terça-feira, 30 de abril de 2019
O dogma científico
A
ciência moderna não tem dogma. Mas tem um conjunto de métodos de
pesquisa em comum, todos baseados em coletar observações empíricas
– aquelas que podemos observar com pelo menos um dos nossos
sentidos – e reuni-las com a ajuda de ferramentas matemáticas.
Ao
longo da história, as pessoas coletaram observações empíricas,
mas a importância dessas observações geralmente era limitada. Por
que desperdiçar recursos preciosos fazendo novas observações
quando já temos todas as respostas de que necessitamos?
Mas
à medida que a pessoas modernas passaram a admitir que não
conheciam as respostas para algumas perguntas muito importantes,
acharam necessário procurar conhecimentos completamente novos. Em
consequência, o método de pesquisa predominante na atualidade parte
do princípio de que o conhecimento antigo é insuficiente. Em vez de
estudar as antigas tradições, hoje se dá ênfase a novas
observações e experimentos. Quando as observações atuais se
chocam com tradições passadas, damos precedência às observações.
É claro, físicos examinando o espectro de galáxias distantes,
arqueólogos analisando as descobertas de uma cidade da Era do Bronze
e cientistas políticos estudando o surgimento do capitalismo não
desconsideram a tradição. Eles começam estudando o que os sábios
do passado disseram e escreveram. Mas, desde seu primeiro ano de
faculdade, os aspirantes a físicos, arqueólogos e cientistas
políticos aprendem que é sua missão ir além do que Einstein,
Heinrich Schliemann e Max Weber conheceram. Meras observações, no
entanto, não são conhecimento. Para entender o universo, precisamos
relacionar as observações em teorias abrangentes. As tradições
anteriores geralmente formulavam suas teorias na forma de histórias.
A ciência moderna usa a matemática.
Há
muito poucas equações, gráficos e cálculos na Bíblia, no Corão,
nos Vedas ou nos clássicos confucionistas. Quando as mitologias e
escrituras tradicionais estabeleciam leis gerais, estas eram
apresentadas em forma narrativa, em vez de matemática. Desse modo,
um princípio fundamental da religião maniqueísta afirmava que o
mundo é um campo de batalha entre o bem e o mal. Uma força maligna
criou a matéria, ao passo que uma força benigna criou o espírito.
Os humanos estão presos entre essas duas forças e devem escolher o
bem em detrimento do mal. Contudo, o profeta Mani não fez qualquer
tentativa de oferecer uma fórmula matemática que pudesse ser usada
para prever escolhas humanas por meio da quantificação da força
respectiva dessas duas forças. Ele nunca calculou que “a força
atuando sobre um homem é igual à aceleração de seu espírito
dividida pela massa de seu corpo”.
Isso
é exatamente o que os cientistas tentam alcançar. Em 1687, Isaac
Newton publicou os Princípios matemáticos da filosofia natural,
provavelmente o livro mais importante da história moderna. Newton
apresentou uma teoria geral do movimento e da mudança. A grandeza da
teoria de Newton foi sua capacidade de explicar e prever os
movimentos de todos os corpos do universo, de maçãs despencando a
estrelas cadentes, usando três leis matemáticas muito simples:
Daí
em diante, qualquer pessoa que quisesse entender e prever o movimento
de uma bala de canhão ou de um planeta simplesmente tinha de medir a
massa, a direção e a aceleração do objeto e as forças atuando
sobre ele. Ao inserir esses números na equação de Newton, podia
prever a posição futura do objeto. Funcionava como mágica. Somente
por volta do fim do século XIX os cientistas se depararam com
algumas observações que não se enquadravam muito bem nas leis de
Newton, e estas levaram às revoluções seguintes na física – a
teoria da relatividade e a mecânica quântica.
Newton
mostrou que o livro da natureza está escrito na linguagem da
matemática. Alguns capítulos (por exemplo) se reduzem a uma equação
simples; mas estudiosos que tentaram reduzir a biologia, a economia e
a psicologia a equações newtonianas precisas descobriram que esses
campos têm um nível de complexidade que torna inútil tal
aspiração. Mas isso não significa que eles desistiram da
matemática. Ao longo dos últimos 200 anos, desenvolveu-se um novo
ramo da matemática para lidar com os aspectos mais complexos da
realidade: a estatística.
Em
1744, dois clérigos presbiterianos na Escócia, Alexander Webster e
Robert Wallace, decidiram criar um fundo de seguro de vida que
pagaria pensões a viúvas e órfãos de clérigos falecidos. Eles
propuseram que cada um dos pastores de sua igreja dedicasse uma
pequena parte de sua renda para o fundo, que investiria o dinheiro.
Se um pastor morresse, sua esposa receberia dividendos sobre os
lucros do fundo. Isso lhe permitiria viver confortavelmente pelo
resto da vida. Porém, para determinar quanto os pastores tinham de
pagar a fim de que o fundo tivesse dinheiro suficiente para honrar
suas obrigações, Webster e Wallace precisavam ser capazes de prever
quantos pastores morreriam a cada ano, quantas viúvas e órfãos
eles deixariam e quantos anos as viúvas viveriam a mais do que os
maridos.
Observe
o que os dois clérigos não fizeram. Eles não rezaram para que Deus
lhes revelasse a resposta. Nem procuraram a resposta nas Escrituras
Sagradas ou nas obras de teólogos antigos. Tampouco entraram em uma
discussão filosófica abstrata. Sendo escoceses, eram sujeitos
práticos. Então, contataram um professor de matemática da
Universidade de Edimburgo, Colin Maclaurin. Os três reuniram dados
sobre a idade em que as pessoas morriam e usaram esses dados para
calcular quantos pastores provavelmente morreriam em determinado ano.
Seu
trabalho se baseou em vários avanços recentes no campo da
estatística e da probabilidade. Um desses avanços foi a Lei dos
Grandes Números, de Jacob Bernoulli. Bernoulli havia codificado o
princípio de que, embora fosse difícil prever com certeza um
acontecimento específico, como a morte de uma pessoa em particular,
era possível prever com grande precisão o resultado médio de
muitos acontecimentos similares. Isto é, embora Maclaurin não
pudesse usar a matemática para prever se Webster e Wallace morreriam
no ano seguinte, ele podia, com dados suficientes, dizer a Webster e
Wallace quantos pastores presbiterianos na Escócia quase certamente
morreriam no ano seguinte. Por sorte, eles já contavam com os dados
que poderiam usar. Tábuas atuariais publicadas 50 anos antes por
Edmond Halley mostraram-se especialmente úteis. Halley havia
analisado registros de 1.238 nascimentos e 1.174 mortes, obtidos da
cidade de Breslávia, na Alemanha. As tábuas de Halley permitiram
constatar, por exemplo, que uma pessoa de 20 anos de idade tinha uma
chance em 100 de morrer em determinado ano, mas uma pessoa de 50 anos
de idade tinha uma chance em 39.
Processando
esses números, Webster e Wallace concluíram que, em média, haveria
930 pastores presbiterianos escoceses vivendo em um dado momento, e
uma média de 27 pastores morria por ano, 18 dos quais deixariam
viúvas. Cinco dos que não deixariam viúvas deixariam filhos
órfãos, e dois dos que deixariam viúvas deixariam também filhos
de casamentos anteriores que ainda não haviam completado 16 anos de
idade. Posteriormente, eles calcularam quanto tempo deveria se passar
até a viúva morrer ou se casar novamente (em ambos os casos, o
pagamento da pensão cessaria). Com esses números, Webster e Wallace
puderam determinar quanto dinheiro os pastores que aderissem ao fundo
teriam de pagar para garantir o futuro de seus entes queridos.
Contribuindo com 2 libras, 12 xelins e 2 pence por ano, um pastor
podia garantir que a esposa viúva receberia pelo menos 10 libras por
ano – uma soma considerável naqueles dias. Se achasse que isso não
era suficiente, podia escolher pagar mais, até o limite de 6 libras,
11 xelins e 3 pence por ano – o que garantiria à viúva a soma
ainda mais atraente de 25 libras por ano.
De
acordo com seus cálculos, no ano 1765 o Fundo de Pensão para as
Viúvas e os Filhos dos Pastores da Igreja da Escócia teria um
capital totalizando 58.348 libras. Seus cálculos se mostraram
incrivelmente precisos. Quando esse ano chegou, o capital do Fundo
era 58.347 libras – apenas uma libra esterlina a menos que o
previsto! Isso era ainda melhor do que as profecias de Habacuque,
Jeremias ou são João. Hoje, o fundo de Webster e Wallace, conhecido
simplesmente como Scottish Widows, é uma das maiores empresas de
seguros e pensões do mundo. Com ativos no valor de 100 bilhões de
libras, oferece garantias não só a viúvas escocesas, mas a
qualquer um disposto a comprar suas apólices.
Cálculos
de probabilidade como os usados pelos dois pastores escoceses se
tornaram a base não só da ciência atuarial, que é fundamental
para o negócio de seguros e pensões, como também da ciência da
demografia (fundada por outro clérigo, o anglicano Thomas Malthus).
A demografia, por sua vez, foi o pilar sobre o qual Charles Darwin
(que quase se tornou pastor anglicano) construiu sua teoria da
evolução. Embora não existam equações capazes de prever que tipo
de organismo evoluirá sob certas condições específicas, os
geneticistas usam cálculos para determinar a probabilidade de uma
mutação específica se disseminar em uma população dada. Modelos
probabilísticos similares se tornaram centrais para a economia, a
sociologia, a psicologia, a ciência política e as outras ciências
sociais e naturais. Até mesmo a física acabou por complementar as
equações clássicas de Newton com as nuvens de probabilidade da
mecânica quântica.
Basta
observar a história da educação para perceber a que ponto esse
processo nos levou. Durante a maior parte da história, a matemática
era um campo hermético que até mesmo as pessoas instruídas raras
vezes estudavam seriamente. Na Europa medieval, a lógica, a
gramática e a retórica formavam o núcleo educacional, ao passo que
o ensino de matemática quase nunca ia além da simples aritmética e
geometria. Ninguém estudava estatística. A monarca incontestável
de todas as ciências era a teologia.
Hoje,
poucos estudam retórica; a lógica está restrita aos departamentos
de filosofia, e a teologia, aos seminários. Mas cada vez mais
estudantes são motivados – ou forçados – a estudar matemática.
Há um movimento irresistível rumo às ciências exatas –
definidas como “exatas” por usarem ferramentas matemáticas. Até
mesmo áreas de estudo que tradicionalmente faziam parte das
humanidades, como o estudo da linguagem humana (linguística) e da
psique humana (psicologia), se apoiam cada vez mais na matemática e
tentam se apresentar como ciências exatas. Os cursos de estatística
hoje são parte dos requisitos básicos não só na física e na
biologia como também na psicologia, na sociologia, na economia e na
ciência política.
No
programa de psicologia da minha própria universidade, o primeiro
curso obrigatório no currículo é “Introdução à Estatística e
à Metodologia em Pesquisa Psicológica”. Estudantes de psicologia
do segundo ano cursam “Métodos Estatísticos em Pesquisa
Psicológica”. Confúcio, Buda, Jesus e Maomé teriam ficado
perplexos se lhes contássemos que, para entender a mente humana e a
cura de suas doenças, primeiro é preciso estudar estatística.
Yuval
Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade
Deveres humanos
“Todo
mundo fala de direitos, mas ninguém fala de deveres. Talvez não
fosse má ideia inventar um Dia dos Deveres Humanos.”
José
Saramago, in As palavras de Saramago
O peixe
Tendo
por berço o lago cristalino,
Folga
o peixe, a nadar todo inocente,
Medo
ou receio do porvir não sente,
Pois
vive incauto do fatal destino.
Se
na ponta de um fio longo e fino
A
isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando
o pobre peixe de repente,
Preso
ao anzol do pescador ladino.
O
camponês, também, do nosso Estado,
Ante
a campanha eleitoral, coitado!
Daquele
peixe tem a mesma sorte.
Antes
do pleito, festa, riso e gosto,
Depois
do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre
matuto do sertão do Norte!
Patativa
do Assaré
O homem que compreendeu
Consagrou-se
ao marcar trinta e sete gols num jogo. Sua média de gols por partida
ficou vinte e seis, nunca menos. Não havia beques para escorá-lo,
nem esquemas para anular seu jogo rápido, bonito, eficiente. Jogava
para ele, para o time e para o público. A bola, em seus pés,
ninguém tirava. Ela parecia grudar na chuteira. Atraía a bola, como
um ímã. Bola rebatida, espirrada, dividida, era dele. Distribuía
com perfeição, lançava com precisão. Mas só aceitava jogar com
jogador inteligente. Os outros tinham receio quando entravam em
campo, ao seu lado. Seriam humilhados e xingados, se errassem. Não
respondiam, abaixavam a cabeça, concordavam. E se esforçavam, davam
tudo. Então, eram jogos maravilhosos, corridos. Ele mandava e
desmandava, dava a escalação, isolava jogadores, formava outros.
Sempre falando pouco, apenas olhando, o olhar firme, frio, que dizia
tudo. Não dava entrevistas, tratava mal a imprensa, ria dos
cronistas, dizia que eram analfabetos. Os juízes não chamavam sua
atenção. Ele fazia os juízes abaixarem a cabeça. Mas, de um modo
ou de outro, era disciplinado. Quando fazia, fazia sem que vissem.
Pontapés no tornozelo, paulistinhas, bico de chuteira no joelho,
socos no estômago, no fígado, nos rins. Provocava os adversários,
ria deles, desprezava-os, passava a bola debaixo das pernas, dava
chapéus, lençóis, ficava girando em volta do outro com a bola
presa, e o outro, bobo. Era odiado. Também o público, apesar do
espetáculo que ele dava, o odiava. O fluido dele com o público era
estranho, funcionava ao contrário. Iam vê-lo, porque a cada jogo
ele inventava uma coisa: um dia era um gol de traseiro, no outro,
driblava o time inteiro, deixava a bola na risca do gol, depois,
jogava dez minutos numa perna só, entrava em campo de óculos
escuros. Um dia telefonou para os jornais, disse que estava numa
boate, bebendo e cheio de mulheres. Fotografia, dessa vez ele se
arrebenta. Deixou a boate às sete da manhã. À tarde, marcou vinte
e cinco gols. Correu mais que nos outros dias. Não se machucava.
Entrava em jogadas que partiriam em cinquenta qualquer perna e saía
com a bola. Oferecia a canela para os chutes. As travas das chuteiras
escorregavam pela sua pele, não entravam. Tinha os reflexos
perfeitos, raciocinava seis vezes num milésimo de segundo. Até que
um dia de muito calor, após uma hora e meia de ginástica, todo o
time pregou. Ele riu e saiu correndo em volta do campo. Deu cinquenta
voltas. Depois, foi treinar chutes a gol. Quando parou, o professor
de educação física se aproximou. Olhando fixamente em seus olhos,
o professor teve medo. E compreendeu.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas
segunda-feira, 29 de abril de 2019
Simplicidade
“A
simplicidade é o que há de mais difícil no mundo: é o último
reduto da experiência, a derradeira força do gênio.”
George
Sand
Contemplações do poeta ao cair da noite
Ainda
há pouco, a reler a página admirável de frei Luís de Sousa, cujo
título, possivelmente dado pelos antologistas Álvaro Lins e Aurélio
Buarque de Holanda, é (se em vez de poeta ler-se arcebispo) o mesmo
desta crônica, tive a alegria de verificar quão parecidas eram as
minhas noites de solidão em Montevidéu, com as de frei Bertolameu
dos Mártires, mais de três séculos antes. Como o santo arcebispo,
também eu passava o dia todo dando expediente, quiçá de menos
hierarquia, pois enquanto ele devia andar às voltas com despachos
celestiais, tinha eu a meu cargo despachos marítimos e terrestres,
além da firmação de passaportes e faturas e da contagem diária
dos emolumentos consulares.
E
como fazia ele, com relação às coisas divinas, eu, ao fechar-se a
noite sobre o cerro que provocou no descobridor a exclamação
nominativa da cidade, depois de um curto trajeto de automóvel até o
bairro de Pocitos, onde tenho meu apartamento num sétimo andar
“pagava-me o peso do dia, e do trabalho com um passatempo
malconhecido no mundo, e ao menos buscado de poucos (e ainda mal, que
se muitos o buscaram fora melhor ao mundo)”. Entregava-me a uma
profunda contemplação da bem-amada ausente. Esta era a maneira de
vencer a distância irremediável que se estendia diante dos meus
olhos voltados para o norte e que às vezes buscavam, na linha
descendente de Alfa e Beta de Centauro, o ponto exato onde ela, de
sua janela sobre o parque, devia também pensar em mim.
E
não se maravilhe ninguém de que eu, tal o arcebispo, passasse com
tanta facilidade dos negócios à contemplação. Não tinha, é
claro, “dês da primeira idade feito hábito neste santo
exercício”. Mas o que me faltava em penitências, sobrava-me em
ternura e querer-bem. E se nele “este antigo costume lhe trazia a
viola do espírito tão temperada sempre, que em qualquer conjunção
que largava o negócio, logo a achava prestes para sem detença
entoar as músicas da Celestial Jerusalém, e ficar absorto nos
prazeres do divino ócio”, eu por mim tinha sempre bem afinado o
meu violão Del Vecchio, e me comprazia em machucar-me as saudades
com os doridos acordes de tantas canções feitas para a bem-amada. E
assim não me era por nada difícil passar de faturas a doçuras, e
desligar-me da rotina do trabalho para a comunhão com a amiga
distante, num lento evolar-se do meu ser empós sua adorável imagem,
que às vezes parecia corporificar-se na lua que estava no céu. E
não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce
conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu
esvaindo-me de amor em seu luar. Pois era aquele o luar do meu bem no
seu pungente exílio, a segredar-me que, mesmo ausente, ali estava
para iluminar as minhas horas; e eu tivesse paciência e a esperasse
dentro e fora de mim, que ela se vestira toda de luz para o nosso
futuro encontro; e não me desesperasse, pois estava próximo o dia
em que nunca mais nos haveríamos de separar.
De
outros turnos - como no caso de frei Bertolameu, que dessem-lhe azo
os negócios, “subia sobre tarde a um eirado que mandou fazer em
uma casa das mais altas do Paço; e como o passarinho, que depois de
andar todo o dia ocupado na fábrica de seu ninho, quando vai caindo
o Sol, e as sombras crescendo, estende as asas pelo ar, dando umas
voltas alegres, e desenfadadas, que parece não bole pena, ou posto
sobre um raminho canta descansadamente”, - também eu deixava-me
estar no terraço de meu apartamento, um dos mais altos de Pocitos: e
feito ele que, à imagem da avezinha, “depois de alargar os olhos
pelas serras e outeiros, que do alto se descobriam, estendia os de
sua alma às maiores alturas do Céu, voava com a consideração por
aquelas eternas moradas, desabafava, e em voz baixa entoava de quando
em quando alegres Hinos” - eu por minha vez, ante a ideia de
compartilhar com a bem-amada a visão dos amplos espaços
crepusculares do estuário do rio da Prata, e de rodeá-la, com meus
braços dentro das iluminações do poente oriental, punha-me, tal um
menino que, ai de mim, já não sou mais, a tamborilar com os dedos e
a cantar com ela alegres sambas do meu Rio, que não é da Prata nem
do Ouro, mas que é cidade de muito instante, e em hoje mora, em casa
única, o meu antes triste e multifário coração.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
O dono da verdade
O
homem que se gaba de só dizer a verdade é simplesmente um homem sem
nenhum respeito por ela. A verdade não é uma coisa que rola por aí,
como dinheiro trocado; é algo para ser acalentada, acumulada e
desembolsada apenas quando absolutamente necessário. O menor átomo
da verdade representa a amarga labuta e agonia de algum homem; para
cada pilha dela, há o túmulo de um bravo dono da verdade
sobre algumas cinzas solitárias e uma alma fritando no Inferno.
H.
L. Mencken, in O livro dos insultos
Uma tentativa de explicação
O
Sr. José Osório Oliveira, ensaísta e crítico português, a
propósito de um concurso da Revista Acadêmica, para saber
quais os melhores romances brasileiros, escreveu um artigo em que,
depois de citar numerosos livros de literatura brasileira, dela se
despedia, mal dissimulando um rancor justo. Esse artigo, anterior à
Blitzkrieg, ainda é oportuno. Depois dele muita gente nasceu,
mais gente morreu, e os habitantes de cidades grandes começaram a
dormir debaixo do chão como tatus.
Mas,
graças a Deus, estamos longe disso, pelo menos por enquanto, e
podemos, como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, beber
honradamente a nossa cerveja. Bebendo a cerveja, com fatalismo,
esperando ser chamados ao tribunal divino antes que ela se acabe,
esquecemos os bombardeios aéreos, pensamos nas letras nacionais,
coitadas, e no descontentamento dum amigo que se cansou de nos
prestar favores e afinal se aborreceu da nossa ingrata indiferença.
O
Sr. José Osório de Oliveira tem razão. Contudo várias pessoas
ficaram magoadas com ele, talvez igualmente com razão. O que há
neste caso é apenas um equívoco; tanto nos diferençamos dos
europeus que já nem nos entendemos. Será bom tentarmos, embora
tarde, uma explicação desse negócio.
O
escritor português desejou que nos comportássemos como se
estivéssemos à direita do Atlântico, ao norte; aqui imaginaram que
o Sr. José Osório de Oliveira , tendo vivido no Rio, conhecesse os
nossos hábitos e os tolerasse. Para o estrangeiro do Velho Mundo a
correspondência é coisa séria. O cidadão envia um bilhete a
outro, não obtém resposta — e naturalmente se ofende: é como se
falasse a um indivíduo e este se conservasse calado. Nós,
brasileiros, sabemos o que se deve fazer, mas procedemos de modo
contrário. Deixamos para amanhã as conversas com pessoas ausentes,
arranjamos novo prazo, as cartas fervilham, envelhecem — e
excelentes relações desanimam.
É
possível que a nossa descortesia seja involuntária. Talvez
preguiça, talvez excesso de escrúpulo, receio de, arrumando algumas
linhas à pressa, cometer leviandades, dizer inconveniências. A
verdade é que somos assim. Não agradecemos os livros que nos
remetem, não agradecemos as críticas que nos dispensam. Apoiamo-nos
em desculpas frágeis: os livros ainda não foram lidos ou nos
desagradam, recusamos o juízo do crítico. Evasivas: se admirarmos
os livros, aceitarmos a crítica, também permaneceremos em silêncio.
Certamente
nos consideram bárbaros. E somos. A extrema urbanidade reside no
extremo oriente. À medida que avançam para oeste, os povos se
tornam cada vez menos mesureiros. No Brasil atingimos a culminância.
Nossos
vizinhos não se espantam. Por estes meridianos mais próximos o
defeito a que nos referimos é comum. Se recebermos uma proposta de
qualquer país da América do Sul e, contrariando o mau costume, nos
interessarmos por ela, é quase certo que o avião da Panair vai
levar ao proponente um papel que já não terá para ele nenhuma
significação.
Realmente
há entre nós quem ponha os seus escritos em ordem e numa gavetinha
do bureau guarde as folhas timbradas, os envelopes, o frasco
de goma e a caixa de selos. Isto, porém, é exceção: as censuras
que nos vêm de Lisboa mostram que em geral somos desleixados.
Poderemos
justificar-nos dizendo que possuímos ideias escassas, as
indispensáveis à composição da nossa minguada literatura. Seremos
com efeito literatos? Este nome encerrava ainda há pouco um sentido
prejudicial, herança provável do tempo em que arte era indício de
boêmia e sujeira. Escrevemos efetivamente, mas desconfiados, no
íntimo desgostosos com um gênero de trabalho que não pode ser
profissão. A nossa mercadoria vai sem verniz para o mercado e não
nos desperta, posta em circulação, nenhum entusiasmo. Somos
diletantes. Receamos que nos discutam, que nos analisem, que nos
exibam os aleijões. Se eles começarem a ser indicados,
multiplicar-se-ão, ocuparão toda a obra. A referência que nos
contenta é o elogio bem derramado. Não faz mal que seja idiota:
precisamos vê-lo, repeti-lo, convencer-nos de que realizamos
qualquer coisa notável.
Trabalhamos
um pouco à toa, e o pensamento que surge no café e briga às vezes
com outros pensamentos acha meio de estabelecer-se: em falta de
argumentos, é defendido com gritos. Esses gritos são impossíveis
na carta, onde as incongruências avultam. Gostamos de falar,
discutir — e opiniões antagônicas já têm rolado no chão,
atracadas, resistindo a murros. Somos bastante expansivos, mas a
expansão só se manifesta cara a cara. Separados arrefecemos,
murchamos. Para que nos gastarmos em correspondência que nos
roubaria grande parte do tempo? Desejamos ler sobre nós o que
julgamos conveniente. Podemos até redigir nós mesmos os louvores,
celebrar-nos com exagero. Há quem faça isto à força de
imaginação, enganar-se, acreditar no panegírico, chegar quase a
apertar a mão do pseudônimo.
Graciliano
Ramos, in Garranchos (Revista Acadêmica º 54, maio/1941)
domingo, 28 de abril de 2019
Pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para senhores e donas de casa durante o Carnaval
I
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Aí ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:
Com
o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero renascer brasileiro
E poeta.
Quem te ouvir vai ficar besta.
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero renascer brasileiro
E poeta.
Quem te ouvir vai ficar besta.
II
Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Tá na hora.
III
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.
IV
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.
V
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se.)
VI
Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome científico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.
VII
Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro à noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis à sua mãe, seus canalhas!
VIII
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta.)
Faça
um buquê de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus
dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se
perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa),
diga que você precisa mandar o buquê para tua velha e querida
preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que
arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante
doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antônio para
o povão era, na “tua” tradução, “Emprestai-me vossas
orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda
mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer
isso mesmo.
IX
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça.)
Hilda
Hilst, in
Contos d’escárnio/ Textos grotescos
Ironia
“O
último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais
violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia,
não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade.”
Millôr
Fernandes, in O livro vermelho dos pensamentos de
Millôr
Desventurada família humana (trecho inicial)
Li
em alguns ensaios sobre minha poesia que a permanência no Extremo
Oriente influiu em determinados aspectos de minha obra, especialmente
em Residencia en la Tierra. Na verdade, meus únicos versos
daquele tempo foram os de Residencia en la Tierra, mas, sem me
atrever a sustentá-lo de forma peremptória, digo que isso da
influência me parece um equívoco.
Todo
o esoterismo filosófico dos países orientais, confrontado com a
vida real, se revelava como um subproduto da inquietude, da neurose,
da desorientação e do oportunismo ocidentais; quer dizer, da crise
de princípios do capitalismo. Na Índia não havia, naquela época,
muitos lugares para contemplações do umbigo profundo. Uma vida de
brutais exigências materiais, uma condição colonial sedimentada na
mais intensa abjeção, milhões de mortos cada dia, de cólera, de
varíola, de febres e de fome, organizações feudais desequilibradas
por sua imensa população e sua pobreza industrial, imprimiam à
vida uma grande ferocidade na qual os reflexos místicos
desapareciam.
Quase
sempre os núcleos teosóficos eram dirigidos por aventureiros
ocidentais, sem faltar americanos do Norte e do Sul. Não resta
dúvida que entre eles havia gente de boa-fé, mas a maioria
explorava um mercado barato onde se vendiam, a preços altos,
amuletos e fetiches exóticos, envoltos em embalagem metafísica.
Essa gente enchia a boca com o Dharma e a Poga. Encantava-os a
ginástica religiosa, impregnada de vazio e palavrório.
Por
tais razões, o Oriente me impressionou como uma grande e
desventurada família humana, sem destinar lugar em minha consciência
para seus ritos nem para seus deuses. Não creio pois que minha
poesia de então tenha refletido outra coisa que a solidão de um
forasteiro transplantado para um mundo violento e estranho.
Lembro
de um daqueles turistas do ocultismo, vegetariano e conferencista.
Era um sujeito pequenino, de estatura média, calva reluzente e
total, claríssimos olhos azuis, olhar penetrante e cínico, de
sobrenome Powers. Vinha da América do Norte, da Califórnia,
professava a religião budista e suas conferências finalizavam
sempre com a seguinte prescrição dietética: “Como dizia
Rockefeller, alimente-se com uma laranja por dia.”
Powers
me pareceu simpático pelo seu jeito alegre. Falava espanhol. Depois
de suas conferências, íamos devorar juntos grandes buchadas de
carneiro assado (khebab) com cebola. Era um budista teológico, não
sei se legítimo ou ilegítimo, com uma voracidade mais autêntica
que o conteúdo de suas conferências.
Logo
se ligou, em primeiro lugar, a uma jovem mestiça, enamorada por seu
smoking e por suas teorias, uma senhorita anêmica, de olhar dolente,
que o julgava um deus, um Buda vivo. Assim começam as religiões.
Ao
cabo de alguns meses desse amor, veio me buscar certo dia para que
presenciasse um novo casamento seu. Na motocicleta, cedida pela firma
comercial em que trabalhava como vendedor de refrigeradores, deixamos
velozmente para trás bosques, mosteiros e arrozais. Chegamos
finalmente a uma pequena aldeia de construção chinesa e habitantes
chineses. Powers foi recebido com foguetes e música, enquanto a
noiva adolescente permanecia sentada, maquilada de branco como um
ídolo em uma cadeira mais alta que as outras. Ao compasso da música
tomamos limonadas de todas as cores. Em momento nenhum Powers e sua
nova esposa se dirigiram a palavra.
Regressamos
à cidade. Powers explicou que nesse ritual somente a noiva se
casava. As cerimônias continuariam sem necessidade de sua presença.
Mais tarde voltaria para viver com ela.
-
Você se dá conta que está praticando poligamia? - perguntei.
-
Minha outra esposa sabe de tudo e ficará muito contente - respondeu.
Nesta
afirmação havia tanta verdade como em sua história da laranja cada
dia. Uma vez chegados à sua casa, à casa de sua primeira mulher, a
mestiça dolente, encontramo-la agonizando com o copo de veneno na
mesinha de cabeceira e uma carta de despedida. Seu corpo moreno,
totalmente nu, estava imóvel sob o mosquiteiro. Durou várias horas
sua agonia.
Acompanhei
Powers porque ele sofria evidentemente, apesar de começar a achá-lo
repulsivo. O cínico que carregava no íntimo tinha desmoronado. Fui
com ele à cerimônia funerária. Na margem de um rio colocamos o
ataúde barato sobre um monte de lenha. Powers ateou fogo nos
gravetos com um fósforo, murmurando frases rituais em sânscrito.
Uns
poucos músicos vestidos com túnicas alaranjadas salmodiavam ou
sopravam tristíssimos instrumentos. A lenha se apagava e era preciso
reavivar o fogo com os fósforos. O rio corria indiferente dentro de
suas margens. O eterno céu azul do Oriente demonstrava também uma
impassibilidade absoluta e um desamor infinito para com aquele triste
funeral solitário de uma pobre abandonada.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
A morte de Fantasma
Fantasma
morreu durante o sono. Nas últimas semanas comia pouco. Verdade seja
dita, nunca comera muito – não havia muito para comer – e talvez
isso explique o facto de ter vivido tantos anos. Experiências em
laboratório demonstraram que a expetativa de vida de ratinhos
sujeitos a uma baixa dieta calórica aumenta muito.
Ludo
acordou, e o cão estava morto.
A
mulher sentou-se no colchão, frente à janela aberta. Abraçou os
joelhos magros. Ergueu os olhos para o céu, onde, pouco a pouco, se
iam desenhando leves nuvens cor-de-rosa. Galinhas cacarejavam no
terraço. Um choro de criança subia do andar inferior. Ludo sentiu o
peito esvaziar-se. Alguma coisa – uma substância escura –
escapava de dentro dela, como água de um recipiente estalado, e
deslizava depois pelo cimento frio. Perdera o único ser no mundo que
a amava, o único que ela amava, e não tinha lágrimas para o
chorar.
Ergueu-se,
escolheu um pedaço de carvão, afiou-o, e atacou uma das paredes,
ainda limpas, no quarto das visitas.
Fantasma
morreu esta noite. Tudo é agora tão inútil. O olhar dele me
acarinhava, me explicava e me sustinha.
Subiu
ao terraço sem o amparo da velha caixa de papelão. O dia
expandia-se, num bocejo morno. Talvez fosse domingo. As ruas estavam
quase desertas. Viu passar um grupo de mulheres vestidas de um branco
imaculado. Uma delas, ao avistá-la, ergueu a mão direita, numa
saudação feliz.
Ludo
recuou.
Podia
saltar, pensou. Avançaria. Subiria ao parapeito, tão simples.
As
mulheres, lá em baixo, vê-la-iam um instante, sombra levíssima, a
adejar e a cair. Recuou, foi recuando, acuada pelo azul, pela
imensidão, pela certeza de que continuaria a viver, mesmo sem nada
que desse sentido à vida.
A
morte gira ao meu redor, mostra os dentes, rosna. Ajoelho-me e
ofereço-lhe a garganta nua. Vem, vem, vem agora, amiga. Morde.
Deixa-me partir. Ah, hoje vieste e esqueceste-te de mim. - - - - - -
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A noite. É outra vez
noite. Tenho contado mais noites do que dias. - - - - - - - - - - - -
- - - - - - - - As noites, pois, e o clamor dos sapos. Abro a janela
e vejo a lagoa. A noite desdobrada em duas. - - - - - - - - - - - - -
- - - - - - - Chove, tudo transborda. De noite, é como se a
escuridão cantasse. A noite subindo e ondulando, devorando os
prédios. Penso, outra vez, naquela mulher a quem devolvi o pombo.
Alta, de ossos salientes, com o leve desdém com que as mulheres
muito bonitas circulam pela realidade. Passeia no Rio de Janeiro,
pela orla da Lagoa (vi fotografias, encontrei na biblioteca vários
álbuns sobre o Brasil). Ciclistas cruzam-se com ela. Os que nela
demoram o olhar nunca mais regressam. A mulher chama-se Sara, eu
chamo-lhe Sara. Parece saída de uma tela de Modigliani.
José
Eduardo Agualusa, in Teoria geral do
esquecimento
A solução
O
custo de vida continuava subindo. Subindo.
Os
tratadistas de ciências econômicas já não tinham explicações
científicas para a ascensão contínua, cada vez mais acelerada.
— Deve
ser fenômeno psicológico — explicou um explicador. — O custo de
vida sobe porque a gente acha que ele está subindo. Se a gente
achasse o contrário, ele iria baixando, baixando, até ficar deste
tamanhim — e levantava o dedo mínimo, esse que serve para fixar o
salário.
Os
habitantes fizeram tamanha força para achar que estava baixando, que
muitos adoeceram de exaustão, com febre que também subia a cada
hora. Como subiam os remédios febrífugos, cada vez mais caros.
Então
as autoridades especializadas propuseram ao governo uma linha de
financiamentos para montagem de fábricas de escadas elásticas, que
os habitantes passarão a usar, acompanhando a elevação do custo de
vida. Sempre. Ad astra.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
sábado, 27 de abril de 2019
Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia
A
cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Gregório
de Matos
Pobreza da sabedoria
Odeio
os sábios por sua complacência, sua covardia e sua reserva. Amo
infinitamente mais as paixões devorantes do que o humor equilibrado,
que torna um homem insensível tanto ao prazer quanto à dor. O sábio
ignora o trágico da paixão e do medo da morte, assim como
desconhece o élan e o risco, o heroísmo bárbaro, grotesco ou
sublime. Ele expressa-se por meio de máximas e dá conselhos. O
sábio nada vive, nada sente, nem deseja ou espera. Ele regozija-se
em nivelar diversos conteúdos da vida e a assumir-lhes as
consequências. Muito mais complexos parecem-me aqueles que, apesar
deste nivelamento, não param de se atormentar. A existência do
sábio é vazia e estéril, pois desprovida de antinomias e
desespero. As existências devoradas pelas contradições
intransponíveis são infinitamente mais fecundas. A resignação do
sábio vem do vazio, e não do fogo interior. Eu preferiria mil vezes
morrer deste fogo do que do vazio e da resignação.
Emil
Cioran, in Nos cumes do desespero
O enterro do avô Joad
Uma
fogueira ardia no fundo da vala, à margem da estrada. Tom tinha
feito, com estacas e arame, uma armação de onde pendiam duas
panelas em que a água borbulhava furiosamente. De sob as tampas das
panelas escapavam rolos de vapor branco. Rosa de Sharon estava
ajoelhada no chão, um pouco afastada do calor intenso da fogueira, e
tinha uma colher na mão. Ela viu a mãe saindo da tenda, ergueu-se e
foi ao encontro dela.
— Mãe
— disse —, preciso perguntar uma coisa à senhora.
— Cê
já está com medo outra vez? — inquiriu a mãe. — Queria passar
todos os nove meses sem ter um aborrecimento?
— Mas...
isso não vai fazer mal à criança?
A
mãe disse:
— Tem
um dito assim: “Uma criança que nasce no pesar não terá do que
se lamentar.” Não é mesmo, senhora Wilson?
— Sim,
também já ouvi dizer isso — disse Sairy. — E tem outra frase
assim: “Quem com muita alegria nascer, em muita dor vai viver.”
— Mas
eu estou tremendo tanto por dentro! — disse Rosa de Sharon.
— Todos
nós estamos — disse a mãe. — Bem, agora vai tomar conta das
panelas.
À
margem do anel de luz que rodeava a fogueira, os homens se agruparam.
Por ferramenta, tinham apenas uma pá e uma picareta. O pai demarcou
o lugar — dois metros e meio de comprimento e um de largura.
Revezavam-se no trabalho. O pai rasgava a terra com a picareta e tio
John jogava-a de lado com a pá. Depois Al pegava na picareta e Tom
na pá, e depois vinham Noah e Connie, e assim sucessivamente. E a
cova ia ficando mais e mais funda, pois que eles trabalhavam
incessante e vigorosamente. A terra voava da cova em uma chuva de
torrões. Quando já estava numa cova retangular que lhe vinha até a
altura dos ombros, Tom disse:
— Mais
fundo ainda, pai?
— Tem
que ser bastante funda. Só um pouco mais. Sai daí agora, Tom. Vai
escrever aquele papel que falamos.
Tom
içou-se da cova e Noah tomou o lugar dele. Tom foi para junto da
mãe, que estava avivando o fogo.
— A
senhora tem papel branco e caneta, mãe?
A
mãe sacudiu vagarosamente a cabeça:
— Não.
Justamente isso a gente não trouxe... — Lançou um olhar para
Sairy. E a pequena senhora foi depressa à tenda e voltou com uma
Bíblia e metade de um lápis.
— Tome
— falou. — Pode tirar a primeira página da Bíblia, que está em
branco. — E entregou o livro e o lápis a Tom.
Tom
sentou junto ao fogo. Apertou os olhos num gesto de concentração
mental e logo começou a escrever, vagarosa e cuidadosamente,
desenhando letras bem graúdas. — “Este qui aqui jaz é William
James Joad qui morreu di um ataque já muito velho e a família dele
enterrou ele aqui purque não tinha dinheiro pro funeral. Ninguém
matô ele só qui ele teve um ataque e morreu.”
— Mãe,
escuta. — E leu vagarosamente o que tinha escrito.
— Está
bem, até que não soa mal — disse ela. — Mas cê não podia
escrever aí alguma coisa da Bíblia, hem? É pra ser um enterro
religioso. Procura um pedaço bonito da Bíblia e escreve no papel
também.
— Sim,
mas não pode ser uma coisa comprida, porque não dá. O papel é
muito pequeno.
Sairy
disse:
— Que
tal isto: “Que Deus guarde a sua alma”?
— Não
— disse Tom. — Isso soa como se ele tivesse sido enforcado. Deixe
que eu vou ver se copio um pedaço qualquer da Escritura. — Foi
virando as páginas, leu, movimentando os lábios, murmurando
baixinho. — Aqui tem um pedaço bonito e bem curto — falou,
afinal. — “E Lot disse-lhe: Oh, não é assim, Senhor.”
— Mas
isso não quer dizer coisa nenhuma — disse a mãe. — Já que ocê
tá escrevendo, escreve qualquer coisa que tenha sentido.
Sairy
disse:
— Veja
nos Salmos, mais adiante. Nos Salmos sempre se encontra alguma coisa.
Tom
foi folheando e lendo os versículos.
— Aqui
tem um — disse. — É bonito e bem religioso: “Bem-aventurados
aqueles cujas iniquidades são perdoadas e cujos pecados são
esquecidos.” Que tal?
— Este,
sim. É bonito mesmo — disse a mãe. — Pode escrever.
Tom
copiou o trecho cuidadosamente. A mãe enxaguou e limpou um vidro de
conserva; Tom botou nele o papel e atarraxou firmemente a tampa.
— Quem
sabe o reverendo devia ter escrito isso? — disse.
— Não,
o reverendo não é parente nosso — opinou a mãe. Ela pegou o
vidro e entrou com ele na tenda escura. Abriu um dos pontos em que o
lençol estava seguro pelos alfinetes, meteu o vidro entre as mãos
frias do morto e tornou a fechar o lençol. Depois voltou para junto
da fogueira.
Os
homens estavam regressando da cova e suas faces brilhavam de suor.
— Pronto
— disse o pai. Foi com John, Noah e Al à tenda e voltaram,
carregando o comprido embrulho até a beira da cova. O pai pulou para
dentro, pegou o embrulho nos braços e depositou-o cuidadosamente no
fundo. Tio John estendeu as mãos e ajudou o pai a subir novamente. O
pai perguntou:
— Como
é que vai ser com a avó?
— Vou
ver ela — disse a mãe. Foi até o colchão e olhou a anciã por um
instante. Depois voltou à cova. — Ela está dormindo — disse. —
Talvez se aborreça comigo depois, mas não posso acordar ela. Tá
muito cansada.
— Onde
está o pregador? Ele tem que rezar uma coisa qualquer — disse o
pai.
Tom
respondeu:
— Eu
vi ele andando aí pela estrada. Mas ele não gosta mais de rezar.
— Não
gosta de rezar?
— Não
— disse Tom. — Ele não é mais um pregador, disse. E diss’que
não é direito enganar o povo, fazer o papel de pregador, já que
ele não é mais. Aposto que fugiu pra que a gente não pudesse pedir
a ele que rezasse.
Casy
vinha se aproximando em silêncio e ouvira as últimas palavras de
Tom.
— Não
fugi, não — disse. — Quero ajudar vocês, mas não quero tapear
ninguém.
O
pai disse:
— Mas
o senhor não podia dizer umas palavras ao menos? Ainda ninguém da
nossa família foi enterrado sem que alguém dissesse algumas
palavras.
— Bem,
então eu vou dizer — falou o pregador.
Connie
conduziu Rosa de Sharon até a cova. Ela o seguiu com relutância.
— Cê
tem que vir — disse Connie. — Não fica direito. E termina logo.
A
luz da fogueira caía sobre o grupo, destacando-lhes as faces e os
olhos e refletindo-se fracamente nas suas vestes escuras. Todos
tiraram os chapéus. A luz bailava, saltitante, sobre o grupo.
Casy
disse:
— Não
vou demorar muito tempo. — Baixou a cabeça e os outros
seguiram-lhe o exemplo. Casy disse com solenidade:
— Este
ancião aqui viveu longa vida, ao fim da qual morreu. Não sei se era
bondoso ou mau, e isso não importa. Ele viveu, e isto é o
principal. E agora está morto, e acabou-se. Uma vez ouvi alguém
recitar um poema que dizia assim: “Tudo que vive é sagrado.”
Basta pensar um pouco nessas palavras para descobrir que significam
muito mais do que aparentam. Não quero rezar por um homem que está
morto. Ele cumpriu o seu destino. Está como deve estar. Tem uma
tarefa a cumprir, uma tarefa só dele e só há uma maneira de ele
conseguir. E nós, nós também temos uma missão a cumprir, mas não
sabemos exatamente o que fazer, porque são muitos os caminhos que se
abrem diante de nós. E já que tenho que rezar, vou rezar pelas
pessoas que não sabem qual o caminho que devem escolher. O avô,
aqui, já tem seu caminho. Portanto, cubram-no e deixem que ele
cumpra a sua missão. — E Casy ergueu a cabeça.
O
pai disse “Amém”. E todos os outros murmuraram: “Amém.”
Depois, o pai pegou a pá, encheu-a de terra e deixou-a cair
lentamente na cova. Entregou a pá a tio John, e também ele jogou um
pouco de terra na cova. A pá passou de mão em mão, até que todos
os homens cumpriram a sua obrigação. Cumprida esta tarefa, o pai
tomou de novo a pá e foi lançando rapidamente a terra, cobrindo a
cova. As mulheres voltaram para junto da fogueira, a fim de tratarem
de preparar a comida. Ruthie e Winfield olhavam tudo, absortos.
Ruthie
disse solenemente:
— O
avô agora está aí embaixo.
E
Winfield olhou-a com olhos horrorizados. Depois correu até a
fogueira, sentou-se no chão e ficou soluçando.
O
pai tinha enchido a cova somente até a metade. Parou, afegando de
cansaço, e tio John se encarregou de terminar a tarefa. John estava
modelando a saliência sobre o túmulo quando Tom interrompeu-o:
— Escute,
tio John — disse —, se a gente mostrar que isto aqui é um
túmulo, vão querer logo abrir ele. É melhor aplainar a terra em
cima e espalhar capim sobre ela. É o único jeito.
O
pai disse:
— Nem
pensei nisso. Mas uma cova que nem tem forma de cova não fica
direito.
— Paciência.
É o único jeito — disse Tom. — Senão, eles vão logo
desenterrar o avô e então a gente vai passar um mau pedaço por não
ter cumprido a lei. E o senhor sabe o que vai acontecer então
comigo, não sabe?
— É,
eu me esqueci disso. — Tirou a pá da mão de tio John e foi
aplainando a superfície da cova. — No inverno vai afundar —
comentou.
— Que
é que se vai fazer? — disse Tom. — No inverno a gente já está
bem longe. Vamos pisar bem e jogar capim por cima.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
Desolados
Uma
senhora carregando um pequinês, outra, mais velha, carregando a si
mesma com a mesma pose. Sentaram à mesa ao lado da nossa. Não, não,
o pequinês não quis fazer amor com o meu calcanhar, esta é outra
história. Aristocracia francesa ao ponto da caricatura,
possivelmente mãe e filha. Deixaram o peixe pedido no prato e a mais
velha disse ao garçom que o ponto de cozimento estava errado. La
cuisson, um daqueles parâmetros sagrados pelos quais os
franceses estabelecem a justeza de tudo, não era a que ela tinha
determinado. E o garçom cometeu um erro. O garçom não disse
desolê.
O
ponto da cuisson não serve apenas para a carne, que pode vir
sangrando, rosada, ao ponto ou (há gosto para tudo) bem passada, mas
também para o peixe, e neste caso sua definição requer mais tempo
e um vocabulário ainda mais minucioso. E o maître obviamente
não transmitira as instruções corretas ao chef, ou
transmitira e o chef não ligara. Mas quando veio a madame,
mulher do chef e dono do restaurante, saber o que tinha
havido, nossa vizinha disse que perdoava tudo. Perdoava o peixe
errado, pois afinal o chef era obrigado a pensar no gosto dos
turistas (nós) e perdoava, estava subentendido, a invasão da França
pelos bárbaros e o declínio generalizado de critérios num mundo em
crise. Só não perdoava o garçom não ter dito, nem uma vez,
desolê.
Os
franceses se declaram desolê por qualquer coisa. Você os
deixa desolados, desconsolados, arrasados com o menor pedido que não
podem atender, ou com a menor demonstração de decepção ou
desconforto. É uma declaração tão forte de contrição e empatia
que, mesmo automática e distraída, deixa você sem ação. O que
mais você pode pedir de quem está pensando no suicídio por sua
causa? Desolê absolve tudo. Desolê encerra tudo. E o
garçom negou mesmo um desolê protocolar pelo mau cozimento
do peixe.
As
duas recolheram as suas coisas e saíram do restaurante com mercis
que eram agulhadas. O mais indignado era o pequinês.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
sexta-feira, 26 de abril de 2019
A verdade
“A
verdade é aquilo que todo o homem precisa para viver e que ele não
pode obter nem adquirir de ninguém. Todo o homem deve extraí-la
sempre nova do seu próprio íntimo, caso contrário ele arruína-se.
Viver sem verdade é impossível. A verdade é talvez a própria
vida.”
Franz
Kafka, in
Conversas com Kafka
Agora é que são elas - Capítulo 2
1
— Telefone
para o senhor.
Olhei
para o mordomo, entre atônito e incrédulo. Telefonema para mim?
Aqui? Como?
O
professor Propp, meu analista, me garantiu, ninguém me reconheceria
nesta festa.
Segundo
ele, nas histórias de magia e de mistério, o narrador está sempre
ausente, nunca participando da festa, quero dizer, das ações.
Tentei
explicar isso ao lacaio, que continuou impávido de pé, o telefone
numa bandeja como uma lagosta, esperando, esperando, pergunta.
Levei
a mão ao aparelho, apavorado com a ideia de que tinha uma voz ali
dentro, vinda de algum lugar, e tudo podia acontecer.
O
mordomo não mostrou sinais de vida quando minha mão parou em pleno
ar e comecei a lhe explicar os meandros do pensamento do professor
Propp, para sua ignorância plebeia, eram menos interessantes que um
peido, podia ver isso em sua cara que consistia toda em uma
superfície sem profundidade, um lago plácido com a fundura de uma
folha de papel.
O
mordomo insistiu. Era comigo mesmo.
Pensei,
já quase suando. E se for “você sabe com quem está falando?”
E
que tal seu coração diante de um “fuja enquanto é tempo, tudo
foi descoberto”? Insuportável imaginar um “desculpe, foi
engano”.
De
qualquer forma, é contra meus princípios demonstrar fraqueza diante
da criadagem. Levei a mão ao aparelho, com a determinação de um
coronel de hussardos de Napoleão levando a mão ao sabre, bradando
“carga!”.
O
telefone, agora, eu colava aquele búzio na orelha, e ouvi do outro
lado o marulhar da vida, aquele silêncio febril de um formigueiro na
primavera. As cacofonias da festa se multiplicavam em minha volta,
enquanto me chegavam partículas de palavras, destroços de frases,
poeiras de som: (...) tesão, o maior tesão (...), ... me comer
(...), meter de uma vez só (...), tudo aqui dentro (...) tudo, de
uma vez (...).
Tirei
o telefone do ouvido, as orelhas ardendo com aquela queimadura. E
olhei para o mordomo. Tentei olhar, isto é. Nada na minha frente,
tinha se dissolvido naqueles rios de cabeças gargalhantes, altos
penteados, dentaduras escancaradas.
Eu
estava sozinho com um telefone no colo e, dentro dele, uma voz que
dizia o que só se diz, bem, vocês sabem.
Na
mão esquerda, eu ainda segurava um cigarro por acender.
Cheguei
devagar o telefone no ouvido e do outro lado ouvi... merda!, tem uma
coisa sobre a qual eu não quero falar.
2
Levantei
os olhos devagar para o carnaval de luzes em minha volta. Tudo
parecia idêntico. As mesmas pessoas. As mesmas gargalhadas.
Os gestos todos certos. A certeza.
Só
que tinha uma coisa errada. TUDO tinha mudado.
Por
segundos girei numa vertigem, sem saber o quê, em quê, por quê.
Ah,
por quês?, como atingir a sabedoria sem vocês, porquês, por quês,
porquês, diabólica máquina das causas e efeitos. O que tinha
mudado? Nenhum POR QUÊ?, por favor. TUDO.
3
De
repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. De repente, tudo
ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficou corado. E tudo
empalideceu, como, como é que foi mesmo que eu não dei pela
ausência de Norma, aquela coisa gostosa entre as mulheres, sorvete
reinando sobre meu reino de prazer com um morango por coroa?
4
E
como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também. Meu rosto, de
senhorial mudou para o desespero, de raivoso passou para o desânimo,
em meu rosto, meu rosto mudou, rapidamente, flashes de slide
projetados na cara de uma estátua por uma máquina desgovernada.
Me
levantei, à procura de alguém conhecido, diante de mim, o
desconhecido oeste selvagem, infestado de ursos e índios
antropófagos, nenhum amigo, nenhuma amiga, pratos célebres, unhas
feitas por joalheiros inacessíveis, vozes estrangeiras, sotaques
dissonantes.
Levantar
me fez bem. Circulei com segurança, sentindo meu rosto voltar à
forma primitiva, a cara que eu fazia antes, bem antes de começar
este romance, meu romance com Norma.
Respondi
ao ligeiro cumprimento de um senhor parecido com meu tio,
provavelmente me confundindo com algum sobrinho, me aproximei
soberano.
— Os
tempos estão mudando, comentei, certo de que o tempo é um assunto
universal bastante para interessar a todas as pessoas e de que a
mudança é uma experiência geral.
Ela
não me respondeu. Seus olhos (opala? ágata?) me atravessavam, como
se eu fosse uma vidraça entre ela e o Mediterrâneo.
Vamos
mudar. Mas vai mudar assim na puta que o pariu.
Me
afastei com raiva em direção a um sofá que jazia num canto, um
hipopótamo verde-musgo e dourado, debaixo do grande relógio, que eu
já sabia tinha pertencido ao tetravô do dono da casa e da festa.
Do
dono da casa e da festa, já tinha ouvido falar muito. Sabia que era
senhor de muitos recursos, e tinha se dedicado à caridade, desde a
morte da mãe, abastecendo com festas o tédio de gente como eu.
Olhei
para o relógio. Meia-noite e quinze, os ponteiros escreviam um L.
Sentei e olhei em frente.
Só
existia uma verdade absoluta. TUDO tinha mudado.
5
Para
melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, bem e mal, já não
faziam diferença, não tinham mais nada a fazer naquele jogo,
entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podia sentir os
sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido. Mas eu lá tenho
cara de quem vai atrás do papo de um judeuzinho da Europa Central,
óculos na ponta do nariz, a cabeça cheia de teorias e esquemas,
caverna atravessada de teias de aranha, por onde voam vocês,
morcegos milenares? A gente arrasta o rabo do dia a dia, os dias na
esperança de um só dia, um momento máximo, o campeonato nacional,
a decisão, a final. Esta era a final. Daqui para diante, só
as florestas, os desertos, os pantanais e os céus da sabedoria.
Mas
foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondas de com
licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesa do
ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como o
vinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou de constatar
amargurado, e me resignar com a evidência gritante de que aquilo
fosse o que era, a queda do império, a passagem do cometa Halley, o
primeiro lugar na lista dos sucessos, uma bobagem dessas qualquer.
Já
era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma? E o que
fazer com a lição do professor Propp, isso não existe?
Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com as mãos
suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silêncios
insuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudo
aquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta:
— É
grave, doutor?
O
doutor Wiesengrund achava que quem sabe. E acreditava sinceramente
que isso tudo tinha cura. Era da velha escola. Um pouco de ar puro,
farta alimentação, muita abstinência de lipídios, e uma buceta de
vez em quando. Para as senhoras, caralhos, evidentemente. Um
pinheirinho de Natal, coruscante de esmeraldas e rubis, ao seu lado,
a senhora Wiesengrund fazia que sim com a cabeça, a cada palavra que
o eminente pentelho regurgitava.
A
cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, e eu ficava cada
vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diante daquele
rato que me roía as entranhas, polo ártico na boca do estômago,
meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o
pavor.
A
gente se conhecia desde a infância, o medo cresceu comigo. Quando eu
era garoto, meu medo principal era que a casa do meu pai desabasse.
Mas era apenas o centro do terror. Deste centro se irradiavam
miríades de medos, aquelas coisas que, com uma picada de frio na
minha barriga, me enchiam a vida de vibração e significado, os
mínimos medos que cintilavam em volta, e se estendiam até os
inumeráveis horizontes do desconhecido. De repente, fiquei
apavorado. A partir desse momento, não senti mais NADA.
Estava na companhia de algo maior, muito maior, infinitamente maior
que qualquer medo. TUDO tinha mudado.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas