quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Dos fatos, da liberdade

Abandonar os fatos é abandonar a liberdade. Se nada for verdadeiro, ninguém poderá criticar o poder, porque não haverá uma base para fazê-lo. Se nada for verdadeiro, tudo é espetáculo. A carteira mais recheada garante a pirotecnia mais ofuscante.”
Timothy Snyder, in Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente

Intervalo

É o que lhe digo: a medida.
Quantos de nós entre nós
se tantos os vazios a preencher
entre querermos e a distância?

A delicadeza dá dois passos.
A vontade avança. A dúvida
recua. Quantos de você entre
você e Camus, entre você

e a casa, entre você e quase,
entre você e o nó que lentamente
vai desatando entre você
e nós? Há muitos entre nós:

que somos, que não somos,
que seríamos, entre a sua voz
e ouvi-la entre a vertigem
de tocar, por sobre o Saara,

as mãos e o jardim que nelas
se abre, agora que não há
senão um sim e um sim,
e temos sede, e rimos alto

entre livros, arrebatamentos,
amendoeiras e a impressão
de que, sem deixar traço,
todos desapareceram.
Eucanaã Ferraz

A deprimente vida dos ratos de laboratório

Depois de termos nos familiarizado com a mente — e com o fato de sabermos tão pouco sobre ela —, podemos retornar à questão de se outros animais têm mentes. Alguns animais, como os cães, certamente passam por uma versão modificada do Teste de Turing. Quando tentamos determinar se uma entidade é consciente, o que comumente estamos buscando não é uma aptidão para a matemática ou uma boa memória, e sim a capacidade de criar relações emocionais conosco. Pessoas desenvolvem às vezes ligações emocionais com fetiches, como armas, carros e até roupa íntima, mas essas ligações são unilaterais e nunca evoluem para um relacionamento. O fato de que os cães podem ser parceiros em relações emocionais com os humanos convence a maioria dos donos de cães de que eles não são autômatos desprovidos de mentes.
No entanto, isso não satisfaz os céticos, que assinalam que emoções são algoritmos e que nenhum algoritmo conhecido requer uma consciência para poder funcionar. Sempre que um animal apresenta um comportamento emocional complexo, não podemos provar que ele não é o resultado de um algoritmo muito sofisticado, mas não consciente. Esse argumento também pode ser aplicado a humanos. Tudo o que um humano faz — inclusive reportando-se a um estado alegadamente consciente — pode, em teoria, ser obra de algoritmos não conscientes.
Apesar disso, no caso dos humanos, assumimos que, quando alguém afirma que está consciente, podemos aceitar sua palavra como verdadeira. Com base nessa mínima suposição, hoje somos capazes de identificar as assinaturas cerebrais do estado de consciência, o que posteriormente poderá ser usado de maneira sistemática para diferenciar nos humanos estados de consciência dos de não consciência. Mas como os cérebros de animais compartilham muitas características com os cérebros dos humanos, à medida que se aprofunda nossa compreensão das assinaturas de consciência, podemos usá-las igualmente para determinar se e quando outros animais são conscientes. Se um cérebro canino mostrar que apresenta padrões similares aos de um cérebro humano consciente, isso nos forneceria forte evidência de que os cães são conscientes.
Testes iniciais em macacos e camundongos indicam que pelo menos os cérebros de macacos e de camundongos realmente apresentam as assinaturas da consciência. Contudo, dadas as diferenças entre cérebros animais e cérebros humanos, e uma vez que ainda estamos longe de decifrar todos os segredos da consciência, desenvolver os testes decisivos capazes de satisfazer os céticos pode levar décadas. Enquanto isso, quem deve arcar com o ônus da prova? Devemos considerar os cães máquinas desprovidas de mente até prova em contrário, ou tratá-los como seres conscientes enquanto ninguém apresenta uma evidência contrária convincente?
Em 7 de julho de 2012, especialistas de ponta em neurobiologia e ciências cognitivas reuniram-se na Universidade de Cambridge e assinaram a Declaração de Cambridge sobre a Consciência, segundo a qual “uma evidência convergente indica que animais não humanos possuem os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso dessa evidência indica que os humanos não são os únicos que possuem os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, além de muitas outras criaturas, inclusive polvos, possuem tais substratos neurológicos”. 9 Não se chega a afirmar que todos os animais são conscientes porque ainda não dispomos de uma prova irrefutável. Mas ela reverte o ônus da prova para os que pensam de outra maneira.
Em maio de 2015, em resposta à mudança na direção dos ventos na comunidade científica, a Nova Zelândia tornou-se o primeiro país no mundo a reconhecer legalmente os animais como seres sencientes, quando seu Parlamento aprovou o Animal Welfare Amendment Act — a Emenda para o Bem-Estar dos Animais. Essa emenda estipula que é obrigatório reconhecer os animais como sencientes e, portanto, cuidar adequadamente de seu bem-estar em contextos como o da pecuária. Num país com mais carneiros e ovelhas do que humanos (a proporção é de 30 milhões para 4,5 milhões), trata-se de uma declaração muito significativa. Depois disso, a província canadense de Quebec aprovou um ato semelhante, e outros países provavelmente também o farão.
Muitas corporações de negócios reconhecem animais como seres sencientes, embora, paradoxalmente, isso com frequência exponha os animais a testes de laboratório bem desagradáveis. Por exemplo, as companhias farmacêuticas usam rotineiramente ratos como objetos experimentais no desenvolvimento de antidepressivos. De acordo com um protocolo amplamente utilizado, pegam-se cem ratos (em nome da fidedignidade estatística) e põe-se cada um deles em um tubo de vidro cheio d’água. Os ratos esforçam-se incessantemente para escalar a parede do tubo, sem sucesso. Depois de quinze minutos, a maioria para de se movimentar. Eles apenas flutuam no tubo, apáticos a seu entorno.
Pegam-se então outros cem ratos, que são jogados nos tubos, mas são puxados para fora depois de catorze minutos, pouco antes de estarem prestes a entrar em desespero. Na sequência, eles são secos, alimentados e lhes é concedido um breve descanso — e então são jogados no tubo novamente. Na segunda vez, a maioria dos ratos luta durante vinte minutos antes de entregar os pontos. Por que esses seis minutos a mais? Porque a memória do sucesso obtido desencadeia a liberação de algumas substâncias bioquímicas no cérebro que lhes dá esperança e adia o advento do desespero. Se pudéssemos isolar essas substâncias bioquímicas, poderíamos usá-las como antidepressivos para humanos. Mas são muitas as substâncias que inundam o cérebro dos ratos em qualquer dado momento. Como apontar a correta?
Para isso, usam-se mais grupos de ratos que nunca participaram do teste antes. Injeta-se em cada grupo determinada substância química que se suspeita seja o esperado antidepressivo. Jogam-se os ratos na água. Se aqueles que foram injetados com a substância A lutarem por apenas quinze minutos antes de ficarem deprimidos, pode-se riscar A da lista. Se ratos que foram injetados com a substância B continuarem esperneando durante vinte minutos, pode-se relatar ao executivo da indústria farmacêutica e aos acionistas que se acertou na loteria.
Os céticos poderiam objetar que toda essa descrição humaniza desnecessariamente os ratos. Esses animais não experimentam esperança ou desespero. Às vezes eles se mexem com rapidez, às vezes ficam parados, mas nunca sentem nada. São movidos por algoritmos não conscientes. Mas, se for isso, qual o sentido de todos esses experimentos? As drogas psiquiátricas destinam-se a induzir mudanças não só no comportamento humano, mas, sobretudo, no sentimento humano. Quando pacientes vão a um psiquiatra e dizem “Doutor, me dê alguma coisa que me tire dessa depressão”, eles não estão pedindo um estimulante que os faça mecanicamente ativos enquanto ainda se sentem tristes. Eles querem sentir-se animados. Realizar experimentos com ratos pode ajudar as corporações a desenvolver uma pílula mágica somente com base no pressuposto de que o comportamento dos ratos é acompanhado de emoções semelhantes às dos humanos. E, de fato, esse pressuposto é comum nos laboratórios psiquiátricos.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

O guardador de rios

Depois da Independência, um programa de controle dos caudais dos rios foi instalado em Moçambique. Formulários foram distribuídos pelas estações hidrológicas espalhadas pelo país e um programa de registro foi iniciado para os mais importantes cursos fluviais. A guerra de desestabilização eclodiu e esse projeto, como tantos outros, foi interrompido por mais de uma dúzia de anos. Quando a Paz se reinstalou, em 1992, as autoridades relançaram o projeto acreditando que, em todo o lado, era necessário recomeçar do zero. Contudo, uma surpresa esperava a brigada que visitou uma isolada estação hidrométrica no interior da Zambézia. O velho guarda tinha-se mantido ativo e cumprira, com zelo diário, a sua missão durante todos aqueles anos. Esgotados os formulários, ele passou a usar as paredes da estação para grafar, a carvão, os dados hidrológicos que era necessário registrar. No interior e exterior, as paredes estavam cobertas de anotações e a velha casa parecia um imenso livro de pedra. Orgulhoso, o guarda recebeu os visitantes à entrada e apontou para a madeira da porta:
Começa-se a ler por aqui, para ir habituando os olhos ao escuro.
A esperança é a última a morrer.” Diz-se. Mas não é verdade. A esperança não morre por si mesma. A esperança é morta. Não é um assassínio espetacular, não sai nos jornais. É um processo lento e silencioso que faz esmorecer os corações, envelhecer os olhos dos meninos e nos ensina a perder crença no futuro.
O episódio da estação hidrométrica passou a ser um dos alimentos do meu sentimento de esperança. Como se me lembrasse que devo dialogar com invisíveis rios e tudo em meu redor podem ser paredes onde eu nego a tentação do desalento.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Nossas boas e más ações

É de um sadismo soberbo pensar que deveríamos ser julgados pelas nossas boas e más ações, uma vez que só de um pequeníssimo número das nossas ações podemos decidir. O acaso cego, que se distingue da justiça cega pelo simples facto de ainda não usar venda, introduz e acaba as nossas ações; o que podemos fazer e, bem entendido, o que devemos fazer, em virtude da existência tantas vezes negada da nossa consciência, é deixarmo-nos arrastar numa certa direção e mantermo-nos depois nessa direção enquanto conservamos os olhos abertos e estamos conscientes de que o fim em geral é uma ilusão, pelo que o fundamental é a direção que mantivermos, pois só ela se encontra sob o nosso controlo, sob o controlo do nosso miserável eu. E a lucidez, sim, a lucidez, os olhos abertos fitando sem medo a nossa terrível situação devem ser a estrela do eu, a nossa única bússola, uma bússola que cria a direção, porque sem bússola não há direção. Mas se me disponho agora a acreditar na direção, passo a duvidar dos testemunhos relativos à maldade humana, uma vez que no interior de uma mesma direção – em si mesma excelente – podem existir correntes boas e más.”
Stig Dagerman, in A ilha dos condenados

E se foi a fogo

Ilustração: Rodrigo Rosa

E Joca Ramiro? Zé Bebelo tiscou de ombros, parece que não queria falar naquele. Daí me deu um gosto, de menor maldade, de explicar como era fabuloso o estado de Joca Ramiro, como tudo ele sabia e provia, e até que trazia um homem só para o ofício de ferrador, com a tendinha e as ferramentas, e o tudo mais versante aos animais. O que ouvindo, Zé Bebelo esbarrou.
Ah, é uma ideia que vale, ora veja! Isso a gente tem de conceber também, é o bom exemplo para se aproveitar... ― ele atinou. E eu, que já ia contar mais, do diverso, das peripécias que meu padrinho dizia que Joca Ramiro inventava no dar batalha, então eu como me concertei em mim, e calei a boca. Mire veja o senhor tudo o que na vida se estorva, razão de pressentimentos. Porque eu estava achando que, se contasse, perfazia ato de traição. Traição, mas por que? Dei um tunco. A gente não sabe, a gente sabe. Calei a boca toda. Desencurtamos os cavalos.
No entre o Condado e a Lontra, se foi a fogo. Aí, vi, aprendi. A metade dos nossos, que se apeavam, no avanço, entremeados disfarçantes, suas armas em arte ― escamoteados pelas árvores ― e de repente ligeiros se jazendo: para o rastejo; com as cabeças, farejavam; toda a vida! Aqueles sabiam brigar, desde de nascença? Só avistei isso um instante. Sendo que seguindo Zé Bebelo, reviramos volta, para o Gameleiras, onde houve o pior. O que era, era o que cercamos. Para acuar, só faltando cães! E demos inferno. Se travou. Tiro estronda muito, no meio do cerrado: se diz que é estampido, que é rimbombo. Tive noção de que morreram bastantes. Vencemos. Não desci de meu animal. Nem prestei, nem estive, no fim, como o galope se desabriu: os homens perseguindo uns, que com o mesmo Ricardão se escapavam. Mas mais não se aproveitou, o Ricardão já tinha tido fuga. Então os nossos, de jeriza, com os oito prisioneiros feitos queriam se concluir. ― Eh, de jeito nenhum, êpa! Não consinto covardias de perversidade! ― Zé Bebelo se danou. Apreciei a excelência dele, no sistema de não se matar. Assim eu quis que o ar de paz logo revertesse, o alimpado, o povo gritando menos. Aquele dia tinha sido forte coisa. De longe e sossego eu careci, demais. Se teve pouco. Arranjado o preciso, só se tomou prazo breve, porque recombinaram por diante os projetos e desarrancamos para a Terra Fofa, quase na demarca com o Grão-Mogol. Mas lá não cheguei. Em certo ponto do caminho, eu resolvi melhor minha vida.
Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade. Debelei que descuidassem de mim, restei escondido retardado. Vim-me. Isso que, pelo ajustado, eu não carecia de fazer assim. Podia chegar perto de Zé Bebelo, desdizer! ― Desanimei, declaro de retornar para o Curralim... Não podia? Mas, na hora mesma em que eu a decisão tomei, logo me deu um enfaro de Zé Bebelo, em trosgas, a conversação. Nem eu não estava para ter confiança nenhuma em ninguém. A bem! me fugi, e mais não pensei exato. Só isso. O senhor sabe, se desprocede! a ação escorregada e aflita, mas sem sustância narrável.
Meu cavalo era bom, eu tinha dinheiro na algibeira, eu estava bem armado. Virei, vagaroso. Meu rumo mesmo era o do mais incerto. Viajei, vim, acho nenhuma parte. Com vinte dias de remanchear, e sem as trapalhadas maiores, foi que me encostei para o Rio das Velhas, à vista da barra do Córrego Batistério. Dormi com uma mulher, que muito me agradou ― o marido dela estava fora, na redondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me disse! ― Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, lá tu almoça e janta. De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo, dando avisos. Eu falei! ― Você acende uma fogueira naquele alto, eu enxergo, eu cá venho... Ela falou! ― Ao que não posso, alguém mais avistando havia de poder desconfiar. Eu falei! ― Assim mesmo, eu quero. Fogueira ― uma fogueirinha de nada... Ela falou! ― Quem sabe eu acendo... A gente sérios, nem se sorrindo. Aí, eu fui.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Minhas sensações

A única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas. A verdade? É uma coisa exterior? Não posso ter a certeza dela, porque não é uma sensação minha, e eu só destas tenho a certeza. Uma sensação minha? De quê?
Procurar o sonho é pois procurar a verdade, visto que a única verdade para mim, sou eu próprio. Isolar-se tanto quanto possível dos outros é respeitar a verdade.
Fernando Pessoa, in Textos Filosóficos

O tempero da vida

Os filmes do Antonioni e do Bergman que a gente via e discutia com tanta seriedade anos atrás também eram uma forma de escapismo. Tanto quanto o musical e a comédia, aquelas histórias de tédio e indagações existenciais nos distraíam das exigências menores do cotidiano. Fugíamos não para um mundo cor-de-rosa, mas para outro matiz do preto, bem mais fascinante do que o das nossas pequenas aflições. Nenhum dos personagens do Antonioni ou do Bergman, embora enfrentassem seu vazio interior e a frieza de um universo indiferente, parecia ter qualquer problema com o aluguel.
Claro, o deserto emocional em que viviam os personagens do Antonioni, por exemplo, era o deserto metafórico do capitalismo, de uma civilização arrasada por si mesma. Mas estavam todos empregados e ganhando bem. E como era fotogênico o seu suplício. Com Bergman experimentamos o horror de existir, a terrível verdade de que somos uma espécie corrupta sem redenção possível e que a morte torna tudo sem sentido. Hoje suspeitamos de que se não vivesse na Suécia, com educação, saúde e bem-estar garantidos do ventre até o túmulo, ele não diria isso. É preciso estar livre das dificuldades da vida para poder concluir, com um mínimo de estilo, que a vida é impossível. Tínhamos uma secreta inveja desses europeus tão bem-sucedidos no seu desespero. Não tínhamos a mesma admiração por filmes em que as pessoas se preocupavam não com a ausência de Deus, mas de um contracheque no fim do mês.
Os que condenam as sociedades assistenciais costumam dizer que o Estado superprotetor rouba dos cidadãos as dificuldades que os desafiam e que são, afinal, o tempero da vida. E sempre citam as célebres estatísticas sobre suicídios na Escandinávia como prova do que acontece numa sociedade sem desafios. Pessoas morrem, sim, de autofastio ou porque Deus não existe, mas morrem por decisão própria. Nada decide por elas, nem a omissão de um governo nem o azar de ter nascido no lugar errado, na época errada e na classe errada. Não há equivalência possível entre morrer de tédio e morrer de fome. Está certo, o assistencialismo não funciona, o socialismo morreu, os liberais ganharam e a história acabou. Mas às vezes eu ainda me pego sonhando em sueco com uma sociedade pronta, sem qualquer destes desafios tropicais, em que a gente pudesse finalmente ser um personagem do Bergman, enojado apenas com tudo e nada mais.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

João Vibração e o Velho Sussurro da Morte

Como esses excessos de boa vontade não conseguissem mais que uma reação de desinteresse, ainda que bem-educada, da parte de Miúdo, vovô Jake pegou uma garrafa e foi para a varanda a fim de pensar no assunto. Demorou-se até agarrar-se firmemente ao óbvio: Miúdo fora arrasado pela morte da mãe e, como somente o tempo e talvez um pouco de ternura poderiam curá-lo, decidiu simplesmente continuar sendo quem era e levar sua vida; se o garoto quisesses acompanhá-lo, muito bem, era bem-vindo, se não… bem, Jake estava acostumado a pescar sozinho. Leva tempo até que os sentimentos reais ganhem a confiança que os conserva consistentes, e Jake calculava que um imortal como ele, mais do que nada, tinha tempo de sobra.
Também compartilhavam suas paixões, que eram diferentes no tipo, mas não na intensidade. Desde o momento em que Jake experimentara a primeira leva feita com a receita do índio moribundo, sua paixão era refinar o uísque; procurava aperfeiçoá-lo com o ardor de um velho alquimista em busca da pedra filosofal. Como explicava a qualquer um que o escutasse, não era tanto a pureza o que queria – diabos, podia-se comprar álcool puro –, mas algo mais precioso: o caráter molecular.
Um dia, no final dos anos 1960, um hippie perambulou até o rancho. Depois de anunciar, em voz arrastada e vagarosa, os olhos no vácuo, que procurava e considerava bem-vindas todas as formas de transformação mental, e que tinha ouvido falar que Jake fazia uma bebida dotada dessas propriedades de alteração da mente, ele ofereceu dois comprimidos de LSD em troca de uma boa amostra de uísque. Vovô guinchou e deitou falação sobre como odiava as drogas e como devia atirar em sua bunda suja, cabeluda e cheia de merda por tentar corromper-lhe o neto, mas, já que era a primeira vez que alguém realmente queria experimentar o Velho Sussurro da Morte, acabou se acalmando – apesar de recusar a troca. O cabeludo, que se identificou com “João Vibração”, insistiu na dosagem ideal, o que vovô, tomando sua própria tolerância como medida, calculou em cerca de meio litro. O cabeludo, apesar de visivelmente perturbado depois do primeiro gole, conseguiu fazer descer mais seis ou sete, rapidinho, antes de cair duro na varanda da frente e começar a se contorcer de tal maneira que Patrão, o cão de Miúdo, intratável e sempre excitado, achegou-se e tentou comê-lo. Esse ato causou no rapaz uma transformação mental difícil de entender mas, para o vovô, o cabeludo deve ter achado que era um guaxinim ou coisa parecida, pois imediatamente disparou para a nogueira do quintal da frente, subiu nela num só pulo, gigantesco, e passou as três horas seguintes entre os galhos nus, arquejando como um urubu doente. Na primeira hora, ele chorou. Na segunda, riu. Na terceira, permaneceu quieto. No começo da quarta hora, inclinou-se para afrente e caiu como um saco de grão molhado. Quebrou os dois braços. No caminho para o hospital, fez ao vovô a oferta de comprar todo o estoque que tinha à mão e toda a produção futura por 40 dólares o litro, em troca da distribuição exclusiva. Em poucos anos, o uísque tinha se tornado artigo de culto entre certos conhecedores do esquecimento etílico, e vovô Jake pôde manter um saldo anual de US$ 300 mil dólares em sua conjunta com Miúdo.
Jim Dodge, in Fup

De tanto pensar

De tanto pensar,
Sem Nome, me veio a ilusão,
A mesma ilusão
Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n’água.
Hilda Hilst

Diagnóstico errado

Não tentes tirar uma ideia da cabeça de outrem porque, examinando bem, verás que em geral não se trata de ideias, mas de convicções. São inextirpáveis. E a causa única de todas as guerras — políticas ou religiosas, paroquianas ou internacionais.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

Nuvens


A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou.
Houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelascontas de minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.
Achava-me numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e no fim do pátio cresciam árvores enormes, carregadas de pitombas. Alguém mudou as pitombas em laranjas. Não gostei da correção: laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam.
A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se:
Um b com um ab, a: ba; um b com um eb, e: be.
Assim por diante, até u. Em escolas primárias da roça ouvi cantarem a soletração de várias maneiras. Nenhuma como aquela, e a toada única, as letras e as pitombas convencem-me de que a sala, as árvores, transformadas em laranjeiras, os bancos, a mesa, o professor e os alunos existiram. Tudo é bem nítido, muito mais nítido que o vaso. Em pé, junto ao barbado, uma grande moça, que para o futuro adquiriu os traços de minha irmã natural, tinha nas mãos um folheto e gemia:
A, B, C, D, E.
De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as minhas pernas. Transportaram-me — e adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. Acordei numa espécie de cozinha, sob um teto baixo, de palha, entre homens que vestiam camisas brancas. Um deles perguntou como se havia de assar o bacalhau e outro respondeu:
Faz-se um grajau de madeira.
Grajau? Que seria grajau? Tornei a mergulhar no sono, um sono extenso.
Disseram-me depois que a escola nos servira de pouso numa viagem.
Tínhamos deixado a cidadezinha onde vivíamos, em Alagoas, e entrávamos no sertão de Pernambuco, eu, meu pai, minha mãe, duas irmãs. Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que eu, a outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas.
Positivamente havia pitombas e um vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta. Surgiram repentinamente a sala espaçosa, o velho, as crianças, a moça, bancos, mesa, árvores, sujeitos de camisas brancas. E sons estranhos também surgiram: letras, sílabas, palavras misteriosas. Nada mais.
E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro.
Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro Vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto; Sinha Leopoldina, companheira dele, vistosa na chita cor de sangue; mulheres que fumavam cachimbo. Mais vivo que todos, avulta um rapagão aprumado e forte, de olhos claros, risonho.
Calçava alpercatas, vestia a camisa branca de algodão que usa o sertanejo pobre do Nordeste, áspera, encardida, ordinariamente desabotoada, as pontas das aberturas laterais presas em dois nós. Chamava-se José Baía e tornou-se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopeias e gargalhadas sonoras.
Sentado, escanchava-me nas pernas e sacudia-me, sapateava, imitando o galope de um cavalo; em pé, segurava-me os braços, punha-se a rodopiar, cantando:

Eu nasci de sete meses,
Fui criado sem mamar.
Bebi leite de cem vacas
Na porteira do curral.

Quando me soltava, eu cambaleava, zonzo. Um dia, livre dos giros vertiginosos, saí aos tombos, esbarrei com um esteio e ganhei um calombo grosso na testa.
Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou.
Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio.
A cabeçada valente que dei, solto das garras de José Baía, firmou o copiar, sustentado por colunas robustas, de aroeira ou sucupira. Ali perto era a sala, de janelas sempre fechadas, armas de fogo e instrumentos agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos, teias de aranha, a rede segura em armadores de pau, grosseiros caixões verdes, depósitos de cereais, se não me engano. No corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar. A cozinha desapareceu, mas o quintal subsiste, duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pé-de-turco, ótimo para a gente se esconder nas perseguições. Desse lado o pé-de-turco marcava o limite do mundo. Do outro lado a terra se estendia por longas distâncias. A casa, de material rijo, estava completa por dentro. Mas exteriormente havia nela singularidades. O oitão esquerdo era de altura incrível; à direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equilibrar-se. Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram-se.
Durante um redemoinho brabo notei esquisitices. Nuvens de poeira enrolaram-se em briga feia, escureceu, um rumor diferente dos outros rumores cresceu, espalhou-se, e no meio da terrível desordem um couro de boi espichado quebrou o relho que o amarrava a um galho e voou no turbilhão. Uma senhora magra, minha indistinta mãe, tentou com desespero fechar uma porta balançada pela ventania. Folhas e garranchos entraram na sala, um bicho zangado soprou ou assobiou, a mulher agitou-se pendurada na chave. Findo o despropósito, vi a pessoinha com a mão envolta em panos. Um dedo inchou demais, e foi necessário que lhe cortassem o anel com lima. Em seguida perdi a moça de vista. E a letargia continuou.
O pátio, que se desdobrava diante do copiar, era imenso, julgo que não me atreveria a percorrê-lo. O fim dele tocava o céu. Um dia, entretanto, achei-me além do pátio, além do céu. Como cheguei ali não sei. Homens cavavam o chão, um buraco se abria, medonho, precipício que me encolhia apavorado entre montanhas erguidas nas bordas. Para que estariam fazendo aquela toca profunda? Para que estariam construindo aqueles montes que um pó envolvia como fumaça? Retraí-me na admiração que me causava o extraordinário formigueiro. As formigas suavam, as camisas brancas tingiam-se, enegreciam, ferramentas cravavam-se na terra, outras jogavam para cima o nevoeiro que formava os morros.
Nova solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase impenetráveis, cortadas por vagos clarões: os brincos e a cara morena de Sinha Leopoldina, o gibão de Amaro Vaqueiro, os dentes alvos de José Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural, vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana. O moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas — e os meus receios esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos.
O vozeirão que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso estrondava — e os perigos ocultos em todos os recantos fugiam, deixavam em sossego os viventes miúdos: alguns cachorros, um casal de moleques, duas meninas e eu.
Graciliano Ramos, in Infância

Um pombo chamado amor

O pombo que mudou a vida de Pequeno Soba – e ainda lhe matou a fome – chamava-se Amor. Acham ridículo? Queixem-se a Maria Clara. Foi ela quem lhe deu o nome. A futura esposa de Magno Moreira Monte era, por alturas da Independência, uma jovem estudante liceal. O pai, Horácio Capitão, funcionário da alfândega, criava pombos-correios. Os pombos batizados por Maria Clara tendiam a ser campeões. Fora o caso, antes de Amor, de Namorado (1968), Amoroso (1971), Clamoroso (1973) e Encantado (1973). Amor esteve quase para ser jogado fora, ainda no ovo. Não presta, explicou Horácio Capitão à filha: Repara na casca, rugosa, muito grossa. Um pombo saudável, forte, bom voador, nasce de ovos com a casca lisa e brilhante. A rapariga rodou o ovo entre os dedos compridos, e vaticinou:
Será um campeão, pai. Vou chamar-lhe Amor.
Amor veio à luz com as pernas finas. Piava muito na tigela. Além disso, a plumagem atrasou-se. Horácio Capitão não escondia o desgosto e a repugnância:
Devíamos desfazer-nos dele, Maria Clara. O raio do bicho nunca voará bem. É um perdedor. Um columbófilo tem de saber distinguir os pombos bons dos pombos ruins. Os maus deitamos fora, não perdemos tempo com eles.
Não!, insistia a filha: Tenho absoluta fé neste pombo. Amor nasceu para vencer.
Amor começou de fato a desenvolver-se. Infelizmente, cresceu demais. Ao vê-lo gordo, muito maior do que os pombos da mesma ninhada, Horácio Capitão voltou a abanar a cabeça:
Devíamos comê-lo. Pombos grandes só têm alguma chance nas provas de velocidade. Não servem para longas distâncias.
Enganou-se. Amor correspondeu às expectativas de Maria Clara. 1974 e 1975 foram para ele anos de glória. Revelou-se rápido, determinado, com uma arreigada paixão pelo pombal:
O filho da puta demonstra apego ao território, reconheceu finalmente Horácio Capitão: O apego ao território é a principal característica de um bom voador.
Ao dar de caras com um espelho, Horácio Capitão via um homem alto e musculado, o que ele não era, muito pelo contrário, media pouco mais de um metro e sessenta, e exibia uns braços lassos, ombros estreitos, ossos de passarinho. Nunca recuava diante de qualquer confronto, e, tendo oportunidade, desferia o primeiro soco, sofrendo a seguir os do adversário, sofrendo-os mesmo muito, na carne frágil, mas sempre teso como um colosso. Nascera em Luanda, numa família da pequena burguesia mestiça, e só uma vez visitara Portugal. Não obstante sentia-se, as palavras são dele, um português dos sete costados. A Revolução de Abril deixou-o furioso e atordoado. Nuns dias mais furioso, noutros mais atordoado, ora de olhar perdido no céu, ora vociferando contra os traidores e os comunistas que, sem vergonha, pretendiam vender Angola ao império soviético. Assistiu, horrorizado, ao início da guerra civil e ao triunfo do MPLA, e dos seus aliados cubanos e do Bloco de Leste. Podia ter embarcado para Lisboa, como tantos outros, mas não quis:
Enquanto houver nesta terra um verdadeiro português, Angola continuará sendo Portugal.
Nos meses que se seguiram à Independência viu sucederem-se as tragédias que havia vaticinado: a fuga dos colonos e de uma boa parte da burguesia nativa, o encerramento das fábricas e do pequeno comércio, o colapso dos serviços de água, de eletricidade e de recolha de lixo, as prisões em massa, os fuzilamentos. Deixou de frequentar o pombal. Passava os dias na Biker. Eu não vos disse?!, comentava com os poucos amigos, na sua maioria antigos funcionários públicos, que continuavam a frequentar a histórica cervejaria. Tornou-se tão irritante, insistindo e insistindo nas mesmas recriminações e nos mesmos sombrios presságios, que, a partir de certa altura, os outros começaram a referir-se a ele como o Eu-Não-Vos-Disse.
Certa manhã de cacimbo, ao abrir o jornal, deu com a fotografia de um comício. Viu, em primeiro plano, Maria Clara abraçada a Magno Moreira Monte, e correu a mostrar o jornal a um antigo informante da polícia política portuguesa, Artur Quevedo, o qual, após a Independência, passara a fazer pequenos biscates para os novos serviços de informação e segurança:
Conheces este gajo? Quem é este gajo?
Quevedo encarou o amigo, compadecido:
Um comunista fanático. O pior dos comunistas, inteligente, determinado, e com um ódio visceral aos portugueses.
Horácio voltou para casa em pânico. A sua filha, a sua menina, a sua princesa, caíra nas mãos de um subversivo. Não saberia o que dizer à falecida mulher quando a voltasse a ver. O coração acelerou enquanto avançava. A fúria foi tomando conta dele. Já gritava quando abriu a porta:
Maria Clara!
A filha acudiu, vinda da cozinha, limpando as mãos ao avental:
Pai?!
Quero que a menina comece a fazer as malas. Vamos para a metrópole.
O quê?!
Maria Clara completara 17 anos. Herdara da mãe a beleza plácida, e do pai a coragem e a teimosia. Monte, oito anos mais velho, fora seu professor de português, em 1974, o ano da euforia. Atraiu-a nele os defeitos de Horácio. Deixou-se também seduzir pela voz grave com que o professor lia, nas aulas, os versos de José Régio: A minha vida é um vendaval que se soltou. / É uma onda que se alevantou. / É um átomo a mais que se animou... / Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / – Sei que não vou por aí!
A moça despiu o avental. Pisou-o, furiosa:
Vá o senhor. Eu fico no meu país.
Horácio esbofeteou-a:
Tens 17 anos, e és minha filha. Fazes o que eu mandar. Para já ficas fechada em casa, não quero que faças mais nenhum disparate.
Instruiu a empregada para que não deixasse sair Maria Clara e foi comprar passagens de avião. Vendeu o carro, por um preço ridículo, a Artur Quevedo, e entregou-lhe uma cópia das chaves de casa:
Vais lá todos os dias abrir as janelas, regar o jardim, para que as pessoas pensem que continua habitada. Não quero os comunistas a ocupar-me a casa.
Maria Clara servia-se dos pombos, há várias semanas, para se comunicar com o amante. Horácio cortara o telefone, depois que começara a receber chamadas anónimas com ameaças de morte. As ameaças não estavam relacionadas com questões políticas. Nada a ver. O funcionário da alfândega suspeitava de um colega invejoso. Monte, por seu lado, viajava muito, cumprindo missões secretas, por vezes em zonas de combate. Maria Clara, que, a essa altura, cuidava sozinha do pombal, dava-lhe três, quatro pombos, os quais ele ia soltando, ao crepúsculo, com versos de amor e notícias breves atadas às patas.
Maria Clara conseguiu enviar, através da empregada, uma mensagem a uma amiga, e esta foi à procura de Monte. Encontrou-o em Viana, investigando rumores sobre a organização de um golpe militar, envolvendo oficiais negros, descontentes com a predominância de brancos e mestiços no mais alto escalão das forças armadas. Monte sentou-se e escreveu:
Amanhã. Seis horas, lugar habitual. Muito cuidado. Amo-te.
Colocou a mensagem num pequeno cilindro de plástico e prendeu-o à perna direita de um dos dois pombos que havia trazido. Soltou o pombo.
Maria Clara aguardou em vão por uma resposta. Chorou a noite inteira. Não protestou no caminho para o aeroporto. Não falou até desembarcarem em Lisboa. Permaneceu pouco tempo na capital portuguesa. Cinco meses após completar 18 anos regressou a Luanda e casou-se com Monte. Horácio engoliu o orgulho, fez as malas, e seguiu a filha. Veio a saber, muito mais tarde, que o futuro genro evitara por várias vezes a sua prisão, nos anos tumultuosos que se seguiram à Independência. Nunca lhe agradeceu. Todavia, no funeral, foi dos que mais o chorou.
Deus pesa as almas numa balança. Num dos pratos fica a alma, no outro as lágrimas dos que a choraram. Se ninguém a chorou, a alma desce para o inferno. Se as lágrimas forem suficientes, e suficientemente sentidas, ascende para o céu. Ludo acreditava nisto. Ou gostaria de acreditar. Foi o que disse a Sabalu:
Vão para o Paraíso as pessoas de quem os outros sentem a falta. O Paraíso é o espaço que ocupamos no coração dos outros. Isto era o que me contava a minha avó. Não acredito. Gostaria de acreditar em tudo o que é simples – mas careço de fé.
Monte teve quem o chorasse. Custa-me imaginá-lo no Paraíso. Talvez purgue, porém, em algum recanto obscuro da imensidão, entre o sereno esplendor do Céu e as convulsas trevas do Inferno, jogando xadrez com os anjos que o guardam. Se os anjos souberem jogar, se jogarem bem, isso para ele será quase o Paraíso.
Quanto a Horácio Capitão, o Eu-Não-Vos-Disse, passa as tardes num bar decrépito, na Ilha, bebendo cerveja, e discutindo política, na companhia do poeta Vitorino Gavião, de Artur Quevedo e de mais duas ou três velhas carcaças dos tempos do caprandanda. Ainda hoje não reconhece a Independência de Angola. Acha que assim como o comunismo acabou, um dia a Independência também acabará. Continua a criar pombos.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

Santelmo e fogo-fátuo

Na política brasileira avulta, há muito, a insigne classe dos insultadores, cuja função política se reduz exclusivamente ao ofício de insultar. São os magarefes de certa espécie de açougues, onde se corta, na honra das almas independentes, na fama dos homens responsáveis, no merecimento dos espíritos úteis, nos serviços dos cidadãos moderados, o bife sangrento para o estômago da democracia feroz. Esta divindade alucinada, antípoda da democracia liberal e culta, disciplinada e humana, progressista e capaz, vive deglutindo majestosamente a carniça, que lhe chacina a sua matilha de hienas. O furor difamatório, a vesânia vituperativa, a protérvia de enxovalhar os adversários mais limpos com os aleives mais torpes constituem a sua eloquência, a sua probidade, o seu patriotismo. A decomposição orgânica exala o fogo-fátuo. O ar eletrizado acende o santelmo na ponta das lanças heroicas e no topo dos mastros atrevidos, que desafiam o oceano, Dir-se-ia, contudo, a mesma luz que brilha nos dois meteoros. Mas a claridade do fogo-fátuo nasce da infecção, e atrai para o lodo; a do santelmo lampeja do fluido sublime, que rasga as nuvens, anuncia a glória, e aponta para os céus. Senhores, quando vejo bruxolear um desses pequeninos Demóstenes da diatribe, ergo a vista para o alto, onde quis que a tivéssemos Aquele que deu ao homem a fronte levantada, os homini sublime dedit... e já os não diviso. Há de ser a lamparina dos brejos, concluo então de mim para mim; e espero que o azul da chama rasteira se apague à superfície do charco.
Rui Barbosa, in Antologia

As ruas

No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.

E a rua entrava
conosco em casa.

Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.

Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.

À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.

Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?
Mia Couto

A carteira e o cartão

Os hipermercados não tomaram apenas o lugar das catedrais, eles são também as novas escolas e as novas universidades, abertas a maiores e a menores sem distinção, com vantagem de não existirem exames à entrada ou notas máximas, salvo aquelas que na carteira se contiveram e o cartão de crédito cobrir.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

Trecho do conto O visitante noturno

Comprei de um mexicano vinte hectares de terra desocupada, dominada por densa vegetação tropical. Adiantei-lhe vinte e cinco pesos, e o resto seria pago na entrega dos títulos.
Construí uma cabana no estilo indígena e comecei a cultivar a terra. Não era uma tarefa fácil, ali no meio da mata, mas de todo modo pus mãos à obra.
Logo descobri que não era o único homem branco da região; uma hora em meu cavalo me levou à casa do vizinho mais próximo, um certo doutor Cranwell. A aldeia, povoada por camponeses índios, ficava a vinte quilômetros, e o armazém, a vinte e nove. Próximo ao armazém, duas famílias americanas tentavam a sorte; além de se dedicarem à agricultura e à compra e o embarque de carvão e lenha produzidos pelos índios locais, cada uma delas mantinha um bazar de aspecto miserável.
O ranchito do doutor Cranwell situava-se numa colina no meio do mato, assim como o meu. Ele vivia sozinho em um bangalô de três aposentos, construído da forma mais rudimentar. Eu não sabia por que ele fora se enterrar naquela mata e nunca procurei saber. Não tinha nada com isso.
Ele se dedicava à criação de animais, ou ao que ele chamava de criação. Tinha duas vacas, dois cavalos, três mulas e algumas colmeias. Os pássaros silvestres comiam as abelhas o tempo todo, pegando-as ao entrar ou sair da colônia. Isso limitava sua produção a um volume suficiente apenas para o doutor saborear um pouco de mel no café da manhã de vez em quando.
Seus vizinhos mais próximos eram duas famílias de índios, que viviam a pouco menos de um quilômetro de seu ranchito. Ele contratara os homens para o trabalho agrícola e as mulheres para o parco serviço doméstico.
O doutor Cranwell passava a maior parte do tempo lendo. Quando não se dedicava à leitura, deixava-se ficar sentado à varanda do bangalô, contemplando os milhares de quilômetros quadrados de selva que se estendiam à sua frente a perder de vista. Aquela mata era de um verde triste e poeirento, que só se iluminava durante quatro meses do ano, depois do fim da estação das chuvas.
Alguns agrupamentos indígenas, nenhum deles com mais de três famílias, espalhavam-se pela vasta região, e a única maneira de saber onde se encontravam era pela fumaça que podia ser vista, em determinadas horas do dia, pairando acima dos jacalitos1 ocultos.
Uma pessoa comum poderia ficar esgotada, quem sabe até perder o juízo, se não pudesse contemplar nada além daquela vasta extensão de floresta sombria. O médico, porém, gostava daquela paisagem.
E eu também. Podia passar horas contemplando aquela selva sem nunca me cansar dela. Na verdade, o que me interessava não era o que eu conseguia ver. Era poder imaginar os grandes e pequenos episódios que se desenrolavam naqueles matagais espinhosos lá embaixo. Não havia um minuto de descanso na eterna batalha pela sobrevivência, pelo amor. Criação e destruição... Eu não tinha bem certeza, mas imaginava que o médico sentia a mesma coisa. Só que ele nunca disse isso.
Minha casa ficava na mesma elevação que a sua, embora um pouco mais abaixo. Eu estava bem mais longe dos vizinhos que ele. Só muito raramente a solidão me incomodava. Quando isso acontecia, eu selava meu pônei e ia visitar o médico, só para ver um rosto humano e ouvir a voz de alguém.
Uma floresta tropical é tão cheia de vida que é simplesmente impossível entregar-se à tristeza quando se é capaz de sentir todo o universo em cada pequeno inseto, em cada lagarto, em cada trinado de pássaro, em cada farfalhar de folhas, em cada cor e forma de flor. De vez em quando, porém, eu sentia um arrepio de medo e meu coração fraquejava. Era como estar sozinho num avião, rodeado de nuvens, com o motor rateando e sem instrumentos de orientação. Ou como estar sozinho num pequeno barco, longe da costa, sem nenhum pássaro à vista, num mar silencioso, com o Sol começando a declinar.
O médico não era de falar muito. Viver sozinho na mata tropical faz você ficar silencioso, embora rico em pensamentos. Não se passa um minuto do dia ou da noite sem que a selva lhe fale, seja com sua voz contínua, incessante, seja por seu eterno crescimento e decomposição. Fatalmente você chega à conclusão de que a vida só pode ter um sentido: “Aproveite-a enquanto ela durar e desfrute dela o máximo que puder, porque a morte está dentro de você desde o momento em que nasceu”.
Em minhas visitas, o médico e eu nos deixávamos ficar em nossas cadeiras de balanço por duas ou três horas sem que nenhum de nós dissesse uma palavra. Não sei por que, porém, isso nos contentava.
B. Traven, in O visitante noturno

O Winnipeg

Os funcionários da embaixada me entregaram certa manhã, ao chegar, um longo telegrama. Sorriam. Era estranho que me sorrissem uma vez que nem sequer me cumprimentavam. Devia conter essa mensagem algo que os regozijava.
Era um telegrama do Chile, assinado nada menos que pelo presidente Dom Pedro Aguirre Cerda, o mesmo de quem recebi as instruções contundentes para o embarque dos espanhóis desterrados.
Li com estupor que Dom Pedro, nosso bom presidente, tinha sabido esta manhã com surpresa que eu preparava a entrada dos emigrantes espanhóis ao Chile. Pedia que eu desmentisse imediatamente tão insólita notícia.
Para mim o insólito era o telegrama do presidente. O trabalho de organizar, examinar, selecionar a emigração, tinha sido uma tarefa dura e solitária. Por sorte o governo da Espanha no exílio tinha compreendido a importância de minha missão. Mas todo dia surgiam novos e inesperados obstáculos. Entretanto, dos campos de concentração onde se amontoavam na França e na África milhares de refugiados, saíam ou preparavam-se para sair até o Chile centenas deles.
O governo republicano no exílio tinha conseguido adquirir um barco, o Winnipeg. Este tinha sido transformado para aumentar sua capacidade de passageiros e esperava atracado no cais de Trompeloup, pequeno porto vizinho a Bordéus.
Que fazer? Aquele trabalho intenso e dramático, à beira mesmo da Segunda Guerra Mundial, era para mim como o auge de minha existência. Minha mão estendida para os combatentes perseguidos significava para eles a salvação e mostrava-lhes a essência de minha pátria acolhedora e lutadora. Todos esses sonhos vinham abaixo com o telegrama do presidente.
Decidi consultar Negrín sobre o caso. Tinha tido a sorte de fazer amizade com o presidente Juan Negrín, com o ministro Álvarez del Vayo e com alguns outros dos últimos governantes republicanos. Negrín era o mais interessante. A alta política espanhola sempre me pareceu um tanto paroquial e provinciana, desprovida de horizontes. Negrín era universal ou pelo menos europeu, tinha feito os estudos em Leipzig, tinha estatura universitária. Mantinha em Paris, com toda dignidade, essa sombra imaterial que são os governos no exílio.
Conversamos, relatei-lhe a situação, o estranho telegrama presidencial efetivamente me deixava como um impostor, como um charlatão que oferecia a uma multidão de desterrados um asilo inexistente. As soluções possíveis eram três. A primeira, abominável, era simplesmente anunciar que tinha sido cancelada a emigração da Espanha para o Chile. A segunda, dramática, era denunciar publicamente meu inconformismo, dar por terminada minha missão e disparar um tiro na cabeça. A terceira, desafiante, era encher o navio de emigrados, embarcar com eles e me lançar sem autorização para Valparaíso para ver o que aconteceria.
Negrin se jogou para trás na poltrona, fumando seu grande havana. Depois sorriu melancolicamente e me respondeu:
- Você não podia usar o telefone?
Naqueles dias as comunicações telefônicas entre Europa e América eram insuportavelmente difíceis, com horas de espera. Entre ruídos ensurdecedores e bruscas interrupções, consegui ouvir a voz remota do ministro das Relações Exteriores. Através de uma conversação entrecortada, com frases que deviam repetir-se vinte vezes, sem saber se nos entendíamos ou não, dando gritos fenomenais ou escutando como resposta trombetadas oceânicas do telefone, pensei ter feito o ministro Ortega compreender que eu não acatava a contraordem do presidente. Pensei também ter entendido que ele pedia que eu esperasse até o dia seguinte.
Passei, como era lógico, uma noite intranquila em meu pequeno hotel de Paris. Na tarde seguinte soube que o ministro tinha apresentado sua renúncia aquela manhã. Não aceitava ele tampouco minha desautorização. O gabinete tremeu e nosso bom presidente, passageiramente confundido pelas pressões, tinha recobrado sua autoridade. Recebi então um novo telegrama, dizendo-me que prosseguisse a emigração.
Embarcamo-os finalmente no Winnipeg. No mesmo lugar de embarque juntaram-se maridos e mulheres, pais e filhos, que tinham sido separados por longo tempo e que vinham dos confins da Europa e da África. A cada trem que chegava precipitava-se a multidão dos que esperavam. Entre carreiras, lágrimas e gritos, reconheciam os seres amados que colocavam a cabeça para fora pelas janelinhas como cachos humanos. Foram todos entrando no navio. Eram pescadores, camponeses, operários, intelectuais, uma demonstração de força, de heroísmo e de trabalho. Minha poesia, em sua luta, tinha conseguido encontrar pátria para eles. E me senti orgulhoso.
Comprei um jornal. Ia eu andando por uma rua de Varenne-sur-Seine. Passava junto do castelo velho cujas ruínas avermelhadas pelas trepadeiras deixavam subir até o alto pequenas torres de ardósia. Aquele velho castelo em que Ronsard e os poetas da Plêiade se reuniram tinha então para mim um prestígio de pedra e mármore, de verso hendecassílabo escrito em velhas letras de ouro. Abri o jornal. Naquele dia estalava a Segunda Guerra Mundial. Assim dizia, em grandes caracteres de suja tinta negra, o diário que me caiu nas mãos naquela velha aldeia perdida.
Todo o mundo a esperava. Hitler avançava engolindo territórios e os estadistas ingleses e franceses corriam com seus guarda-chuvas a oferecer-lhe mais cidades, reinos e seres.
Uma terrível névoa de confusão enchia as consciências. Da minha janela, em Paris, olhava diretamente até os Inválidos e via sair os primeiros contingentes, os rapazinhos que nunca souberam se vestir de soldados e que partiam para entrar na grande goela da morte.
Era triste sua partida e nada o dissimulava. Era como uma guerra perdida de antemão, algo indefinível. As forças chauvinistas percorriam as ruas em perseguição de intelectuais progressistas. O inimigo não estava para eles nos discípulos de Hitler, nos Laval, mas sim na fina flor do pensamento francês. Abrigamos na embaixada, que tinha mudado muito, o grande poeta Louis Aragon. Passou quatro dias escrevendo de dia e de noite enquanto as hordas o procuravam para o aniquilar. Ali, na embaixada do Chile, terminou sua novela Les Voyageurs de L'Impériale. No quinto dia, vestido de uniforme, dirigiu-se ao Front. Era sua segunda guerra contra os alemães.
Acostumei-me, naqueles dias crepusculares, a essa incerteza européia que não sofre revoluções contínuas nem terremotos mas mantém o veneno mortal da guerra saturando o ar e o pão. Por temor aos bombardeios, a grande metrópole se apagava de noite e essa escuridão de sete milhões de seres juntos, essas trevas espessas em que se tinha de andar em plena cidade-luz, ficaram gravadas em minha memória.
No final desta época, como se toda esta longa viagem tivesse sido inútil, volto a ficar só nos territórios recém-descobertos. Como na crise de nascimento, como no começo alarmante e alarmado do terror metafísico de onde brota o manancial de meus primeiros versos, como em um novo crepúsculo que minha própria criação provocou, entro em uma agonia e na segunda solidão. Para onde ir? Para onde regressar, conduzir, calar ou palpitar? Olho para todos os pontos da claridade e dá escuridão e não encontro senão o próprio vazio que minhas mãos elaboraram com cuidado fatal.
Porém o mais próximo, o mais fundamental, o mais extenso, o mais incalculável não aparecia senão neste momento em meu caminho. Tinha pensado em todos os mundos mas não no homem. Tinha explorado com crueldade e agonia o coração do homem. Sem pensar nos homens tinha visto cidades mas cidades vazias, tinha visto fábricas de trágica presença mas não tinha visto o sofrimento debaixo dos tetos, sobre as ruas, em todas as estações, nas cidades e no campo.
Diante das primeiras balas que atravessaram as guitarras da Espanha, quando em vez de sons saíram delas borbotões de sangue, minha poesia deteve-se como um fantasma no meio das ruas da angústia humana e começou a subir por ela uma corrente de raízes e de sangue. Desde então meu caminho junta-se com o caminho de todos. E em seguida vejo que desde o sul da solidão fui para o norte que é o povo, o povo ao qual minha humilde poesia quisera servir de espada e de lenço para secar o suor de suas grandes dores e para dar-lhe uma arma na luta pelo pão.
O espaço então se faz grande, profundo e permanente. Estamos lá de pé sobre a terra. Queremos entrar na possessão infinita de tudo que existe. Não buscamos o mistério; somos o mistério. Minha poesia começa a ser parte material de um cenário infinitamente espacial, de um cenário ao mesmo tempo submarino e subterrâneo, a entrar por galerias de vegetação extraordinária, a conversar em pleno dia com fantasmas solares, a explorar a cavidade do mineral escondido no segredo da terra, a determinar as relações esquecidas do outono e do homem. A atmosfera se obscurece e é iluminada às vezes por relâmpagos recarregados de fosforescência e de terror. Uma nova construção longe das palavras mais evidentes, mais gastas, aparece na superfície do ar. Um novo continente levanta-se da mais secreta matéria de minha poesia. Em povoar estas terras, em classificar este reino, em tocar todas suas margens misteriosas, em apaziguar sua espuma, em percorrer sua zoologia e sua geográfica longitude, passei anos obscuros, solitários e remotos.
Pablo Neruda, In Confesso que vivi