terça-feira, 31 de dezembro de 2019
A flor e a náusea
Preso
à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua
cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos
sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em
vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar
este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes
da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr
fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma
flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua
cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me
no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos
Drummond de Andrade
Sem esperanças utópicas
Nós
combatemos a nossa superficialidade, a nossa mesquinhez, para
tentarmos chegar aos outros sem esperanças utópicas, sem uma carga
de preconceitos ou de expectativas ou de arrogância, o mais
desarmados possível, sem canhões, sem metralhadoras, sem armaduras
de aço com dez centímetros de espessura; aproximamo-nos deles de
peito aberto, na ponta dos dez dedos dos pés, em vez de estraçalhar
tudo com as nossas pás de catterpillar, aceitamo-los de mente
aberta, como iguais, de homem para homem, como se costuma dizer, e,
contudo, nunca os percebemos, percebemos tudo ao contrário.
Mais
vale ter um cérebro de tanque de guerra. Percebemos tudo ao
contrário, antes mesmo de estarmos com eles, no momento em que
antecipamos o nosso encontro com eles; percebemos tudo ao contrário
quando estamos com eles; e, depois, vamos para casa e contamos a
outros o nosso encontro e continuamos a perceber tudo ao contrário.
Como,
com eles, acontece a mesma coisa em relação a nós, na realidade
tudo é uma ilusão sem qualquer percepção, uma espantosa farsa de
incompreensão. E, contudo, que fazer com esta coisa terrivelmente
significativa que são os outros, que é esvaziada do
significado que pensamos ter e que, afinal, adquire um significado
lúdico; estaremos todos tão mal preparados para conseguirmos ver as
ações íntimas e os objetivos secretos de cada um de nós? Será
que devemos todos fecharmo-nos e mantermo-nos enclausurados como
fazem os escritores solitários, numa cela à prova de som, evocando
as pessoas através das palavras e, depois, afirmar que essas
evocações estão mais próximas da realidade do que as pessoas
reais que destroçamos com a nossa ignorância, dia após dia?
Mantém-se o fato de que o compreender as pessoas não tem nada a ver
com a vida. O não as compreender é que é a vida, não compreender
as pessoas, não as compreender, não as compreender, e depois,
depois de muito repensar, voltar a não as compreender. É assim que
sabemos que estamos vivos: não compreendemos. Talvez o melhor fosse
não ligar ao fato de nos enganarmos ou não sobre as pessoas e
deixar andar. Se conseguirem fazer isso – estão com sorte.
Philip
Roth, in
Pastoral americana
Pai e filho
Falei-vos
em meu pai. O que eu sou, menos o coração em que minha mãe entrou
grandemente, dele nasce quase exclusivamente, como a água que corre
da água que já correu. Esta palavra, de que eu uso em mim
diminuída, era dele, o maior orador que jamais conheci. Esta cabeça,
que eu tenho, não é mais que uma apagada sombra da sua. Esta paixão
da liberdade e do direito e da justiça, herdou-ma ele, a mais justa
das almas, o mais irredutível liberal que eu nunca vi, liberal à
inglesa e à americana. O amor da pátria, a intransigência da
honra, a firmeza da vontade, o culto dos princípios, o desprezo dos
perigos, o fundo religioso do sentimento e das ideias, isso tudo é
seu. De modo que, a cada passo da minha vida, o que eu sinto dentro
no mais íntimo de mim mesmo, é meu pai. Ele não morreu: em mim
vive, e reviverá, enquanto alguma coisa de mim restar.
Rui
Barbosa, in Antologia
Machu Picchu
O
ministério não vacilou em aceitar o fim voluntário de minha
carreira.
Meu
suicídio diplomático proporcionou-me a maior alegria: a de poder
regressar ao Chile. Acho que o homem deve viver em sua pátria e
creio que o desarraigamento dos seres humanos é uma frustração que
de uma maneira ou de outra entorpece a claridade da alma. Eu não
posso viver senão em minha própria terra. Não posso viver sem pôr
os pés, as mãos e o ouvido nela, sem sentir a circulação de suas
águas e de suas sombras, sem sentir como minhas raízes buscam em
seu barro pegajoso as substâncias maternas.
Mas
antes de chegar ao Chile fiz outro descobrimento que agregaria uma
nova camada ao desenvolvimento de minha poesia.
Detive-me
no Peru e subi até as ruínas de Machu Picchu. Subimos a cavalo. Na
época não havia estrada. Do alto vi as antigas construções de
pedra rodeadas pelos altíssimos cumes dos Andes verdes. Da cidadela
carcomida e roída pelo passar dos séculos despenhavamse torrentes.
Massas de neblina branca levantavam-se do rio Wilcamayo. Senti-me
infinitamente pequeno no centro daquele umbigo de pedra, umbigo de um
mundo desabitado, orgulhoso e eminente, ao qual de algum modo eu
pertencia. Senti que minhas próprias mãos tinham trabalhado ali em
alguma etapa distante, cavando sulcos, alisando penhascos.
Senti-me
chileno, peruano, americano. Tinha encontrado naquelas alturas
difíceis, entre aquelas ruínas gloriosas e dispersas, uma profissão
de fé para a continuação de meu canto.
Ali
nasceu meu poema “Alturas de Machu Picchu”.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
Nos olhos do intruso
Não
lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários:
aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o
futuro fugiu para lá. Advertências que repetiam a verdade mais
simples, não há como negar. Hoje, parecem ressoar a voz de um
oráculo. Mas era uma verdade que entendi mal, que me apressei em
traduzir totalmente errado, nos termos da euforia de um menino, ou
até de um tolo.
Talvez
eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda dormisse bem
longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido ao teatro. Três
atores representavam vários papéis e a história da peça quase não
importava. O espetáculo consistia muito mais na velocidade e na
perfeição das metamorfoses dos atores. Em poucos minutos, eles
trocavam de roupa, peruca e maquiagem, encarnavam outra voz, outra
personalidade, e tudo com um vigor que só podia nascer de um tipo de
vida.
No
final da peça, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando
as pessoas se levantaram, entrevi, no intervalo das cabeças, um
homem parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de
tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições
distintas convergindo e se sobrepondo no ar transparente.
Uma
desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei
com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo. Sacudido
por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo
sorrateiramente substituído.
Com
os olhos naquele homem, esqueci que devia continuar andando. As
pessoas atrás de mim, na minha fileira, me repreenderam com
resmungos. Tentei me livrar do meu estupor, mas o máximo que
consegui foi observar o homem da maneira mais discreta que podia. As
fileiras escorriam todas na mesma direção, o público escoava
ligeiro para o funil da saída e logo o perdi de vista.
Se
uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em
todas as direções, por que não ver no que se seguiu uma
continuação, um sistema? Podia parecer um desses acasos bobos, uma
dessas situações tão corriqueiras que nem paramos para pensar. Em
um intervalo de semanas, pelo menos três amigos se aproximaram de
mim para dizer que me tinham visto em lugares que eu não conhecia,
locais aonde eu nunca fora, fazendo coisas que eu absolutamente não
podia ter feito, porque estava ocupado, em outra parte.
Na
primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da
pessoa à minha frente, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir,
de uma maneira que eu mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar
que era eu mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas
ações. Eu até sorria e pelo menos uma vez cheguei a inventar
explicações adicionais, coerentes, que vi serem bem aceitas pelo
meu ouvinte.
Outros
talvez não prestassem atenção. Outros talvez não encadeassem uma
coisa à outra. Sei que, mesmo na vida mais banal, há lugar para
tudo. Mas, um dia, no centro da cidade, um homem completamente
desconhecido me cumprimentou com familiaridade. O sinal fechou e,
enquanto eu atravessava a rua, o homem, andando em sentido contrário,
acenou ligeiro com a mão. Receoso de me mostrar mal-educado com
algum conhecido, correspondi ao aceno. O sinal abriu, os carros e
ônibus andaram, bloquearam minha visão e eu o perdi na multidão da
calçada oposta.
Tempos
depois, eu vinha andando distraído pela rua. Quando dei por mim, uma
pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas.
Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um
amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi
embora. Algo desse tipo se repetiu ainda, talvez em um espaço de
alguns meses, duas ou três situações que outras pessoas poderiam
interpretar como encontros fortuitos com lunáticos, do tipo que
prolifera nas ruas, eu sei. Mas a minha lua é a mesma de todo mundo.
Aos
poucos, as atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim
começaram a me parecer familiares. As pessoas que eles mencionavam
chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus nomes e suas
ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O
meu passado se expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao
mesmo tempo em que o meu presente também se ampliava, numa espécie
de movimento de conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e
assim eu conseguia me sentir mais vivo do que nunca.
Um
dia, numa rua do centro, tomei coragem. Arrisquei cumprimentar alguém
que eu, com absoluta certeza, não conhecia. Após um instante de
surpresa bem natural, nas circunstâncias, a pessoa respondeu ao meu
cumprimento, de forma discreta. Sua expressão deu a entender que,
naquele momento, não tinha tempo para conversar comigo como
gostaria, e seguiu adiante. Por que pedir mais? Vi naquilo uma
confirmação, e não poderia ser de outro modo. Agora, eu olhava o
mundo à minha volta com o ardor de uma simpatia desconhecida. Via as
pessoas entrando e saindo pelas portarias dos prédios, contemplava a
fila de cabeças voltadas para mim nas janelas dos ônibus e sabia
que no mundo ninguém mais seria para mim um estranho. Vivi assim um
tempo, até que, certa manhã, o telefone me acordou. A voz do outro
lado avisou que uma determinada pessoa havia morrido. Citou um nome,
que não reconheci nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas anotei a
hora e o lugar do funeral. A voz ainda lamentou que ele tivesse
morrido ainda jovem, e garantiu que “todos” iriam lá.
Cheguei
em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso ninguém
se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam perturbar a
cerimônia. Uma música de órgão descia gelada das paredes e só um
segundo antes de o caixão ser fechado distingui as feições do
defunto. Foi rápido, uma sombra correu sobre o véu transparente.
Mas creio ter reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes,
vira no teatro. O homem igual a mim. Com a tampa fixada em seu lugar,
o caixão deslizou por uma esteira na direção de uma porta e
desapareceu no crematório. Antes que eu me refizesse da surpresa,
todos haviam ido embora sem sequer se despedir de mim. Em poucos
dias, as coisas começaram a mudar. Encostei no balcão de uma
lanchonete, pedi um cafezinho, na esperança de que o garçom
conversasse um minuto comigo, sobre o tempo, o trânsito, o que
fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se
estivesse diante de um estranho, um intrometido.
A
rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me
consideravam um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido
como um irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada
que só se descarrega sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que,
antes, eram para mim perfeitamente familiares — meu trabalho, minha
vizinhança, meus colegas — eu me via tratado como alguém
indesejável. Foi nessa altura que resolvi me mudar para uma outra
cidade, a cidade de que eu ouvia falar com tanta simpatia. Tratei de
me adaptar o mais depressa possível. Tentei refazer minha vida,
reconstituir à minha volta um convívio humano que me justificasse.
Mas isso se revelou difícil. Pelo menos, eu não era tratado como um
invasor. Acho que eu poderia ter vivido assim bastante tempo, sem
maiores problemas. Mas agora isso não será possível. Há poucos
dias, em uma barbearia, rodeado de espelhos que corriam diante de mim
e às minhas costas, entendi o que era o futuro e por que ele estava
nesta cidade. O barbeiro terminou de aparar meu cabelo, ergueu dos
meus ombros o pano branco com um floreio do braço e então me
levantei. Quando contemplava a mim mesmo no espelho, reparei com o
canto dos olhos o reflexo de um homem, umas três cadeiras à
esquerda. Ele me fitava com insistência. Tinha um ar quase
desnorteado, na verdade, e achei que já devia estar me observando
desde algum tempo.
Por
instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi que
não o via e estou certo de que o deixei convencido disso. Mas os
espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar
que o sujeito era extraordinariamente parecido comigo. Apenas um
pouco mais velho. Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e
vi a calçada fugindo para trás sob os meus passos. Sei agora por
que vim para esta cidade. O olhar admirado do homem na barbearia
foram as boas-vindas e também uma despedida para mim. Já posso
sentir o calor das chamas estalando. Mas, até que chegue a minha
vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim.
Rubens
Figueiredo, in Os cem melhores contos brasileiros do século
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
Insônia
Envelhecem
as horas,
entontecem
ponteiros
como
punhais vazando insaciáveis relógios.
O
sono é um vidro
onde
se guardam cansaços
de
antes de termos nascido.
Piso
estilhaços desse vidro,
tropeçam-me
os olhos nas pestanas:
um
tropel de luz
assusta
um bando de aves sem asas.
A
noite, em mim,
ganhou
diurno vício:
uma
outra vez,
tomei
luar na veia.
Mia
Couto
Contemplações do poeta ao cair da noite
Ainda
há pouco, a reler a página admirável de frei Luís de Sousa, cujo
título, possivelmente dado pelos antologistas Álvaro Lins e Aurélio
Buarque de Holanda, é (se em vez de poeta ler-se arcebispo) o mesmo
desta crônica, tive a alegria de verificar quão parecidas eram as
minhas noites de solidão em Montevidéu, com as de frei Bertolameu
dos Mártires, mais de três séculos antes. Como o santo arcebispo,
também eu passava o dia todo dando expediente, quiçá de menos
hierarquia, pois enquanto ele devia andar às voltas com despachos
celestiais, tinha eu a meu cargo despachos marítimos e terrestres,
além da firmação de passaportes e faturas e da contagem diária
dos emolumentos consulares.
E
como fazia ele, com relação às coisas divinas, eu, ao fechar-se a
noite sobre o cerro que provocou no descobridor a exclamação
nominativa da cidade, depois de um curto trajeto de automóvel até o
bairro de Pocitos, onde tenho meu apartamento num sétimo andar
“pagava-me o peso do dia, e do trabalho com um passatempo
malconhecido no mundo, e ao menos buscado de poucos (e ainda mal, que
se muitos o buscaram fora melhor ao mundo)”. Entregava-me a uma
profunda contemplação da bem-amada ausente. Esta era a maneira de
vencer a distância irremediável que se estendia diante dos meus
olhos voltados para o norte e que às vezes buscavam, na linha
descendente de Alfa e Beta de Centauro, o ponto exato onde ela, de
sua janela sobre o parque, devia também pensar em mim.
E
não se maravilhe ninguém de que eu, tal o arcebispo, passasse com
tanta facilidade dos negócios à contemplação. Não tinha, é
claro, “dês da primeira idade feito hábito neste santo
exercício”. Mas o que me faltava em penitências, sobrava-me em
ternura e querer-bem. E se nele “este antigo costume lhe trazia a
viola do espírito tão temperada sempre, que em qualquer conjunção
que largava o negócio, logo a achava prestes para sem detença
entoar as músicas da Celestial Jerusalém, e ficar absorto nos
prazeres do divino ócio”, eu por mim tinha sempre bem afinado o
meu violão Del Vecchio, e me comprazia em machucar-me as saudades
com os doridos acordes de tantas canções feitas para a bem-amada. E
assim não me era por nada difícil passar de faturas a doçuras, e
desligar-me da rotina do trabalho para a comunhão com a amiga
distante, num lento evolar-se do meu ser empós sua adorável imagem,
que às vezes parecia corporificar-se na lua que estava no céu. E
não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce
conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu
esvaindo-me de amor em seu luar. Pois era aquele o luar do meu bem no
seu pungente exílio, a segredar-me que, mesmo ausente, ali estava
para iluminar as minhas horas; e eu tivesse paciência e a esperasse
dentro e fora de mim, que ela se vestira toda de luz para o nosso
futuro encontro; e não me desesperasse, pois estava próximo o dia
em que nunca mais nos haveríamos de separar.
De
outros turnos – como no caso de frei Bertolameu, que dessem-lhe azo
os negócios, “subia sobre tarde a um eirado que mandou fazer em
uma casa das mais altas do Paço; e como o passarinho, que depois de
andar todo o dia ocupado na fábrica de seu ninho, quando vai caindo
o Sol, e as sombras crescendo, estende as asas pelo ar, dando umas
voltas alegres, e desenfadadas, que parece não bole pena, ou posto
sobre um raminho canta descansadamente”, – também eu deixava-me
estar no terraço de meu apartamento, um dos mais altos de Pocitos: e
feito ele que, à imagem da avezinha, “depois de alargar os olhos
pelas serras e outeiros, que do alto se descobriam, estendia os de
sua alma às maiores alturas do Céu, voava com a consideração por
aquelas eternas moradas, desabafava, e em voz baixa entoava de quando
em quando alegres Hinos” – eu por minha vez, ante a ideia de
compartilhar com a bem-amada a visão dos amplos espaços
crepusculares do estuário do rio da Prata, e de rodeá-la, com meus
braços dentro das iluminações do poente oriental, punha-me, tal um
menino que, ai de mim, já não sou mais, a tamborilar com os dedos e
a cantar com ela alegres sambas do meu Rio, que não é da Prata nem
do Ouro, mas que é cidade de muito instante, e em hoje mora, em casa
única, o meu antes triste e multifário coração.
Vinicius
de Moraes, in Para viver um grande amor
Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio
Pense
nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um
pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de
ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que
dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão
de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao
pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o
terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil
e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu
corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um
bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar
corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue
sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas
vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço
telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que
possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é
uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu
relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é
você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.
Júlio
Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas
Presépio
Dasdores
(assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre
a Missa do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não
ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não
veria o namorado.
É
difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa,
salvo para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema
ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa
cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas,
um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se
diriam jaulas.
Dasdores
e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces
de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas
de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja
pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é:
trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar
todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode
vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é
impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores
nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido,
ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas
hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato
furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para
sua mãezinha.” Dasdores multiplica-se, corre, delibera e
providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou
aprisionar por obrigações enfadonhas. Em seu coração ela voa para
o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo com
brilhantina, está Abelardo.
Das
mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a
que ocorre na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas,
e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres
foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação
sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos
braços com a atividade interior — É uma conspiradora — e sempre
acha folga para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém,
veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio está por
armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas
Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não
perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto repentino,
desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que ninguém mais, salvo
esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já
morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há
quase dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no
nascimento do Menino, e ai do presépio que cede a novidades.
As
caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las
é a primeira satisfação entre as que estão infusas na prática
ritual da armação do presépio. Todos os irmãos querem colaborar,
mas antes atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a
responsabilidade plena da direção. Jamais lhes será dado tocar,
por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos
pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor seria que não
amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a
paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de
circundar a manjedoura. Nem todos os animais estão perfeitos; este
carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar, mas
parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve
querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção
com os cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e
participam da natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez
participa obscuramente da natureza da família. Através de um
sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não
há limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura,
pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de Abelardo.
Alguém
bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de
ir para a igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em
desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa (“Agarra-me!
Agarra-me!”). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos
para fazer algo de muito importante e que exige não somente largo
espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito
importante e que não pode absolutamente ser adiado — se esse
alguém é nervoso, sua vontade se concentra, numa excitação aguda,
e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas.
Dasdores não pertence a essa raça torturada e criadora; figura no
ramo também delicado, mas impotente, dos fantasistas. Vão-se as
amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o
relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe
esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos,
dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda
parte. A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio,
dispondo-as onde convém. Nada fará com que erre; do passado a tia
repete sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as
figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos
de celulóide, está alterado, ou subtrai-se. Dasdores não o
saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o
medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a impedir o segundo?
Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando,
talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de
palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir
— sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já sabeis de
quem. Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também
costumam sê-lo, acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com
os muitos braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação,
vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa—,
ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase
deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não
braços e pernas suplementares, e sim outra natureza, diferente da
que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira
acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a
correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não
assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono
desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando
seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos
esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador
furta um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números
gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que
a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria
folga para localizar condignamente os três reis na estrada, levantar
os muros de Belém. Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo.
“Agarra-me! Agarra-me!” Nas cabeças que espiam pela porta
entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar
sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda
interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais
para caber em instantes tão curtos, no calor que começa a fazer
apesar das janelas escancaradas — há uma previsão de malogro
iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a
noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro.
Mas
Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida,
juntando na imaginação os dois deuses, colocando os pastores na
posição devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de
Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de
Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em torno dos
cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro
— quem botou! — ardendo na areia do presépio, e que Abelardo
fumava na outra rua.
Carlos
Drummond de Andrade, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
domingo, 29 de dezembro de 2019
A Cultura do Espetáculo
Fora do ecrã, o mundo é uma sombra indigna de confiança. Antes da televisão, antes do cinema, já era assim. Quando Buffalo Bill apanhava algum índio distraído e conseguia matá-lo, começava rapidamente a arrancar-lhe o couro cabeludo, as plumagens e os restantes troféus, e num galope ia do Faroeste até aos teatros de Nova Iorque, onde o próprio representava a heroica gesta que acabara de protagonizar. Então, quando se abria o pano e Buffalo Bill erguia no palco o seu punhal ensanguentado à luz das gambiarras, só então ocorria, ocorria pela primeira vez, ocorria deveras, a realidade.
Eduardo Galeano, in O Livro dos abraços
O cântico da Terra
Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
Eu
sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranquila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranquila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu
sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A
ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.
E
um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranquilo dormirás.
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranquilo dormirás.
Plantemos
a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
Cora
Coralina
A Igreja do Diabo
I
- DE UMA IDÉIA MIRÍFICA
Conta
um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a
ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e
grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde
séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual,
sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos
descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não
teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de
combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
– Vá,
pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário
contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as
minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho
eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos,
a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras
religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não
acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de
afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo
isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto
magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para
comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de
ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E
rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as
províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.
4
II - ENTRE DEUS E O DIABO
Deus
recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que
engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo
deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
– Que
me queres tu? perguntou este.
– Não
venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos
os Faustos do século e dos séculos.
– Explica-te.
– Senhor,
a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro
esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas
cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
– Sabes
o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
– Não,
mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda
muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do
preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas
palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha
desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de
obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com
lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia,
não vos parece?
– Vieste
dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor. - Tendes razão,
acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos
mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre
vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar
a minha pedra fundamental.
– Vai.
– Quereis
que venha anunciar-vos o remate da obra?
– Não
é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há
tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma
igreja?
O
Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia
cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória,
qualquer cousa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer
superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
– Só
agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é
que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis
a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão.
Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas
para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
– Velho
retórico! murmurou o Senhor.
– Olhai
bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do
mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do
mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas
centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode
do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse
cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente
espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas
matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me
detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com
que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao
peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto
os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e
Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o
Diabo.
– Tu
és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua
espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito
e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens
força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é
que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no
rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião
parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
– Já
vos disse que não.
– Depois
de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio,
ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da
vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação
e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por
cima. Onde achas aí a franja de algodão?
– Senhor,
eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
– Negas
esta morte?
– Nego
tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos
outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
– Retórico
e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama
todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Debalde
o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe
silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as
harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se
achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
III
- A BOA NOVA AOS HOMENS
Uma
vez na terra, o Diabo não
perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como
hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e
extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século.
Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra,
todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o
Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham
dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas
beatas.
– Sim,
sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos
contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e
único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para
arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o
vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para
meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos
darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era
assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar
os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E
elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina.
A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação.
Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes
subtil, outras cínica e deslavada.
Clamava
ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que
eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça
foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser
mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era
robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na
existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada:
“Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu”... O mesmo
disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e
muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que
ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a
gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas
razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor
intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir
na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os
maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia
substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do
Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos
seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja,
pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades
infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e
ao próprio talento.
As
turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a
grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de cousas, trocando
a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada
mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da
fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era
a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora,
ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que
uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que
não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda,
foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era
um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício
de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua
casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas
por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora
de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a
tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são
a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no
absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os
cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para
transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes
físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção
moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se
demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária;
depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria
dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era
exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer
duplicadamente.
E
descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que
combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e
cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas
induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de
outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão
imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum
salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as
formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis
de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção
do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela
consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples
adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para
rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo
grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma
simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se
devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou
desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo
era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino
e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo
regímen: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única
hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse
de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a
particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do
indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal
explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o
Diabo recorreu a um apólogo: –
Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns;
mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é
o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro
da sabedoria.
IV
- FRANJAS E FRANJAS
A
previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de
veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás
foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A
igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do
globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma
raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um
dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus
fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as
praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como
digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente
três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito
católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal
povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas
quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração
nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que
estavam embaçando os outros.
A
descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o
mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara
longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas,
socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão
de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com
ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele
negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman;
roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um
muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas
outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou
completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um
calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de
documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas,
estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a
meter-se na cama para não confessar
que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como
ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de
um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela
solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações
secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O
Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o
caso era verdadeiro.
Não
se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir,
comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao
passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer
a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita
complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou,
sequer, daquela agonia satânica.
Pôs
os olhos nele, e disse:
– Que
queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas
de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres
tu? É a eterna contradição humana.
Machado
de Assis, in Histórias
sem datas
Nós aqui não queremos esses Okies danados
Rosa
de Sharon cerrou os olhos. A mãe deitou-se de costas e cruzou as
mãos sob a cabeça. Ficou atenta à respiração da avó e à
respiração da filha. Tirou uma mão de sob a cabeça para espantar
uma mosca que pousara em sua fronte. O acampamento estava em silêncio
no calor ardente, e os ruídos na relva quente, o canto dos grilos e
o zum-zum das moscas eram ruídos que caíam bem no silêncio. A mãe
suspirou profundamente e fechou os olhos. Semiadormecida, ela ouviu
passos que se aproximavam, mas somente acordou totalmente quando uma
voz masculina soou alta:
— Quem
é que taí?
A
mãe sentou-se rapidamente. Um homem de rosto moreno surgiu à porta
da tenda e olhou para dentro. Calçava botas, culotes e camisa cáqui
com dragonas. Do cinto de couro largo pendia um revólver no coldre,
e ostentava uma grande estrela de prata no lado esquerdo do peito.
Trazia um boné militar tombado para trás. Tamborilava com os dedos
no pano da tenda e a lona ondeava e vibrava qual um tambor.
— Quem
está aí dentro? — tornou a perguntar.
— Que
é que o senhor deseja? — a mãe perguntou.
— Que
é que a senhora acha que eu posso desejar? Quero saber quem tá aí
dentro.
— Ora,
só nós três. Eu, minha filha e a avó.
— E
onde estão os homens?
— Eles
foram se lavar aí no rio. A gente andou viajando a noite toda.
— Vêm
de onde?
— De
perto de Sallisaw, estado de Oklahoma.
— Bem,
não podem ficar aqui.
— Nós
queremos sair daqui de noite, pra atravessar o deserto.
— É
o melhor que têm a fazer. Se amanhã de manhã ainda estiverem aqui
irão todos pra cadeia, ouviu? Não queremos vocês aqui.
A
mãe corou de raiva. Devagar, ela se pôs em pé e pegou uma
frigideira de ferro.
— Escuta,
moço — disse ela. — O senhor tem uma estrela no peito e um
revólver, mas isso pra mim não serve de nada. Lá, de onde eu
venho, gente assim costuma falar delicado, ouviu? — Ela avançou,
empunhando a frigideira. Ele afrouxou a arma no coldre. — Vá
saindo — disse a mãe. — Sim, senhor! Assustando mulheres. Inda
bem que os homens não estão aqui. Você ia ver! Na minha terra
gente como você tem muito cuidado com a língua.
O
homem deu dois passos para trás.
— Mas
agora você não está na sua terra, tá compreendendo? Está é na
Califórnia, e nós aqui não queremos esses Okies danados que nem
você.
A
mãe estacou, hirta:
— Okies?
— disse ela baixinho. — Okies?
— É,
Okies! E se vocês amanhã ainda tiverem aqui, vão passar mal. Boto
todos na gaiola. — Virou as costas, saiu e foi até a próxima
tenda e bateu na lona com a mão aberta. — Quem taí dentro? —
falou.
A
mãe foi voltando com vagar. Recolocou a frigideira no caixote.
Tornou a sentar-se, lentamente. Rosa de Sharon observava-a
disfarçadamente. E quando viu seus traços alterados, cerrou os
olhos, fingindo adormecer.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
sábado, 28 de dezembro de 2019
Lavoura arcaica - 6
Desde
minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu
silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me
distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse
“para onde estamos indo?” — não importava que eu, erguendo os
olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas,
não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada
vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios
um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de
qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa”.
Raduan
Nassar, in Lavoura arcaica
Edmund Wilson
Edmund
Wilson era uma raridade nos Estados Unidos, um autêntico e
desavergonhado homem de letras. Os intelectuais americanos sempre
tiveram um certo escrúpulo de parecerem homens cultos. Wilson fez
uma profissão da cultura. Na biografia autorizada da maioria dos
novelistas americanos que ganharam notoriedade nos anos 30, os anos
da primeira grande crise do capitalismo industrial nos Estados
Unidos, há um esforço transparente em dar como credenciais a
experiência mais imediata e proletária possível da crise. Os que
não foram boxeadores ou vagabundos antes de começarem a escrever
foram choferes de caminhão ou lavadores de prato — até um
aprendizado jornalístico era inconfessável, pelo que poderia
sugerir de sofisticação literária —, e para todos “cultura”
era sinônimo de uma sensibilidade inadequada à experiência urbana
do novo mundo, quando não de afetação e bichice. (Hemingway
dedicou a vida a convencer os outros do seu machismo. Nelson Algren
até hoje gosta de ser fotografado fumando charuto e jogando pôquer
com seus amigos marginais.) Wilson, por sua vez, pulou de Princeton,
uma das mais aristocráticas universidades da aristocrática Nova
Inglaterra, diretamente para o mundo enclausurado das pequenas
revistas de crítica e do establishment acadêmico, com
frequentes tours pelas ruínas da alta cultura europeia.
Jamais lavou um prato na vida. Mas, paradoxalmente, foi o primeiro
crítico do seu país a situar as raízes da nova literatura
americana na crise social do seu tempo.
Wilson
compreendeu que os novelistas dos anos 30 procuravam transformar a
violenta experiência da América num fato novo também da
imaginação, enquanto a cultura europeia se exauria tentando
conciliar ideias antigas e nova realidade. O paradoxo de uma
sensibilidade aristocrática revelando aos revolucionários a sua
própria revolução, como Wilson fez com seus contemporâneos
americanos, se explica. Não era a cultura clássica da Europa que
informava a sua perspicácia e sim sua filha bastarda, a tradição
herética que frutificara na revisão marxista. Mas assim como Wilson
explicava, mas não imitava o estilo proletário dos seus
contemporâneos (segundo o crítico George Steiner, Wilson escrevia a
prosa mais elegante da América), também nunca foi um catequizador
marxista. A percepção política era apenas um componente a mais da
sua erudição.
Wilson
limitou sua prosa elegante quase que exclusivamente ao ensaio e à
crítica. Sua obra de ficção mais conhecida — Memories of
Hecate Country — deve sua fama mais ao escândalo do que à
qualidade literária: foi proibida em vários estados da América
devido às suas descrições eróticas explícitas para a época,
tímidas hoje em dia. Nos seus últimos anos, Wilson se notabilizou
pela excentricidade. Andou envolvido com o governo por ter se negado
a pagar seu imposto de renda, alegando que não tinha direito a
nenhuma opinião sobre como o seu tributo seria usado, e, portanto, o
reservava para seu próprio uso. Um de seus últimos livros
publicados é uma elegia à velha casa senhorial na qual se refugiara
da violência americana que tanto excitara sua imaginação na prosa
dos outros, mas que agora só ofendia a sua sensibilidade
aristocrática. Um velho e paradoxal homem de letras.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
Jardim das delícias
Quem
disse foram as Escrituras Sagradas. Elas contam que Deus estava
infeliz. O vazio em que vivia lhe dava tédio. Por isso teve um
sonho. Sonhou com um jardim – pois não há nada que dê mais
alegria que um jardim. Decidiu-se, assim, a plantar um jardim para
ficar alegre. Começou nos confins do vazio, criando as grandes
estrelas, o Sol, a Lua, e foi afunilando, afunilando, até chegar a
um lugar bem pequeno, onde plantou o seu sonho: o Paraíso. Fontes,
árvores frutíferas, flores, pássaros, borboletas, animais de todo
tipo, e até um vento fresco e perfumado que soprava nas tardes.
Cecília Meireles resumiu essa estória num minúsculo poema enorme:
“No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta./No planeta, um
jardim./ No jardim, um canteiro./E no canteiro, o dia inteiro/ Entre
o mistério do Sem-Fim e o planeta/A asa de uma borboleta...”. Era
o jardim das delícias, destino dos homens, destino do universo, o
destino de Deus! O Paraíso era melhor que o céu. Prova disso é que
Deus passeava pelo jardim ao vento fresco da tarde... Terminado o seu
trabalho de seis dias Deus parou de trabalhar. Entregou-se então
àquilo para que o trabalho havia sido feito: uma deliciosa
vagabundagem contemplativa. Os olhos olharam para o jardim e
experimentaram o êxtase da beleza! “E viu Deus que era muito
bom...” Os olhos de Deus brincavam com o jardim. Nada havia para
ser feito. Havia tudo para ser gozado.
Vejo
as pessoas religiosas fechar os olhos para orar. Elas creem que, para
se ver Deus é preciso não ver o mundo. Elas não sabem que a beleza
da natureza é o espelho onde Deus se contempla. Os versos de Helena
Kolody podiam estar gravados na entrada do Paraíso: “Rezam meus
olhos quando contemplo a beleza”. “A beleza é a sombra de Deus
no mundo.”
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba