sexta-feira, 31 de maio de 2019

Um braço de mulher

Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que “nós não podemos descer!”. O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.
Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.
Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — “o senhor”— ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e copiloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.
Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo. Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.
A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.
O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.
Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.
E de repente me veio a ideia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro — e de que eu podia morrer.
Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.
Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre. Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.
A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando o encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.
Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a ideia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.
Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver, uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.
Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.
No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. “Ora, não senhor.” Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho — que devia permanecer um estranho. Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.
Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.
Rubem Braga, in Os cem melhores contos brasileiros do século

Um pouco de teoria

É isso que Martin chama de cerco. Com sua vasta experiência, chegou à conclusão de que o mais difícil, para qualquer um que tenha grandes exigências numéricas nesse campo, não é tanto seduzir uma jovem quanto conhecer um número suficiente de jovens ainda não seduzidas.
Acha que devemos constantemente, em todos os lugares e circunstâncias, proceder ao cerco sistemático das mulheres ou, em outras palavras, anotar num caderno ou em nossa memória o nome das mulheres que nos agradaram e que um dia poderemos abordar.
A abordagem é um grau superior de atividade e significa entrar em contato com esta ou aquela mulher, conquistar a sua amizade e o acesso a ela.
Aqueles que, com presunção, gostam de se voltar para o passado, insistem no número de mulheres conquistadas; mas aqueles que olham para a frente, para o futuro, devem primeiro se preocupar em dispor de um número suficiente de mulheres cercadas e abordadas.
Além da abordagem, só existe um único e último grau de atividade, e quero acentuar, para agradar a Martin, que aqueles que aspiram somente a este último grau são homens miseráveis e inferiores que lembram certos jogadores de futebol do interior que vemos se lançar de cabeça baixa na direção do gol do adversário, esquecendo-se de que para marcar um ou mais gols não basta o desejo frenético de chutar, mas é preciso primeiro jogar em campo um jogo consciencioso e sistemático.
Você acha que algum dia vai ter oportunidade de ir vê-la em Puzdrany? — perguntei a Martin quando retomamos a estrada.
Nunca se sabe — respondeu ele.
Em todo caso — observei —, o dia está começando bem para nós.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

Testamento lírico

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.
Hilda Hilst

Da solidão

Sequioso de escrever um poema que exprimisse a maior dor do mundo, Poe chegou, por exclusão, à ideia da morte da mulher amada. Nada lhe pareceu mais definitivamente doloroso. Assim nasceu “O corvo”: o pássaro agoureiro a repetir ao homem sozinho em sua saudade a pungente litania do “nunca mais”.
Será esta a maior das solidões? Realmente, o que pode existir de pior que a impossibilidade de arrancar à morte o ser amado, que fez Orfeu descer aos Infernos em busca de Eurídice e acabou por lhe calar a lira mágica? Distante, separado, prisioneiro, ainda pode aquele que ama alimentar sua paixão com o sentimento de que o objeto amado está vivo. Morto este, só lhe restam dois caminhos: o suicídio, físico ou moral, ou uma fé qualquer. E como tal fé constitui uma possibilidade - que outra coisa é a Divina comédia para Dante senão a morte de Beatriz? - cabe uma consideração também dolorosa: a solidão que a morte da mulher amada deixa não é, porquanto absoluta, a maior solidão.
Qual será maior então? Os grandes momentos de solidão, a de Jó, a de Cristo no Horto, tinham a exaltá-la uma fé. A solidão de Carlitos, naquela incrível imagem em que ele aparece na eterna esquina no final de Luzes da cidade, tinha a justificá-la o sacrifício feito pela mulher amada. Penso com mais frio n'alma na solidão dos últimos dias do pintor Toulouse-Lautrec, em seu leito de moribundo, lúcido, fechado em si mesmo, e no duro olhar de ódio que deitou ao pai, segundos antes de morrer, como a culpá-lo de o ter gerado um monstro. Penso com mais frio n'alma ainda na solidão total dos poucos minutos que terão restado ao poeta Hart Crane, quando, no auge da neurastenia, depois de se ter jogado ao mar, numa viagem de regresso do México para os Estados Unidos, viu sobre si mesmo a imensa noite do oceano imenso à sua volta, e ao longe as luzes do navio que se afastava. O que se terão dito o poeta e a eternidade nesses poucos instantes em que ele, quem sabe banhado de poesia total, boiou a esmo sobre a negra massa líquida, à espera do abandono?
Solidão inenarrável, quem sabe povoada de beleza... Mas será ela, também, a maior solidão? A solidão do poeta Rilke, quando, na alta escarpa sobre o Adriático, ouviu no vento a música do primeiro verso que desencadeou as Elegias de Duino, será ela a maior solidão?
Não, a maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.
Vinicius de Moraes, in Prosa

quinta-feira, 30 de maio de 2019

A 26ª obra-prima

Depois de anos de discussão, a Academia de Estocolmo, a Fundação Gulbenkian e o pen Club Internacional, reunidos sob os auspícios da Unesco, obtiveram que esta proclamasse solenemente as 25 obras-primas de literatura de todos os séculos e povos, considerando-as patrimônio cultural da humanidade.
O escritor Elpídio Nosferatu não se conformou com esta resolução e empreendeu a batalha para ser excluído da relação o Édipo rei, de Sófocles, alegando ser suscetível de discussão a superioridade do seu autor sobre Ésquilo. No lugar, pleiteava a inclusão do seu romanpoensaio em três dimensões O dodói de Abílio Terciomundista, bem superior a toda a dramaturgia grega. Elpídio era visto simultaneamente na Europa e na América, debatendo com professores e críticos, concedendo entrevistas, expedindo telegramas, promovendo simpósios em favor de sua causa.
As instituições responsáveis pela relação de obras-primas recusaram-se a atendê-lo, mas ele foi incansável, para não dizer implacável, na postulação. Propôs-se a Abílio uma declaração subsidiária, que ele repeliu, declarando sua obra digna de menção honrosa. Pediu audiência ao papa, à Assembleia Geral da ONU, aos soberanos reinantes e presidentes de República em exercício.
A ideia de interná-lo deixou de consumar-se, por falta de apoio legal. Abílio formou uma legião de adeptos que clamavam por justiça, e houve encontros armados em torno de sua pessoa. Temendo a erupção de uma guerra literária, a somar-se às outras que flagelam a humanidade, a Unesco declarou sem efeito a relação de obras-mestras, mas ficou na mente do povo a ideia de que o Dodói era, não igual, mas superior a todas as vinte e cinco.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Dona Clotilde

Tive uma surpresa jamais sonhada, surpresa feliz. Faz uns tempos, escrevi um artigo cujo assunto era a forma como as relações de aprendizagem e ensino se dão através das pontes poéticas que o amor constrói. Uma dessas pontes tem o nome de “metáfora”, que faz ligações entre coisas parecidas. No filme O carteiro e o poeta, o carteiro diz que se sentia como um “barco batido pelas ondas”. Essa metáfora ligou a sua alma a um barco. Eles se pareciam. “Metonímia” é quando uma imagem nos conduz a relações de proximidade. Tenho um peso de papel sem valor que o meu pai me deu. É claro que ele não se parece com o meu pai. Não é metáfora. Mas foi objeto do meu pai. Ficava na sua mesa de trabalho. Por isso, porque o peso de papel e o meu pai estiveram juntos, o peso de papel me faz lembrar o meu pai. No dito artigo, que se chamou “Aprendo porque amo”, o assunto era a metonímia. Contei então uma experiência infantil, quando eu estava no primeiro ano do Grupo Escolar Brasil, na cidade de Varginha. Minha professora era a dona Clotilde, uma jovem senhora de respeito. Pois ela fazia o seguinte: assentava-se numa cadeira bem no meio da sala, num lugar onde todos os alunos a veriam, e ia desabotoando a blusa até o estômago, ante nossos olhares assustados. Ela não se dava conta do nosso susto porque aquilo que ela estava fazendo era-lhe perfeitamente natural. Aí ela enfiava a mão dentro da blusa e puxava para fora um seio lindo, liso, branco... E nós, meninos, de boca aberta... Mas o encantamento não durava mais que cinco segundos porque ela logo pegava o seu nenezinho e o punha para mamar. Toda mãe fazia assim. Mas nós, meninos, ficávamos sentindo coisas estranhas que não entendíamos. Somente o corpo sabia. Terminada a aula, os meninos faziam fila junto à dona Clotilde, pedindo para carregar a pasta. Quem recebia a pasta era um felizardo, invejado. Aquela pasta não era pasta. Era uma metonímia do objeto desejado, proibido, o seio da dona Clotilde... Aí inventei um ditado que ninguém entende: “Quem não tem seio carrega pasta...”. Essa estória, aplicada à pedagogia, serve para mostrar que, frequentemente, os alunos aprendem as coisas mais difíceis (carregam a pasta) em virtude de sua relação amorosa com o professor, relação de respeito e admiração. Pois a surpresa foi esta, acontecida na cidade de Cambuquira, bem pequena, cheia de matas, de águas minerais... Fui lá fazer uma fala. Contei o caso da metonímia da dona Clotilde. Todo mundo riu. Ao final veio a surpresa. Disseram-me que a dona Clotilde está viva. Noventa e dois anos de idade. Mas o assombroso é que ela, aos noventa anos, defendeu tese de mestrado. E sua cabeça está mais lúcida do que nunca, cheia de indagações metafísicas... Que alegria!
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Jogador generoso

Ontem, no meio da multidão da avenida, senti-me tocar por um Ser misterioso que eu sempre desejara conhecer e que logo reconheci, embora nunca o tivesse visto. Ele tinha, sem dúvida, relativamente a mim, um desejo análogo, porque, ao passar, piscou-me o olho num sinal significativo, ao qual me apressei a obedecer. Segui-o atentamente e em breve desci, atrás dela, a uma habitação subterrânea, deslumbrante, onde esplendia um luxo de que nenhuma das residências superiores de Paris poderia fornecer um exemplo aproximado.
Pareceu-me singular que eu tivesse podido passar tantas vezes ao lado daquele prestigioso covil sem descobrir-lhe a entrada. Reinava ali uma atmosfera esquisita, capitosa, que fazia esquecer quase instantaneamente todos os fastidiosos horrores da vida. Respirava-se uma beatitude sombria, análoga à que deveriam experimentar os comedores de lótus quando, desembarcando numa ilha encantada, iluminada pelos clarões de uma tarde eterna, experimentavam intimamente, aos sons embaladores das melodiosas cascatas, o desejo de jamais rever os seus penates, as suas mulheres, os seus filhos, e de jamais remontar sobre as altas vagas do mar.
Havia ali rostos estranhos de homens e mulheres, marcados por uma beleza fatal, que eu tinha a impressão de já ter visto em épocas e em países dos quais não podia lembrar-me exatamente, e que me inspiravam antes uma simpatia fraternal do que o medo que ordinariamente inspira a visão do desconhecido. Se eu quisesse tentar definir de algum modo a expressão singular dos seus olhares, diria que jamais vi olhos que brilhassem mais energicamente pelo horror do tédio e pelo desejo imortal pela liberdade.
Quando nos sentamos, meu hospedeiro e eu já éramos velhos e perfeitos amigos.
Comemos, bebemos à farta de todas as qualidades de vinhos extraordinários, e, coisa não menos extraordinária, parecia-me, depois de várias horas, que eu não estava mais embriagado do que ele. O jogo, esse prazer sobre-humano, cortara em diversos intervalos as nossas frequentes libações, e devo dizer que jogara e perdera minha alma, em parte ligada, com uma despreocupação e uma intrepidez heroicas. A alma é uma coisa tão imponderável, tão inútil às vezes, e outras vezes tão enfadonha, que eu só experimentei, quanto à sua perda, um pouco menos de emoção do que se tivesse perdido, num passeio, o meu cartão de visitas.
Fumamos longamente alguns charutos, cujo sabor e perfume incomparáveis davam à alma a nostalgia de regiões e felicidades desconhecidas. Foi embriagado por todas essas delícias que, num acesso de familiaridade que não me pareceu desagradar-lhe, ousei exclamar, apoderando-me de uma taça cheia até a borda: — À sua imortal saúde, velho Bode! Conversamos também sobre o universo, sua criação e sua destruição futura; sobre a grande ideia do século, isto é, o progresso e a perfectibilidade, e, em geral, sobre todas as formas de enfatuamento humano. A esse respeito, Sua Alteza de detinha em pilhérias ligeiras e irrefutáveis, mas exprimia-se com uma suavidade de dicção e uma tranquilidade de humor que eu não encontrei em nenhum dos mais célebres conversadores da humanidade. Explicou-me o absurdo das diferentes filosofias que até então se haviam apoderado do cérebro humano, e dignou-se mesmo de me fazer confidência de alguns princípios fundamentais cujos benefícios e propriedade não me convém partilhar com quem quer que seja. Não se lastimou de modo algum da má reputação que possui em todas as partes do mundo, assegurou-me que era a pessoa mais interessada na destruição da superstição e me confessou que, relativamente ao seu poder, só tivera medo uma vez, no dia em que ouvira um pregador, mais sutil do que os seus confrades, exclamar do púlpito: — Meus caros irmãos, quando ouvirdes gabar o progresso das luzes, nunca vos esqueçais de que o mais belo ardil do diabo consiste em persuadir-vos de que ele não existe! A lembrança desse célebre orador levou-nos naturalmente a falar das academias, e o meu estranho conviva afirmou-me que não desdenhava, em muitos casos, de inspirar a pena, e palavra e a consciência dos pedagogos, e que quase sempre assistia em pessoa, embora invisível, a todas as sessões acadêmicas.
Encorajado por tantas bondades, pedi-lhe notícias de Deus e perguntei-lhe se o vira recentemente. E ele me respondeu com uma despreocupação laivada de certa tristeza: — Nós nos cumprimentamos quando nos encontramos, mas como dois fidalgos em que uma polidez inata não poderia extinguir completamente a recordação de antigos ressentimentos.
É duvidoso que Sua Alteza tenha dado jamais uma audiência tão longa a um simples mortal, e tive receio de abusar. Por fim, quando a aurora tremeluzente já branqueava as vidraças, o famoso personagem, cantado por tantos poetas e servido por tantos filósofos que trabalham por sua glória, assim falou: Como quero que você guarde de mim uma boa recordação, vou provar-lhe que Eu, de quem se diz tanto mal, sou às vezes bom diabo, para servir-me de uma locução vulgar.
Afim de remediar a perda irremediável de sua alma, dou-lhe a parte que você teria ganho se a sorte lhe tivesse sido favorável, isto é, a possibilidade de aliviar e de vencer, durante toda a sua vida, essa estranha afeição pelo Tédio, que é a fonte de todas as enfermidades e de todos os miseráveis progressos humanos. Jamais você terá um desejo que eu não o ajude a realizá-lo. Será adulado e até adorado; o dinheiro, o ouro, os diamantes, os palácios feéricos virão procurá-lo e lhe pedirão que os aceite, sem que você tenha feito o menor esforço para ganhá-los; mudará de pátria tantas vezes quantas sua fantasia o ordenar; fartar-se-á de volúpias, sem enjoar-se, em países encantadores onde faz sempre calor e onde as mulheres são tão perfumadas quanto as flores. Et cætera, et cætera... — acrescentou levantando-se e se despedindo de mim com um sorriso cheio de bondade.
Não fora o receio de humilhar-me perante tão grandiosa assembleia, eu de bom grado cairia aos pés do generoso jogador, para agradecer-lhe a inaudita munificência. Aos poucos, porém, depois que o deixei, a incurável desconfiança tornou a entrar no meu peito.
Não mais ousei acreditar em tão prodigiosa felicidade e, ao deitar-me, fazendo ainda minha prece por um resto de hábito imbecil, repeti, meio adormecido: — Meu Deus! Senhor meu Deus! Fazei com que o diabo cumpra sua palavra para comigo!
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

Hoje tem espetáculo

Vá ao cinema: presta?
Vá ao teatro: presta?
Esses filmes servem a quê?
Servem a quem?
Essas peças: servem? Pra quê?
Divirta-se: teu programa é esse,
bicho: vá ao cinema
vá ao teatro, vá ao concerto
disco é cultura, vá para o inferno:
o paraíso na tela no palco na boca
do som
e nas palavras todas
na ferrugem dos gestos e nas trancas
da porta da rua
no movimento das imagens: violência
e frescura: montagem.
Divirta-se. O inferno
é perto é longe, o paraíso
custa muito pouco.
Pra que serve este filme, serve a
quem?
Pra que serve esse tema, serve a
quem?
De churrasco em churrasco encha
o seu caco,
amizade. Cante seresta na churrascaria
e arrote filmes-teatros-marchas-ranchos
alegrias e tal: volte (como sempre)
atrás,
fique na sua
bons tempos são para sempre — jamais
bata no peito, bata no prato, é
assim que se faz
a festa. Reclame isso: esse filme
não presta
o diretor é fraco e essa história eu
conheço
esse papo é pesado demais pras
crianças na sala
é macio, é demais: serve a quem,
amizade?
Teu roteiro hoje é esse, meu bicho: cante
tudo na churrascaria
não saia nunca mais da frente fria
sirva, serve, bicho, criança, bonecão
sirva sirva sirva mais
churrasco churrasquinho churrascão.
Sirva um samba de Noel, uma ciranda
uma toada do Gonzaga (o pai),
aquele samba
aquela exaltação de um iê-iê-iê
romanticosuavespuma
bem macio
um filme de mocinho e de bandidos
uma peça qualquer com muito
drama:
encha o caco, amizade, tudo é
porta
e vá entrando à vontade, a casa
é sua, entre
pelos filmes em cartaz, pelas peças
sobre os palcos
vá entrando pelo papo, entrando
pelo cano
geral; coma churrasco, sirva, vá
entrando
e servindo (a quê a quem?)
encha o seu caco. Divirta-se, bata
no prato
e peça bis, reclame, cante o quanto
queira
afaste o lixo, nem pense:
teu programa é esse mesmo, bicho.
Torquato Neto

Acerca da infância

A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

Alguém pode, por favor, pisar nos freios?

Explicações tranquilas à parte, muitas pessoas entram em pânico quando ouvem falar dessa possibilidade. Elas estão felizes de seguir as recomendações de seus smartphones ou de tomar qualquer droga prescrita por seu médico, mas, quando ouvem falar de humanos elevados à categoria de super-humanos, dizem: “Espero estar morto antes que isso aconteça”. Uma amiga me disse uma vez que o que mais teme quanto a envelhecer é tornar-se irrelevante, uma mulher nostálgica incapaz de compreender o mundo a sua volta, ou de contribuir para ele. É isso que tememos coletivamente, como espécie, quando ouvimos falar de super-humanos. Sentimos que em um mundo assim, nossa identidade, nossos sonhos e até nossos temores serão irrelevantes, e não teremos mais nada com que contribuir. O que quer que você seja hoje — um jogador de críquete e hindu devoto, ou uma ambiciosa jornalista lésbica —, num mundo pós-atualização você se sentiria como um caçador do Neandertal em Wall Street. Você não teria uma sensação de pertencimento.
Os neandertais não tinham de se preocupar com o Nasdaq, já que estavam protegidos dele por dezenas de milhares de anos. No entanto, o mundo como o entendemos hoje pode entrar em colapso em décadas. Não podemos contar com a morte para nos salvar da irrelevância. Mesmo que os deuses não caminhem por nossas ruas em 2100, a tentativa de elevar o Homo sapiens provavelmente tornará o mundo irreconhecível ainda neste século. A pesquisa científica e os desenvolvimentos tecnológicos estão se processando em um ritmo muito mais rápido daquele que a maioria de nós pode compreender…
Se você conversar com especialistas, muitos deles lhe dirão que ainda estamos muito distantes de ter bebês geneticamente programados ou inteligência artificial em nível humano. Mas a maioria deles pensa numa escala de tempo regida por bolsas acadêmicas e empregos em faculdades. Portanto, “muito distante” pode significar vinte anos e “nunca” pode denotar nada mais que cinquenta anos.
Lembro o dia em que deparei com a internet pela primeira. Foi em 1993, quando eu cursava o ensino médio. Fui com alguns companheiros visitar um amigo chamado Ido, hoje um cientista de computação. Queríamos jogar pingue-pongue. Ido era aficionado de computadores e antes de abrir a mesa de pingue-pongue insistiu em nos mostrar a mais recente maravilha de sua área. Conectou um cabo telefônico ao seu computador e pressionou algumas teclas. Por um minuto tudo o que conseguimos ouvir foram rangidos, guinchos, zumbidos, e depois silêncio. Não tinha dado certo. Nós resmungamos e protestamos, mas Ido tentou mais uma vez. E outra. E outra. Finalmente ele deu um grito e anunciou que tinha conseguido conectar seu computador ao computador central da universidade, que ficava ali perto. “E o que tem no computador central?”, perguntamos. “Bem”, ele admitiu, “ainda não tem nada. Mas dá para pôr todo tipo de coisas lá.” “Como o quê?”, perguntamos. “Não sei”, ele disse, “todo tipo de coisas.” Isso não soava muito promissor. Fomos jogar pingue-pongue, e nas semanas seguintes nos divertimos com um novo passatempo, fazendo graça da ridícula ideia de Ido. Isso foi menos de 25 anos atrás (em relação ao momento em que escrevo). Quem sabe o que vai se passar em 25 anos a partir de agora?
É por isso que cada vez com mais frequência indivíduos, organizações, corporações e governos estão pensando muito seriamente na busca da imortalidade, da felicidade e de poderes divinos. Companhias de seguro, fundos de pensão, sistemas de saúde e ministérios de Fazenda estão horrorizados com o salto na expectativa de vida humana. As pessoas estão vivendo muito mais do que se esperava, e não há dinheiro suficiente para pagar sua aposentadoria e os tratamentos médicos de que necessitam. Os setenta anos ameaçam tornar-se os novos quarenta, e especialistas defendem a elevação da idade de aposentadoria e a reestruturação do mercado de trabalho.
Quando nos damos conta da rapidez com que nos aproximamos do grande desconhecido, e de que não podemos contar nem mesmo com a morte para nos proteger disso, nossa reação é esperar que alguém pise nos freios para nos desacelerar. Mas não podemos pisar nos freios, por diversas razões.
Primeiro, ninguém sabe onde os freios estão. Embora alguns especialistas conheçam bem os desenvolvimentos em algum campo, como é o caso da inteligência artificial, da nanotecnologia, de megadados ou da genética, ninguém é especialista em tudo. Ninguém, portanto, é capaz de ligar todos os pontos e enxergar o quadro completo. Os diversos campos influenciam uns aos outros de maneiras tão intricadas que mesmo as mentes mais avançadas não conseguem prever como descobertas em inteligência artificial podem impactar a nanotecnologia, ou vice-versa. Ninguém consegue absorver todas as recentes descobertas científicas, ninguém é capaz de predizer qual será o aspecto da economia global daqui a dez anos, e ninguém tem uma pista de para onde estamos indo nessa carreira desabalada. Como ninguém compreende o sistema como um todo, ninguém pode fazê-lo parar.
Segundo, se alguém de algum modo conseguir pisar nos freios, nossa economia vai entrar em colapso, assim como a sociedade. Como será explicado em um capítulo adiante, a economia moderna precisa de um crescimento constante e por tempo indefinido para sobreviver. Se o crescimento parar, a economia não vai se ajustar num patamar mais baixo, num equilíbrio aconchegante: ela se despedaçará. É por isso que o capitalismo nos incentiva a buscar a imortalidade, a felicidade e a divindade. Há um limite para o número de sapatos que podemos calçar, para o número de carros que podemos guiar e para os dias de férias que podemos usufruir. Uma economia construída sobre um crescimento perpétuo apresenta uma necessidade interminável de projetos — tais como a busca da imortalidade, da felicidade e da divindade.
Bem, mesmo com uma necessidade sem fim de projetos, por que não se fixar na felicidade e na imortalidade, deixando de lado a amedrontadora questão dos poderes sobre-humanos? Porque eles são inseparáveis dos outros dois. Quando se desenvolvem pernas biônicas que permitem a paraplégicos caminhar novamente, a mesma tecnologia pode ser aprimorada para pessoas saudáveis. Quando se descobre como deter a perda de memória dos idosos, os mesmos tratamentos poderiam ser aplicados para melhorar a memória dos jovens.
Não existe uma linha que separa claramente a cura do aprimoramento. A medicina quase sempre atua salvando pessoas de se posicionarem abaixo dos padrões existentes, mas as mesmas ferramentas e o mesmo know-how podem mais tarde ser usados para elevá-los. O Viagra começou como um tratamento para problemas de pressão sanguínea. Para surpresa e deleite da Pfizer, acabou se revelando como uma droga que também pode se sobrepor à impotência. Ele permitiu a milhões de homens recuperar aptidões sexuais normais, mas não demorou muito para que homens que não enfrentavam problemas de impotência passassem a usar a mesma pílula para elevar o padrão e adquirir uma potência sexual que não tinham antes.
O que acontece com drogas específicas pode acontecer também com campos inteiros da medicina. A cirurgia plástica moderna surgiu na Primeira Guerra Mundial, quando Harold Gillies começou a tratar de lesões faciais no hospital militar de Aldershot. Quando a guerra terminou, os cirurgiões descobriram que aquelas técnicas poderiam transformar narizes perfeitamente saudáveis, mas feios, em espécimes mais bonitos. Embora a cirurgia continuasse a ajudar os doentes e os lesionados, cada vez mais atenção foi dedicada ao aprimoramento dos saudáveis. Atualmente, os cirurgiões plásticos faturam milhões em clínicas particulares com o único e explícito objetivo de aprimorar os sadios e embelezar os ricos.
O mesmo poderia acontecer com a engenharia genética. Se um bilionário declarasse abertamente o desejo de criar uma prole superinteligente, haveria clamor público. Mas isso não vai acontecer desse modo. Mais provavelmente vamos deslizar por uma encosta escorregadia, que tem início com pais cujo perfil genético poria seus filhos em alto risco de serem portadores de doenças genéticas fatais. Eles então realizam a fertilização in vitro e testam o DNA do óvulo fertilizado. Se tudo estiver em ordem, ótimo. Mas, se o teste de DNA revelar mutações indesejadas, o embrião é destruído.
Mas por que arriscar fertilizando um único óvulo? Melhor seria fertilizar vários, de maneira que, ainda que se três ou quatro fossem defeituosos, haveria pelo menos um bom. Quando esse procedimento de seleção in vitro se tornar aceitável e barato, seu emprego poderá se disseminar. Mutações constituem um risco onipresente. Todas as pessoas carregam em seu DNA algumas mutações danosas e alelos que estão aquém da condição ótima. A reprodução sexual é uma loteria. (Uma anedota famosa — e provavelmente apócrifa — conta de uma conversa, em 1923, entre o prêmio Nobel [de Literatura] Anatole France e a bela e talentosa dançarina Isadora Duncan. Debatendo o então popular movimento pela eugenia, Duncan disse: “Imagine só uma criança com a minha beleza e o seu cérebro!”. France retrucou: “Sim, mas imagine uma criança com a minha beleza e o seu cérebro”.) Bem, se é assim, por que não viciar a loteria? Fertilize vários óvulos e escolha aquele que apresentar a melhor combinação. Desde que a pesquisa com células-tronco nos permite criar um suprimento ilimitado de embriões humanos com baixo custo, é possível selecionar o bebê ideal entre centenas de candidatos, todos carregando nosso DNA , todos perfeitamente naturais, e nenhum deles requerendo uma engenharia genética futurista. Se fizermos a iteração desse procedimento por algumas gerações, facilmente obteremos super-humanos (ou uma repugnante distopia).
E se, depois de fertilizar numerosos óvulos, descobrirmos que todos eles contêm algumas mutações letais? Destruiríamos todos os embriões? Em vez disso, por que não substituir os genes problemáticos? Um método bem-sucedido para isso envolve o DNA mitocondrial. Mitocôndrias são minúsculas organelas no interior de células humanas, que produzem a energia usada pela célula. Elas têm o próprio grupo de genes, que é completamente separado do DNA no núcleo da célula. O DNA mitocondrial defeituoso acarreta várias doenças debilitantes ou mesmo fatais. Com a atual tecnologia in vitro, é tecnicamente factível vencer doenças genéticas mitocondriais por meio da criação de “bebês com três pais”. O DNA nuclear do bebê vem de dois pais, enquanto o DNA mitocondrial vem de uma terceira pessoa. Em 2000, Sharon Saarinen, de West Bloomfield, Michigan, deu à luz uma bebê saudável, Alana. O DNA nuclear de Alana veio de sua mãe, Sharon, e de seu pai, Paul, mas seu DNA mitocondrial veio de outra mulher. De uma perspectiva puramente técnica, Alana tem três pais biológicos. Um ano depois, em 2001, o governo dos Estados Unidos baniu esse tratamento em face de preocupações relacionadas com segurança e considerações éticas.
No entanto, em 3 de fevereiro de 2015, o Parlamento britânico votou a favor da chamada lei “do embrião de três pais”, que permite a realização desse tratamento — e a pesquisa a ele relacionada — no Reino Unido. Hoje é tecnicamente inexequível, e ilegal, substituir o DNA nuclear, mas, se e quando as dificuldades técnicas forem resolvidas, a mesma lógica que favoreceu a substituição de DNA mitocondrial defeituoso poderia afiançar tal procedimento com o DNA nuclear.
Depois da seleção e da substituição, o passo potencial seguinte é o da correção. Uma vez que se torne possível corrigir genes letais, por que passar pelo transtorno de inserir algum DNA estranho, quando se pode reescrever o código e transformar um perigoso gene mutante em sua versão benigna? Poderíamos então começar a usar o mesmo mecanismo para consertar, além de genes letais, todos os responsáveis por doenças menos fatais, como o autismo, a obesidade e a estupidez. Quem ia querer que seu filho sofresse de algum desses males? Suponha que um teste genético indicasse que sua filha ainda por nascer seria inteligente, bonita e bondosa — mas que sofreria de depressão crônica. Você não gostaria de salvá-la de anos de sofrimento com uma intervenção rápida e indolor num tubo de ensaio?
E já que você está por ali, por que não dar um pequeno empurrão à criança? A vida é dura e desafiadora até mesmo para pessoas saudáveis. Assim, seria muito conveniente que a menininha tivesse um sistema imunitário mais forte que o normal, uma memória acima da média, ou um humor especialmente bom. Talvez você não quisesse isso para sua filha — mas e se os vizinhos fizessem isso para os filhos deles? Você deixaria sua filha para trás? E se o governo proibisse todos os cidadãos de praticar engenharia genética com seus bebês, e os norte-coreanos a utilizassem, resultando na produção de gênios espantosos, artistas e atletas que de longe iriam nos superar em desempenho? Dessa maneira, engatinhando, estamos a caminho de um catálogo genético de crianças.
Curar é a justificativa inicial para cada uma dessas atualizações. Encontre alguns professores que fazem experimentos em engenharia genética ou em interfaces entre cérebro e computador e pergunte-lhes por que estão envolvidos em tal pesquisa. Muito provavelmente a resposta se relacionaria à cura de doenças. “Com a ajuda da engenharia genética”, explicariam, “podemos vencer o câncer. E se pudéssemos conectar cérebros e computadores diretamente, poderíamos curar a esquizofrenia.” Talvez, mas isso não termina por aí. Quando conectarmos com êxito cérebros e computadores, usaremos essa tecnologia somente para curar a esquizofrenia? Se alguém realmente acredita nisso, então ele ou ela pode saber muito sobre cérebros e computadores, porém muito pouco sobre a psique e a sociedade humanas. Depois de feita uma descoberta importante, não se poderá restringir seu uso para a cura nem proibir totalmente sua aplicação para atualizações.
Claro que os humanos podem limitar e limitam o uso de novas tecnologias. Os movimentos favoráveis à eugenia deixaram de ser apoiados depois da Segunda Guerra Mundial, e, embora o comércio de órgãos humanos atualmente seja não só possível como potencialmente muito lucrativo, ainda é visto como uma atividade marginal. Um dia projetar bebês pode se tornar tecnologicamente tão exequível quanto assassinar pessoas para colher seus órgãos — mas continua a ser algo marginal.
Assim como escapamos das garras da Lei de Tchékhov na guerra, podemos também escapar em outros campos de ação. Algumas armas aparecem no palco sem que jamais sejam disparadas. Por isso é tão vital pensar numa nova agenda para a humanidade. Exatamente porque temos alguma opção no que concerne ao uso de novas tecnologias, é melhor que compreendamos o que está acontecendo e tenhamos uma opinião a respeito, antes que isso tenha uma opinião por nós.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

terça-feira, 28 de maio de 2019

Meus sonhos

Os meus sonhos eram de muitas espécies mas representavam manifestações de um único estado de alma. Ora sonhava ser um Cristo, a sacrificar-me para redimir a humanidade, ora um Lutero, a quebrar com todas as convenções estabelecidas, ora um Nero, mergulhado em sangue e na luxúria da carne. Ora me via numa alucinação o amado das multidões, aplaudido, desfilando ao longo (...), ora o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadoramente para fora das suas casas, dos seus lares, ora o desprezado por todos embora o eleito do bem, por todos a sacrificar-me. Tudo o que lia, tudo o que ouvia, tudo o que via — cada ideia vinda de fora, cada (...), cada acontecimento era o ponto de partida de um sonho. Vinha de um circo e ficava em casa ousando imaginar-me um palhaço, com luzes em arco à minha volta. Via soldados passarem na minha mente a falarem com uma visão de mim próprio, tratando-me por capitão, chefiando, ordenando, vitorioso. Quando lia algo acerca de aventureiros imediatamente me convertia neles, por completo. Quando lia algo acerca de criminosos, morria por cometer crimes até me apavorar com o meu desarranjo mental. Conforme as coisas que via, ou ouvia, ou lia, vivia em todas as classes sociais, em todas as idades, em todas as épocas, passava através de todos os tempos, ultrapassava todas as dificuldades, era mártir, vitorioso de mais de um milhão de maneiras.

Mas o erótico, o místico, (...) — todos estes sonhos eram rios tributários que desaguavam num vasto eu — ou seja, eram todos parte de um vasto eu - o foco central de todos estes sonhos era a exaltação da minha personalidade.

Fernando Pessoa - Manuscrito, original em Inglês (1904-1908)

Gratidão filial

Os pais que esperam a gratidão dos filhos (há até os que a exigem) são usurários que alegremente arriscam o capital apenas se receberem juros.”
Franz Kafka, in Diário (12/11/1914)

08/02/92 - 01:16

O que os escritores fazem quando não estão escrevendo? Eu vou ao hipódromo. Nos meus primeiros tempos, ou passava fome ou trabalhava em empregos de revirar o estômago.
Agora, me mantenho afastado dos escritores – ou das pessoas que se dizem escritores. Mas entre 1970 e 1974, quando decidi ficar em um lugar e escrever ou morrer, os escritores vinham aqui, todos poetas. POETAS. E descobri uma coisa curiosa: nenhum deles tinha qualquer meio visível de sustento. Ou, se faziam leituras de poesias, poucos assistiam, digamos de quatro a 14 outros POETAS. Mas todos viviam em apartamentos razoavelmente bons e pareciam ter tempo de sobra para sentar no meu sofá e beber minha cerveja. Adquiri fama na cidade de ser o maluco, de fazer festas onde coisas inomináveis aconteciam e mulheres doidas dançavam e quebravam as coisas, ou que eu expulsava as pessoas da minha casa, ou que havia batidas policiais ou etc. etc. Muito disso era verdade. Mas eu também tinha que escrever para meu editor e para as revistas para conseguir dinheiro para o aluguel e o trago, e isto significava escrever prosa. Mas esses... poetas... só escreviam poesia... eu achava que eram superficiais e pretensiosas... mas eles continuavam com ela, vestiam-se razoavelmente bem, pareciam bem-alimentados, e tinham todo esse tempo pra sentar no sofá e tempo pra conversar – sobre sua poesia e sobre si mesmos. Muitas vezes, eu perguntava: “Escute, como você se sustenta?”. Eles só ficavam sentados, sorriam para mim, bebiam minha cerveja e esperavam que alguma das minhas doidas mulheres aparecesse, na esperança de que, de alguma forma, conseguissem um pouco de sexo, admiração, aventura ou seja lá o que for.
Estava ficando claro para mim que eu teria que me livrar desses bajuladores molengas. E, gradualmente, descobri seu segredo, um a um. Na maioria das vezes, nos bastidores, bem escondida, estava a MÃE. A mãe tomava conta destes gênios, pagava o aluguel, a comida e as roupas.
Lembro uma vez, numa rara saída de casa, eu estava sentado no apartamento desse POETA. Estava um saco, nada para beber. Ele ficou falando que era uma injustiça ele não ter maior reconhecimento. Os editores, todos conspiravam contra ele. Apontou o dedo para mim: “Você também, você disse pra Martin não me publicar!” Não era verdade. Daí, ele começou a reclamar e a se queixar sobre outras coisas. Então, tocou o telefone. Ele atendeu e começou a falar bem baixinho e reservadamente. Desligou e virou-se para mim.
É a minha mãe, ela está vindo pra cá. Você tem que ir embora.”
Tudo bem, gostaria de conhecer a sua mãe.”
Não! Não! Ela é horrível! Você tem que ir embora! Agora! Rápido!”
Tomei o elevador e saí. E risquei-o de meu caderno.
Havia um outro. A mãe pagava para ele a comida, o carro, o seguro, o aluguel e até mesmo escrevia parte dos seus poemas. Inacreditável. E isso aconteceu durante décadas.
Havia outro cara, parecia sempre muito calmo, bem-alimentado. Dava aulas numa oficina de poesia em uma igreja todos os domingos de tarde. Tinha um bom apartamento. Era membro do partido comunista. Digamos que seu nome fosse Fred. Perguntei a uma senhora que frequentava sua oficina e que o admirava muito: “Escute, como o Fred se sustenta?”. “Bem”, disse ela, “Fred não quer que ninguém saiba, porque ele é muito reservado sobre isso, mas ele ganha dinheiro limpando caminhões de comida.”
Caminhões de comida?”
É, você sabe, essas caminhonetes que entregam café e sanduíches no intervalo e no almoço nos locais de trabalho, bem, esses caminhões de comida.”
Passaram uns dois anos e então foi descoberto que Fred também era proprietário de dois edifícios de apartamentos e que vivia principalmente dos aluguéis. Quando descobri isso, tomei um trago e fui até o apartamento de Fred. Ficava em cima de um pequeno teatro. Um lugar pretensiosamente artístico. Saltei para fora do carro e toquei a campainha. Ele não respondeu. Eu sabia que ele estava lá. Tinha visto sua sombra passando atrás das cortinas. Voltei para o carro e comecei a tocar a buzina e a gritar: “Ei, Fred, sai daí!”. Joguei uma garrafa de cerveja em uma das suas janelas. Picou e voltou. Isso o fez se mexer. Saiu na varanda e me espiou. “Bukowski, vá embora!”
Fred, vem aqui embaixo que eu vou te dar um chute na bunda, seu comunista proprietário de terras!”
Ele correu para dentro. Fiquei lá parado, esperando por ele. Nada. Então, me ocorreu que ele estava chamando a polícia. Já tinha encontrado demais a polícia. Entrei no carro e fui pra casa.
Outro poeta vivia nessa casa na beira do mar. Uma casa legal. Ele nunca tinha emprego. Eu ficava pegando no pé dele: “Como você se sustenta? Como você se sustenta?”. Afinal, ele confessou. “Meus pais têm propriedades e eu cobro o aluguel para eles. Eles me pagam um salário.” Ele ganhava um salário e tanto, imagino. De qualquer forma, pelo menos ele me contou.
Alguns nunca contam. Havia esse outro cara. Escrevia bons poemas, mas muito poucos. Sempre tinha seu bom apartamento. Ou estava indo para o Havaí ou algum outro lugar. Era um dos mais descontraídos. Sempre de roupas novas e recém-passadas, de sapatos novos. Sempre bem barbeado, de cabelo bem cortado; tinha dentes cintilantes. “Vamos lá, cara, como você se sustenta?” Nunca falou. Nem mesmo sorria. Só ficava lá parado, em silêncio.
E também há um outro tipo que vive de caridade. Escrevi um poema sobre um deles, mas nunca publiquei porque, no fundo, sentia pena dele. Aqui está parte do poema:
João com o cabelo solto, João exigindo dinheiro, João da barriga grande, João da voz alta, alta, João da troca, João que se exibe para as garotas, João que acha que é um gênio, João que vomita, João que fala mal dos sortudos, João ficando cada vez mais velho, João ainda exigindo dinheiro, João escorregando pelo pé de feijão, João que fala mas não faz, João que escapa impune do assassinato, João que faz biscates, João que fala dos velhos tempos, João que fala e fala, João com a mão estendida, João que aterroriza os fracos, João, o amargurado, João dos cafés, João implorando reconhecimento, João que nunca tem emprego, João que superestima totalmente seu potencial, João que fica gritando sobre seu talento não reconhecido, João que culpa a todos.
Você sabe quem é João, você o viu ontem, você o verá amanhã, você o verá semana que vem.
Querendo sem fazer, querendo de graça.
Querendo fama, querendo mulheres, querendo tudo.
Um mundo cheio de Joãos descendo pelo pé de feijão.
Já estou cansado de escrever sobre poetas. Mas devo acrescentar que estão prejudicando a si mesmos vivendo como poetas em vez de outra coisa. Trabalhei como um trabalhador comum até os 50 anos. Vivia espremido entre as pessoas. Nunca pretendi ser um poeta. Não estou dizendo que trabalhar para viver seja uma grande coisa. Na maioria das vezes, é horrível. E muitas vezes você tem que lutar para manter um emprego horrível porque existem 25 caras atrás de você prontos para pegar o mesmo emprego. É claro que é sem sentido, é claro que te arrasa. Mas acho que estar nesta confusão me ensinou a deixar a frescura de lado quando escrevia. Acho que você tem que enfiar a cara na lama, de vez em quando, acho que você tem que saber o que é uma prisão, o que é um hospital. Acho que você tem que saber o que é ficar sem comer por uns quatro ou cinco dias. Acho que viver com mulheres loucas faz bem para a espinha. Acho que você pode escrever com satisfação e liberdade depois de passar pelo aperto. Só digo isso porque todos os poetas que conheci têm sido uns frouxos, uns parasitas. Não tinham nada para escrever, exceto sua egoísta falta de persistência.
Sim, fico longe dos POETAS. Você me culpa por isso?
Charles Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

Capítulo 104 - Era ele!

Restitui o grampo a Virgília, que o repregou nos cabelos, e preparou-se para sair. Era tarde; tinham dado três horas. Tudo estava esquecido e perdoado. Dona Plácida, que espreitava a ocasião idônea para a salda, fecha subitamente a janela e exclama:
- Virgem Nossa Senhora! aí vem o marido de Iaiá!
O momento de terror foi curto, mas completo. Virgília fez-se da cor das rendas do vestido, correu até a porta da alcova; Dona Plácida, que fechara a rótula, queria fechar também a porta de dentro; eu dispus-me a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgília tomou a si, empurrou-me para a alcova, disse a Dona Plácida que voltasse à janela; a confidente obedeceu.
Era ele. Dona Plácida abriu-lhe a porta com muitas exclamações de pasmo: - O senhor por aqui! honrando a casa de sua velha! Entre, faça favor. Adivinhe quem está cá... Não tem que adivinhar, não veio por outra coisa... Apareça, Iaiá.
Virgília, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala.
- Que é isto? exclamou Virgília. Você por aqui?
- Ia passando, vi Dona Plácida à janela, e vim cumprimentá-la.
- Muito obrigada, acudiu esta. E digam que as velhas não valem alguma coisa... Olhai, gentes! Iaiá parece estar com ciúmes. E acariciando-a muito: - Este anjinho é que nunca se esqueceu da velha Plácida. Coitadinha! é mesmo a cara da mãe. Sente-se, senhor Doutor...
- Não me demoro.
- Você vai para casa? disse Virgília. Vamos juntos.
- Vou.
- Dê cá o meu chapéu, Dona Plácida.
- Está aqui.
Dona Plácida foi buscar um espelho, abriu-o diante dela. Virgília punha o chapéu, atava as fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que não respondia nada. A nossa boa velha tagarelava demais; era um modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgília, dominado o primeiro instante, tomara à posse de si mesma.
- Pronta! disse ela. Adeus, Dona Plácida; não se esqueça de aparecer, ouviu? A outra prometeu que sim, e abriu-lhes a porta.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Calendário

Maio, de hábito, demora-se à porta,
como o vizinho, o carteiro, o cachorro.
Das três imagens, porém, nenhuma diz

do que houve, para meu susto, àquele ano.
O quinto mês pulou o muro alto do dia
como só fazem os rapazes, mas logo

pelos quartos e sala convertia o ar em águas
definitivamente femininas. Eu
tentava decifrar. Mas

deitou-se comigo e, então, já não era isso
nem seu avesso: a camisa azul despia
azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

de si mesmas, eu diria, e não sei ter
em conta senão que eram o que eram. Partiu
do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

Maio, maravilha sem entendimento,
demora-se à porta, como o vizinho,
o carteiro, o cachorro. Porém,

nenhuma das três imagens, tampouco
este poema, diz do que houve, para meu susto,
àquele ano.
Eucanaã Ferraz

Globalização x direitos humanos

A globalização econômica é compatível com os direitos humanos? Temos de nos colocar essa pergunta e verificar que a resposta é que ou existe globalização ou existem direitos humanos, por mais que os poderes tenham a hipocrisia de dizer que a globalização favorece os direitos humanos, quando o que ela faz é fabricar excluídos. A globalização é simplesmente uma nova forma de totalitarismo, que não precisa chegar sempre vestindo uma camisa azul, marrom ou preta e com o braço em riste; o totalitarismo tem muitas faces, e a globalização é uma delas. Para reverter a situação, seria preciso voltar a Marx e a Engels, embora seja quase politicamente incorreto se referir a esses cadáveres da história quando a ideologia parece que morreu.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

O culto ao infinito

Não posso falar do infinito sem sentir uma dupla vertigem, interior e exterior - como se, deixando uma existência ordenada, eu me lançasse num redemoinho, movendo-me na imensidão à velocidade do pensamento. Este trajeto tende a um ponto eterno inacessível. Quanto mais se foge para esta incalculável distância, mais a vertigem parece intensa. Seus meandros, sempre estranhos à destreza da graça, desenham contornos tão complicados quanto aos das chamas cósmicas. Tudo não passa de choque e trepidação; o mundo inteiro parece agitar-se numa louca cadência, como se às vésperas do apocalipse. Não há sentimento profundo do infinito sem esta sensação estranha, vertiginosa, da iminência do Fim. O infinito dá, paradoxalmente, tanto a sensação de um fim acessível, quanto a certeza de não se poder aproximar dele. Pois o infinito - no espaço e no tempo - não conduz a nada. Como poderíamos alcançar o que quer que seja no futuro, enquanto temos atrás de nós uma eternidade de fracassos? Se o mundo tivesse sentido, nós receberíamos, no mesmo instante, a revelação. Mas o mundo não tem sentido; irracional em sua essência, ele é, além disso, infinito. O sentido só pode ser concebido, com efeito, num mundo finito, no qual se pode alcançar alguma coisa; um mundo que não tolera o retrocesso, um mundo de referências certas e bem definidas, um mundo assimilável a uma história convergente, tal como quer a teoria do progresso. O infinito não conduz a lugar nenhum, pois tudo nele é provisório e caduco; nada é suficiente para o ilimitado. Ninguém pode provar o infinito sem uma perturbação profunda e única. Como não ficar perturbado, com efeito, se todas as direções se equivalem?
O infinito enfraquece qualquer tentativa de resolver o problema do sentido. Esta impossibilidade concede-me uma volúpia demoníaca e regozijo-me mesmo da ausência de sentido. Para quê ele serviria em definitivo? Não podemos verdadeiramente viver sem ele? O non-sense não se perfaz na embriaguez do irracional, numa orgia ininterrupta? Vivamos, então, já que o mundo é desprovido de sentido! Enquanto não temos nenhum objetivo preciso, nenhum ideal acessível, lancemo-nos sem reservas na terrível vertigem do infinito, sigamos seus meandros no espaço, consumamo-nos em suas chamas, amemo-lo por sua loucura cósmica e sua total anarquia! Esta que faz parte da experiência do infinito - uma anarquia orgânica e irremediável. Não se pode representar a anarquia cósmica quem já não traz em si os germes dela. Viver a infinitude, bem como refleti-la longamente, é receber a mais terrível das lições de revolta. O infinito desorganiza-nos e atormenta - ele compromete as fundações do nosso ser, mas também nos faz negligenciar tudo o que é insignificante, contingente.
Que alívio poder, tendo perdido toda esperança, lançar-se no infinito, mergulhar com todas as forças no ilimitado, participar da anarquia universal e das tensões desta vertigem! Percorrer, como que levado numa corrida extenuante, toda a demência de um movimento ininterrupto, consumir-se no mais dramático elan, pensando menos na morte do que na sua própria loucura, realizar plenamente um sonho de barbárie universal e de exaltação sem limites!
Que ao fim desta vertigem nossa queda não seja uma extinção progressiva, mas que nós continuemos esta frenética agonia no caos do turbilhão inicial. Possa o páthos do infinito abrasar-nos outra vez na solidão da morte, a fim de que nossa passagem para o nada pareça uma iluminação, amplificando ainda o mistério e a falta de sentido deste mundo! Na surpreendente complexidade do infinito, reencontramos, como elemento constitutivo, a negação categórica da forma, de um plano determinado. Processo absoluto, o infinito anula tudo o que é consistente, cristalizado, concluído. A arte que melhor expressa o infinito, afinal, não é a música?, que funde as formas numa fluidez de charme inefável? A forma tende incessantemente a cristalizar o menor fragmento, a eliminar a perspectiva do infinito e do universal; as formas somente existem para subtrair do caos e da anarquia os conteúdos da vida. Toda visão profunda revela a que ponto tal consistência é ilusória aos olhos da vertigem do ilimitado, pois, para além das cristalizações efêmeras, a realidade aparece como uma intensa pulsação. O gosto das formas resulta de um abandono a tudo o que é findo e às seduções inconsistentes da limitação, que distanciam para sempre as revelações metafísicas. Com efeito, assim como a música, a metafísica surge da experiência do infinito. Tanto uma quanto a outra prosperam nas alturas e são portadoras de vertigens. Nunca pude entender que os responsáveis por criar obras capitais em seus domínios não fossem loucos. Ainda mais que todas as artes, a música exige uma tensão tão grande que se deveria, depois de tais momentos, cair num entorpecimento. Se o mundo obedecesse a uma coerência imanente e necessária, os grandes compositores deveriam, no ápice de sua arte, suicidar-se ou perder a razão. Todos aqueles fascinados pelo infinito não se encontram, acaso, na trilha do delírio? Nós temos apenas que fazer a normalidade ou a anormalidade. Vivamos no êxtase do ilimitado, amemos tudo o que não conhece fronteiras, destruamos as formas e criemos o único culto que pode isentar-se: o culto ao infinito.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Na cadeira do dentista

Admiro os dentistas, profissionais que usam em seu trabalho instrumentos pontiagudos e afiados; no entanto, o fazem com extrema paciência. Alguns esbanjam delicadeza e tato. Claro que a anestesia ajuda muito; mesmo assim, os gestos meticulosos das mãos do dentista, a inclinação da broca ou da pinça, a própria agulhada da anestesia, tudo isso depende de uma habilidade ímpar.
Dentistas são seres solitários diante do sofrimento do paciente, por isso exercitam um monólogo demorado, a fim de exorcizar a solidão. Um paciente de boca aberta, mas incapaz de pronunciar uma palavra parece uma estátua viva, anestesiada. Não pode falar nem sorrir. Rir, nem pensar. Talvez concorde ou discorde com um som gutural, patético, que vez ou outra se confunde com um esgar de sofrimento.
Há mais de dez anos um dentista começou a contar por que era infeliz com a esposa, e quando tive vontade de dizer algo — ou pude de fato falar — ele já contava as delícias do terceiro casamento.
Já nem sei quantas histórias de vida ouvi enquanto o dentista fazia o tratamento de um canal. E basta uma limpeza de dentes para que o paciente escute — entre tártaros retirados com uma pinça inclemente — um episódio picante, um lance venturoso ou desconcertante da vida do profissional ou da vida alheia.
Gosto de dentistas indiscretos e dos que inventam histórias durante a consulta. É um momento raro em que o paciente sentado ou quase deitado assume ares de psicanalista. Enquanto a broca zune, a voz do dentista narra cenas extraordinárias ou viagens insólitas; no fim, com a gengiva inchada e a boca insensível pela anestesia capaz de derrubar um cavalo, sinto-me revigorado por ter escutado tantas histórias.
Na minha relação com os dentistas ou com a odontologia, lembro-me de dois episódios marcantes. O primeiro, traumático, me remete ao dentista da minha adolescência. Era um homem pouco sutil, cujo olhar penetrante e a cabeça careca e reluzente lembravam o ator russo Yul Brynner. A decoração do consultório parecia o cenário de um romance gótico. Tudo era tétrico e sombrio, e quando Yul Brynner acendia o foco, eu sabia que ia sofrer.
Talvez ele tenha sido o penúltimo boticário da minha cidade. Mas isso era o de menos. Certa vez, enquanto arrancava um dente, cantava uma ária com uma voz tão cortante e desafinada que meus ouvidos doíam mais que a boca. Esse solista romântico e fora do tom quase me enlouqueceu. Quando saí do consultório, procurei um dentista mudo, mas nenhum dentista do mundo é totalmente mudo.
Minha segunda lembrança não aconteceu na cadeira do paciente, e sim na sala de aula. Eu lecionava literatura francesa e, pouco antes do começo do semestre letivo, o chefe do departamento me escalou para dar aula de francês instrumental para finalistas do curso de odontologia. Em poucos dias, tive que ler artigos em francês sobre gengivite, periodontite, formação de bolsas peridentais, cirurgia maxilofacial, implantes; tive que aprender o nome de dezenas de tipos de brocas e pinças, e essa terminologia técnica me causou pesadelos, como se eu fosse um paciente de pé na sala cheia de estudantes ávidos de aprender palavras e frases de odontologia na língua de Maupassant.
No fim do curso, fui convidado a assistir a algumas aulas práticas, em que os finalistas exibiam sua habilidade de quase dentistas na boca dos pobres e humildes da minha cidade. Um aluno que atendia a uma mulher idosa quis explicar a causa de um sangramento na gengiva da paciente. Fechei os olhos e murmurei alguma coisa, concordando com a explicação. Depois ele disse: “Esta senhora nunca tratou dos dentes, por isso ela perdeu quase todos”. E então soube que de cada dez pacientes, três eram desdentados. Também essa palavra — desdentados — os alunos conheciam em francês. Mas será necessário aos alunos de odontologia um curso de francês instrumental se milhões de brasileiros pobres não podem escovar os dentes nem tratá-los?
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita