sábado, 30 de novembro de 2019
A sociedade vigilante
“Os
partidos que reconstruíram os Estados e suprimiram os rivais não
foram onipotentes desde o começo. Eles se aproveitaram de um momento
histórico para tornar a vida política impraticável para os
adversários. Por isso, apoie o sistema multipartidário e defenda as
regras de eleições democráticas. Vote em eleições municipais e
estaduais enquanto for possível. Pense em concorrer a um cargo
eletivo”.
Timothy
Snyder,
in Sobre
a tirania: vinte lições do século XX para o presente
Para
Snyder, o século XX testemunhou ótimas medidas para ampliar o
direito do voto e de criar democracias duradouras.
Porém, as democracias que surgiram
depois da primeira e da segunda guerra, em muitos casos, se corroeram
quando um único partido tomou o poder mediante combinação de
eleição e golpe de Estado.
Como ele afirma: “Um partido
fortalecido por resultados eleitorais favoráveis, ou motivado por
uma ideologia, ou ambas as coisas, podia transformar o sistema de
dentro pra fora”. Justamento o que fizeram Nazi/Fascistas.
A maioria dos alemães da década de 30,
que votaram no Partido Nazista, não se deram conta de que aquela
poderia ser a sua última eleição livre. Isso também ocorreu com
países do leste europeu, sob o regime comunista.
Jorge
Arte: Kaleb de Carvalho
Eu
devia ter uns três anos de idade e não me lembro de nada. A família
já melhorara de vida, passara da fase que a minha mãe lembra como a
fase dos caixotes — móveis improvisados feitos de embalagens de
madeira — e ocupava um apartamento melhorzinho, grande o bastante
para receber um hóspede, pelo menos um hóspede magro: Jorge Amado.
Ele ficou alguns dias na nossa casa, escondido da polícia política.
Minha irmã brincava de cabeleireira com seus cabelos, e ele inventou
que eu não tinha cara de Luis Fernando, tinha cara de João. Até a
última vez em que nos encontramos, me chamou de João. Não foram
muitos os encontros. Ele fez mais algumas visitas a Porto Alegre —
nunca mais como fugitivo —, a Lúcia e eu levamos nosso convite de
casamento para ele e a Zélia no seu apartamento do Rio (minha
intenção, confesso, era impressionar a noiva), eu fui visitá-los
uma vez no apartamento do Marais, em Paris, depois participei das
comemorações dos seus 80 anos, em Salvador, e conheci a casa do Rio
Vermelho onde agora estão as suas cinzas.
Desde
o seu rápido asilo conosco, ele e meu pai, Erico Verissimo, foram
amigos, mas a amizade passou por alguma turbulência no final dos
anos 40 e início dos 50, quando a questão do engajamento político
dividiu os intelectuais do país. Meu pai contava uma cena dolorosa e
cômica que se passara no banheiro de um quarto de hotel no Rio, ele
dentro de uma banheira de água quente tentando aliviar uma cólica
renal e ao mesmo tempo convencer o Jorge, sentado num banquinho ao
lado, que, com toda a sua simpatia pelo socialismo, não podia
aceitar o dogmatismo comunista e o totalitarismo, e o amigo tentando
convencê-lo da justificativa histórica do stalinismo. Mas
continuaram se gostando e se admirando, e acabaram se aproximando
politicamente também, engajados no repúdio a qualquer sistema
desumano. Quando o lamentável Buzaid, então ministro da Justiça,
ameaçou instaurar a censura prévia de livros no Brasil, os dois
assinaram um manifesto conjunto contra a ideia que ajudou a matá-la
no nascedouro. Eles mantiveram uma correspondência esparsa mas
afetuosa até a morte do meu pai. Depois disso, ele e a Zélia e
minha mãe telefonavam-se frequentemente — e as mensagens dele
sempre incluíam “lembranças para o João”.
Gosto
de uma história que contou o pintor Calasans Neto, amigo de Jorge. A
mãe do escritor comentou numa roda que, graças a Deus, seu filho
nunca se envolvera em política. Depois de um instante de espanto
silencioso, alguém disse: “Mas dona Eulália, o Jorge foi deputado
constituinte pelo Partido Comunista!”. E dona Eulália: “Ah, um
partidinho de nada...”.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
A mão do Senhor
Bendita
seja, Senhor, a mão, que tantas graças em mim tem derramado. Vós
me destes progenitores imaculados, que buscaram ensinar-me a não
errar os vossos caminhos. Liberalizastes-me cinquenta anos de
atividade ao serviço do meu país. Mais de quarenta me permitistes
de união com uma companheira, que tem sido a vida de minha vida, a
alma de minha alma, a flor sempre viva da vossa bondade no meu lar.
Já me deixastes ver a segunda geração de uma descendência que me
não deslustra. Ao cabo de tantas dádivas, me vejo agora cercado,
tão assinaladamente pela benquerença dos meus concidadãos. E,
sobre essa profusão de benefícios, ainda me cabe a dita, sem preço,
de ver, no esboçar-se da vitória dos povos contra os déspotas, na
confissão do valor dos pequenos pelos grandes Estados, na próxima
União das Nações, o amanhecer desses ideais de legalidade e
direito, de tolerância e democracia, de paz e fraternidade, que os
vossos Evangelhos nos entremostram há mais de 1.900 anos. É muito,
Senhor, para quem tão pouco merece, e, por mais dura que me tenha
sido a carga do trabalho, por mais que me haja custado o amargor dos
trabalhos, nada me resta, nada se apura do meu escasso crédito,
comparado à dívida infinita, de que a vossa misericórdia me
acabrunha.
Mas,
Senhor, se a quem nada tem com que pagar, ainda será lícita a
ousadia de pedir (e tal é, para convosco, a condição de todas as
criaturas), dai que hoje, daqui, do alto desta solenidade, cujo
esplendor só a vós pode ser tributado, juntemos todos as nossas
orações às que há quatro anos se elevam aos vossos pés, de todos
os cantos do planeta, num oceano de lágrimas, soluços e vidas, pela
regeneração da vossa obra inenarrável, desnaturada hoje totalmente
com a renascença do antigo paganismo na política anticristã, que
baniu a moral, o direito e a verdade, substituídas pelo interesse,
pela servidão e pela mentira.
Da
vitória do bem não duvidei jamais, porque nunca me vacilou a crença
na vossa justiça.
Rui
Barbosa, in Antologia
Recessão no Nordeste, quem trabalha está ameaçado de morrer à noite. E os bolsões de calor aumentam, só o guarda-chuva de seda preta resiste
(Narração
feita pelo homem que costuma se sentar sempre à ponta da mesa. Souza
ouviu, lembrando-se, como professor de História, da primeira cruzada
arrasando Jerusalém, em 1099, tal como foi relatada por D’Agiles
em História Francorum Qui Ceperunt Hierusalem: “Entre os
sarracenos, uns tinham a cabeça cortada, o que era para eles a sorte
mais doce; outros, atravessados por flechas, se viam obrigados a
saltar do alto das torres; ou-tros ainda, após longo sofrimento,
eram entregues às chamas e por elas consumidos. Viam-se nas ruas e
nas praças da cidade pedaços de cabeças, de mãos, de pés.
Infantes e cavaleiros abriam caminho através de cadáveres. Mas tudo
isso ainda era pouco. Vamos até o Templo de Salomão, onde os
sarracenos tinham o costume de celebrar as solenidades de seu culto!
Que aconteceu nesses lugares? Se dissermos a verdade, ultrapassaremos
os limites do inacreditável”.) O homem que se senta sempre à
ponta da mesa contou: – Trabalhei numa tecelagem até que ela se
fechou. Quando tudo se acabou no Nordeste, vim embora. Mais ou menos
no Fim da Grande Época dos DIs. Os Deís, como o povo chamava lá em
cima, eram os Decididamente Incompetentes. Você deve se lembrar,
eles dominaram o país por seis anos. Três governos, cada um de dois
anos. Os golpes de Estado funcionaram como relógio. A cada
setecentos e trinta dias, um novo Deí substituía o anterior,
demonstrando incompetência ainda maior que seu antecessor. Os Deís
apenas não eram incompetentes para encher os próprios bolsos. Se
quisessem, saberiam governar. No entanto, o Esquema estava
manipulado, de modo que os postos se mantivessem entre eles,
inacessíveis a qualquer cidadão. Ora, estou chovendo no molhado, um
professor de História sabe disso melhor do que eu. Afinal, sou
apenas um Operário Esclarecido. Ao menos, me considero um produto
daqueles homens ótimos e lúcidos, exterminados no Período dos
Mentirosos Crônicos. Meu pai desapareceu naquele tempo, engolido.
Bem que os Operários Esclarecidos tentaram se movimentar, se
arregimentar, abrir as cabeças dos trabalhadores. Os Mentirosos
Crônicos castraram as lideranças, sufocaram os rebeldes, amaciaram
os dúbios, compraram os fracos, enganaram todo mundo. Novidade
nisso? Nenhuma. Posso dizer que sou um Operário Esclarecido porque
não comecei como trabalhador comum. Fiz universidade, peguei meu
diploma de sociologia e caí no vazio. Procurando emprego,
procurando. Cata daqui, pega de lá, acabei na organização do
pessoal numa tecelagem média do Alto São Francisco. O rio tinha
entrado em agonia após anos de devastação em suas margens.
Eliminada a cobertura vegetal, vieram as erosões, o escoamento
superficial aumentou, assim como o assoreamento dos rios, das
barragens e dos cursos de água. Quando o São Francisco se reduziu a
um filete tentando sobreviver na areia quente, o povo ficou maluco.
Com razão. Açudes secos, barragens vazias, o gado morto na
caatinga, o sol esquentando, crianças morrendo. Elas não resistiam.
A Grande Época dos Deís coincidiu com o fim das crianças no
Nordeste. Elas foram exterminadas antes que o Esquema iniciasse o
processo geral da esterilização do povo por causa dos acidentes com
usinas nucleares. Havia dias em que a fábrica era um forno medonho,
pessoas desmaiando, sufocadas, suando em bicas, se desidratando. Eu
indagava onde íamos parar. Não havia possibilidade de deter nada,
era um processo bola de neve, desencadeado muitos e muitos anos
atrás. Modificar o clima? De que jeito? Empurrar o sol para cima?
Era o que dava vontade para se livrar da quentura que arrancava a
pele, ardia a cabeça, torrava os pés. A terra era areia, ou pedras.
Me batia o desespero por não poder mover uma palha. Colocar de novo
as montanhas no lugar, plantar a mata, puxar água do fundo da terra
e transformá-la em rio? Tá brincando? Estou, é o jeito. Chegar ao
governo e denunciar. Denunciar o quê, estava tudo denunciado. E
acaso não foram as denúncias que conduziram aos Tempos Lamentáveis
das Imensas Escamoteações, quando o Esquema mentia e enganava,
fazia, desfazia e negava? Há anos os governantes se isolaram,
inacessíveis, inabordáveis, imunes a qualquer contato com a
população. Adiantava falar com as pessoas, pobres coitadas,
preocupadas, e como, com o trabalho, a comida, o dia a dia? Elas me
perguntavam: “Está bem, o que a gente faz? Para de trabalhar?
Reclama com o patrão e é despedido? Organiza um movimento, assina
um manifesto?”. Tinham razão, quantos movimentos foram planejados
e boicotados? E os milhares de manifestos que estão arquivados, se é
que estão, no túmulo da memória nacional? O problema era não
provocar demissão. A perda do emprego significava morte para a
família inteira. Estar na fábrica representava uma cota de água,
mínima, um salário vergonhoso, a garantia da maloca em que se
morava. A insegurança era imensa, quem estava desempregado fazia
tudo para arranjar um posto. Tudo. O que amanhecia de gente morta nos
terrenos, nos subúrbios das cidades, era inacreditável. Criaram-se
patrulhas destinadas a recolher os corpos cada manhã. Percorriam os
arrabaldes e traziam os cadáveres dos assassinados com paus, pedras,
peixeiras, tiros, socos, pontapés. Havia fossos em volta das
fábricas, em torno de qualquer lugar onde houvesse gente
trabalhando. Valas, como na Idade Média, cercando castelos. Os
empregados eram escoltados para suas casas e até patrulhas se viam
atacadas, porque vigia e segurança também eram profissões.
Percorria a caatinga, manhãzinha, e sofria enjoo, ânsia de vômito,
a cabeça latejava. Me lembro de um velho filme, célebre no passado,
que a televisão reprisa, você deve ter visto. Chama-se E o vento
levou , e tem uma hora que a câmera sobe numa estação ferroviária
e mostra o chão coalhado de mortos. Cena fantástica, clássica no
cinema. Jamais se tinha visto tanto morto junto. Coisa de filme, se
dizia. Hoje sei, não é. (Ouço, pensou Souza, com o mesmo horror
com que li a história da primeira cruzada sobre Jerusalém. Cada
palavra de D’Agiles, o historiador, me ficou gravada. De repente,
estava tudo reproduzido, não no ano 1099, mas na entrada do século
XXI, No templo e no pórtico de Salomão cavalga-se com sangue até
o joelho do cavaleiro e até as rédeas do cavalo.) Depois de
algum feriado, a violência era maior, não sei se pela bebida, se
por causa do descuido. Ninguém suportava ficar em casa o tempo
inteiro, sem sair nunca. Viver prisioneiro. Morar entre quatro
paredes, ir para o emprego em furgões blindados, encerrar-se na
fábrica por doze horas, temer a chacina diária. Conviver a cada
instante com a possibilidade de morrer, preparar-se. Fomos nos
habituando, de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia,
aceitando-a como cotidiano. Me espanta essa capacidade de acomodação
da mentalidade, sua adaptação ao horror. Acredito que a gente
possua um componente de perversidade que nos leva a encarar como
normal esse pavor, a desejá-lo às vezes, desde que não nos toque.
Uma porcentagem de perversidade que tem sido alimentada pelo Esquema,
essa coisa tão abstrata, que consegue se manter em meio à anarquia,
ao caos estabelecido como ordem, à anomalia mascarada em progresso.
Não me interrompa, me deixe falar, botar para fora, vomitar o que vi
e engoli e aceitei. Me sentia como os judeus caminhando ordenadamente
para os fornos crematórios de Auschwitz, Dachau. Conhecedores e
impotentes, esperançosos, até a hora do forno, na expectativa de
que o fogo se apagasse, o gás perdesse o efeito mortífero, os
aliados chegassem para salvá-los. Aí é que me pergunto, podemos
lutar pela salvação isolados, individualizados, ou temos de contar
com auxílios exteriores, amparo? Fizeram tudo para massificar, ao
mesmo tempo que isolaram cada pessoa em si, tornando-a ferozmente
individualista, fechada para o outro, sem apoio e sem querer apoiar,
medrosa da própria personalidade. Você me acha louco, sinto no
jeito com que me olha. Pode ser que seja. Prefiro estar. Minha
vontade é que tudo isso seja mentira, delírio. A viagem pelas
estradas, à noite, derreteu meu cérebro, fui deixando os miolos em
fiapos pelo caminho. Tudo que tenho dentro é uma nuvenzinha leve,
sombra do que foi uma cabeça que raciocinava, que me fazia agir.
Acho que procuro desculpas para não carregar um grande peso. Eu
olhava aquele Nordeste devastado, campo de batalha medieval.
Horrorizado a cada novo dia, porque o sol levantava sobre o sangue
seco das pessoas mortas no escuro. Porque eram pessoas que tinham
emprego. E cada morte representava uma vaga, disputada violentamente
nos portões das fábricas, numa guerra surda, não disfarçada,
consentida e incentivada pelas empresas, ignorada pelo Esquema. Na
minha cabeça ressoavam as palavras de Isaías: “Torna insensível
o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhes os
olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os
ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo.
Então eu disse: Até quando Senhor? Ele respondeu: Até que sejam
desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem
moradores e a terra seja de todo assolada e o Senhor afaste dela os
homens e no meio da terra seja grande o desamparo. Estava previsto.
Oh! Povo meu! Os que te guiam te enganam, e destroem o caminho por
onde deves seguir”. Tudo ali, dois mil anos, escrito e repetido,
finalmente realizado. Tire daí o que se refere ao Senhor e a ficção
científica se concretizou. Engraçado é que fugimos de lá, viemos
para cá, e encontramos a mesma coisa. Empregados contra
desempregados, na guerra mais violenta desde a do Paraguai. E sobre
tudo o sol. A impressão é que ele desce milímetro a milímetro.
Não sei se é possível, não sei nada de ciência. Possível ou
não, a gente olhava para cima e a cabeça estourava, os olhos
lacrimejavam. Começou a ficar impossível sair de casa. As pessoas
passaram a usar chapéus, e não adiantava. Veio o tempo de
guarda-chuvas. Alguém descobriu que o sol não atravessava
guarda-chuvas de seda preta. Só os de seda. Outro pano não
resistia. Dois, três dias de uso, o pano se esfarelava. Menos a seda
preta. Ela resistia, protegia, formava uma sombra agradável. Não me
pergunte por quê. Não me pergunte nada. Ninguém me respondeu,
ninguém responde coisa alguma neste país. Havia outra situação
estranha, curiosa. As regiões de quentura. Verdadeiros bolsões em
que era impossível ficar, passar, atravessar. Você ia andando,
mergulhava naquele calor insuportável. Corria, tentando escapar,
porque às vezes o bolsão era pequeno, a gente se livrava logo. No
fundo, era um divertimento. Dramático, mas engraçado, porque
subitamente alguém a sua frente punha-se a pererecar, gritar,
voltava correndo. Voltavam todos, sabia-se que era um bolsão. Mais
tarde, quando fizemos a grande travessia, vimos que os bolsões
existiam por toda a parte. Eram imensos em certas regiões,
estendiam-se por quilômetros. Até que chegou o Tempo Intolerável.
Não dava mais para se expor ao sol. Você saía à rua, em alguns
segundos tinha o rosto depilado, a pele descascava, a queimadura
retorcia. A luz lambia como raio laser. Com o tempo, o perigo nos
bolsões de soalheira, como o povo chamava, aumentou terrivelmente.
Quem caía dentro não se salvava. O sol atravessava como verruma,
matava. Ao menos era a imagem que a gente tinha, porque a pessoa dava
um berro enorme, apertava a cabeça com as duas mãos, o olho
saltava, a boca se abria em busca de ar. Num segundo o infeliz caía,
duro, sem se contorcer. A gente via, a alguns passos, a pessoa
murchando, secando, desidratada, a pele se desgrudava como folha
seca, mais um pouco e os ossos dissolviam. Não acredita, não é?
Nunca ouviu falar disso. Ninguém falou, a imprensa jamais noticiou.
Os cientistas foram estudar e ficaram perplexos. Apenas conseguiram
determinar que os bolsões aumentavam gradualmente, em porcentagem
semanal. Fizeram mapas, a população recebeu gráficos, mudaram o
trânsito da ruas, as pessoas se deslocaram, alteraram estradas. As
crianças brincavam empurrando cachorros e gatos para dentro dos
bolsões. Até que os animais se transformaram em comida e não se
deixava mais desperdiçá-los. Os Civiltares utilizavam os bolsões
como castigo. Jogavam presos, desafetos, inimigos, subversivos na
soalheira e esperavam. Desaparecido o corpo, sem testemunhas, não há
crime, diz a lei. Para conseguir confissões ameaçavam as pessoas no
limite dos bolsões: Fala, ou te jogo aí. Falavam. Claro, os
bolsões à noite desapareciam. Deve ser aquele fenômeno comum ao
deserto. Quente de dia, frio de noite. As famílias andavam pelas
ruas, cercanias da cidade, em busca das cinzas de parentes que
imaginavam consumidos. Não havia como reconhecer quem. Guiavam-se
por conhecimentos relativos, baseando-se em dados frágeis: a mãe
que tinha mandado o filho à venda, recomendando cuidado com o bolsão
da praça. O pai que tinha ido ver um leilão de carne-seca nos
arrabaldes. A filha que tinha ido à loja. A tia que tentava visitar
uma avó. Namorada querendo se encontrar com namorado. Procura
inútil, todo mundo sabia. Ninguém seguro de que estava levando para
casa as cinzas certas. Podia ser um bezerro morto, se bem que bezerro
fosse coisa rara, preciosa. Na verdade, ninguém suportava ficar
dentro de casa. Saíam à noite e se encontravam. Os amigos ajudavam
na procura. Ninguém saía só, formavam-se grandes grupos, com medo
de ataques dos Caçadores Implacáveis de Empregados. Passeios
temerosos, as pessoas sobressaltadas. Se alguém avistava um grupo,
desviava-se logo. E o que se via, se pudesse ser visto do alto, era
quase um balé, gente indo, vindo, desviando-se, voltando,
encontrando outro grupo, se afastando, rodeando, andando de costas,
girando. Maluquice, seu! Alguém suporta uma tensão dessas? Até que
ninguém mais saiu. De dia ou de noite. Nem aqueles que tinham
guarda-chuvas de seda preta. Não confiavam na invulnerabilidade.
Também não adiantava sair. Estava tudo fechado. O padeiro não
fazia pão, não existia farinha, nem mesmo a factícia. Os bares
esgotaram estoques. A farmácia não tinha nem comprimido. Os
fornecedores não chegavam, supunha-se que haviam sido apanhados
pelos bolsões em algum ponto da estrada. Os açudes esvaziaram. Quem
trabalhava podia se abastecer na subsistência das fábricas, no
entanto mesmo estas, apesar de muito estoque, começaram a esvaziar.
As pessoas se divertiam um pouco jogando pelas janelas os restos de
comida, se é que sobrava, o lixo das casas, os papéis, bobaginhas.
Às vezes, o lixo se incendiava em pleno ar antes de cair. E então
não houve mais possibilidade de viver. O povo resolveu fugir. A vida
intolerável. Sabe o que a gente fazia quando estava apertado,
barriga solta? Esperava a noite, ia lá fora. No dia seguinte, o sol
incinerava. As noites eram escuras, a energia tinha-se esgotado.
Verdade, chegaram ao Nordeste alguns geradores de energia solar. Sabe
com quem ficaram, não sabe? Com os últimos coronéis, com as
famílias que mandavam, com aqueles ligados às Multinter. Puxa, você
deve estar pensando, não havia mais nada de bom? Tinha, a vontade
daquele povo de viver, não se entregar. Por isso começou a sair.
Uma decisão automática, inconsciente, maciça. Os grupos começaram
a partir à noite, protegidos pelos Caça-Empregados. Para eles,
quanto mais gente se fosse, melhor. Instigavam, açulavam.
– O
quê? Açulavam?
– É,
açulavam.
– Faz,
no mínimo, sessenta anos que ninguém usa essa palavra, achei
engraçado.
– Ah,
vê se me leva a sério.
– Levo
até demais. Mas que estranhei, estranhei. E daí?
– Os
Caça-Empregados praticamente começaram a obrigar as pessoas a
migrar. As pessoas esperavam a noite entrar e o calor diminuir. Só
alta madrugada refrescava mesmo e aí tudo gelava. Era um período
relativamente curto, de três, quatro horas. Cada um levava sua mala,
pacote, saco, gaiola. Havia caixotes que precisavam de dois, três
para sustentar. Puxavam carrinhos com roupas, quadros, estatuetas,
bugigangas. Incrível como as pessoas não se desprendem das coisas,
se apegam a objetos, dependem deles, sentem-se inseguras, apavoradas.
A primeira leva foi trágica. Quando a manhã chegou, estava em plena
estrada, a alguns quilômetros da vila. Veio o sol e todos estavam
dentro de um bolsão. Perceberam que iam morrer. Olharam em volta,
procurando abrigo. A estrada cortava a caatinga, a terra gretada. O
asfalto derretido, em bolotas, se esparramava para os lados do que
tinha sido a pista. Alguns voltaram correndo. Um ou dois chegaram e
mereciam medalhas de ouro olímpicas pela velocidade. Contaram. Os
retirantes viam aqui e ali uma casa, um abrigo abandonado. Se
amontoavam, se acotovelavam, pulavam uns sobre os outros, disputando
a réstia de sombra. Chegavam a derrubar a casa de pau a pique, tanta
gente entrava. Outros corriam, corriam na esperança de sair do
bolsão. Outros ainda colocavam sobre a cabeça o que podiam. Roupa,
telha, chapéu, tábua, quadro, guarda-chuva. O solo fervia, o chão
queimava a sola dos pés. E o que se via era a dança mais incrível,
todos pulando, os pés mal tocando o solo e se erguendo como que
impulsionados por molas. Pulavam e gritavam de dor. À medida que o
dia crescia, a dança da morte ao sol aumentava em intensidade.
Parecia um ataque histérico, um transe coletivo, o santo baixado em
todo mundo. Logo, ia diminuindo. O sol comia as roupas, os quadros,
os guarda-chuvas que não eram de seda preta. Lambia os cabelos, a
pele, as carnes, os ossos. Pelas nove da manhã sobravam montes de
cinzas espalhados pela terra, misturados ao asfalto derretido. Quem
tinha sobrevivido nos poucos abrigos esperava a noite para recomeçar
a marcha. Tinham visto as pessoas se consumirem. Sem orientação,
tomavam as estradas que iam para o Sul. Os gráficos dos bolsões não
adiantavam. Os indicadores não se encontravam nos lugares, talvez
fossem realmente móveis. Em compensação, surgiam outros. As
pessoas sabiam que a caminhada seria cheia de voltas, teriam de
contornar as reservas das Multinter, territórios proibidos a
brasileiros, você conhece bem o assunto. A esperança era que no
Centro, no Leste e no Sul existissem cidades que o sol não tivesse
atingido. – Bom, mas os bolsões também atingiam as reservas, não
atingiam? As empresas afinal não são tão poderosas assim que
conseguissem formar uma barreira contra o clima. – Não tenho a
mínima ideia. Nunca entrei. Os que moravam lá e eram brasileiros
foram obrigados a sair e não se sabe o que acontece dentro. O
mistério é esse. – Alguém sabe! – Pois é, me mostre esse
alguém! Continuo? Está bem. Aos poucos, a multidão engrossava com
as correntes vindas de outras cidades. Se encontravam nos
cruzamentos, no meio dos campos. Atravessavam aldeias, a população
se juntava. Os doentes permaneciam, ficavam acenando das janelas, das
portas. Vi muitas famílias levando os velhos para o meio da rua, a
pedido deles mesmos. Queriam esperar o dia nascer. Não podiam
caminhar, não queriam ficar sozinhos, decidiam pelo meio da rua.
Colocavam os velhos em grupos, e eles, tranquilos, se punham a
conversar, as mulheres de terço na mão, esperando o sol. Alguns,
não! Gritavam, esperneavam, tentavam acompanhar o estirão. Muitos
acompanharam até o fim, até chegar a esta cidade. Todo mundo dizia:
“Vamos para a cidade estrela, lá dá para viver, comer, trabalhar”
. – Eu me lembro, meses atrás, quando era permitido, a televisão
noticiou essa marcha. Filmaram os retirantes de helicóptero e era de
impressionar a massa que se deslocava. Parecia visita do papa.
Lembra-se das fotos da década de oitenta quando o papa visitou o
país? Aquela multidão que não acabava mais, aclamando. Meu Deus,
como o povo andava necessitado de líderes naquele tempo. Era um
período de transição, não entendiam que a era dos líderes estava
acabada, não surgiria mais nenhum. Sentiam-se órfãos,
desamparados, sem condutor.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
A prisão do livro “Mundo da paz”
Houve
ultimamente neste país um caso lastimoso, mais ou menos abafado,
pois é conveniente ao poder público, aos homens que nos dirigem
discricionariamente, guardar silêncio às vezes.
O
caso foi este: prendeu-se um livro. Teria sido melhor, com certeza,
meter na cadeia o autor, como se fazia há quinze anos, com vantagem
para o governo. Agora, infelizmente, isto não foi possível: o autor
estava longe, para lá da cortina de ferro. Se o doutor Fulano
quisesse agarrá-lo, acharia dificuldades.
Sabem
a quem me refiro: ao escritor Jorge Amado, homem perigoso,
perigosíssimo, na opinião das pessoas castradas que governam, com
antolhos, o hemisfério ocidental e cristão.
Que
se passa além da cortina de ferro? Desejamos saber isso,
esforçamo-nos por entender os telegramas forjados pelos nossos
patrões.
Recebemos
um livro. Muito bem. Vamos ver o que existe para lá da cortina de
ferro. Mas a polícia não consente que leiamos esse livro. Por quê?
A polícia não quer que saibamos o que acontece no mundo.
Há
nessas páginas, possivelmente, qualquer coisa contra a ordem
ocidental e cristã. Não podemos ver esses horrores, porque nos
arrancam das mãos o volume. Antes de examinar o livro, a ordem já
sabe que ele não presta. Não se condena o livro, mas o autor, que
vive bem, suponho, melhor que nós, fora do cristianismo e do dólar.
Este
caso, minhas senhoras e meus senhores, é triste e é burlesco. Fazia
tempo que não víamos isso. Entra um funcionário carrancudo na
livraria e retira algumas dezenas de volumes da prateleira. Está
salva a pátria, pelo menos durante uma semana.
Mas
a inteligência que determinou a brutalidade ignora isto: o livro se
valoriza. Passaria talvez despercebido, vendia-se por trinta,
quarenta, cinquenta mil-réis. Depois da apreensão, é vendido
clandestinamente por um conto de réis, ou mais, nem sei quanto,
dinheiro como o diabo. Muita gente que o veria sem interesse deseja
comprá-lo, porque está proibido. O mercado negro, que arranjam por
aí. Não temos culpa disso.
Outra
coisa: as nossas autoridades cautelosas desconhecem um fato
corriqueiro: a literatura de Jorge Amado é publicada em vinte
línguas, mais de vinte línguas. Será que a nossa polícia tem a
pretensão de retirar esse veneno das vitrines em Sofia, em
Bucareste, em Praga e em Varsóvia? Os dedos dela são curtos, não
chegam lá.
Minhas
senhoras e meus senhores: o escritor Miécio Tati, que nos honra com
seu trabalho na Associação Brasileira de Escritores, vai dar-nos o
prazer de ouvir um estudo sobre os romances do nosso companheiro
Jorge Amado.
Graciliano Ramos,
in Garranchos
Depoimento
“Cessou
o jorro das fontes”
— anotou
aquele velho escriba em suas tábuas
e
mal sabia ele que essa era a maior História
da
invasão de Roma pelos bárbaros.
Mário
Quintana
As idades de Josephine
Aos nove anos de idade, ela trabalha
limpando casas em St. Louis, às margens do rio Mississippi.
Aos 10, ela começa a dançar na rua em
troca de moedas. Aos 13, ela se casa.
Aos 15, se casa novamente. Do primeiro
marido, ela não guarda nem mesmo uma lembrança ruim. Do segundo,
ela guarda o sobrenome, pois gosta de como ele soa.
Aos 17, Josephine Baker dança o
Charleston na Broadway. Aos 18, ela cruza o Atlântico e conquista
Paris. A “Vênus de Bronze” faz sua performance nua, usando nada
mais do que um cacho de bananas.
Aos 24, ela é a mulher mais fotografada
no planeta. Pablo Picasso, de joelhos, a pinta. Para parecer com ela,
as jovens donzelas pálidas de Paris esfregavam creme de nogueira,
que escurece a pele.
Aos 30, ela tem problema em alguns
hotéis, pois viaja com um chimpanzé, uma cobra, uma cabra, dois
papagaios, vários peixes, três gatos, sete cães, uma chita chamada
Chiquita, que usa um colar de diamantes, e um porquinho chamado
Albert, que ela banha em um perfume Je Reviens.
Aos 40, ela recebe a medalha de Honra da
Legião, por seus serviços à Resistência Francesa durante a
ocupação nazista.
Aos 41 e em seu quarto marido, ela adota
12 crianças de diversas cores de pele e diversas origens, que ela
chama de “minha tribo arco-íris”.
Aos 45, ela retorna aos EUA. Ele insiste
que qualquer um, brancos ou negros, se sentem juntos em seus shows.
Senão, ela não se apresentaria. Aos 57, ela divide o palco com
Martin Luther King e fala contra a discriminação racial diante de
um imenso público na Marcha a Washington.
Aos 68, ela se recupera de uma calamitosa
falência e no Teatro Bobino, em Paris, ela celebra cinquenta anos
nos palcos.
E
ela morre.
Eduardo
Galeano, in Espelhos – uma história
quase universal
Capítulo 150 - Rotação e translação
Há
em cada empresa, afeição ou idade um ciclo inteiro da vida humana.
O primeiro número do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta
aurora, coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da mocidade.
Seis meses depois batia a hora da velhice, e daí a duas semanas a da
morte, que foi clandestina, como a de Dona Plácida. No dia em que o
jornal amanheceu morto, respirei como um homem que vem de longo
caminho. De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si
mesma outras vidas, mais ou menos efêmeras, como o corpo alimenta os
seus parasitas, creio não dizer uma coisa inteiramente absurda. Mas,
para não arriscar essa figura menos nítida e adequada, prefiro uma
imagem astronômica: o homem executa à roda do grande mistério um
movimento duplo de rotação e translação; tem os seus dias,
desiguais como os de Júpiter, e deles compõe o seu ano mais ou
menos longo.
No
momento em que eu terminava o meu movimento de rotação, concluía
Lobo Neves o seu movimento de translação.
Morria
com o pé na escada ministerial. Correu, ao menos durante algumas
semanas, que ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de
muita irritação e inveja, não é impossível que a notícia da
morte me deixasse alguma tranquilidade, alívio, e um ou dois minutos
de prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é
a pura verdade.
Fui
ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro, a
soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair
o enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram tirá-la e levá-la
para dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao
cemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar;
levava uma pedra na garganta ou na consciência. No cemitério,
principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no
fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento
passageiro, é certo, mas desagradável; e depois a tarde tinha o
peso e a cor do chumbo; o cemitério, as roupas pretas…
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
Por que Neruda
O
sal do mundo tinha se reunido no México. Escritores exilados de
todos os países tinham acampado sob a liberdade mexicana enquanto a
guerra se prolongava na Europa com vitória após vitória das forças
de Hitler que já tinham ocupado a França e a Itália. Ali estava
Ana Seghers e o hoje desaparecido humorista tcheco Egon Erwin Kish,
entre outros. Kish deixou alguns livros fascinantes e eu admirava
muito sua grande inventiva, a curiosidade infantil e os conhecimentos
de prestidigitação. Mal entrava em minha casa tirava um ovo de uma
orelha ou ia engolindo, uma por uma, até sete moedas que bastante
falta faziam ao pobre e grande escritor desterrado. Já nos
conhecíamos da Espanha e, como ele manifestava a insistente
curiosidade de saber por que motivo me chamava Neruda sem ter nascido
com esse sobrenome, eu lhe dizia de brincadeira:
– Grande
Kish, foste tu o descobridor do mistério do Coronel Redl (famoso
caso de espionagem acontecido na Áustria, em 1914) mas nunca
esclarecerás o mistério de meu nome Neruda.
E
assim foi. Morreria em Praga, em meio a todas as homenagens que sua
pátria libertada lhe deu, mas nunca o intrometido profissional
conseguiria saber por que Neruda se chamava Neruda.
A
resposta era demasiado simples e tão sem nada de extraordinário que
eu guardava o mais cuidadoso segredo. Quando eu tinha quatorze anos
de idade, meu pai perseguia denodadamente minha atividade literária.
Não concordava em ter um filho poeta. Para encobrir a publicação
de meus primeiros versos busquei um sobrenome que o despistasse
totalmente. Encontrei numa revista esse nome tcheco, sem saber sequer
que se tratava de um grande escritor, venerado por todo um povo,
autor de belíssimas baladas e romances e com monumento erigido no
bairro Mala Strana de Praga. Mal cheguei à Tchecoslováquia, muitos
anos depois, coloquei uma flor aos pés de sua estátua barbuda.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
Medalhas
No
fim da vida, ele possuía grande coleção de medalhas, todas obtidas
por merecimento. Havia as de curso primário, as de curso médio, as
de universidade, as de natação, as de fidelidade partidária.
Ganhara medalha por ato de bravura e por assiduidade ao serviço.
Medalha de literatura e medalha de pintor de domingo. Medalha de
benemérito de várias instituições consideradas de utilidade
pública. Muitas medalhas.
Esquecia-me
de mencionar a medalha de sofrimento, que lhe deram por haver
suportado sem queixa a amputação de uma perna em consequência de
desastre na via Dutra. Sua resignação fora exemplar, e a medalha,
cunhada especialmente para ele.
Contemplava
todas essas medalhas sem orgulho, mas com algum prazer, e só não
gostava de pegar em uma delas. A medalha de silêncio, conquistada
por haver mantido discrição num caso de segurança nacional. Seu
depoimento salvaria um inocente, mas, fiel a seus princípios, não
quis pôr em xeque os altos interesses do Estado, ou que lhe pareciam
tal. Esta distinção o deixava triste. Ao morrer, pediu que jogassem
todas fora.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado
porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando
Pessoa
Um vison próprio
A
sra. Munson acabou de entrançar uma rosa de linho no cabelo castanho
avermelhado e recuou do espelho para avaliar o efeito. Então correu
as mãos até os quadris... o vestido era justo demais, esse era o
problema. “Uma mudança não vai salvá-lo”, ela pensou,
irritada. Com um último olhar depreciativo para seu reflexo,
virou-se e foi para a sala de estar.
As
janelas estavam abertas, e a sala, cheia de gritos estridentes altos,
pavorosos. A sra. Munson morava no terceiro andar, e do outro lado da
rua ficava o playground de uma escola pública. No final da tarde o
barulho era quase insuportável. Deus, se ela soubesse disso antes de
assinar o contrato de aluguel! Com um pequeno grunhido fechou as duas
janelas, e em sua opinião elas podiam ficar assim pelos dois anos
seguintes.
Mas
a sra. Munson estava excitada demais para ficar realmente aborrecida.
Vini Rondo vinha visitá-la, imagine, Vini Rondo... e esta tarde!
Quando ela pensou nisso, sentiu asas adejantes no estômago. Fazia
quase cinco anos, e Vini tinha estado na Europa todo esse tempo.
Sempre que a sra. Munson se encontrava num grupo discutindo a guerra,
invariavelmente anunciava: “Bem, vocês sabem que eu tenho uma
amiga muito querida em Paris neste exato minuto, Vini Rondo, ela
estava lá quando os alemães chegaram! Eu tenho verdadeiros
pesadelos quando penso no que ela deve ter passado!”. A sra. Munson
dizia isso como se o que estivesse em jogo fosse seu próprio
destino.
Se
houvesse alguém na festa que ainda não tivesse ouvido a história,
ela se apressava a dar explicações sobre a amiga. “Sabe”,
começava, “Vini era a mais talentosa das garotas, interessada em
arte e todo esse tipo de coisa. Bem, tinha um bocado de dinheiro,
então ia à Europa pelo menos uma vez por ano. Por fim, quando seu
pai morreu, ela empacotou suas coisas e foi de vez. Oh, mas ela teve
um caso passageiro, e então casou com um conde ou barão ou coisa
parecida. Talvez você tenha ouvido alguma coisa sobre ela... Vini
Rondo... Cholly Knickerbocker costumava falar dela o tempo todo.” E
assim continuava, como numa aula de história.
“Vini,
de volta à América”, ela pensou, sem parar de se deleitar com a
maravilha daquilo. Afofou as almofadinhas verdes no sofá e
sentou-se. Com olhos penetrantes, examinou a sala. É engraçado como
nunca vemos de fato nosso ambiente até o momento em que esperamos
uma visita. Bem, a sra. Munson suspirou de contentamento, aquela nova
criada, para variar, tinha restaurado os padrões anteriores à
guerra.
A
campainha soou abruptamente. Tocou duas vezes antes que a sra. Munson
conseguisse se mover, de tão excitada. Por fim ela se compôs e foi
atender.
De
início a sra. Munson não a reconheceu. A mulher que a confrontava
não usava nenhum penteado armado chique... na verdade seu cabelo
pendia um tanto frouxo e parecia despenteado. Um vestido estampado em
janeiro? A sra. Munson tentou evitar que a decepção aparecesse em
sua voz quando disse: “Vini, querida, eu a reconheceria em qualquer
lugar”.
A
mulher ainda estava na soleira. Debaixo do braço, carregava uma
grande caixa cor-de-rosa, e seus olhos cinza olhavam curiosos para a
sra. Munson.
“Reconheceria,
Bertha?” Sua voz era apenas um sussurro. “Que bom, muito bom. Eu
também a teria reconhecido, embora você tenha engordado um pouco,
não é?” Então ela aceitou a mão estendida da sra. Munson e
entrou.
A
sra. Munson estava constrangida e não sabia exatamente o que dizer.
De braço dado, elas entraram na sala de estar e sentaram-se.
“Que
tal um sherry?”
Vini
balançou sua cabecinha escura: “Não, obrigada”.
“Bem,
e que tal um scotch ou alguma outra coisa?”, perguntou,
desesperada, a sra. Munson. O relógio-estatueta no falso consolo de
lareira repicou suavemente. A sra. Munson nunca notara como ele soava
alto.
“Não”,
disse Vini com firmeza, “nada, obrigada.”
Resignada,
a sra. Munson voltou a sentar no sofá. “Agora, querida, me conte.
Quando chegou aos Estados Unidos?” Gostava do som daquilo. “Estados
Unidos.”
Vini
colocou a grande caixa cor-de-rosa entre as pernas e entrelaçou os
dedos das mãos. “Estou aqui há quase um ano”, fez uma pausa,
depois, percebendo a expressão de surpresa da anfitriã, se
apressou, “mas não estive em Nova York. Naturalmente eu teria
entrado em contato com você antes, mas eu estava na Califórnia.”
“Ah,
a Califórnia, eu adoro a Califórnia!”, exclamou a sra. Munson,
embora, na verdade, em suas viagens para o Oeste ela nunca tivesse
ido além de Chicago.
Vini
sorriu, e a sra. Munson percebeu como seus dentes eram irregulares e
decidiu que eles precisavam de uma boa escovada.
“Então”,
continuou Vini, “quando eu voltei para Nova York na semana passada,
logo pensei em você. Tive uma enorme dificuldade para encontrá-la,
porque não conseguia lembrar do primeiro nome de seu marido...”
“Albert”,
disse a sra. Munson, sem necessidade.
“...
mas por fim lembrei, e aqui estou. Sabe, Bertha, eu realmente comecei
a pensar em você quando decidi me desfazer do meu casaco de vison.”
A
sra. Munson viu um rubor repentino no rosto de Vini.
“Seu
casaco de vison?”
“É”,
disse Vini, erguendo a caixa cor-de-rosa. “Você se lembra do meu
casaco de vison. Você sempre o admirou tanto. Sempre dizia que era o
casaco mais adorável que já tinha visto.” Começou a desamarrar a
fita de seda puída que prendia a caixa.
“É
claro, sim, é claro”, disse a sra. Munson, deixando o “claro”
vibrar suavemente.
“Eu
disse comigo mesma: ‘Vini Rondo, para que você precisa desse
casaco? Por que não deixar que Bertha o possua?’. Sabe, Bertha, eu
comprei uma zibelina magnífica em Paris, e você deve entender que
realmente não preciso de dois casacos de pele. Além disso, tenho
minha jaqueta de pele de raposa prateada.”
A
sra. Munson observou-a abrir o papel de seda na caixa, viu o esmalte
lascado em suas unhas, viu que seus dedos não tinham jóias, e de
repente percebeu muitas outras coisas.
“Então
pensei em você, e, a menos que você o queira, vou simplesmente
guardá-lo, porque não suportaria pensar em outra pessoa como dona
dele.” Segurou o casaco e o virou para um lado e para outro. Era um
belo casaco; a pele brilhava, viva e muito uniforme. A sra. Munson
estendeu o braço e passou os dedos nele do jeito errado, eriçando
os pêlos minúsculos. Sem pensar, disse: “Quanto?”.
A
sra. Munson recolheu rapidamente a mão, como se tivesse tocado em
fogo, e então ouviu a voz de Vini, baixa e cansada.
“Eu
paguei quase mil por ele. Mil é demais?”
Na
rua, a sra. Munson podia ouvir o rugido ensurdecedor do playground, e
por uma vez se sentiu agradecida. Ele dava a ela algo mais em que se
concentrar, algo para diminuir a intensidade de seus sentimentos.
“Infelizmente,
sim. Eu realmente não posso pagar isso”, disse a sra. Munson,
distraída, ainda olhando para o casaco, com medo de erguer os olhos
e ver o rosto da outra mulher.
Vini
pôs o casaco no sofá. “Bem, eu quero que você fique com ele. Não
é tanto pelo dinheiro, mas penso que devo ter algo em troca de meu
investimento... Quanto você pode pagar?”
A
sra. Munson fechou os olhos. Oh, Deus, isso era horrível! Tão
horrível!
“Talvez
quatrocentos”, respondeu debilmente.
Vini
pegou de novo o casaco e disse, animada: “Então vamos ver como
fica em você”.
Elas
foram para o quarto, e a sra. Munson experimentou o casaco na frente
do espelho de corpo inteiro de seu guarda-roupa. Apenas alguns
ajustes, encurtar as mangas, e talvez ela mandasse poli-lo de novo.
Sim, certamente ele caía muito bem nela.
“Oh,
eu acho que está lindo, Vini. Foi tão amável de sua parte ter
pensado em mim.”
Vini
encostou-se na parede, o rosto pálido parecendo severo à luz do sol
magnificada das grandes janelas do quarto.
“Pode
fazer o cheque para mim”, disse desinteressadamente.
“Sim,
é claro”, disse a sra. Munson, voltando a si de repente. Imagine
Bertha Munson com seu próprio vison!
Elas
voltaram para a sala de estar, e ela preencheu o cheque para Vini.
Depois de dobrá-lo cuidadosamente, Vini o guardou em sua bolsinha de
contas.
A
sra. Munson se esforçou para manter a conversa, mas a cada nova
tentativa esbarrava numa parede fria. Uma vez perguntou: “Onde está
seu marido, Vini? Você deve trazê-lo para conversar com Albert”.
E Vini respondeu: “Ah, ele! Faz zilhões de anos que não o vejo.
Pelo que sei, ainda está em Lisboa”. E foi isso.
Por
fim, depois de prometer telefonar no dia seguinte, Vini foi embora.
Assim que ela saiu, a sra. Munson pensou: “Ora essa, pobre Vini,
não passa de uma refugiada!”. Então pegou seu novo casaco e foi
para o quarto. Não podia contar a Albert como o conseguira, isso
estava fora de questão. Meu Deus, mas ele ficaria louco por causa do
dinheiro! Ela decidiu escondê-lo no canto mais inacessível do
guarda-roupa, e então, um dia, ela o pegaria e diria: “Albert,
olhe o vison divino que eu comprei num leilão. Paguei quase nada por
ele”.
Tateando
no escuro do guarda-roupa, ela pôs o casaco num cabide. Deu um
puxãozinho e ficou aterrorizada ao ouvir o som de esgarçar. Acendeu
depressa a luz e viu que a manga estava rasgada. Segurou o rasgo e
puxou de leve. Ele se abriu mais, e mais. Sentindo um vazio pesaroso,
ela soube que estava tudo péssimo. “Oh, meu Deus”, disse,
agarrando a rosa de linho em seu cabelo. “Oh, meu Deus, eu fui
lesada e bem lesada, não há nada neste mundo que eu possa fazer,
absolutamente nada!” Porque de repente a sra. Munson se deu conta
de que Vini não telefonaria nem no dia seguinte nem nunca mais.
Truman
Capote, in 20 contos de Truman Capote
terça-feira, 26 de novembro de 2019
Um rôo de remorso
Assim
mesmo, naquele estado exaltado em que andei, concebi fundamento para
um conselho: na jornada por diante, a gente tinha de deixar duma
banda do rio, ir passar a Serra-da-Onça e entestar com a travessia
do Jequitaí, por onde podia ter tropa de soldados; mais ajuizado não
seria se enviar só um, até lá, espiar o que se desse e colher
outras informações?
Titão
Passos era homem ponderado em simples, achou boa a minha razão.Todos
acharam. Aquela munição era de ida urgente, mas também valia mais
que ouro, que sangue, se carecia de todo cuidado. Fui louvado e dito
valedor, certo nas ideias. Ao senhor confesso, desmedi satisfação,
no ouvir aquilo ― que a assoprada na vaidade é a alegria que dá
chama mais depressa e mais a ar. Mas logo me reduzi, atinando que
minha opinião era só pelo desejo encoberto de que a gente pudesse
ficar mais tempo ali, naquele lugar que me concedia tantos regalos.
Assim um rôo de remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tão
séria em cima, e eu mexendo e virando por via de pequenos prazeres.
Sempre fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu querer surtiu
efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver, o Jenolim saiu em
rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande; e, com a mesma tenção,
rebuçado viajou o Acrísio, até Porteiras e o Pontal da Barra, com
todos os ouvidos bem abertos. E nós ficamos esperando a volta deles,
cinco dias lá, com grande regozijo e repouso, na casa do preto Pedro
Segundo de Rezende, que era posteiro em terras da Fazenda São
Joãozinho, de um coronel Juca Sá. Até hoje, não me arrependo
retratando? Os dias que passamos ali foram diferentes do resto de
minha vida. Em horas, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas
palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e
tirando mel da abelha-de-poucas-flores, que arma sua cera
cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousados nas
crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o
derradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno, tão
alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me perguntou! ―
Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos? ― Reinaldo,
pois eu morro e vivo sendo amigo seu! ― eu respondi. Os afetos.
Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da
minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que
tudo era falante, ai, sei. De manhã, o rio alto branco, de neblim; e
o ouricurí retorce as palmas. Só um bom tocado de viola é que
podia remir a vivez de tudo aquilo.
Dos
outros, companheiros conosco, deixo de dizer. Desmexi deles. Bons
homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns
assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de
paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e
fácil se contentam. Sou deste jeito. Mas Titão Passos, digo,
apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração
nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte
natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era
homem bom. Titão Passos regulou um espanto! uma pergunta dessa
decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que
Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro,
e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem
disse, risonho bobeento:
― Bom?
Um messias!... O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de
frente, é a gente que existe que sabe ser mais agradecida. Ao que,
em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se aproximou.
Parecia que ele não gostava de me ver em comprida conversa amiga com
os outros, ficava quasezinho amuado. Com o tempo dos dias, fui
conhecendo também que ele não era sempre tranquilo igual, feito
antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava
suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras.
Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas
eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem,
sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser
parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso,
tão governador, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma
vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal. Talvez também
seja. Anta entra nágua, se rupêia. Mas, não. Era não. Era, era
que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um
bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites.
O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu
estava criticando, era me a mim contando logro ― jigajogas.
― Você
vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo... ― o Reinaldo veio
dizendo. ― Vai ver que ele é o homem que existe mais valente! Me
olhou, com aqueles olhos quando doces. E perfez: ― Não sabe que
quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode
deixar de ser bom?! Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para
mim, o indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida.
Não podia ser. Mais eu pensando nisso, uma hora, outra hora.
Perguntei ao com padre meu Quelemém. ― Do que o valor dessas
palavras tem dentro ― ele me respondeu ― não pode haver verdade
maior... Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso. E o
senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para aumentar meu
pêjo de tribulação.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
Mas vai chover
Maria
Angélica de Andrade tinha sessenta anos. E um amante, Alexandre, de
dezenove anos.
Todos
sabiam que o menino se aproveitava da riqueza de Maria Angélica. Só
Maria Angélica não suspeitava.
Começou
assim: Alexandre era entregador de produtos farmacêuticos e tocou a
campainha da casa de Maria Angélica. Esta mesma abriu a porta. E
deparou-se com um jovem forte, alto, de grande beleza. Em vez de
receber o remédio que encomendara e pagar o preço, perguntou-lhe,
meio assustada com a própria ousadia, se não queria entrar para
tomar um café.
Alexandre
espantou-se e disse que não, obrigado. Mas ela insistiu. Acrescentou
que tinha bolo também.
O
rapaz hesitava, visivelmente constrangido. Mas disse:
– Se
for por pouco tempo, entro, porque tenho que trabalhar.
Entrou.
Maria Angélica não sabia que já estava apaixonada. Deu-lhe uma
grossa fatia de bolo e café com leite. Enquanto ele comia pouco à
vontade, ela embevecida o olhava. Ele era a força, a juventude, o
sexo há muito tempo abandonado. O rapaz acabou de comer e beber, e
enxugou a boca com a manga da camisa. Maria Angélica não achou que
fossem maus modos: ficou deliciada, achou-o natural, simples,
encantador.
– Agora
vou embora que meu patrão vai me deixar grilado se eu demorar.
Ela
estava fascinada. Observou que ele tinha umas poucas espinhas no
rosto. Mas isso não lhe alterava a beleza e a masculinidade: os
hormônios lá ferviam. Aquele, sim, era um homem. Deu-lhe uma
gorjeta enorme, desproporcional, que surpreendeu o rapaz. E disse com
uma vozinha cantante e com trejeitos de mocinha romântica:
– Só
deixo você sair se prometer que voltará! Hoje mesmo! Porque vou
pedir uma vitaminazinha na farmácia...
Uma
hora depois ele estava de volta com as vitaminas. Ela havia mudado de
roupa, estava com um quimono de renda transparente. Via-se a marca de
suas calcinhas. Mandou-o entrar. Disse-lhe que era viúva. Era o modo
de lhe avisar que era livre. Mas o rapaz não entendia.
Convidou-o
a percorrer o bem decorado apartamento deixando-o embasbacado.
Levou-o a seu quarto. Não sabia como fazer para que ele entendesse.
Disse-lhe então:
– Deixe
eu lhe dar um beijinho!
O
rapaz se espantou, estendeu-lhe o rosto. Mas ela alcançou bem
depressa a boca e quase a devorou.
– Minha
senhora, disse o menino nervoso, por favor se controle! A senhora
está passando bem?
– Não
posso me controlar! Eu te amo! Venha para a cama comigo!
– Tá
doida?!
– Não
estou doida! Ou melhor: estou doida por você! gritou-lhe enquanto
tirava a coberta roxa da grande cama de casal.
E
vendo que ele nunca entenderia, disse-lhe morta de vergonha:
– Venha
para a cama comigo...
– Eu?!
– Eu
lhe dou um presente grande! Eu lhe dou um carro!
Carro?
Os olhos do rapaz faiscaram de cobiça. Um carro! Era tudo o que
desejava na vida. Perguntou desconfiado:
– Um
karmann-ghia?
– Sim,
meu amor, o que você quiser!
O
que se passou em seguida foi horrível. Não é necessário saber.
Maria Angélica – oh, meu Deus, tenha piedade de mim, me perdoe por
ter que escrever isto! – Maria Angélica dava gritinhos na hora do
amor. E Alexandre tendo que suportar com nojo, com revolta.
Transformou-se num rebelado para o resto da vida. Tinha a impressão
de que nunca mais ia poder dormir com uma mulher. O que aconteceria
mesmo: aos vinte e sete anos ficou impotente.
E
tornaram-se amantes. Ele, por causa dos vizinhos, não morava com
ela. Quis morar num hotel de luxo: tomava café na cama. E logo
abandonou o emprego. Comprou camisas caríssimas. Foi a um
dermatologista e as espinhas desapareceram.
Maria
Angélica mal acreditava na sua sorte. Pouco se importava com as
criadas que quase riam na sua cara.
Uma
amiga sua advertiu-lhe:
– Maria
Angélica, você não vê que o rapaz é um pilantra? que está
explorando você?
– Não
admito que você chame Alex de pilantra! E ele me ama!
Um
dia Alex teve uma ousadia. Disse-lhe:
– Vou
passar uns dias fora do Rio com uma garota que conheci. Preciso de
dinheiro.
Foram
dias horríveis para Maria Angélica. Não saiu de casa, não tomou
banho, mal se alimentou. Era por teimosia que ainda acreditava em
Deus. Porque Deus a abandonara. Ela era obrigada a ser penosamente
ela mesma.
Cinco
dias depois ele voltou, todo pimpão, todo alegre. Trouxe-lhe de
presente uma lata de goiabada cascão. Ela foi comer e quebrou um
dente. Teve que ir ao dentista para pôr um dente falso.
E
a vida corria. As contas aumentavam. Alexandre exigente. Maria
Angélica aflita. Quando fez sessenta e um anos de idade ele não
apareceu. Ela ficou sozinha diante do bolo de aniversário.
Então
– então aconteceu.
Alexandre
lhe disse:
– Preciso
de um milhão de cruzeiros.
– Um
milhão? espantou-se Maria Angélica.
– Sim!,
respondeu irritado, um bilhão antigo!
– Mas...
mas eu não tenho tanto dinheiro...
– Venda
o apartamento, então, e venda o seu Mercedes, dispense o chofer.
– Mesmo
assim não dava, meu amor, tenha piedade de mim!
O
rapaz enfureceu-se:
– Sua
velha desgraçada! sua porca, sua vagabunda! Sem um bilhão não me
presto mais para as suas sem-vergonhices!
E,
num ímpeto de ódio, saiu batendo a porta de casa.
Maria
Angélica ficou ali de pé. Doía-lhe o corpo todo.
Depois
foi devagar sentar-se no sofá da sala. Parecia uma ferida de guerra.
Mas não havia Cruz Vermelha que a socorresse. Estava quieta, muda.
Sem palavra nenhuma a dizer.
– Parece
– pensou – parece que vai chover.
Clarice
Lispector, in A via crucis do corpo