domingo, 30 de junho de 2019
O elogio da amizade
Voltamos
ao jardim público para examinar as duplas de moças sentadas nos
bancos, mas, quando uma era bonita, o que acontecia algumas vezes, a
vizinha não era.
— É
uma estranha lei da natureza — disse eu a Martin. — As mulheres
feias esperam se aproveitar do brilho de suas amigas mais bonitas, e
estas esperam brilhar com maior intensidade em contraste com a
feiura; para nós isso significa que nossa amizade é submetida a
constantes provas. E fico muito orgulhoso por nunca deixarmos a sorte
ou o espírito de competição decidir por nós. Entre nós a escolha
é sempre uma questão de cortesia. Cada um oferece ao outro a moça
mais bonita, e nisso parecemos dois senhores antiquados que não
conseguem entrar numa sala, por não poderem admitir que um passe na
frente do outro.
— É
— respondeu Martin comovido e enternecido. — Você é um amigo de
verdade. Vamos sentar um pouco. Estou com dor nas pernas.
E
fomos nos sentar, o corpo gostosamente inclinado para trás, com o
sol batendo bem na cara, deixando, por alguns minutos, sem
preocupação, o mundo seguir seu curso ao nosso redor.
Milan
Kundera, in Risíveis Amores
Amanhã
Amanhã,
ilusão doce e fagueira,
Linda rosa molhada pelo orvalho:
Amanhã, findarei o meu trabalho,
Amanhã, muito cedo, irei à feira.
Linda rosa molhada pelo orvalho:
Amanhã, findarei o meu trabalho,
Amanhã, muito cedo, irei à feira.
Desta
forma, na vida passageira,
Como aquele que vive do baralho,
Um espera a melhora no agasalho
E outro, a cura feliz de uma cegueira.
Como aquele que vive do baralho,
Um espera a melhora no agasalho
E outro, a cura feliz de uma cegueira.
Com
o belo amanhã que ilude a gente,
Cada qual anda alegre e sorridente,
Como quem vai atrás de um talismã.
Cada qual anda alegre e sorridente,
Como quem vai atrás de um talismã.
Com
o peito repleto de esperança,
Porém, nunca nós temos a lembrança
De que a morte também chega amanhã.
Porém, nunca nós temos a lembrança
De que a morte também chega amanhã.
Patativa
do Assaré
Capítulo 112 - A opinião
Mas
estava escrito que esse dia devia ser o dos lances dúbios. Poucas
horas depois, encontrava-me eu com o Lobo Neves, na rua do Ouvidor; e
falamos da presidência e da política. Ele aproveitou o primeiro
conhecido que nos passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos
cumprimentos. Lembra-me que estava retraído, mas de um retraimento
que forcejava por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à
critica, se este meu juízo for temerário!) pareceu-me que ele tinha
medo - não medo de mim, nem de si, nem do código, nem da
consciência; tinha medo da opinião. Supus que esse tribunal anônimo
e invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite posto à
vontade do Lobo Neves. Talvez que ele já não amasse a mulher; e,
assim, pode ser que o coração fosse estranho à indulgência dos
seus últimos atos. Cuido (e de novo insto pela boa vontade da
crítica!) cuido que ele estaria pronto a separar-se da mulher, como
o leitor se terá separado de muitas relações pessoais; mas a
opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por todas as ruas,
que abriria minucioso inquérito acerca do caso, que coligiria uma a
uma todas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que
as relataria na palestra das chácaras desocupadas, essa terrível
opinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família.
Ao mesmo tempo tornou impossível o desforço que seria a divulgação.
Ele não podia mostrar-se ressentido comigo, sem igualmente buscar a
separação conjugal; e teve então de simular a mesma ignorância de
outrora, e, por dedução, iguais sentimentos.
Que
lhe custasse creio; naqueles dias, principalmente, vi-o de modo que
devia custar-lhe muito. Mas o tempo (e é outro ponto em que eu
espero a indulgência dos homens pensadores!), o tempo caleja a
sensibilidade, e oblitera a memória das coisas; era de supor que os
anos lhe despontassem os espinhos, que a distância dos fatos
apagasse os respectivos contornos, que uma sombra de dúvida
retrospectiva cobrisse a nudez da realidade; enfim, que a opinião se
ocupasse um pouco com outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria
satisfazer as ambições do pai; seria o herdeiro de todos os seus
afetos.
Isso,
e a atividade externa, e o prestígio público, e a velhice depois, a
doença, o declínio, a morte, um responso, uma notícia biográfica,
e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma página de sangue.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
sábado, 29 de junho de 2019
O vento
O
único da casa que enxerga o vento é o cachorro.
Detém-se
à porta da cozinha, rosnando para o pátio ventado, cheio de latas
inquietas e papéis decididamente malucos.
E
nos seus olhos fixos e rancorosos vê-se o desvario do vento, a
incurabilidade do vento, os seus cabelos em corrupio, os seus braços
que parecem mil, os seus trapos flutuantes de espantalho, toda aquela
agitação sem causa e que é ainda menos instável, no entretanto,
que a terrível desordem da sua cabeça: pois o vento nunca pode
assentar as ideias…
Mário
Quintana, in Sapato florido
Da mentira e da verdade
“Muito
tempo há que a mentira se tem posto em pés de verdade, ficando a
verdade sem pés e com dobradas forças a mentira; e é força que,
sustentando-se em pés alheios, ande no mundo a mentira muito de
cavalo; e se houve filósofo que com uma tocha numa mão buscava na
luz do meio-dia um sábio, hoje, por mais que se multipliquem luzes
às do Sol, não se descobrirá um afeto verdadeiro. Buscava-se então
a ciência com uma vela, hoje pode-se buscar a verdade com a candeia
na mão, que apenas se acha nos últimos paroxismos da vida.”
Padre
Antônio Vieira, in As sete
propriedades da alma
Sanguinho novo no vestido amarelo
Cedo,
uma manhã, Leslie e Winifred vieram buscar Nando na camioneta que
haviam alugado.
— É
indispensável — disse Leslie — que você venha visitar conosco o
Engenho de Nossa Senhora do O. É uma coisa que você não conhece.
Vocês, aliás, aí no mosteiro. Não sei como d. Anselmo pode
despender tanta e tão boa energia desobstruindo túneis quando nos
campos em torno nasce um mundo inteiro sem qualquer intervenção da
Santa Madre Igreja.
— A
Igreja, em primeiro lugar, se empenha no seu parto permanente —
disse Nando.
Era
difícil conversar na camioneta em marcha. Os bárbaros, foi pensando
Nando, pensam que fazem, fazem e pronto. As ideias em aventura pela
história crescem lentas. Tranquilas batatas grelando na terra escura
e fresca. Primeiro, maior nação latina. Segundo, maior nação
católica. Terceiro, única nação que ainda possui inocentes
recriados sine labe originale. Imperium Sine Fine aqui.
Augusto-Montoya e Cristo. Batata.
— Vamos
conversar com os foreiros
— disse
Leslie ao chegarem. — Eu vou à casa da mocinha, a Maria do Egito —
disse Winifred. — Vê se não sermoniza o Nando demais.
Leslie
despediu Winifred com um gesto impaciente.
— Venha
comigo, Nando — disse ele. — O desamparo não é apenas social. É
religioso também. Você não encontra um padre aqui, preocupado com
essa gente. Os doentes em geral morrem sem extrema-unção. Ou morrem
de sair da cama para irem em busca de padre que lhes dê a
extrema-unção.
— Mas
o engenho tem sua capela — disse Nando apontando-a. — Há três
anos sem padre — disse Leslie.
— E
sem nenhuma lei. Essa gente, a quem nem o Estado nem a Igreja jamais
deram coisa alguma, está sendo trabalhada pela Sociedade Agrícola e
Pecuária dos Plantadores, que é em grande parte obra de Januário.
A Sociedade os arregimentou para apoiarem com um desfile a
candidatura de um prefeito que promete socorrer os camponeses. Pois
os camponeses desceram e foram dispersos aos trancos e coronhadas
pela polícia. Voltaram para suas casas, meio tontos de medo e de
pancada, mas a polícia insistiu na perseguição, veio mais tarde
varejar as choupanas, prendendo os mais valentes, os mais dignos.
Prendendo e de novo batendo. Os jornais deram três linhas ao caso.
Leslie
acenou para um camponês.
— Lázaro,
venha cá.
— Sim,
seu Lelo — disse Lázaro.
— Conta
aqui ao padre Nando, lá do mosteiro, como é que te trataram na
polícia.
— Ah,
eu guardei a cara do sargento que me cuspiu em cima. Aquele eu corto
de peixeira um dia. Os que me bateram ainda vai. Mas foi por nada,
seu padre. Eu sou homem temente a Deus e nunca tinha tido
conhecimento de polícia. Mas o sargento me cuspiu. Feito eu fosse
uma poça d’água na rua que a gente cospe assim de desafogo, pra
ver se acerta. Eu corto ele, seu padre.
— Você
não deve lutar com as mesmas armas — disse Nando. — Lute pelos
seus direitos mas perdoe quem lhe ofendeu pessoalmente.
Impaciente,
vermelho, pronunciando os nomes de qualquer jeito Leslie demonstrava
conhecimento íntimo da situação.
— Conta
aqui ao padre Nando, Nequinho — disse Leslie —, a história da
desonra de tua filha pelo capataz.
— Eu
conto mas Jesus Cristo já me falou. Já me esclareceu para corrigir
os malfeitos. Bença, padre.
— Deus
te abençoe — disse Nando. — Desgraçaram tua menina?
— Quase
na cara da gente. Aquele porco. Não tinha dez braças da casa de
farinha. Houve até quem escutou um grito da menina antes dele tapar
a boca dela. Grito pertinho. E depois a gente ainda ouvia o galope do
cavalo dele quando Maria do Egito já estava na porta de casa toda
molhada de lágrima e com o sanguinho ainda quente no vestido dela.
Nando
fez o sinal da cruz, num momento de genuíno horror.
— Que
Deus perdoe este monstro. Você deu parte dele, Nequinho?
— Deu
— disse Leslie — mas ainda não aconteceu coisa nenhuma. O
capataz é o braço direito do senhor de engenho, que deve ter achado
a história compreensível, até corriqueira. E são os dois que
chamam a polícia para prender os que se filiaram à Sociedade dos
Plantadores e quiseram prestigiar com sua passeata o candidato
esquerdista. E só prestigiar, porque votar não podem, pela lei
brasileira. Você sabe ler e escrever, Nequinho?
— Sei
não senhor — disse Nequinho. — Mas sei ouvir. E o Senhor me
falou.
— É
preciso estudar os meios, Nando, de efetivamente informar o Estado e
o país do que acontece nesses engenhos.
— Sem
dúvida — disse Nando — e tenho certeza de que as reportagens que
você e Winifred vão fazer terão a maior repercussão.
— Mas
vocês, brasileiros, é que precisam fazer alguma coisa a respeito —
disse Leslie. — Que é que vocês vão fazer?
Que
chatos, Senhor, esses estrangeiros com sua eterna pergunta! Fazer o
quê? Primeiro as bases espirituais, a correção de erros
históricos. Fazer, fazer! Objetividade. Índio-minério. Y en
toda la villa de San Pablo no habrá más de uno a dos que no vayan a
cautivar índios con tanta libertad como se fuera minas de oro y
plata. Haciendo vidas de brutos sin acordarse de sus casas y de sus
mujeres legítimas.
— É
essa a moça? — disse Nando ao chegar com Leslie à choupana de
Nequinho.
— Sim
— disse Winifred. — Pobrezinha.
— Só
mesmo a morte desse homem poderia consolar uma família humilhada e
ofendida assim — disse Leslie. — É incrível que isto aconteça
em nossos dias.
— O
pior — disse Winifred — é que o Nequinho parece que ficou meio
doido. Diz coisas terríveis à filha.
Cada
uma sentada no seu banco ao pé da mesa tosca, mãe e filha estavam
mudas. As outras crianças de Nequinho brincavam pelos cantos, mas
mãe e filha tinham sido visitadas pela tragédia. Estavam de nojo.
— Deus
que ajude a gente, seu padre — disse a mãe a Nando. — Só mesmo
Deus Nosso Senhor. O pai de Maria do Egito não fala mais com sua
filha.
— Não
fala com a moça por quê? — disse Leslie.
— Vai
aguardar até a lua trazer o sangue natural de Maria do Egito —
disse a velha. — Falou que se a semente do capataz Belmiro tiver
barrado o sangue dela ele mata Maria do Egito e o capataz Belmiro.
— Eu
vou conversar com seu pai, minha filha — disse Nando a Maria do
Egito.
A
menina meneou afirmativamente a cabeça. Abúlica. Teria uns
dezesseis anos, pensou Nando. Negro cabelo espichado de índia. Em
pouco estaria desbotada, baia como as caboclas mais velhas. Como
estava agora ainda podia ter sido mãe de heróis nos Povos de João
Batista, Nicolau, Luís Gonzaga, Lourenço, Miguel, Borja e Ângelo.
Nequinho
assomou à porta. Nando travou do braço dele e o foi levando para
fora, seguido de Leslie.
— Você
sabe, Nequinho, que nem em todo o resto da vida dela tua filha Maria
vai precisar mais de você do que agora? — disse Nando.
— Deus
já me falou o que é que eu tenho que obrar no caso de Maria do
Egito — disse Nequinho. — Ele me falou na noite do estupro dela.
— E
o que foi que Deus te disse?
— Ele
falou: se a sustância que o Belmiro deixou no ventre da Maria
começar a virar gente tu sacrifica o Belmiro e a sucessão do
Belmiro no ventre da Maria. Tenho que matar a filha e o genro que o
diabo me mandou.
— Deus
não pode ter dado um conselho criminoso a você — disse Nando. —
Foi sua própria e justa cólera contra Belmiro que falou, Deus já
sabe se Maria do Egito vai ou não vai ficar grávida de Belmiro. E
se ela ficar, cumpra-se a vontade de Deus.
— Deus
não pode ter essa vontade não senhor, com seu perdão e sua bênção
— disse Nequinho. — E foi a voz dele que me falou.
— Pois
Deus me mandou aqui hoje — disse Nando — para desfazer essa
medonha intriga do demônio. Se Maria do Egito tiver filho, o filho
será do mosteiro. Nós mesmos criamos a criança se for menino e
daremos a criança às freiras se for menina.
Nequinho
abaixou a cabeça.
— Não
tinha dez braças da casa de farinha — disse Nequinho. — Pra todo
o mundo conhecer o fato. Sanguinho novo no vestido amarelo. Mais
dois, três dias a gente sabe se Deus perdoou. É tempo do outro
sangue.
— Pois
então você não está vendo — disse Nando — que Deus não ia
querer que você matasse sua própria filha, e filha que está
sofrendo tanto?
— Então
por que é que ele me falou? — disse Nequinho.
— Deus
não manda matar, manda amar, manda perdoar. Você não vê que não
pode ter sido a voz de Deus? Deus mandou Abraão sacrificar o filho
dele, mas susteve o braço de Abraão. Deus queria apenas
experimentar a fé de Abraão — disse Nando.
— Se
o Senhor travar do meu braço eu também não sacrifico Maria do
Egito — disse Nequinho. — Até antes disso eu posso ter o sinal.
Se Deus derramar o sangue do ventre dela na lua certa está falado
comigo.
Nando
ficou um instante atônito.
— Nequinho,
eu compreendo teu sofrimento de pai e esta loucura que o sofrimento
te dá. Mas Deus disse “Não matarás!”. Se matares tem prisão
dos homens e tem inferno de Deus.
Nequinho
olhou Nando longamente.
— Com
sua bênção e com sua permissão — disse Nequinho. — É a
primeira vez que seu padre vem por estas bandas, não é?
— Sim
— disse Nando.
Nequinho
virou as costas e foi andando. Leslie botou a mão no ombro de Nando.
— Eles
se habituaram a falar diretamente com Deus — disse Leslie. — Sem
intermediários.
Winifred
se acercou. Vinha com ela, e parou ao seu lado, um camponês
cabisbaixo, chapéu de palha de carnaúba enterrado até os
sobrolhos.
— Vamos
embora, minha gente. Estou cansada. Quedê a chave da camioneta?
Leslie
não gostou da interrupção.
— Calma
— disse. — Cansados estamos todos. O que é que deu em você,
Winifred?
Mas
ao fitar a mulher que se limitou a mover os olhos na direção do
camponês, Leslie compreendeu.
— Bem,
é melhor a gente ir mesmo. Basta a cada dia o mal que nele se
contém. O cabra aí quer carona, não quer?
— Quer
sim. E ele está bem no nosso caminho.
Foram
andando na direção do carro e Nando disse:
— Antes
de mais nada vamos à polícia. Esse tal Belmiro precisa ser preso
sem perda de tempo. Se houver um mínimo de justiça é provável que
Nequinho abandone sua terrível obstinação.
Em
voz baixa, que só mesmo as pessoas ao seu redor podiam ouvir, mas
carregada de paixão, o camponês que chegara com Winifred falou:
— À
polícia já fui. Levei o advogado da nossa Sociedade. Já tentei até
prender com minhas próprias mãos esse monstro, Belmiro, mas o dr.
Beltrão deu “férias” ao capataz. Diz que não sabe para onde
ele foi. O caso parou na estaca zero.
Nando
tinha começado a se voltar com assombro para o camponês mas Leslie
lhe apertou o braço. Olhando melhor, Nando reconheceu Januário sob
o disfarce. Entraram na camioneta, Nando e Januário no banco de
trás, Leslie e Winifred na frente. Quando o carro deu a partida
Januário disse:
— Belmiro
eles não prendem, mas a mim prendem por “agitação” se me
encontram no Senhora do O. Os canalhas! A gente tem de acabar
derrubando tudo isto na marra, como quer o Levindo.
Januário
tirou o chapéu de palha. Seu rosto pequeno mas de traços bem
acentuados parecia cortado em pedra. Amassada pelo chapéu, até a
cabeleira de Januário, em geral esvoaçante, achatara-se contra a
cabeça em cachos metálicos, feito um capacete. As costeletas do
cabelo vinham morrer em cima de masseteres tão contraídos que
tornavam quadrada a cara. Nando se lembrou com um arrepio da arma de
Hosana. Januário parecia prestes a detonar a qualquer momento.
— Há
outros meios — disse Nando.
— O
engraçado é que quando se fala em violência no Brasil é como se a
gente pudesse decidir contra ou a favor da violência quando a
verdade é como diz o Levindo: eles escolheram a violência há muito
tempo. A violência de Belmiro não é dele só. A violência contra
mim é do sistema inteiro.
— O
mal da violência — disse Leslie — é que depois há tudo a
refazer. E a gente corre o risco de vencer sem convencer. Aliás,
quem mais pode ajudar uma reforma não violenta no campo brasileiro é
a Igreja.
— Ah,
isto é um fato — disse Januário. — Eu já estive com o
arcebispo, com d. Anselmo, com d. Ambrósio. Se ao menos a Igreja nos
benzesse as armas!
— Para
disfarçar a violência? — disse Nando.
— Para
ajuizar quando a violência se torna justa — disse Januário —,
inevitável.
— A
palavra dos Evangelhos é outra — disse Nando.
— Ah,
isto não — disse Januário.
— E
a espada que Cristo trouxe?
Ai,
gemeu Nando consigo mesmo, lá vem São Mateus, 10,34. Das 36.450
palavras de Jesus registradas no Evangelho nenhumas são talvez
citadas com mais frequência e mais em falso. Jesus podia pensar
apenas no Reino do seu divino Pai porque o Reino deste mundo,
imperfeito como sempre será, chegava no seu tempo de vida à
perfeição augusta. Seu Pai celeste preparara Roma como quem arruma
um régio berço. O mundo mundano vivia à sombra da águia que um
dia se colocaria à sombra sobrenatural da pomba do Espírito Santo.
Virgílio ouvira o som dos passos que começavam a palmilhar o solo
da história e estava assinalado para levar um dia o poeta de Deus à
presença de Matilde, Lúcia, Beatriz.
Antonio
Callado, in Quarup
Wilson, enfim
Wilson
Bueno escreveu ficções – arriscadas ficções – que não eram
bem suas. Eram suas: mas sempre narradas em línguas alheias. Com sua
alma de experimentalista, Wilson se escondia a cada novo livro à
sombra de narradores imprevisíveis. Mais ainda: era como se a
própria noção de autoria, em sua escrita, entrasse em pane. E o
próprio Autor, ele, Wilson Bueno, se transfigurasse – se matasse.
Sempre procurei, aflito, pedaços de sua voz em seus relatos. Nunca
os encontrei.
Tivemos,
é verdade, uma amizade instável, que terminou em um grande
desencontro. Mas não era o que me afligia – embora afligisse
também. A cada novo livro, por mais que eu me entusiasmasse,
sentia-me obrigado a lhe perguntar: “Gostei, gostei muito, Wilson,
mas onde está você?”. Estive, até sua morte brutal, em maio de
2010, à espera de uma ficção que o trouxesse de corpo inteiro;
dono (ainda que aos pedaços) de seu próprio estilo; em plena (ainda
que precária) posse de si.
Em
sua novela mais festejada, Mar paraguayo (Iluminuras, 1992),
Wilson Bueno incorpora um portunhol forte, temperado com essências
do guarani, estranha língua retalhada que, nele, caía como um manto
impecável. Em Amar-te a ti nem sei se com carícias (Planeta,
2004), simula um manuscrito do século XIX, com sua linguagem
pedante, timbre antigo, pose solene. Como um médium que incorporasse
vozes alheias emprestando-lhes o corpo para uma falsa ressurreição,
Wilson tornou-se um inspirado inventor. Estranho inventor, porém,
que parecia sempre ausente de suas invenções.
Agora
que está morto, e em um doloroso movimento inverso no qual, já
afastada de seu corpo físico, sua voz enfim se ergue, ele nos deixa
o livro que dele sempre esperei. Um romance em que não se oferece
como porta-voz ou representante, mas no qual, mesmo se reinventando,
Wilson se desnuda. E dessa forma, como ele mesmo escreve, “sobrevive
a si mesmo”. Em Mano, a noite está velha (Planeta),
ouvimos, enfim, sua voz verdadeira ainda que inventada – porque a
ficção, como portunhol, é também uma experiência de fronteira.
Era essa segunda margem, essa banda “paraguaia” que agora se
apresenta, o pedaço que nos faltava para vê-lo melhor. Ela ressoa
agora entre a náusea e a alegria, entre a agonia e o prazer, ali
onde se esconde o Wilson inteiro.
Não
posso omitir a ideia repugnante: Wilson precisou morrer, brutalmente
assassinado, para que agora, desprovido de um corpo, possa abandonar
a posição de “cavalo”, ou de embaixador, para falar, enfim, em
seu próprio nome. Para sustentar, finalmente, a voz única que
ressoa, comovente, naquele que, afora todas as corajosas aventuras
experimentais do passado, é de longe seu livro mais importante.
O
romance guarda, além disso, um incômodo tom premonitório –
anúncio da morte hedionda que o esperou, pelas mãos de um
indiferente assassino, na noite de 31 de maio de 2010. Trata-se de
uma longa conversa com o Além, representado pelo irmão morto. O
escritor teve, de fato, um irmão, só um, que faleceu antes dele. As
informações que esse narrador, Frederico, nos dá a respeito de si
não nos convencem. Não passam de um disfarce mal-ajambrado que, só
a muito custo, encobre a face do escritor.
Ali
está um corpo – um narrador, um Autor? – que fala com alguém
que já não está ali. Mais uma vez, o jogo entre presença e
ausência, entre vida e morte; a existência por um fio em cujo
deserto Wilson, um homem dado a emoções fortes e amores
fulminantes, mas também dono de um humor ferino e de uma elegância
nobre, apreciava se instalar.
Só
agora, morto, enfim ele nos fala. Há uma referência insistente a
certo Bolaño – que só pode ser Roberto Bolaño, o escritor
chileno, falecido em julho de 2003; o autor de 2666, outro
romance póstumo, editado em 2004. Bolaño nele trabalhou durante
seus cinco últimos anos de vida, enquanto esperava um transplante de
fígado. Sem saber que fazia isto (ou, de alguma forma secreta,
sabendo?), Wilson meses a fio o imitou, debruçado sobre seu Mano,
na mesma posição de espera e despedida. Há, também, certa Hilda –
que só pode ser Hilda Hilst, a escritora falecida em 2004 (mesmo ano
em que 2666, com Bolaño já morto, o traz de volta); e de
quem Wilson foi caloroso amigo e com quem, pela via do precário,
sentia grande afinidade.
Preciso
deixar de lado as referências pessoais, refrear-me para voltar ao
livro, que leio entre a dor e a alegria. É, sem dúvida, um livro de
despedida – e aqui o caráter premonitório se torna assustador. Em
Frederico, narrador de pensamento vacilante, persiste a sombra de
Wilson: a solidão insistente e intransponível; o culto religioso da
Mãe (assim mesmo, com maiúscula), cuja morte atravessa – com a
força de uma faca – todo o relato. Há, ainda, um garoto morto,
Maicon, cuja beleza se perde em visões confusas, que deságuam em um
cemitério de província. E sobram cães desdentados, gatos obesos,
pássaros atordoados, muitos bichos; sempre, os bichos (mas aqui
estou eu de volta ao horror do real!) que – com sua miséria
silenciosa – tanto fizeram Wilson sofrer.
E
persiste, mais que tudo, a imagem viril (ainda que às vezes
feminina) do sobrevivente, que ultrapassou a juventude, que
sobreviveu a tempos de chumbo e que sobrevivia, como um herói
esquivo e problemático, ao presente. Sobrevivente, sobretudo, de
sonhos futuros que nunca (e isso da morte não se pode cobrar) se
realizaram. “Estou aqui, sim, eu sou o sobrevivente”, Wilson diz,
pela voz de Frederico, com todas as letras, com toda a clareza.
“Antes de mais nada, sobrevivente de mim mesmo”, ele insiste.
A
poucos passos do fecho, o retrato assombroso que Frederico apresenta
de si evoca, ainda, um Wilson exposto, horas depois de sua morte
brutal, não nas elegantes páginas literárias, mas no sangue das
seções de polícia. Wilson anteviu Wilson? “Cato meus restos pela
sala. É assim como se eu fosse um boneco de pano do qual se retirou
todo o enchimento. Sobraram braços e pernas desengonçados, a cara
já sem forma, só uns olhinhos de botão, e o sorriso, rasgado,
meia-lua de feltro vermelho.” Haverá antecipação mais arrepiante
de seu injusto destino?
José
Castello, in Sábados inquietos
sexta-feira, 28 de junho de 2019
A verdade impossível
Quando
pode começar nossa felicidade? Assim que nós tivermos conquistado a
certeza de que a verdade não pode existir. Todas as modalidades de
salvação são possíveis à partir disto, mesmo a salvação pelo
nada. Àquele que não crê na impossibilidade da verdade, ou que não
se alegra com ela, resta apenas uma via de salvação - uma via que
ele jamais encontrará!
Emil
Cioran, in Nos cumes do desespero
Ignorâncias paternas
Altas
horas,
já
secos cuspos e copos,
meu
pai dizia:
vou
reparar o teto.
E
saía, para além da noite,
por
interditos caminhos.
Minha
mãe
retorcia
a alma
nas
magras mãos.
No
peito, não no ventre,
a
mãe vai gerando filhos.
Por
trás dos cortinados,
seu
olhar se desfiava
no
longo rosário da espera.
Cegos
para as suas fadigas
nós,
os filhos,
pedíamos
que nos alonjasse o medo.
E
a voz dela acontecia
como
inundação do rio:
lavando
águas e tristezas.
Pobre
do vosso pai, suspirava.
Que
pena ela dele sentia
que,
no escuro, em vão procurava.
A
nossa casa, de tão alta,
não
poderia nunca ter telhado.
Filhos
deitados,
medos
dormindo:
antes
do meu pai regressar
já
minha mãe
tinha
reparado
as
telhas todas do mundo.
Mia
Couto
La Suzanita
O
Peugeot parou na esquina do posto de gasolina. Ali acabava o asfalto
e começava a rua de terra. Era como a fronteira do mundo com outro
mundo. Dali em diante, seria a pé. Precaución, compaiero, havia
dito El Gitano na noite anterior, enquanto terminávamos o café.
O
chofer gordo e queimado de sol puxou um lenço do bolso e sem tirar o
cigarro da boca secou a testa, o queixo e o nariz. Depois olhou o
taxímetro, que marcava dezoito e quarenta, e disse: Veinte. Estendi
duas notas de dez e uma de cinco e disse: Gracias. Ele resmungou
alguma coisa que não entendi. Desci do carro.
Fiquei
parado na estrada, bem ali, na fronteira entre o asfalto e a estrada
de terra batida, vendo como ele manobrava sem nenhuma perícia e
levàva o Peugeot amarelo de volta para o asfalto e desaparecia logo
depois. Cruzar a fronteira entre os dois mundos pelo lado direito do
posto de gasolina, entrar na primeira ruela à direita, caminhar
quatro quarteirões, parar, acender um cigarro, continuar, agora à
esquerda por outra ruela de terra, seguir até encontrar um bar
chamado La Suzanita, assim mesmo, com z. Alguém estará lá, disse
El Gitano, que era de pouco falar. — Ele vai estar lá? — Quizá.
Es posible. Todo es posible. — Quero saber. Devo saber. — Quizá.
El
Gitano esvaziou a xícara de café, tocou a ponta do bigode com o
dedo, acendeu um cigarro e não disse nada. Era mesmo de pouco falar.
Muito pouco. Na verdade, eu não gostava dele. Ficou me olhando um
tempinho, eu me sentia meio ridículo e um pouco irritado, e enfim
ele disse: Una y cuarto. E depois completou: Más vale que no te
retrases. Eu tinha chegado cinco minutos atrasado ao encontro daquela
noite. Olhei para ele e disse em voz baixa: Vete a la mierda.
Eu
pensava no homem que iria encontrar e na última vez em que havíamos
estado juntos, uns dois meses antes, quando as coisas eram diferentes
e todos repartiam promessas nas quais acreditavam. Não levava
relógio, mas o chofer do Peugeot garantira que faltavam quinze para
a uma quando me deixara logo ali atrás, na fronteira entre o asfalto
e o chão de terra, no posto de gasolina.
O
sol de outubro começou a arder em minha cara quando virei à direita
e continuou ardendo nas duas quadras seguintes, e ainda quando parei
e acendi o cigarro fora de hora. Olhei para trás, um menino vinha
pela rua, e nada mais. O menino passou por mim olhando minhas calças
desbotadas. Essa gente nunca diz nada: são pobres e calados. As
janelas estavam fechadas e vi que logo adiante havia um pequeno Fiat
600 debaixo de uma árvore. A rua estava morta, como todo o resto.
Na
esquina seguinte virei à esquerda, continuei andando, o sol ardia na
nuca, uma, três, cinco quadras, será que vou chegar na hora?, e
apertei o passo, o bar deveria estar perto, mas tenho tempo, pensei,
tenho tempo, se ele estiver lá e eu chegar atrasado vai ser
desagradável, e andei mais rápido ainda e vi, na outra esquina, a
placa da Coca-Cola anunciando enfim o La Suzanita.
Eram
duas portas abertas para a calçada de cimento coberta de poeira da
rua de terra, e uma camionete empoeirada na esquina seguinte e eu
adivinhava gente escondida, na vigia, nas redondezas.
Duas
portas abertas e lá dentro, ninguém: três mesas de ferro, um
balcão, prateleiras com latas e garrafas, cartaz de cigarros. Fiquei
esperando.
De
repente, atrás do balcão surgiu um garoto de uns quinze anos. Eu
disse buenas tentando arrastar cada letra para dar um ar de
preguiçosa familiaridade e serenidade, mas ele não respondeu.
Um
rádio velho chiava o noticiário da uma, e o garoto olhou para uma
mesa no canto. Acompanhei seu olhar: na mesa, uma garrafa solitária
de cerveja Corona entre dois copos vazios, como à minha espera e de
mais alguém, e só. Sentei, enchi um copo.
Enquanto
eu bebia a cerveja o garoto sumiu por uma portinha estreita entre as
prateleiras e fiquei sozinho. O rádio continuava chiando os
resultados do regional de futebol e anunciou que era uma e meia.
Pensei: “Não vai vir”. As ruas de terra continuavam num silêncio
de noite alta debaixo de um sol sem piedade. Fiquei pensando em como
fazer para retomar o contato, agora que o sindicato tinha sido
fechado e a vida era outra. Eu havia vindo de muito longe, e
precisava levar de volta informações que só ele poderia me dar, em
troca de informações que só eu poderia dar a ele. Era um encontro
crucial, tinha sido cuidadosamente combinado, com todas as precauções
e mais algumas. Quinze minutos de atraso, e ele não atrasava nunca.
Quinze minutos era o tempo que teríamos para o nosso encontro.
De
repente, atrás do balcão, surgiu o ruído de pés leves que se
arrastavam. Olhei, havia uma moça de uns vinte anos, misteriosamente
bela e serena. Eu murmurei buenas outra vez, e outra vez foi em vão.
Ela olhou para a rua e desapareceu pela portinha entre as
prateleiras, para surgir de novo em seguida e fazer um gesto aflito
para que eu me aproximasse. Olhei para a rua, tudo continuava igual.
Contornei o balcão, entrei pela mesma portinha entre as prateleiras.
Ela me olhava com olhos assustados. Vi um minúsculo colar de
gotículas sobre seus lábios. Era uma menina sombria e bonita. Havia
uma certa fúria em seus olhos. Fiquei olhando para ela, esperando
alguma palavra, algum sinal. Ela me olhava com uma agonia juvenil
enquanto buscava palavras. O silêncio pareceu durar meia-vida, até
que ela disse, com voz serena: — Sucedió algo.
O
resto veio num jorro: não ia haver encontro, eu tinha de voltar para
o hotel da cidade e esperar até às dez da manhã do dia seguinte.
Se ninguém me procurasse, deveria voltar imediatamente para a
capital e buscar abrigo até que tudo tornasse a se acalmar. Depois,
indicou-me uma porta que dava para o quintal, dizendo que além do
quintal havia outra ruela, e que eu deveria caminhar rápido até o
posto de gasolina, onde um táxi estava à minha espera para me levar
de volta para a cidade.
Ela
era esguia, tinha uma aflição nos gestos que contrariava a
serenidade da voz e o brilho parado dos olhos. Tocou levemente minha
mão, como numa despedida; depois, num arrebato sem explicação, me
abraçou, antes de me empurrar na direção da porta.
Havia
outro Peugeot no posto de gasolina. O motorista era um jovem de pele
curtida de sol. Não disse nada quando entrei, apenas arrancou numa
velocidade de relâmpago, e assim prosseguiu por quilômetros até a
cidade. Parou a três quarteirões do hotel. Não perguntei quanto
devia. Desci o mais rápido que pude. Ele apenas sussurrou: Suerte.
Cuidado.
Cheguei
ao hotel pouco antes das três e quinze da tarde, me estendi na cama
e dormi.
Quando
acordei era noite. Persegui na televisão o noticiário das oito, e
fiquei sabendo: ele tinha sido pego pouco depois das duas, naquele
mesmo subúrbio operário, muito perto de onde eu estivera. Com ele,
na mesma casa, havia mais três homens e uma moça. Um dos homens era
El Gitano: reconheci seu rosto numa velha foto sem nome do arquivo
policial. O noticiário dizia que tentaram resistir e que foram todos
mortos no tiroteio, inclusive a moça. Dizia que ela era filha dele.
Dizia também que no meio da tarde a polícia havia localizado um bar
que servia de ponto de reunião, e que no bar estava um garoto. O
garoto fora levado preso. Dizia tudo isso o noticiário das oito.
No
dia seguinte, depois de uma noite sem sono e atravessada de memória,
fúria e medo, desci logo cedo e comprei os jornais. A notícia
estava em todos, com mais estardalhaço que informação.
Um
dos jornais trazia uma foto da moça. Era realmente bonita. Tinha
dezenove anos.
Às
dez e meia paguei o hotel e fui para o aeroporto. Enquanto esperava o
voo joguei fora os jornais. Antes, e sem que nunca tenha tido tempo
de entender por que, rasguei cuidadosamente da página a foto da
moça, dobrei-a pela metade e guardei na carteira. O nome dela era
Suzanita, e nunca entendi o que me levou a querer levar a foto
comigo.
Eu
sabia que era um dos próximos de uma lista sem fim. Queria apenas
chegar de volta à capital, avisar os companheiros, buscar abrigo e
pensar no que poderia ser feito.
Uma
semana depois, quando fui preso, a fotografia continuava na minha
carteira.
Eu
consegui me manter à tona até o momento em que um deles resolveu
examinar de novo minha carteira. Até ali, eu estava indo bem — até
perguntarem se eu sabia quem era a moça. Um deles fez a pergunta com
toda calma, enquanto os outros sorriam.
Eu
disse apenas que era uma moça que tinha conhecido numa cidade do
interior. Foi então que o inferno começou.
Eric
Nepomuceno, in Os cem melhores contos brasileiros do século
Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon
Lulu
Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não
atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos
na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na
política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia
da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos
atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina
Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista
de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:
— Já
falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo.
Agora é trabalhar!
E
sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de
enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca
aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse
porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não
ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com
Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a
cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de
possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou
no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de
Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras.
E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação.
Era assobiando “O teu-cabelo-não-nega, mulata,
porque-és-mulata-na-cor” que o ilustre sujeito público comandava
as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava
nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em
melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu
Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu
ameaçava: Ou vai ou racha!
E
uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou:
— Agora
a gente vai fazer serviço de tatu!
O
povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de
modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano
Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o
Sentinela Municipal do “salutar benefício do chamado precioso
líquido”. Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista
prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram
correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em
forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio
do trabalho de fundição, quando Lulu Bergantim, de repente,
resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos
e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E
discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o
Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:
— Não
abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo
de minha chegada.
Em
verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar
Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa
Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava
tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a
última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:
— Por
essas e por outras é que não atravessei o Rubicon!
Lulu
foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no melhor
pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada
na mão. Para sempre, Lulu Bergantim!
José
Cândido de Carvalho, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
quinta-feira, 27 de junho de 2019
Herói juvenil
Que
fim levou o Roger Vadim? Não é uma preocupação trivial. É que
aquela geração que ficou adulta, ou coisa parecida, no mesmo
momento em que Brigitte Bardot revelava o seu popô ao mundo, viveu,
desde então, uma certa confusão intelectual. Sabíamos que alguma
coisa importante tinha nos acontecido no novo cinema francês, mas
sempre imaginamos que fosse algo sério, uma proposta de engajamento
pela arte, a idéia de que a segunda sessão do Ópera era não uma
perda de tempo, mas um aprendizado para a luta possível. Resnais,
Godard, talvez Chabrol, mas jamais Vadim, um juvenil e um
inconseqüente. E hoje, mais velhos e safados, descobrimos que o que
estava nos acontecendo de importante era mesmo o popô da Brigitte.
Vadim é que era o cara. Levamos muitos anos para reconhecer esta
admiração secreta. E hoje nos perguntamos, com remorso acumulado:
que fim levou o nosso herói?
A
Brigitte era virgem quando casou com o Vadim. Dado histórico. E
Vadim transformou a sua esguia virgem provinciana no símbolo mundial
do sexo sem culpa. Brigitte foi a primeira magrinha. Com ela, Vadim
deflorou todas as convenções do erotismo no cinema. A tradição
literária de Candide, da ingenuidade solta num mundo pecaminoso,
Vadim substituiu pelo ideal juvenil da sensualidade sem pecado e sem
castigo. Com Brigitte, ao contrário de Candide, a inocência vencia
porque atacava primeiro. A inocência predatória, com o popô de
fora, irresistível. Nenhum filme político teve tanta influência
nos costumes do mundo, ou foi mais divertido.
Jane
Fonda também era virgem quando encontrou Vadim, pelo menos
simbolicamente. Jovem americana, poucas ideias, mas grandes pernas,
tentando a Europa. Saiu do casamento com Vadim com uma filha e uma
consciência social, mas aposto que ele, hoje, quando pensa nela,
deve se lembrar só das pernas. Quem mais? Meu Deus, Catherine
Deneuve. A que, segundo o José Onofre, está sempre com ar de
gripada, mas que mesmo assim nenhum intelectual de esquerda jogaria
fora. Ele a teve também. E a Annette Stroyberg. E — ouço a
plateia do Ópera exultando no escuro, lá se vão muitos anos de
respeito e inveja — nenhuma jamais se queixou!
Que
fim levou esse cara? Retirou-se para a vida contemplativa, o campo,
alguns cachorros e suas memórias? Ficou impotente e agora só tem
prazer flagelando velhas camponesas? Trabalha para a televisão? Ou
nós estamos só mal informados e ele continua fazendo filmes que
nunca chegam ao Brasil? Vadim nunca foi um grande diretor. É um
herói cultural reabilitado porque sabia, muito antes do que qualquer
um de nós, que para ser um intelectual, hoje em dia, basta parecer
um intelectual. Duas ou três ideias e uma gola rulê, se tanto.
Ninguém vai checar as suas credenciais. Todas as veleidades
intelectuais de Vadim ele satisfez em alguns filmes profundos na
superfície e, no fundo, superficiais, mas redimidos pelo seu vigor
juvenil, pelo seu gosto em fazer cinema. Tinham a aparência de algo
muito importante, não era preciso mais nada. Na época nós
exigíamos mais do cinema do que uma superfície atraente. Hoje
sabemos que o cinema de Vadim era só um pretexto para dormir com a
atriz, e isso nos parece uma grande conquista cultural, e um consolo.
Pois se não mudamos o mundo nem com luta nem com arte — pois se
nem saímos de Porto Alegre — podemos dizer que não queríamos
mudar nada mesmo. Queríamos é dormir com a Brigitte. Vadim nos
realizou a todos.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquetes com os deuses
Quebrar armadilhas (trecho)
Eu
sou um poeta e sinto-me feliz pelo fato de a poesia atuar como
estrela inspiradora para um encontro desta natureza. A poesia prova
assim não ser apenas um gênero literário, mas um olhar revelador
de mistérios e uma sabedoria resgatadora da nossa profunda
humanidade. A poesia é um modo de ler o mundo e escrever nele um
outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é um
primeiro quebrar de armadilhas. Este Congresso da COLE está
começando bem antes mesmo de iniciar os seus trabalhos.
Compete-nos
desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário.
Todos queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito
pouco de mundo. A isso chamaram de utopia. Sabendo que esta palavra
contém já uma cilada. A palavra “utopia”, que vem do grego,
quer dizer o “não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto
que é o nosso mundo real). Mas eu não estaria fazendo poesia se
dissesse que, nas condições de hoje, aconteceu uma curiosa
inversão: o chamado mundo real é aquele que se apresenta como um
verdadeiro não-lugar, um lugar vazio onde cabemos apenas como ilusão
virtual. Não sei se poderemos chamar de lugar ao território onde
vivemos uma vida que nunca chega a ser nossa e que, cada vez mais,
nos surge como uma vida pouco viva.
Como
primeira reação, o mote deste congresso sugeriu-me realidades
quotidianas muito concretas e transportou-me para o meu próprio
país, onde subsistem milhares de minas deixadas pela guerra civil.
Sou biólogo, trabalho nas zonas rurais e não há vez nenhuma que
não seja assaltado pelo receio de pisar o chão. As minas
antipessoais são produzidas por países que se reclamam da
civilização e dos direitos humanos. Algumas destas nações
proclamam-se mesmo campeãs na luta contra o terrorismo e as armas de
destruição em massa. Mas recusaram-se sempre a assinar o acordo
para o banimento desta insidiosa forma de terrorismo que todos os
dias mutila e mata mulheres, crianças e homens inocentes nos países
pobres.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
Menina
“Oh,
ela sabia cada vez mais.”
Sentar-se,
concentrada, contar até um número, por exemplo dez, ou doze, e
esperar agudamente um acontecimento importante, era seu exercício
mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o
que ia acontecer, só fazia acontecer.
Havia
outros, menos intensos: gritar “aaaa” de olhos fechados e,
abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a mão
molhada na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no
seu corpo; imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a
estilhaçar-se no chão com a força do pensamento; passar sem comer
um dia inteiro para preocupar a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia,
você me mata!”
Entretanto,
era o esperar que algo importante acontecesse quando contasse até
doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida intenso do qual ela
saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua respiração,
como um cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou
nos dias seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem
segredos ou comentarem graves um fato recente, dizia-se, plena de
poder, ela mesma perplexa ante suas possibilidades: “Fui eu. Fui eu
que fiz.”
Achava
péssimo ir à escola, a professora era horrível. As coisas de que
mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando
até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era
fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era
impossível gozar o momento, sempre passado. Pois quando o sentia,
ele já acabara: ela começara a pensar. Ter aquilo na mesma hora
seria morrer? — perturbava-se ela com o pensamento, cada vez
sabendo mais.
Sim,
cada vez sabendo mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai.
Ela, que podia tanta coisa, afinava-se embaraçada de não conseguir
dizer “papai” do modo de Tita ou Nina. Era a única coisa que
faziam melhor do que ela, dizer “papai”. A diferença talvez só
ela percebesse, sutil. Sentia que pai era uma coisa que se tem
sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma
vantagem:
— Quede
seu pai, Ana Lúcia?
— Está
viajando.
Disseram-lhe
isso, já tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia mais,
sempre mais.
Guilherme
e Nilsa não se beijavam perto da mãe. Se ela chegava, as mãos
ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha e não
havia mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar
devia ser proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais.)
— Ana
Lúcia, seu pai ainda está viajando?
— Está.
— Mentirosa!
Sua mãe é desquitada.
Ficou
impotente diante da palavra desconhecida. Uma coisa nova, ainda não
se podia saber de que lado olhar para possuí-la toda. Desquitada.
Desquitada. Jamais perguntaria a Tita, era uma alegria que não lhe
daria. Ficou uns instantes sem saber como sair ilesa dessa armadilha.
Tita corada e brilhante de prazer na sua frente. — E o que é que
tem isso?
Tita
desmontou como um quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o tabuleiro.
Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia demais das coisas fora
dela, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa
como burra, feia? Não, não parecia. Flor? Flor parecia, mas não
explicava nada: orquídeas, rosas, sempre-vivas, desquitadas...
Parecia. “Mentirosa! Sua mãe é desquitada.” Tita dissera como
quem diz o quê? o quê? o quê? sem-vergonha. Sim!, como quem diz
sem-vergonha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses
dias amou a mãe com muita força, amou-a até sentir lágrimas,
defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la: desquitada,
sem-vergonha. Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe.
Experimentava, baixinho, torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas
e amor: desquitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre agredia,
sempre feria. Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a
tesoura, amava a mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida,
bonita mesmo, com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para
provar vestidos, a mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande
mudar de roupa, a mãe dizia. Saía contrariada por deixá-la exposta
à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela entrava de novo, amando,
amando.
Estava
cansada dessa obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente
um dia ao tomar leite para dormir: desquitada podia não ser como
sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem sabe podia ser melhor.
Respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas
descobertas. Refugiou-se no sono.
No
dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a palavra,
agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava a dar um
palpite, havia o perigo de outro engano.
A
professora feia! pergunta no fim da manhã, recolhendo os cadernos,
se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se emocionada. Por
que não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse logo o
que é desquitada, talvez dissesse na mesma hora, sem muitas
perguntas como por que você quer saber uma coisa dessas. Levanta-se
tímida, insegura. Já de pé, desiste, e não sabe se senta ou
chora.
— O
que é, Ana Lúcia?
A
voz da professora, mansa, mas não ajudando. Não pergunto, não
pergunto — teima Ana Lúcia, ganhando tempo.
— O
que é? — a voz insiste.
As
meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus dentes enormes
impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar perto
da mãe é o que mais deseja.
— Sente-se
— ordena a professora irritada.
A
máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bonita que a
mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la calada,
estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a
tesoura. Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe
precisava da tesoura. Admirava o jeito decidido da mãe ao cortar
pano, não hesitava nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita
chamava-a de ( ) como quem diz ( ). Tentava não pensar as palavras,
mas sabia que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo
era tão difícil. A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe
intensamente agora quase com fome depressa depressa antes de morrer,
tanto que não se conteve e
— Mamãe,
o que é desquitada? — atirou rápida com uma voz sem timbre.
Tudo
ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou Deus aparecia
— sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instante, forte demais
para uma menina, a mãe parada com a tesoura no ar, tudo sem solução
podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina avançando
desgovernada sobre o vestido de seda brilhante espalhando luz luz
luz.
A
mãe reconstruiu o mundo com uma voz maravilhosa e um riso: — Eu
precisava mesmo explicar para você a situação. Mas você é tão
pequena!
Olhou
a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais de
sete anos, o que poderia entrar naquela cabecinha?
— Desquitada
é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Pronto,
estou livre — sentiu Ana Lúcia. Desquitada, desquitada, desquitada
— repetia sem medo. Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por não
precisar amar a mãe com aquela força de antes. Sendo apenas uma
menina poderia cansar-se e então o que seria da mãe? Bom, que
desquitada não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre para
pensar e não pensar, coisa tão difícil que
— Marido
é o pai? — ela quis confirmar, conquistando áreas que as outras
crianças tinham naturalmente. A mãe sorriu e confirmou. Tita sabia
dizer “papai” porque a mãe não era desquitada — ia Ana Lúcia
aprendendo, descobrindo. Havia muita coisa em que pensar naquela
conversa. Por exemplo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de
pai. Essa é uma diferença entre mãe e filha. Ela sabia cada vez
mais.
Ivan
Ângelo, in Os cem melhores contos brasileiros do século