria essa uma das coisas desnecessárias?” Devemos abolir não somente os atos desnecessários mas também os pensamentos, pois assim os atos neles implícitos não advirão.
Marco Aurélio, in Meditações

A servidão

Os dias estavam repletos de novas experiências para Caninos Brancos. Enquanto Kiche continuava atada pela vara, ele corria por todo o acampamento, inquirindo, investigando, aprendendo. Rapidamente ficou sabendo muito sobre os hábitos dos animais-homens, mas a familiaridade não gerou desprezo. Quanto mais aprendia sobre eles, mais eles demonstravam a sua superioridade, mais revelavam seus poderes misteriosos, mais gigantesca avultava a sua semelhança com deuses.
Ao homem foi concedida a dor frequente de ver os seus deuses derrubados e os seus altares desmoronados; mas ao lobo e ao cão selvagem que vieram se deitar aos pés dos homens, essa dor nunca chegou. Ao contrário do homem, cujos deuses são feitos de vapores e névoas invisíveis e conjeturados da fantasia que evita a veste da realidade, espectros errantes de bondade e poder almejados, afloramentos intangíveis do ser no reino do espírito – ao contrário do homem, o lobo e o cão selvagem que se aproximaram do fogo encontram os seus deuses em carne e osso, sólidos ao tato, ocupando o espaço da terra e exigindo tempo para realizar os seus fins e a sua existência. Não é necessário nenhum esforço de fé para acreditar num deus desse tipo; nenhum esforço de vontade consegue induzir a descrença num desses deuses. Não há como afastar-se de tal deus. Ele ali está, sobre as duas patas traseiras, um macete na mão, imensamente potente, apaixonado, irado e amante, deus e mistério e poder, tudo envolto pela carne que sangra quando rasgada, e que é boa de comer como qualquer outra carne.
E o mesmo acontecia com Caninos Brancos. Os animais-homens eram deuses inequívocos e inescapáveis. Assim como a mãe Kiche lhes demonstrara lealdade ao primeiro grito de seu nome, ele estava começando a demonstrar a sua lealdade. Ele lhes dava a dianteira como um privilégio indubitavelmente seu. Quando caminhavam, saía do caminho. Quando chamavam, acudia. Quando ameaçavam, encolhia-se. Quando o mandavam embora, afastava-se depressa. Pois atrás de qualquer desejo dos animais-homens estava o poder de impor esse desejo, um poder que machucava, um poder que se expressava em bofetadas e macetes, em pedras voadoras e chicotadas que ferroavam.
Ele lhes pertencia como todos os cachorros lhes pertenciam. As suas ações estavam à mercê do comando dos deuses. O seu corpo, à mercê de suas pancadas, pisoteios, indulgência. Essa era a lição que lhe foi rapidamente incutida. Uma lição dura, que na realidade ia contra muita coisa que era forte e dominante na sua natureza; e, apesar de não gostar dela enquanto a aprendia, sem o saber ele estava aprendendo a apreciá-la. Era colocar o seu destino nas mãos de outro, uma troca das responsabilidades da existência. Isso era em si mesmo uma compensação, pois é sempre mais fácil encostar-se num outro que manter-se sozinho.
Mas tudo não aconteceu num único dia, esta entrega de si mesmo, corpo e alma, aos animais-homens. Ele não podia renunciar imediatamente à sua herança selvagem e às suas lembranças da Floresta. Havia dias em que andava furtivamente até a orla da floresta, ali ficava e escutava algo que o chamava de muito longe. E sempre retornava, inquieto e incomodado, para choramingar suave e melancolicamente ao lado de Kiche, e para lamber a face da mãe com uma língua ansiosa e inquiridora.
Caninos Brancos aprendia rapidamente os hábitos do acampamento. Conheceu a injustiça e ganância dos cachorros mais velhos, quando lhes eram jogados carne ou peixe na hora da ração. Veio a saber que os homens eram mais justos, as crianças mais cruéis, e as mulheres mais bondosas e mais inclinadas a lhe atirar um pedaço de carne ou osso. E depois de duas ou três aventuras dolorosas com as mães de outros filhotes parcialmente crescidos, ele aprendeu que era sempre uma boa política deixar essas mães em paz, manter-se o mais afastado possível de todas, e evitá-las quando as via se aproximar.
Mas a maldição da sua vida era Lip-lip. Maior, mais velho e mais forte, Lip-lip tinha escolhido Caninos Brancos para seu objeto especial de perseguição. Caninos Brancos lutava com bastante vontade, mas era sobrepujado. O seu inimigo era demasiado grande. Lip-lip tornou-se um pesadelo. Sempre que Caninos Brancos se aventurava a sair de perto da mãe, era certo que o valentão aparecia, correndo no seu encalço, rosnando, atormentando-o, atento a qualquer oportunidade, quando nenhum animal-homem estava por perto, para pular em cima do lobinho e forçar uma briga. Como invariavelmente vencia, Lip-lip gostava imensamente dessas brigas. Tornaram-se o seu principal prazer na vida, assim como se tornaram o principal tormento de Caninos Brancos.
Mas isso não teve o efeito de acovardar Caninos Brancos. Embora sofresse a maior parte dos danos e fosse sempre derrotado, o seu espírito continuava indomável. Entretanto, as lutas produziram um efeito ruim. Caninos Brancos tornou-se malévolo e soturno. Seu temperamento era selvagem de nascença, mas tornou-se ainda mais com essa perseguição interminável. Seu lado alegre e brincalhão de filhote encontrava pouca expressão. Nunca brincava, nem dava cabriolas com os outros filhotes do acampamento. Lip-lip não permitia. Assim que o filhote de lobo aparecia perto deles, Lip-lip saltava sobre Caninos Brancos, maltratando-o e humilhando-o, ou lutando até afastá-lo.
O efeito de tudo isso foi privar Caninos Brancos de grande parte da sua vida de filhote e dotá-lo de um comportamento mais maduro que o da sua idade. Negada a expressão de suas energias por meio das brincadeiras, ele se encolhia dentro de si e desenvolvia os seus processos mentais. Tornou-se astucioso; tinha tempo ocioso para se dedicar às trapaças. Impedido de obter a sua porção de carne e peixe quando a ração geral era dada aos cachorros do acampamento, tornou-se um ladrão inteligente. Tinha de saquear por si mesmo, e ele saqueava bem, embora por isso fosse muitas vezes uma praga para as índias. Aprendeu a mover-se sorrateiramente pelo acampamento, a ser astuto, a saber o que estava acontecendo em toda parte, a ver e ouvir tudo e raciocinar de acordo com essas informações, e a inventar com sucesso meios e maneiras de evitar o seu implacável perseguidor.
Foi nos primeiros dias da perseguição que ele armou seu primeiro grande lance realmente astuto naquele jogo e teve o primeiro gosto de vingança. Assim como Kiche, na companhia dos lobos, tinha atraído os cachorros para a destruição afastando-os dos acampamentos dos homens, Caninos Brancos, de maneira bastante semelhante, atraiu Lip-lip para as mandíbulas vingativas de Kiche. Recuando diante de Lip-lip, Caninos Brancos começou uma fuga indireta, entrando numa tenda, saindo de outra e contornando as várias tendas do acampamento. Era um bom corredor, mais rápido do que qualquer outro filhote do seu tamanho, e mais rápido do que Lip-lip. Mas ele não chegava ao máximo da sua velocidade nessa perseguição. Mantinha um ritmo constante, um pulo à frente de seu perseguidor.
Lip-lip, excitado pela perseguição e pela proximidade constante de sua vítima, esqueceu a cautela e o local. Quando se lembrou do local, era tarde demais. Arremessando-se a toda velocidade ao redor de uma tenda, investiu contra Kiche, deitada na ponta da sua vara. Deu um ganido de consternação, enquanto as mandíbulas punitivas dela se fechavam sobre ele. Ela estava amarrada, mas ele não conseguiu livrar-se facilmente. Ela o virou de patas para o ar, impedindo-o de correr, enquanto o rasgava e mordia com as presas.
Quando conseguiu por fim rolar e livrar-se da loba, Lip-lip aprumou-se com dificuldade, todo desgrenhado, ferido tanto no corpo como no espírito. O pelo era todo tufos salientes nos lugares que os dentes de Kiche tinham estropiado. O brigão ficou parado no lugar em que tinha se levantado, abriu a boca e irrompeu num longo e angustiado gemido de filhote. Mas até isso não lhe foi permitido completar. No meio do gemido, Caninos Brancos, vindo na corrida, afundou os dentes na pata traseira de Lip-lip. Não havia mais nenhum instinto de luta em Lip-lip, e ele fugiu desavergonhadamente, com a vítima no seu encalço, atormentando-o durante todo o caminho até a tenda. Ali as índias o socorreram, e Caninos Brancos, transformado num demônio enfurecido, só foi finalmente afastado por uma fuzilada de pedras.
Veio o dia em que Castor Cinza, determinando que já não havia mais perigo de fuga, libertou Kiche. Caninos Brancos ficou maravilhado com a liberdade da mãe. Ele a acompanhava alegremente pelo acampamento e, enquanto permanecia perto da mãe, Lip-lip mantinha uma distância respeitosa. Caninos Brancos chegava a eriçar o pelo e caminhar de pernas enrijecidas, mas Lip-lip ignorava o desafio. Ele não era tolo, e qualquer que fosse a vingança que desejava, podia esperar até pegar Caninos Brancos sozinho.
Mais tarde naquele dia, Kiche e Caninos Brancos afastaram-se até a entrada do mato perto do acampamento. Ele conduzira a mãe até aquele ponto, passo a passo, e então, cada vez que parava, tentava atraí-la para mais longe. A corrente, a toca e a quietude dos matos o chamavam, e ele queria que ela viesse. Correu alguns passos adiante, parou e olhou para trás. Ela não se movera. Ele choramingou suplicante e correu brincalhão para dentro e para fora do matagal. Voltou correndo para a mãe, lambeu a sua face e tornou a correr para diante. Mesmo assim, ela não se movia. Ele parou e considerou-a, todo envolto numa atenção e ansiedade fisicamente manifestas que lentamente desapareceram, quando ela virou a cabeça e fitou o acampamento.
Algo o chamava na floresta. A mãe também escutava esse apelo. Mas ela escutava igualmente aquele outro chamado mais forte, o chamado do fogo e do homem – o chamado que, dentre todos os animais, foi dado apenas ao lobo responder, ao lobo e ao cachorro selvagem, que são irmãos.
Kiche virou-se e caminhou lentamente de volta para o acampamento. Mais forte do que a restrição física da vara era o poder que o acampamento exercia sobre ela. Invisíveis e ocultos, os deuses ainda a prendiam com o seu poder e não a deixavam partir. Caninos Brancos sentou-se à sombra de uma bétula e choramingou suavemente. Havia um forte cheiro de pinho, e as fragrâncias sutis da mata enchiam o ar, lembrando-lhe a antiga vida de liberdade antes dos dias de cativeiro. Mas ele ainda era um filhote parcialmente crescido, e mais forte do que o chamado do homem ou da Floresta era o chamado da mãe. Em todas as horas da sua curta vida, ele dependera da mãe. Ainda não chegara o tempo da independência. Assim ele se levantou e voltou infeliz para o acampamento, parando uma ou duas vezes para sentar, choramingar e escutar o chamado que ainda soava nas profundezas da floresta.
Na Floresta, o tempo da mãe com seu filhote é curto, mas, sob o domínio do homem, às vezes é até mais curto. Foi o que aconteceu a Caninos Brancos. Castor Cinza estava em dívida com Três Águias. Três Águias estava de partida, ia subir o Mackenzie até o Lago do Grande Escravo. Uma tira de tecido escarlate, uma pele de urso, vinte cartuchos e Kiche saldaram a dívida. Caninos Brancos viu a mãe ser levada a bordo da canoa de Três Águias, e tentou segui-la. Um golpe de Três Águias o atirou de volta para a terra. A canoa partiu. Ele pulou na água e nadou na direção da canoa, surdo aos gritos agudos de Castor Cinza para que retornasse. Até um animal-homem, um deus, Caninos Brancos ignorou, tal era o seu terror de perder a mãe.
Mas os deuses estão acostumados a serem obedecidos, e Castor Cinza lançou irado uma canoa na sua perseguição. Quando alcançou Caninos Brancos, estendeu o braço e, agarrando-o pela nuca, puxou-o para fora da água. Não o depositou logo no fundo da canoa. Segurando-o suspenso com uma das mãos, com a outra começou a bater no lobinho. E foi uma surra e tanto. A sua mão era pesada. Toda pancada era para machucar, e ele desferiu uma série de golpes.
Impelido pelos golpes que choviam sobre ele, ora de um lado, ora de outro, Caninos Brancos balançava de um lado para o outro como um pêndulo errático e espasmódico. Variáveis eram as emoções que se elevavam dentro dele. Primeiro, ficara surpreso. Depois surgiu um medo momentâneo, quando ganiu várias vezes com o impacto da mão. Mas isso foi logo seguido pela raiva. A sua natureza livre afirmou-se, e ele mostrou os dentes e rosnou destemidamente diante do deus irado. Isso só serviu para tornar o deus ainda mais irado. Os golpes caíam mais rápidos, mais pesados, mais para machucar.
Castor Cinza continuou a bater, Caninos Brancos continuou a rosnar. Mas isso não podia durar para sempre. Um ou outro devia ceder, e esse alguém foi Caninos Brancos. O medo cresceu mais uma vez dentro dele. Pela primeira vez estava realmente sendo dominado pela mão do homem. Os golpes ocasionais de paus e pedras antes experimentados eram carícias em comparação a isso. Ele sucumbiu e começou a gritar e ganir. Por algum tempo, cada golpe lhe arrancava novo ganido, mas o medo transformou-se em terror, até que finalmente os ganidos eram emitidos numa sucessão ininterrupta, sem conexão com o ritmo do castigo.
Por fim, Castor Cinza deteve a mão. Caninos Brancos, molemente dependurado, continuava a gritar. Isso pareceu satisfazer o dono, que o atirou rudemente para o fundo da canoa. Nesse meio tempo, a canoa descera a corrente à deriva. Castor Cinza pegou o remo. Caninos Brancos estava no seu caminho. O índio o empurrou selvagemente com o pé. Nesse momento, a natureza livre de Caninos Brancos teve novo lampejo, e ele afundou os dentes no pé coberto pelo mocassim.
A surra que acontecera antes não foi nada comparada com a surra que então recebeu. A ira de Castor Cinza era terrível, e igualmente terrível o pânico de Caninos Brancos. Não só a mão, mas também o remo duro de madeira foi usado sobre o lobinho; e todo o seu pequeno corpo estava ferido e machucado, quando foi novamente atirado para o fundo da canoa. De novo, e desta vez de propósito, Castor Cinza o chutou. Caninos Brancos não repetiu o ataque ao pé. Tinha aprendido outra lição do cativeiro. Nunca, não importa qual fosse a circunstância, devia ousar morder o deus que era seu senhor e dono; o corpo do senhor e dono era sagrado, não devia ser profanado pelos dentes de alguém como ele. Isso era evidentemente o crime dos crimes, a única ofensa para a qual não havia perdão, nem tolerância.
Quando a canoa tocou na margem, Caninos Brancos continuou deitado, imóvel e choramingando, à espera da vontade de Castor Cinza. Era vontade de Castor Cinza que ele fosse para a terra, pois foi atirado para a margem, caindo pesadamente sobre o lado e machucando de novo as feridas. Levantou-se tremendo e continuou a choramingar. Lip-lip, que observara todo o procedimento da margem, precipitou-se sobre ele, derrubando-o e afundando os dentes na sua carne. Caninos Brancos estava fraco demais para se defender, e as coisas teriam se tornado feias para ele, se o pé de Castor Cinza não tivesse disparado, levantando Lip-lip no ar com a sua violência, de modo que ele se esborrachou no chão a uns quatro metros de distância. Essa era a justiça do animal-homem; e mesmo então, no seu estado lamentável, Caninos Brancos sentiu uma pequena ponta de gratidão. No encalço de Castor Cinza, mancou obedientemente pela vila até a tenda. E assim Caninos Brancos veio a aprender que o direito de castigar era algo que os deuses reservavam para si e negavam às criaturas inferiores.
Naquela noite, quando tudo estava quieto, Caninos Brancos lembrou-se da mãe e chorou com a sua ausência. O seu lamento foi demasiado barulhento e acordou Castor Cinza, que bateu no filhote. Depois disso, ele passou a lamentar-se suavemente, quando os deuses estavam por perto. Mas às vezes, errando sozinho até a beirada da mata, ele dava vazão à sua dor e abria o berro com longos choros e gemidos.
Foi durante esse período que ele poderia ter escutado as lembranças da toca e da corrente, voltando a correr para a Floresta. Mas a lembrança da mãe o prendia. Assim como os animais-homens caçadores partiam e voltavam, ela voltaria para a vila um dia. Por isso, ele continuou no seu cativeiro esperando a mãe.
Mas não foi um cativeiro inteiramente infeliz. Havia muito a interessá-lo. Algo estava sempre acontecendo. Não havia fim para as coisas estranhas que os deuses faziam, e ele estava sempre curioso para ver. Além disso, estava aprendendo a se dar com Castor Cinza. Obediência, uma obediência rígida e constante, era o que dele se esperava; em troca, escapava das surras e a sua existência era tolerada.
O próprio Castor Cinza às vezes até lhe atirava um pedaço de carne e o defendia dos outros cachorros que também queriam o festim. E esse pedaço de carne tinha valor. De um modo estranho, era mais valioso que uma dúzia de pedaços de carne atirados pela mão de uma índia. Castor Cinza nunca mimava, nem acariciava. Talvez tenha sido o peso da sua mão, talvez a sua justiça, talvez a sua força pura, talvez tenha sido tudo isso que influenciou Caninos Brancos; pois uma certa ligação estava se formando entre ele e seu rude senhor.
Insidiosamente, e de modos remotos, bem como pelo poder da maça, da pedra e da bofetada, os grilhões estavam sendo assentados sobre Caninos Brancos. As qualidades da sua espécie, que no início tornaram possível que os lobos se aproximassem das fogueiras dos homens, eram qualidades capazes de serem desenvolvidas. Estavam se expandindo dentro do seu ser, e a vida no acampamento, ainda que repleta de desgraças, começava a se tornar secretamente cara para ele. Mas Caninos Brancos disso não tinha consciência. Sabia apenas da dor pela perda de Kiche, da esperança de seu retorno, e de um desejo faminto pela vida livre que fora sua.
Jack London, in Caninos Brancos

domingo, 29 de março de 2020

San Martín de los Andes

Uma choça abandonada nos indicou a fronteira. Eu já estava livre. Escrevi na parede da cabana: “Até breve, minha pátria. Vou-me embora mas levo-te comigo.”
Em San Martín de los Andes devia nos aguardar um amigo chileno. Essa cidadezinha da cordilheira argentina é tão pequena que me tinham dito como indicação única:
Vai para o melhor hotel que ali Pedrito Ramírez irá te buscar.
Mas assim são as coisas. Em San Martín de los Andes não havia um melhor hotel: havia dois. Qual deles escolher? Decidimo-nos pelo mais caro, situado num bairro mais afastado, preterindo o primeiro que tínhamos visto defronte da bela praça da cidade.
Aconteceu que o hotel que escolhemos era tão de primeira classe que não quiseram nos aceitar. Observaram com hostilidade os efeitos de vários dias de viagem a cavalo, nossos casacos ao ombro, nossas caras com barba por fazer e poeirentas. A qualquer um dava medo de nos receber.
Ainda mais o gerente de um hotel que hospedava nobres ingleses procedentes da Escócia e que tinham vindo para pescar salmão na Argentina. Nós não tínhamos nada de lords. O gerente deu-nos o vade retro, alegando com ademanes e gestos teatrais que o último quarto disponível tinha sido reservado há dez minutos. Nisso assomou à porta um elegante cavalheiro de inconfundível tipo militar, acompanhado por uma loura cinematográfica, que gritou com voz trovejante:
Alto! Não se manda os chilenos embora de nenhuma parte. Eles ficam aqui!
E ficamos. Nosso protetor parecia-se tanto com Perón e sua dama com Evita que pensamos todos: São eles! Mas depois, já de banho tomado e vestidos com roupa limpa, sentados à mesa e degustando uma garrafa de champanha duvidosa, soubemos que o homem era comandante da guarnição local e ela uma atriz de Buenos Aires que vinha visitá-lo.
Passamos por madeireiros chilenos dispostos a fazer bons negócios. O comandante me chamava “o Homem Montanha”. Víctor Bianchi, que até ali me acompanhava por amizade e por amor à aventura, descobriu uma guitarra e com suas pícaras canções chilenas encantava a argentinos e argentinas. Porém passaram-se três dias com suas noites e Pedrito Ramírez não chegava para me buscar. Fiquei apreensivo. Já não nos restava camisa limpa nem dinheiro para comprar novas. Um bom negociante de madeira, dizia Víctor Bianchi, pelo menos deve ter camisas.
Enquanto isso, o comandante nos ofereceu um almoço em seu regimento. Sua amizade conosco fez-se mais estreita e confessou-nos que, apesar de sua semelhança física com Perón, era antiperonista. Passávamos longas horas discutindo quem teria pior presIdente, se o Chile ou a Argentina.
Certa manhã Pedrito Ramírez entrou de improviso em meu quarto.
Desgraçado! – gritei. – Por que demoraste tanto?
Tinha sucedido o inevitável. Ele esperava tranquilamente minha chegada no outro hotel, no da praça.
Dez minutos depois estávamos rodando pelo pampa infinito. E continuamos rodando dia e noite. De vez em quando os argentinos detinham o automóvel para preparar um mate e depois continuávamos atravessando aquela monotonia interminável.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Poema da cabra

O osso do chão
se espinhou pelos céus,
rasgando a nuvem.

Nem assim irá chover.
E ainda bem:
a paisagem é tão magra
que uma única gota
causaria total inundação.

Neste deserto,
de que tudo desertou,
apenas a cabra silhuesce.

Em planetária ruminação
toma por folha
toda a esquelética planura.

Não lhe dói
a indigestão do vazio:
a pedra é menos dura que a fome.

A poesia da cabra
apenas na insaciável pança se concebe.

E a cabra se parece
com gente de voraz ganância.

Dos caprinos aprenderam:
em qualquer nada,
inventam os mais vastos pastos.
Mia Couto

O estranho casal

Histórias servem como fundamentos e pilares das sociedades humanas. Com o desenrolar da história, histórias sobre deuses, nações e corporações cresceram tão poderosamente que começaram a dominar a realidade objetiva. A crença no grande deus Sobek, no Mandato do Céu ou na Bíblia possibilitou a construção do lago Fayum, da Grande Muralha da China e da catedral de Chartres. Infelizmente, a fé cega nas histórias não raro acarretou a concentração dos esforços humanos em incrementar a glória de entidades ficcionais como deuses e nações, em vez de melhorar a vida de seres reais e sencientes.
Essa análise ainda se sustenta hoje? À primeira vista, pode parecer que a sociedade moderna é muito diferente dos reinos do Egito antigo ou da China medieval. O surgimento e a ascensão da ciência moderna não teriam mudado as regras básicas do jogo humano? Não seria verdadeiro dizer que, apesar da continuada importância de mitos tradicionais, os sistemas sociais modernos cada vez mais se baseiam em teorias científicas objetivas, como a teoria da evolução, que não existia no Egito antigo ou na China medieval?
Podemos argumentar que as teorias científicas são um novo tipo de mito e que nossa crença na ciência não é diferente da antiga crença egípcia no grande deus Sobek. Mas a comparação não se sustenta. Sobek existia apenas na imaginação coletiva de seus devotos. Com efeito, rezar a Sobek ajudou a cimentar o sistema social egípcio, permitindo a construção, pelo povo, de represas e canais que impediram inundações e secas. Mas as orações por si mesmas não elevaram nem baixaram minimamente o nível das águas do rio Nilo. Em contrapartida, teorias científicas não consistem apenas em um modo de unir pessoas. Diz-se que Deus ajuda a quem se ajuda. É um modo indireto de dizer que Deus não existe, mas, se nossa crença n’Ele nos inspirar a fazer algo a nós mesmos — isso ajuda. Antibióticos, diferentemente de Deus, ajudam até mesmo os que não se ajudam. Eles curam infecções, quer acreditemos neles ou não.
Consequentemente, o mundo moderno é muito diferente do mundo pré-moderno. Faraós egípcios e imperadores chineses fracassaram em derrotar a fome, a peste e a guerra, a despeito de milênios de esforço. Sociedades modernas conseguiram fazê-lo em poucos séculos. Não seria isso o fruto do abandono de mitos subjetivos em favor de conhecimento científico objetivo? E não podemos esperar que esse processo se acelere nas próximas décadas? À medida que a tecnologia nos capacita a fazer a atualização de humanos, vencer a velhice e encontrar a chave da felicidade, não deveriam as pessoas importar-se menos com deuses, nações e corporações ficcionais e se concentrar em decifrar a realidade física e biológica?
Na verdade, as coisas são muito mais complicadas. A ciência moderna certamente mudou as regras do jogo, embora não tenha apenas substituído os mitos pelos fatos. Os mitos continuam a dominar o gênero humano. A ciência só os torna mais fortes. Em vez de destruir a realidade intersubjetiva, a ciência permitirá que ela controle as realidades objetivas e subjetivas de modo mais completo. Graças aos computadores e à bioengenharia, a diferença entre ficção e realidade se tornará indistinta, à medida que pessoas reformatam a realidade para que se encaixem em suas ficções prediletas.
Os sacerdotes de Sobek imaginaram a existência de crocodilos divinos enquanto o faraó sonhava com a imortalidade. Na realidade, o crocodilo sagrado era um réptil de pântano muito ordinário vestido em refinamentos dourados, e o faraó era tão mortal quanto o mais pobre camponês. Após a morte, seu corpo era mumificado com bálsamos de preservação e perfumes olorosos, mas, ainda assim, continuava tão sem vida quanto um morto pode ser. Os cientistas do século XXI, por sua vez, poderiam ser capazes de engendrar supercrocodilos reais e prover a elite humana de juventude eterna aqui na Terra.
Em decorrência, o surgimento e a ascensão da ciência tornarão alguns mitos e religiões mais poderosos do que nunca. Para entender por quê, e para enfrentar os desafios do século XXI, deveríamos, portanto, revisitar uma das questões mais perturbadoras entre todas: como é que a ciência moderna se relaciona com a religião? A impressão que se tem é de que já se disse tudo a ser dito sobre essa questão. Mas, na prática, ciência e religião são como marido e mulher que, após quinhentos anos de aconselhamento matrimonial, não se conhecem. Ele ainda sonha com a Cinderela e ela ainda anseia pelo príncipe encantado, enquanto discutem de quem é a vez de levar o lixo para fora.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Plano para um poema

Que sea Roma la que faustina, que o vento faça ponta nos lápis de chumbo do escriba sentado, ou atrás de trepadeiras centenárias apareça escrita uma manhã esta frase convincente: Não há trepadeiras centenárias, a botânica é uma ciência, para o inferno os inventores de imagens presumidas. E Marat em sua banheira. Também vejo a perseguição de um grilo por uma bandeja de prata, com a senhora Délia que aproxima suavemente uma mão semelhante a um substantivo e quando vai apanhá-lo o grilo está dentro do sal (então cruzaram a pé enxuto, e Faraó os amaldiçoava na margem) ou pula com o delicado mecanismo que da flor do trigo extrai a mão seca da torrada. Senhora Délia, senhora Délia, deixe esse grilo andar por pratos rasos.
Um dia ele cantará com tão terrível vingança que seus relógios de pêndulo se enforcarão em seus caixões de pé, ou a donzela dará à luz parda roupa branca um monograma vivo, que correrá pela casa repetindo suas iniciais como um tamborileiro. Senhora Délia, os convidados se impacientam porque faz frio. E Marat em sua banheira.
Por fim que seja Buenos Aires num dia avançado e refilado, com trapos ao sol e todos os rádios do quarteirão vociferando ao mesmo tempo a cotação do mercado livre de girassóis. Por um girassol sobrenatural pagou-se em Liniers oitenta e oito pesos, e o girassol fez declarações infamantes ao Repórter Esso, um pouco por cansaço depois da recontagem de seus grãos; em parte porque seu destino ulterior não figurava no talão de vendas. A tardinha haverá uma concentração de forças vivas na Plaza de Mayo. As forças irão por diferentes ruas até se equilibrarem na pirâmide, e se perceberá que elas vivem graças a um sistema de reflexos instalado pela prefeitura. Ninguém duvida que os atos se realizarão com o máximo brilhantismo, o que provocou como é de supor uma extraordinária expectativa. Venderam-se tribunas especiais, irão o senhor cardeal, as pombas, os presos políticos, os motorneiros, os relojoeiros, as dádivas, as senhoras grávidas. E Marat em sua banheira.
Júlio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas

sábado, 28 de março de 2020

Como eram, na realidade, musas de grandes pintores

  Adele Bloch-Bauer, modelo de Gustav Klimt

 

 
Adele Bloch-Bauer nasceu em uma família burguesa respeitável, seu pai era o gerente geral da União Bancária de Viena. Aos 18 anos, ela se casou com um conhecedor de arte e produtor de açúcar chamado Ferdinand Bloch-Bauer, que era significativamente mais velho do que ela. Adele posou para quatro pinturas icônicas de Gustav Klimt. A mais famosa delas foi o “Retrato de Adele Bloch-Bauer I” (imagem à direita). Esse trabalho também é chamado de “Woman in Gold” e “Mona Lisa da Áustria”.
Uma história interessante também acompanha esse retrato: o marido de Adele estava convencido de que havia um caso entre sua esposa e Klimt. Para que o amor do artista por sua musa esfriasse mais rápido, Bloch-Bauer encomendou um retrato de sua esposa, esperando que ao estar perto de Klimt, ele rapidamente se cansasse dela. O artista trabalhou em sua obra durante 4 anos, criando cerca de 100 esboços para o retrato. E se ele tinha algum tipo de relacionamento com Adele, ao longo desse tempo, acabou.


Jeanne Hébuterne, modelo de Amedeo Modigliani

 

 
Jeanne Hébuterne estudou na Academia Colarossi, uma escola privada de arte. Lá ela conheceu o artista italiano Amedeo Modigliani, que a escolheu como modelo entre os alunos da Instituição. Logo, entre eles, surgiu um romance. Jeanne foi morar com Modigliani e se tornou o tema principal de sua pintura: o artista fez aproximadamente 25 de seus retratos. O casal teve uma filha, que recebeu o nome de sua mãe: Jeanne.
Modigliani, que sofria de meningite tuberculosa, morreu com apenas 35 anos de idade em Janeiro de 1920. Jeanne Hébuterne, que estava esperando por seu segundo filho, enlouquecida pela dor, cometeu suicídio no dia seguinte à morte do seu amado.

Vera Mamontova, modelo para vários artistas russos

 


A modelo para a obra de Valentín Serov, “Menina com Pêssegos”, chamava-se Vera Mamontova e era filha de um rico filantropo, Savva Mamontov. Um dia, Vera voltou para casa depois de uma caminhada e sentou-se à mesa, segurando em suas mãos um pêssego de seu próprio jardim. Lá estavam seus pais e o artista Valentín Serov, visitando a fazenda. Durante os próximos dois meses, essa menina de 12 anos posou por muitas horas todos os dias para uma pintura que, posteriormente, tornou-se famosa.


Suzanne Valadon, a modelo de Auguste Renoir, Henri de Toulouse-Lautrec e outros

 


A filha de uma lavadeira solteira, a artista francesa Suzanne Valadon, foi a primeira mulher a ser aceita na União Francesa de Artistas. Ela foi modelo para muitos artistas famosos como Henri de Toulouse-Lautrec, Edgar Degas e Pierre-Auguste Renoir, que a retratou em duas pinturas de sua série sobre dança: “Dança em Bougival” (foto à direita) e “Dança na cidade”.

A atriz Jeanne Samary, modelo de Renoir

 


Jeanne Samary foi uma atriz francesa no teatro Comédie-Française. Antes de se casar, ela morava perto do ateliê de Pierre-Auguste Renoir e frequentemente o visitava para posar. Em 1877-1878, o artista pintou 4 retratos de Jeanne. Cada um deles foi significativamente diferente dos outros em termos de cor, composição e tamanhos. Um dos mais famosos é intitulado “Jeanne Samary em um vestido decotado” (imagem da direita), que está na coleção do Museu Pushkin, em Moscou.

Veja mais musas aqui.