quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Pratique a política


O poder deseja que seu corpo amoleça na poltrona e que suas emoções se dissipem na tela. Saia de casa. Leve seu corpo a lugares desconhecidos, onde vivem pessoas desconhecidas. Faça novos amigos e se manifeste junto deles.”
Timothy Snyder, in Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente
Para Tymothy, se os tiranos não percebem consequência nenhuma para seus atos no mundo real, nada mudará. Então, deixar as críticas apenas no mundo online e sair para a esfera do real, do corpo-a-corpo é essencial em uma resistência a um governo com vieses autoritários.

Bathophobia

A cegueira nos illude:
mesmo em casa, me appavora,
não havendo quem me adjude,
caminhar, confesso agora.

Sempre assumo uma attitude
precavida: si estou fora,
temo o piso, arisco e rude;
si estou dentro, o que me escora.

Sensação tenho de estar,
sem appoio, em mau local
ou suspenso, num logar
escurissimo e abyssal!

Como, em sonho, a gente pisa
num boeiro ou lodaçal,
num buraco e affunda, bisa,
accordado: é tudo egual!
Glauco Mattoso

Rafael Alberti

A poesia é sempre um ato de paz. O poeta nasce da paz como o pão nasce da farinha.
Os incendiários, os guerreiros, os lobos buscam o poeta para queimá-lo, para matá-lo, para mordê-lo. Um espadachim deixou Pushkin ferido de morte entre as árvores de um parque sombrio. Os cavalos de pólvora galoparam enlouquecidos sobre o corpo sem vida de Petöfi. Lutando contra a guerra morreu Byron na Grécia. Os fascistas espanhóis iniciaram a guerra na Espanha assassinando seu melhor poeta.
Rafael Alberti é algo assim como um sobrevivente. Havia mil mortes dispostas para ele. Uma também em Granada. Outra morte o esperava em Badajoz; em Sevilha, cheia de sol; ou em sua pequena pátria, Cádiz; e Puerto Santa Maria, ali o buscavam para apunhalá-lo, para enforcá-lo, para matar nele uma vez mais a poesia.
Mas a poesia não foi morta, tem as sete vidas do gato. É molestada, é arrastada pela rua, cuspida e escarnecida, confinada para que se afogue, é desterrada, encarcerada, dão-lhe quatro tiros e sai de todos estes episódios com a cara lavada e um sorriso puro.
Conheci Rafael Alberti nas ruas de Madri com camisa azul e gravata vermelha. Conheci-o militante do povo quando não tinha muitos poetas que exercessem esse destino difícil. Ainda não tinham dobrado os sinos pela Espanha mas ele já sabia o que podia vir. Ele é um homem do sul, nasceu junto ao mar sonoro e às adegas de vinho amarelo como topázio. Assim foi feito seu coração: com o fogo das uvas e o rumor da onda. Sempre foi um poeta ainda que no início não o soubesse. Depois todos os espanhóis o souberam e, mais tarde, todo o mundo.
Para nós que temos a sorte de falar e conhecer a língua de Castilla, Rafael Alberti significa o esplendor da poesia na língua espanhola. Não só é um poeta inato mas um mestre da forma. Sim poesia tem, como uma rosa vermelha milagrosamente desabrochada no inverno, um copo de neve de Góngora, uma raiz de Jorge Manrique, uma pétala de Garcilaso, um aroma enlutado de Gustavo Adolfo Becquer. O que quer dizer que em sua taça cristalina confundem-se os cantos essenciais da Espanha.
Esta rosa vermelha iluminou o caminho dos que na Espanha pretenderam deter o fascismo. O mundo conhece esta heróica e trágica história. Alberti não só escreveu sonetos épicos, não só os leu nos quartéis e no front como foi quem inventou a guerrilha poética, a guerra poética contra a guerra. Inventou as canções que criaram asas sob o estampido da artilharia, canções que depois vão voando sobre toda a terra.
Este poeta de puríssima estirpe ensinou a utilidade pública da poesia num momento crítico do mundo. Nisso se assemelha a Maiakovski. Esta utilidade pública da poesia se baseia na força, na ternura, na alegria e na essência verdadeira. Sem esta qualidade a poesia soa mas não canta. Alberti canta sempre.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Inconsistência do homem

Por que os homens teimam tanto em realizar alguma coisa? Não estariam eles muito melhor imóveis sob o céu, numa calma serena? O que se há, então, de fazer? Por que tantos esforços e ambições? O homem perdeu o sentido do silêncio. Ainda que a consciência seja o fruto de uma deficiência vital, ela não opera em cada indivíduo como fator de inadaptação; em alguns, ela engendra, ao contrário, um aumento das inclinações vitais. Não podendo mais viver no presente, o homem acumula um excedente que lhe pesa e escraviza; o sentimento do porvir é para ele uma calamidade. O processo segundo o qual a consciência dividiu os homens em duas grandes categorias é dos mais estranhos. Ele explica por que o homem é um ser tão pouco consistente, incapaz de encontrar seu centro de energia e equilíbrio. Aqueles cuja consciência levou à interiorização, ao suplício e à tragédia, assim como aqueles que ela lançou no imperialismo ilimitado do desejo de adquirir e possuir são, cada um à sua maneira, infelizes e desequilibrados. A consciência fez do animal um homem e do homem um demônio, mas ela ainda não transformou ninguém em Deus, ainda que o mundo orgulhe-se de ter despachado um numa cruz.
Evitem os indivíduos impermeáveis ao vício, pois sua presença insípida somente sabe chatear. Sobre o quê vocês conversariam senão sobre moral? Quem não ultrapassou a moral não pôde aprofundar nenhuma experiência, nem transfigurar os seus colapsos. A verdadeira existência começa onde a moral acaba, pois somente a partir deste ponto ela pode tentar tudo, e tudo arriscar, ainda que obstáculos oponham-se às suas conquistas reais. Precisa-se de infinitas transfigurações para atingir a região em que tudo é permitido, onde a alma pode lançar-se sem remorsos na vulgaridade, no sublime ou no grotesco, até alcançar uma tal complexidade que nenhuma direção ou forma de vida escapam ao seu alcance. A tirania que reina sobre as existências ordinárias deixa lugar à espontaneidade absoluta de uma existência única que traz em si a sua própria lei. Como a moral ainda valeria para um ser assim formado - o mais generoso possível, absurdo a ponto de lhe fazer renunciar ao mundo, oferecendo tudo o que possui? A generosidade é incompatível com a moral, esta racionalidade dos hábitos da consciência, esta mecanização da vida. Todo ato generoso é insensato, testemunha de uma renúncia impensável para o homem ordinário, que se envolve na moral para esconder sua vulgar nulidade. Tudo o que é realmente moral somente começa uma vez que a moral tenha sido evacuada. A mesquinharia de suas normas racionais não se mostra em nenhum lugar com mais evidência do que na condenação do vício - esta expressão do trágico carnal proveniente da presença do espírito na carne. Pois o vício implica sempre um surto da carne para além da sua fatalidade, uma tentativa de romper as barreiras que aprisionam os elans passionais. Um tédio orgânico leva então os nervos e a carne a um desespero do qual eles somente podem escapar tentando todas as formas possíveis da volúpia. No vício, o atrativo de outras formas, que não as normais, produz uma inquietude perturbadora: o espírito parece então transformar-se em sangue, para se mover como uma força imanente à carne. A exploração do possível não pode ser realizada, com efeito, sem o concurso do espírito nem a intervenção da consciência. O vício é uma forma de triunfo do individual; enquanto isto, como a carne poderia representar o individual sem um apoio exterior? Esta mistura de carne e de espírito, de consciência e de sangue, cria uma efervescência extremamente fecunda para o indivíduo refém dos charmes do vício. Nada repugna mais do que o vício aprendido, tomado de outrem e incorporado; também o elogio ao vício é completamente injustificado: além do mais, pode-se constatar a fecundidade para aqueles que sabem transfigurá-lo, desviar o próprio desvio. Para vivê-lo de maneira bruta e vulgar, explora-se apenas sua escandalosa materialidade, negligencia-se o frisson imaterial que faz sua excelência. Para atingir certas alturas, a vida íntima não pode dispensar-se das inquietudes do vício. E nenhum viciado há de ser condenado uma vez que, ao invés de considerar o vício como um pretexto, ele o transforma em finalidade.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Experiência

O arcipreste era temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo. Achava que, no máximo, o Diabo é estampa de natureza folclórica. A fé em Deus bastava ao arcipreste em todos os lances da vida, entre eles o de atravessar a rua de subúrbio onde morava. Nenhuma carreta ousava atropelá-lo, nem policial munido de bastão de gás paralisante e cassetete eletrificado se lembraria de deter-lhe os passos.
Contudo, a ciclista ruiva o derrubou de maneira tão sutil que ele só percebeu o incidente ao se ver cercado de curiosos. Aparentemente, não se machucara. Dor nenhuma. Tentou levantar-se, não pôde. A mulher sumira. Tiveram de carregá-lo até o hospital mais próximo, onde ficou acamado três meses. Iam dar-lhe alta quando recebeu a visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos, que lhe levou um ramo de flores e, sorrindo, lhe disse:
Daqui por diante o senhor pode continuar duvidando da existência dele, mas já tem motivo para acreditar pelo menos na existência da mulher dele.
O arcipreste nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda, e fazia coisas sem sentido.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Federico...


Federico Fellini se divertia com o espanto do seu produtor.
Você está brincando comigo, Federico.
Não, não. É verdade.
Não acredito.
Mas é verdade. Meu próximo filme terá dois personagens. No máximo três.
Eu estou sonhando.
E só um cenário.
Já sei. O Coliseu, todo pintado de rosa.
Não. Um apartamento.
Um apartamento enorme...
Um apartamento de tamanho médio. De classe média. Decoração normal.
Me belisca. Eu estou sonhando.
Você não está sonhando.
Já sei. Já vi tudo. Os personagens sonham. Sonhos espetaculares. Manadas de elefantes fosforescentes passeando pelas ruas da Babilônia.
Não. Nenhum sonho. Apenas os dois personagens, acordados, dentro de um apartamento comum.
Só isso?
Só.
Você não quer que eu mande construir um navio em tamanho natural?
Não.
Você não quer que eu encontre uma mulher com três metros de altura?
Não.
Dezessete anões com chifres?
Não.
Um hermafrodita albino?
Pra que toda essa gente? Eles só encheriam o apartamento.
E esses personagens, que tamanho têm?
São pessoas comuns, de tamanho normal. Um homem e uma mulher. Talvez uma empregada, para servir o chá.
Tamanho normal também?
Normalíssimo.
Federico! Olhe aí, eu estou até arrepiado. É tudo com que eu sempre sonhei! Uma história intimista. Uma produção sem problemas. Principalmente um orçamento baixo. Até que enfim!
Que bom que você gostou.
Tem certeza de que você não vai querer nem um elefante?
Nem um gato.
Deus seja louvado.
Bem, talvez um gato.
Certo.
Caolho.
Um gato caolho. Não tem problema.
Dez gatos caolhos.
Dez?
Oitocentos.
Federico...
Isso. Oitocentos gatos caolhos. Mil. Os gatos estão por todo o apartamento. O casal não consegue sentar ou dormir por causa dos gatos. Os gatos comem a empregada. Os gatos ocupam todo o prédio. Toda a cidade! É isso! A cidade está tomada por gatos caolhos. Milhões de gatos caolhos. Anote aí: um milhão de gatos caolhos. Só o casal ainda não foi comido pelos gatos, porque...
Federico…
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

Murar o medo

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já eram para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.
Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.
O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incomodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivos se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples fato de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”
E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
Mia Couto, in Conferências do Estoril, de 2011

Sossega, coração! Não desesperes!

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme…
Fernando Pessoa

Ninguém vai rir - 2

Atravessamos o presente de olhos vendados, mal podemos pressentir ou adivinhar aquilo que estamos vivendo. Só mais tarde, quando a venda é retirada e examinamos o passado, percebemos o que foi vivido, compreendendo o sentido do que se passou.
Eu imaginava naquela noite brindar ao meu sucesso, e de modo algum podia prever que aquilo pudesse ser o prenúncio solene do meu fim.
E porque não duvidava de nada, acordei no dia seguinte de bom humor: enquanto Klara continuava dormindo um sono feliz, peguei o artigo anexado à carta do Sr. Zaturecky e comecei a lê-lo na cama com uma indiferença divertida.
Esse artigo, intitulado Um mestre do desenho tcheco, Mikolas Ales, não merecia nem mesmo a meia hora de desatenção que eu lhe dispensava. Era um conjunto de lugares-comuns alinhados sem o menor senso de lógica.
Era, sem dúvida alguma, uma inépcia. Opinião que o Dr. Kalusek, redator-chefe da revista O Pensamento Plástico (personagem por sinal dos mais antipáticos), confirmou no mesmo dia por telefone. Ele ligou para mim na faculdade e disse: — Você recebeu a dissertação do Sr. Zaturecky? Pois bem, faça-me o favor de redigir; cinco leitores demoliram seu artigo, mas ele continua insistindo e acha que você é a única e exclusiva autoridade. Escreva em poucas linhas que o artigo não tem fundamento. Você é bem indicado para isso, pois sabe ser incisivo, e assim ele nos deixará em paz.
Mas alguma coisa em mim se revoltou. Por que deveria ser exatamente eu o carrasco do Sr. Zaturecky? Era eu por acaso quem recebia um salário de redator-chefe? Aliás, lembrava-me muito bem que a revista O Pensamento Plástico tinha julgado prudente recusar meu estudo; e também o nome do Sr. Zaturecky estava para mim fortemente ligado à lembrança de Klara, à garrafa de slivovice e a uma boa noitada. E, por último, não posso negá-lo, é humano, poderia contar nos dedos da mão e talvez num só dedo, as pessoas que me consideram como “a única e exclusiva autoridade”. Por que me tornar inimigo desse único admirador?
Terminei minha conversa com Kalusek com algumas palavras espirituosas e vagas que cada um de nós podia considerar como quisesse, ele como uma promessa e eu como uma escapatória. Desliguei firmemente decidido a jamais escrever o parecer crítico para o Sr. Zaturecky.
Apanhei então um papel de carta na gaveta e escrevi ao Sr. Zaturecky evitando cuidadosamente formular qualquer tipo de apreciação sobre seu trabalho, alegando o fato de que minhas ideias sobre a pintura do século XIX são tidas em geral como erradas, sobretudo pela redação da revista O Pensamento Plástico, de modo que minha intervenção poderia ser mais nociva do que útil; ao mesmo tempo, envolvia o Sr. Zaturecky com uma eloquência amistosa na qual não passaria despercebida uma marca de simpatia por ele.
Logo que essa carta foi posta na caixa do correio, esqueci o Sr. Zaturecky. Mas o Sr. Zaturecky não me esqueceu.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

Os elementos do estilo

Leio no matutino El País, de Montevidéu, uma boa crítica, ou melhor, resenha, do livro de William Strunk Jr., The Elements of Style, com revisão, introdução e capítulo adicional de E. B. White, editado por MacMillan em Nova York no ano curso. Um opúsculo de 84 páginas, aparentemente cheio de saber. À guisa de apresentação do autor, conta o crítico de El País que a parte de substância do livro já estava escrita por William Strunk Jr. desde 1918, quando era professor de altos estudos da língua inglesa, sendo E. B. White, então, aluno seu. Há dois anos, já morto o mestre em 1946, recebeu White - que crescera em renome como contista, ensaísta, poeta e repórter dessa excelente revista americana que é o New Yorker - um exemplar do livrinho, de que nunca mais soubera, o que fê-lo escrever um nostálgico in memoriam para a sua publicação. A onda que fez o artigo foi colhida pelo receptor de MacMillan, e é este o resumo da ópera.
A dar crédito ao crítico de El País, o livro representa, para o escritor em língua inglesa, e mesmo nas demais, uma bengala de indisfarçável utilidade, sobretudo num momento climáxico de atividade editorial, como o que vivemos. E eis como situa ele, ao isolar num parágrafo o módulo do pensamento de Strunk:
A prosa vigorosa é concisa. Uma frase não deve conter palavras desnecessárias, nem um parágrafo frases desnecessárias, pela mesma razão que um desenho não deve ter linhas desnecessárias, nem uma máquina partes desnecessárias. Isto não quer dizer que um escritor faça breves todas as suas frases, nem que evite todo detalhe, nem que trate seus temas apenas na superfície; apenas que cada palavra conta.
Para Strunk (atenção, “focas”, pois a linguagem jornalística é especialmente mencionada na obra!), os preceitos de um bom estilo podem resumir-se no seguinte:

1. Use uma linguagem positiva: em vez de “habitualmente não chegava à hora”, diga “habitualmente chegava tarde”; em lugar de “não recordou” diga “esqueceu” - e isso porque, consciente ou inconscientemente, o leitor prefere que se diga o que é a o que não é.
2. Seja concreto: “Sobreveio um período de tempo desfavorável” constitui uma vagueza. “Choveu diariamente uma semana” seria a boa fórmula.
3. Abrevie o mais que puder: escrever “atos de natureza hostil” é alongar de dois centímetros “atos hostis”.
4. Não qualifique: sempre que não se tratar de estabelecer uma opinião, a qualificação prévia é desnecessária. Dizer que é “interessante” o fato que se vai narrar, é pichar o leitor de inimaginativo.
5. Não use adornos: o estilo não é um molho para temperar uma salada; o estilo deve estar na própria salada.
6. Coloque-se atrás do que escreve: escreva de tal forma que a atenção do leitor seja despertada sobretudo pelo sentido e pela substância do que está dito, e não pelo temperamento e pelos modismos do autor. O primeiro conselho a dar ao escritor que começa seria, pois: para chegar a um estilo, comece por não ter nenhum.
7. Use substantivos e verbos: evite o mais possível adjetivos e advérbios. Não há adjetivo no mundo que possa estimular um substantivo exangue ou inadequado; isto sem subestimar adjetivos e advérbios, quando corretamente empregados. Mas a verdade é que são os nomes e os verbos que dão sal e cor ao estilo.
8. Não superescreva (significando aqui, don't overwrite): a prosa excessivamente rica, adornada ou gorda torna-se mais facilmente nauseante.
9. Não exagere e seja claro: primeiramente, porque o exagero pode tornar o leitor suspicaz; e a clareza, é lógico, facilita a comunicação. Mais vale recomeçar uma frase longa com que se está brigando, que persistir na briga. Frequentemente uma frase longa nada mais é que duas curtas.
10. Não opine sem razão: ter por hábito ventilar opiniões próprias é prejulgar que o leitor as esteja pedindo, o que constitui um sinal de vaidade.

É isto em resumo. Há mais. Mas não espaço. E depois, é como diz o outro: se todos fossem da mesma opinião, o que seria da cor amarela? (Sendo que, neste caso, até que eu “entrava bem”, pois trata-se da minha cor preferida...). Mas pobre Proust, pobre Dickens, pobre Balzac, pobre Melville, pobre Otávio de Faria…
Vinicius de Moraes, in Prosa

Os estágios: do Mundo comum aos Aliados

Estágio 1 — O mundo comum

Toda abertura de história, seja ela um mito, um conto, um roteiro ou um romance, tem que conter certa força, certa carga. Tem que agarrar o leitor ou telespectador; é no início que se dá o tom da história, onde se sugere para onde se vai, além de se transmitir muitas informações sem que se perca o ritmo. Vogler afirma — e isso, quem escreve sabe — que os começos são realmente bastante delicados.
Um título pode ser uma boa pista para anunciar a natureza da história e a atitude do escritor. Um bom título pode virar uma metáfora de vários níveis para o herói ou para seu mundo.
A maioria das histórias são viagens que transportam os heróis e plateias para mundos especiais, assim sendo, a maioria delas se inicia estabelecendo um mundo comum como base para comparação.
O mundo especial de qualquer história, afirma Vogler, só é especial se houver a possibilidade de ser contrastado a um outro, cotidiano e “normal”, com as questões corriqueiras, das quais o herói será retirado.
O mundo comum é o contexto, a base, o passado do personagem protagonista.
Comparado com o especial, o mundo comum pode se apresentar chato ou calmo, mas geralmente as sementes das emoções e dos desafios já se encontram nele. Os problemas e os conflitos do herói já estão presentes no mundo comum, mas só estão esperando ser ativados.
Outra grande função do mundo comum, segundo Vogler, é sugerir a questão dramática da narrativa. Toda boa história suscita uma série de questões sobre o herói. “Será que ele vai atingir seu objetivo?”, “Superar seu defeito?”, “Aprender a lição que precisa?”

Todo herói necessita de um problema interno e outro externo.

Personagens que não têm problemas internos podem parecer superficiais, não importa o quão heroico sejam. Para evitar isso, é necessário que esses personagens tenham um problema íntimo, uma falha de personalidade, ou mesmo um dilema moral, para que ele seja mais interessante e intrigante frente ao leitor ou telespectador.
Os heróis precisam aprender algo no decorrer da história, seja conviver com os outros, como acreditar em si mesmos, ou enxergar além das aparências.
Vogler crava que o público adora quando um personagem aprende, cresce e enfrenta os desafios internos e externos da vida.
Na tarefa de escritores, podemos criar, para nossos personagens, uma boa entrada em cena. O que os personagens estarão, dizendo, sentindo? Qual o contexto nesse momento? Eles estão em paz, ou atormentados? Estão eles no auge de sua capacidade emocional ou se segurando para não explodir?
Para Vogler, um dos mágicos poderes da escrita é a capacidade de seduzir cada leitor, para que cada um projete uma parte de seu ego no personagem que se encontra na página.
Ele incentiva a criação de identificação, dando ao herói objetivos, impulsos, desejos e necessidades universais. Todos são capazes de se relacionar com impulsos fundamentais, como necessidade de reconhecimento, afeição, aceitação ou compreensão.
A identificação com necessidades universais estabelece um vínculo entre plateia e herói.
Os heróis de contos de fadas têm algo em comum, uma qualidade que os une acima das fronteiras de cultura, geografia e tempo: têm carência de algo que lhes foi tirado, algo perdido, e que se necessita urgente ter de volta.
Por vezes, a vida externa do herói pode ser completa, mas lhe falta alguma coisa na personalidade, uma qualidade, como a compaixão, a capacidade de perdoar ou de manifestar amor.
A tragédia grega, teorizada por Aristóteles há mais de 2 mil anos, descreve um erro comum dos heróis trágicos: eles podem ter muitas qualidades dignas de admiração, mas, no meio delas, há uma falha trágica, que os coloca em confronto direto com o seu destino pessoal, com outros homens, e com os deuses. Isso acaba por levá-los à destruição.
Vogler afirma que todo herói bem construído e “redondo” tem em si vestígios dessa falha trágica, alguma fraqueza ou defeito que o faz completamente humano e real frente aos que o leem ou assistem.
Os heróis perfeitos ou muito “limpos” não são muito interessantes, e é difícil se relacionar com eles.
Até mesmo o Super-Homem tem seus pontos fracos que o humanizam e o tornam simpático, como a sua vulnerabilidade à kryptonita, a incapacidade de enxergar através do chumbo, e a sua identidade secreta, a toda hora sendo ameaçada.
Vogler afirma que, para se poder humanizar um herói, dê a ele uma ferida, um machucado visível e físico, ou um ferimento profundo e emotivo.
A ferida ajuda a dar ao personagem um sentido de história pessoal e de realismo, sendo que todos nós trazemos cicatrizes de dores passadas, rejeições, desapontamentos, abandonos e fracassos.
Muitas narrativas têm como tema a jornada que se percorre com o intuito de curar uma ferida e restaurar a peça que faltava num psiquismo deficiente.
O tema da história é uma afirmativa, uma certeza sobre um aspecto da vida.

Christopher Vogler, in A jornada do escritor

La creación

A mulher e o homem sonhavam que Deus os estava sonhando. Deus sonhava enquanto cantava e agitava suas maracas, envolto em fumaça de tabaco, e se sentia feliz e também estremecido pela dúvida e o mistério.
Os índios Makiritare sabem que se Deus sonha com comida, frutifica e dá de comer. Se Deus sonha com a vida, nasce e dá nascimento.
A mulher e o homem sonhavam que no sonho de Deus aparecia um grande ovo brilhante. Dentro do ovo, eles cantavam e dançavam e faziam muito alvoroço, porque estavam loucos de vontade de nascer. Sonhavam que no sonho de Deus a alegria era mais forte que a dúvida e o mistério; e Deus, sonhando criava, e cantando dizia:
Quebro este ovo e nasce a mulher e nasce o homem. E juntos viverão e morrerão. Mas nascerão novamente. Nascerão e voltarão a morrer, e outra vez nascerão. E nunca deixarão de nascer, porque a morte é mentira.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

Receita para uma guerra civil

É possível identificar no momento atual do Brasil alguns ingredientes necessários para o desastre

Quando a guerra civil começou em Angola, em 1975, eu tinha 15 anos. Vivi aqueles dias com mais euforia do que inquietação. Acreditava, como a maioria dos angolanos, que a guerra era um episódio terrível, mas que depressa passaria, e que depois disso viveríamos dias luminosos num país independente e mais justo.
Lembro-me que dançávamos enquanto os morteiros explodiam, e balas tracejantes riscavam as noites. Os jovens militantes dos diferentes movimentos saíam das festas para fazer a guerra e voltavam ao amanhecer para terminar as cervejas, como se os combates fizessem parte da folia.
Logo a euforia acabou, mas os tiros não. Finalmente, a 22 de fevereiro de 2002, o líder da guerrilha, Jonas Savimbi, foi morto em combate. A bala que o matou foi a última a ser disparada. Contudo, já Angola estava destruída.
Não consigo imaginar pior tragédia para um país do que uma guerra civil. Uma guerra civil começa antes que alguém dispare o primeiro tiro, e as suas consequências prolongam-se décadas para além do último morto.
A receita para uma guerra civil exige, em primeiro lugar, a criação de uma cultura de exclusão. Regra geral, os movimentos em confronto não defendem posições novas. A novidade é a agressividade com que as defendem e a convicção de que não existe conciliação possível entre os diferentes projetos.
Amigos de toda uma vida zangam-se. Famílias separam-se. As mães proíbem os filhos de conversar sobre política à hora das refeições. Emergem líderes messiânicos, com um discurso de ódio, eventualmente exibindo armas de fogo, enquanto exploram velhos rancores partidários e fraturas sociais.
Logo surgem os primeiros assassinatos e atentados com motivação política. O Estado vai-se esboroando e perdendo terreno.
Muitas vezes, a cultura de exclusão, que serve de gatilho à guerra, é importada, obedecendo a interesses ou estratégias de outros países. Foi o que aconteceu em Angola, com os Estados Unidos e a União Soviética a combaterem no terreno através não só dos movimentos angolanos, mas também de tropas sul-africanas, cubanas e zairenses, bem como de mercenários portugueses, ingleses e americanos.
No limite, uma guerra civil pode destruir completamente um país, apagando-o dos mapas, como aconteceu com a Iugoslávia. Viajando pela Sérvia ou pela Croácia anda é possível encontrar pessoas que continuam a reconhecer-se como iugoslavos: “Antes de a guerra começar”, disse-me um desses órfãos, “eu nem sequer sabia que a minha família era sérvia ou que os meus vizinhos eram muçulmanos. Éramos todos iugoslavos, falávamos a mesma língua e tínhamos um destino comum”.
É possível identificar no momento que se vive hoje no Brasil alguns dos ingredientes necessários para o desastre. Em épocas assim, a primeira vítima costuma ser o bom senso.
Quero acreditar, porém, que ainda exista espaço para um diálogo o mais aberto possível, de forma a permitir a convergência de todas as forças políticas e da sociedade civil que defendam a paz e a democracia. Ao longo das próximas semanas assistiremos a um combate entre construtores de pontes e construtores de muros. Pobre Brasil se os construtores de muros ganharem.
O Brasil, um país amado no mundo inteiro pela sua cultura, pela sua alegria e generosidade, não pode permitir que o ódio se alastre e triunfe.
José Eduardo Agualusa, in O Globo, 12.10.2018

Por que escrevo (excertos)

“…acho que não se pode avaliar o que move um escritor sem uma noção de seu desenvolvimento inicial. O assunto será determinado pela época em que ele vive — isso é verdade ao menos em épocas tumultuosas e revolucionárias como a nossa — , mas antes de começar a escrever ele já terá adquirido uma atitude emocional da qual jamais se livrará de todo.
A tarefa é, sem dúvida, disciplinar o temperamento e evitar ficar empacado em alguma etapa imatura ou em algum estado de ânimo perverso: mas, se se livrar completamente das influências iniciais, terá aniquilado o impulso para escrever.
Pondo de lado a necessidade da subsistência, creio que há quatro grandes motivos para escrever, ao menos para escrever prosa. Eles existem em diferentes graus em cada escritor, e num dado escritor as proporções variarão de quando em quando, conforme a atmosfera em que ele vive.”
São eles:
1 — Puro egoísmo.
O desejo de ser engenhoso, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, de se desforrar de adultos que o desdenharam na infância e por aí afora. É uma falsidade fazer de conta que este não é um motivo, e um motivo forte. Escritores compartilham esta característica com cientistas, artistas, políticos, advogados, soldados, homens de negócios bem-sucedidos — em suma, toda a camada superior da humanidade.
A grande massa de seres humanos não tem um egoísmo agudo. Mais ou menos depois dos trinta, abandonam a ambição individual — em muitos casos, de fato, quase abandonam inteiramente a noção de serem indivíduos — e vivem sobretudo para os outros, ou simplesmente se deixam sufocar pelo trabalho enfadonho. Mas também existe a minoria de pessoas talentosas e obstinadas decididas a viver a vida até o fim, e os escritores pertencem a essa classe. Devo dizer que escritores sérios são, de modo geral, mais vaidosos e egocêntricos do que jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2. Entusiasmo estético. A percepção da beleza no mundo externo ou, de outro lado, nas palavras e em seu arranjo correto. Prazer no impacto de um som sobre outro, na firmeza de uma boa prosa ou no ritmo de uma boa história. O desejo de compartilhar uma experiência é valioso e não se deve deixar escapar. O motivo estético é muito débil numa porção de escritores, mas mesmo um panfleteiro ou um escritor de livros didáticos terá palavras e frases prediletas que lhe agradam por razões não utilitárias; ou terá preferências por tipografia, largura de margens e assim por diante. Acima do nível de um guia ferroviário, nenhum livro está inteiramente isento de considerações estéticas.
3. Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como elas são, de encontrar fatos verídicos e guardá-los para o uso da posteridade.
4. Propósito político — a palavra “político” entendida aqui em seu sentido mais amplo. O desejo de lançar o mundo em determinada direção, de mudar as idéias das pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se esforçar para alcançar. Também neste caso ninguém está verdadeiramente isento de tendências políticas. A opinião de que arte não deveria ter a ver com política é em si mesma uma atitude política.”
Pode-se perceber como esses diferentes impulsos são antagônicos e variam de pessoa para pessoa, de época para época. Por natureza — considerando “natureza” o estado a que se chega quando se fica adulto — , sou uma pessoa para quem os três primeiros têm mais importância do que o quarto. Numa época de paz, poderia ter escrito livros floreados ou meramente descritivos e ficado quase alheio a minhas lealdades políticas.”
(…)
O que mais desejei fazer nos últimos dez anos foi transformar escrita política em arte. Meu ponto de partida é sempre um sentimento de proselitismo, uma sensação de injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo: Vou produzir uma obra de arte”.
Escrevo porque existe uma mentira que pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção, e minha preocupação inicial é atingir um público. Mas não conseguiria escrever um livro, nem um longo artigo para uma revista, se não fosse também uma experiência estética.
Quem se dispuser a examinar meu trabalho perceberá que, mesmo quando é uma clara propaganda, contém muito do que um político de tempo integral consideraria irrelevante. Não sou capaz de abandonar por completo a visão de mundo que adquiri na infância, nem quero.
Enquanto viver e estiver com saúde, continuarei a ter um forte apego ao estilo da prosa, a amar a superfície da Terra, a sentir prazer com objetos sólidos e fragmentos de informações inúteis. De nada adianta tentar reprimir esse meu lado. O trabalho é conciliar os gostos e os desgostos arraigados com as atividades essencialmente públicas, não individuais, que esta época impõe a todos nós.”
(…)
De qualquer maneira, creio que na hora em que aperfeiçoamos um estilo de escrita sempre o superamos. A revolução dos bichos foi o primeiro livro em que tentei, com plena consciência do que fazia, amalgamar os propósitos político e artístico. Faz sete anos que não escrevo um romance, mas espero escrever outro muito em breve.
Será fatalmente um fracasso, todo livro é um fracasso, porém tenho uma clara noção do tipo de livro que pretendo escrever.”
(…)
Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa. Ninguém jamais se incumbiria de tal coisa se não fosse impelido por um demônio ao qual não se pode resistir nem entender.
Porque todo mundo sabe que esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê chamar a atenção aos berros. E no entanto também é verdadeiro que é impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade.
A boa prosa é como uma vidraça. Não sei dizer com certeza qual de meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido. E, ao reexaminar minha obra, percebo que foi sempre onde me faltou um propósito político que escrevi livros sem vida e fui induzido a escrever passagens floreadas, frases sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, falsidades.”
George Orwell, in Dentro da Baleia

A morte do escriba

Da escolha exclui a parte,
molda-se o escriba:
sua pele, sua carne
sua margem, sua saliva

e todo tijolo é medido,
a argamassa, pesada,
como se embala o filho
como se constrói a casa

o trabalho findado,
morre com ele o escriba,
renasce então o lastro:
o homem e sua lida;

em tudo comum essa vida
a imagem é o mundo,
o homem que se aproxima
como todo homem, em tudo,

sem maior saber exato
que não o ofício aprendido
sem nenhum poder inato
ou inspiração ou espírito

e se não há saber concreto
e a divisão do pouco
só resulta desafeto,
não há saber no morto,

é apenas mais um corpo
de arquitetura igual
sem potência se solto
onipotente se multidão;

e quando inicia a escrita
no papel renascido
então o escriba respira
silente, sem aplauso, sozinho,

e se corpo, cala o indivíduo,
fala como fala o coletivo,
se escriba, fala o escrito,
fala como morto e redivivo.
Yuri Pires

Capítulo 123 - O Verdadeiro Cotrim

Não obstante os meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a harmonia da família, entendi não tratar o casamento sem primeiro falar ao Cotrim. Ele ouviu-me e respondeu-me seriamente que não tinha opinião em negócio de parentes seus. Podiam supor-lhe algum interesse, se acaso louvas-se as raras prendas de Nhá-loló; por isso calava-se. Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paixão, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria negativo. Não era levado por nenhum ódio; apreciava as minhas boas qualidades, - não se fartava de as elogiar, como era de justiça; e pelo que respeita a Nhã-loló, não chegaria jamais a negar que era noiva excelente; mas daí a aconselhar o casamento ia um abismo.
- Lavo inteiramente as mãos, concluiu ele.
- Mas você achava outro dia que eu devia casar quanto antes...
- Isso é outro negócio. Acho que é indispensável casar, principalmente tendo ambições políticas. Saiba que na política o celibato é uma remora. Agora, quanto à noiva, não posso ter voto, não quero, não devo, não é de minha honra. Parece-me que Sabina foi além, fazendo-lhe certas confidências, segundo me disse; mas em todo caso ela não é tia carnal de Nhã-loló, como eu. Olhe... mas não... não digo...
- Diga.
- Não, não digo nada.
Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit.
Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.
A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que ele fora juiz), mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava, - sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a ninguém.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas