O dogma científico

A ciência moderna não tem dogma. Mas tem um conjunto de métodos de pesquisa em comum, todos baseados em coletar observações empíricas – aquelas que podemos observar com pelo menos um dos nossos sentidos – e reuni-las com a ajuda de ferramentas matemáticas.
Ao longo da história, as pessoas coletaram observações empíricas, mas a importância dessas observações geralmente era limitada. Por que desperdiçar recursos preciosos fazendo novas observações quando já temos todas as respostas de que necessitamos?
Mas à medida que a pessoas modernas passaram a admitir que não conheciam as respostas para algumas perguntas muito importantes, acharam necessário procurar conhecimentos completamente novos. Em consequência, o método de pesquisa predominante na atualidade parte do princípio de que o conhecimento antigo é insuficiente. Em vez de estudar as antigas tradições, hoje se dá ênfase a novas observações e experimentos. Quando as observações atuais se chocam com tradições passadas, damos precedência às observações. É claro, físicos examinando o espectro de galáxias distantes, arqueólogos analisando as descobertas de uma cidade da Era do Bronze e cientistas políticos estudando o surgimento do capitalismo não desconsideram a tradição. Eles começam estudando o que os sábios do passado disseram e escreveram. Mas, desde seu primeiro ano de faculdade, os aspirantes a físicos, arqueólogos e cientistas políticos aprendem que é sua missão ir além do que Einstein, Heinrich Schliemann e Max Weber conheceram. Meras observações, no entanto, não são conhecimento. Para entender o universo, precisamos relacionar as observações em teorias abrangentes. As tradições anteriores geralmente formulavam suas teorias na forma de histórias. A ciência moderna usa a matemática.
Há muito poucas equações, gráficos e cálculos na Bíblia, no Corão, nos Vedas ou nos clássicos confucionistas. Quando as mitologias e escrituras tradicionais estabeleciam leis gerais, estas eram apresentadas em forma narrativa, em vez de matemática. Desse modo, um princípio fundamental da religião maniqueísta afirmava que o mundo é um campo de batalha entre o bem e o mal. Uma força maligna criou a matéria, ao passo que uma força benigna criou o espírito. Os humanos estão presos entre essas duas forças e devem escolher o bem em detrimento do mal. Contudo, o profeta Mani não fez qualquer tentativa de oferecer uma fórmula matemática que pudesse ser usada para prever escolhas humanas por meio da quantificação da força respectiva dessas duas forças. Ele nunca calculou que “a força atuando sobre um homem é igual à aceleração de seu espírito dividida pela massa de seu corpo”.
Isso é exatamente o que os cientistas tentam alcançar. Em 1687, Isaac Newton publicou os Princípios matemáticos da filosofia natural, provavelmente o livro mais importante da história moderna. Newton apresentou uma teoria geral do movimento e da mudança. A grandeza da teoria de Newton foi sua capacidade de explicar e prever os movimentos de todos os corpos do universo, de maçãs despencando a estrelas cadentes, usando três leis matemáticas muito simples:



Daí em diante, qualquer pessoa que quisesse entender e prever o movimento de uma bala de canhão ou de um planeta simplesmente tinha de medir a massa, a direção e a aceleração do objeto e as forças atuando sobre ele. Ao inserir esses números na equação de Newton, podia prever a posição futura do objeto. Funcionava como mágica. Somente por volta do fim do século XIX os cientistas se depararam com algumas observações que não se enquadravam muito bem nas leis de Newton, e estas levaram às revoluções seguintes na física – a teoria da relatividade e a mecânica quântica.
Newton mostrou que o livro da natureza está escrito na linguagem da matemática. Alguns capítulos (por exemplo) se reduzem a uma equação simples; mas estudiosos que tentaram reduzir a biologia, a economia e a psicologia a equações newtonianas precisas descobriram que esses campos têm um nível de complexidade que torna inútil tal aspiração. Mas isso não significa que eles desistiram da matemática. Ao longo dos últimos 200 anos, desenvolveu-se um novo ramo da matemática para lidar com os aspectos mais complexos da realidade: a estatística.
Em 1744, dois clérigos presbiterianos na Escócia, Alexander Webster e Robert Wallace, decidiram criar um fundo de seguro de vida que pagaria pensões a viúvas e órfãos de clérigos falecidos. Eles propuseram que cada um dos pastores de sua igreja dedicasse uma pequena parte de sua renda para o fundo, que investiria o dinheiro. Se um pastor morresse, sua esposa receberia dividendos sobre os lucros do fundo. Isso lhe permitiria viver confortavelmente pelo resto da vida. Porém, para determinar quanto os pastores tinham de pagar a fim de que o fundo tivesse dinheiro suficiente para honrar suas obrigações, Webster e Wallace precisavam ser capazes de prever quantos pastores morreriam a cada ano, quantas viúvas e órfãos eles deixariam e quantos anos as viúvas viveriam a mais do que os maridos.
Observe o que os dois clérigos não fizeram. Eles não rezaram para que Deus lhes revelasse a resposta. Nem procuraram a resposta nas Escrituras Sagradas ou nas obras de teólogos antigos. Tampouco entraram em uma discussão filosófica abstrata. Sendo escoceses, eram sujeitos práticos. Então, contataram um professor de matemática da Universidade de Edimburgo, Colin Maclaurin. Os três reuniram dados sobre a idade em que as pessoas morriam e usaram esses dados para calcular quantos pastores provavelmente morreriam em determinado ano.
Seu trabalho se baseou em vários avanços recentes no campo da estatística e da probabilidade. Um desses avanços foi a Lei dos Grandes Números, de Jacob Bernoulli. Bernoulli havia codificado o princípio de que, embora fosse difícil prever com certeza um acontecimento específico, como a morte de uma pessoa em particular, era possível prever com grande precisão o resultado médio de muitos acontecimentos similares. Isto é, embora Maclaurin não pudesse usar a matemática para prever se Webster e Wallace morreriam no ano seguinte, ele podia, com dados suficientes, dizer a Webster e Wallace quantos pastores presbiterianos na Escócia quase certamente morreriam no ano seguinte. Por sorte, eles já contavam com os dados que poderiam usar. Tábuas atuariais publicadas 50 anos antes por Edmond Halley mostraram-se especialmente úteis. Halley havia analisado registros de 1.238 nascimentos e 1.174 mortes, obtidos da cidade de Breslávia, na Alemanha. As tábuas de Halley permitiram constatar, por exemplo, que uma pessoa de 20 anos de idade tinha uma chance em 100 de morrer em determinado ano, mas uma pessoa de 50 anos de idade tinha uma chance em 39.
Processando esses números, Webster e Wallace concluíram que, em média, haveria 930 pastores presbiterianos escoceses vivendo em um dado momento, e uma média de 27 pastores morria por ano, 18 dos quais deixariam viúvas. Cinco dos que não deixariam viúvas deixariam filhos órfãos, e dois dos que deixariam viúvas deixariam também filhos de casamentos anteriores que ainda não haviam completado 16 anos de idade. Posteriormente, eles calcularam quanto tempo deveria se passar até a viúva morrer ou se casar novamente (em ambos os casos, o pagamento da pensão cessaria). Com esses números, Webster e Wallace puderam determinar quanto dinheiro os pastores que aderissem ao fundo teriam de pagar para garantir o futuro de seus entes queridos. Contribuindo com 2 libras, 12 xelins e 2 pence por ano, um pastor podia garantir que a esposa viúva receberia pelo menos 10 libras por ano – uma soma considerável naqueles dias. Se achasse que isso não era suficiente, podia escolher pagar mais, até o limite de 6 libras, 11 xelins e 3 pence por ano – o que garantiria à viúva a soma ainda mais atraente de 25 libras por ano.
De acordo com seus cálculos, no ano 1765 o Fundo de Pensão para as Viúvas e os Filhos dos Pastores da Igreja da Escócia teria um capital totalizando 58.348 libras. Seus cálculos se mostraram incrivelmente precisos. Quando esse ano chegou, o capital do Fundo era 58.347 libras – apenas uma libra esterlina a menos que o previsto! Isso era ainda melhor do que as profecias de Habacuque, Jeremias ou são João. Hoje, o fundo de Webster e Wallace, conhecido simplesmente como Scottish Widows, é uma das maiores empresas de seguros e pensões do mundo. Com ativos no valor de 100 bilhões de libras, oferece garantias não só a viúvas escocesas, mas a qualquer um disposto a comprar suas apólices.
Cálculos de probabilidade como os usados pelos dois pastores escoceses se tornaram a base não só da ciência atuarial, que é fundamental para o negócio de seguros e pensões, como também da ciência da demografia (fundada por outro clérigo, o anglicano Thomas Malthus). A demografia, por sua vez, foi o pilar sobre o qual Charles Darwin (que quase se tornou pastor anglicano) construiu sua teoria da evolução. Embora não existam equações capazes de prever que tipo de organismo evoluirá sob certas condições específicas, os geneticistas usam cálculos para determinar a probabilidade de uma mutação específica se disseminar em uma população dada. Modelos probabilísticos similares se tornaram centrais para a economia, a sociologia, a psicologia, a ciência política e as outras ciências sociais e naturais. Até mesmo a física acabou por complementar as equações clássicas de Newton com as nuvens de probabilidade da mecânica quântica.
Basta observar a história da educação para perceber a que ponto esse processo nos levou. Durante a maior parte da história, a matemática era um campo hermético que até mesmo as pessoas instruídas raras vezes estudavam seriamente. Na Europa medieval, a lógica, a gramática e a retórica formavam o núcleo educacional, ao passo que o ensino de matemática quase nunca ia além da simples aritmética e geometria. Ninguém estudava estatística. A monarca incontestável de todas as ciências era a teologia.
Hoje, poucos estudam retórica; a lógica está restrita aos departamentos de filosofia, e a teologia, aos seminários. Mas cada vez mais estudantes são motivados – ou forçados – a estudar matemática. Há um movimento irresistível rumo às ciências exatas – definidas como “exatas” por usarem ferramentas matemáticas. Até mesmo áreas de estudo que tradicionalmente faziam parte das humanidades, como o estudo da linguagem humana (linguística) e da psique humana (psicologia), se apoiam cada vez mais na matemática e tentam se apresentar como ciências exatas. Os cursos de estatística hoje são parte dos requisitos básicos não só na física e na biologia como também na psicologia, na sociologia, na economia e na ciência política.
No programa de psicologia da minha própria universidade, o primeiro curso obrigatório no currículo é “Introdução à Estatística e à Metodologia em Pesquisa Psicológica”. Estudantes de psicologia do segundo ano cursam “Métodos Estatísticos em Pesquisa Psicológica”. Confúcio, Buda, Jesus e Maomé teriam ficado perplexos se lhes contássemos que, para entender a mente humana e a cura de suas doenças, primeiro é preciso estudar estatística.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

Deveres humanos

Todo mundo fala de direitos, mas ninguém fala de deveres. Talvez não fosse má ideia inventar um Dia dos Deveres Humanos.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

O peixe

Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.

Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.

O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.

Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!
Patativa do Assaré

O homem que compreendeu

Consagrou-se ao marcar trinta e sete gols num jogo. Sua média de gols por partida ficou vinte e seis, nunca menos. Não havia beques para escorá-lo, nem esquemas para anular seu jogo rápido, bonito, eficiente. Jogava para ele, para o time e para o público. A bola, em seus pés, ninguém tirava. Ela parecia grudar na chuteira. Atraía a bola, como um ímã. Bola rebatida, espirrada, dividida, era dele. Distribuía com perfeição, lançava com precisão. Mas só aceitava jogar com jogador inteligente. Os outros tinham receio quando entravam em campo, ao seu lado. Seriam humilhados e xingados, se errassem. Não respondiam, abaixavam a cabeça, concordavam. E se esforçavam, davam tudo. Então, eram jogos maravilhosos, corridos. Ele mandava e desmandava, dava a escalação, isolava jogadores, formava outros. Sempre falando pouco, apenas olhando, o olhar firme, frio, que dizia tudo. Não dava entrevistas, tratava mal a imprensa, ria dos cronistas, dizia que eram analfabetos. Os juízes não chamavam sua atenção. Ele fazia os juízes abaixarem a cabeça. Mas, de um modo ou de outro, era disciplinado. Quando fazia, fazia sem que vissem. Pontapés no tornozelo, paulistinhas, bico de chuteira no joelho, socos no estômago, no fígado, nos rins. Provocava os adversários, ria deles, desprezava-os, passava a bola debaixo das pernas, dava chapéus, lençóis, ficava girando em volta do outro com a bola presa, e o outro, bobo. Era odiado. Também o público, apesar do espetáculo que ele dava, o odiava. O fluido dele com o público era estranho, funcionava ao contrário. Iam vê-lo, porque a cada jogo ele inventava uma coisa: um dia era um gol de traseiro, no outro, driblava o time inteiro, deixava a bola na risca do gol, depois, jogava dez minutos numa perna só, entrava em campo de óculos escuros. Um dia telefonou para os jornais, disse que estava numa boate, bebendo e cheio de mulheres. Fotografia, dessa vez ele se arrebenta. Deixou a boate às sete da manhã. À tarde, marcou vinte e cinco gols. Correu mais que nos outros dias. Não se machucava. Entrava em jogadas que partiriam em cinquenta qualquer perna e saía com a bola. Oferecia a canela para os chutes. As travas das chuteiras escorregavam pela sua pele, não entravam. Tinha os reflexos perfeitos, raciocinava seis vezes num milésimo de segundo. Até que um dia de muito calor, após uma hora e meia de ginástica, todo o time pregou. Ele riu e saiu correndo em volta do campo. Deu cinquenta voltas. Depois, foi treinar chutes a gol. Quando parou, o professor de educação física se aproximou. Olhando fixamente em seus olhos, o professor teve medo. E compreendeu.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Simplicidade

A simplicidade é o que há de mais difícil no mundo: é o último reduto da experiência, a derradeira força do gênio.”
George Sand

Contemplações do poeta ao cair da noite

Ainda há pouco, a reler a página admirável de frei Luís de Sousa, cujo título, possivelmente dado pelos antologistas Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, é (se em vez de poeta ler-se arcebispo) o mesmo desta crônica, tive a alegria de verificar quão parecidas eram as minhas noites de solidão em Montevidéu, com as de frei Bertolameu dos Mártires, mais de três séculos antes. Como o santo arcebispo, também eu passava o dia todo dando expediente, quiçá de menos hierarquia, pois enquanto ele devia andar às voltas com despachos celestiais, tinha eu a meu cargo despachos marítimos e terrestres, além da firmação de passaportes e faturas e da contagem diária dos emolumentos consulares.
E como fazia ele, com relação às coisas divinas, eu, ao fechar-se a noite sobre o cerro que provocou no descobridor a exclamação nominativa da cidade, depois de um curto trajeto de automóvel até o bairro de Pocitos, onde tenho meu apartamento num sétimo andar “pagava-me o peso do dia, e do trabalho com um passatempo malconhecido no mundo, e ao menos buscado de poucos (e ainda mal, que se muitos o buscaram fora melhor ao mundo)”. Entregava-me a uma profunda contemplação da bem-amada ausente. Esta era a maneira de vencer a distância irremediável que se estendia diante dos meus olhos voltados para o norte e que às vezes buscavam, na linha descendente de Alfa e Beta de Centauro, o ponto exato onde ela, de sua janela sobre o parque, devia também pensar em mim.
E não se maravilhe ninguém de que eu, tal o arcebispo, passasse com tanta facilidade dos negócios à contemplação. Não tinha, é claro, “dês da primeira idade feito hábito neste santo exercício”. Mas o que me faltava em penitências, sobrava-me em ternura e querer-bem. E se nele “este antigo costume lhe trazia a viola do espírito tão temperada sempre, que em qualquer conjunção que largava o negócio, logo a achava prestes para sem detença entoar as músicas da Celestial Jerusalém, e ficar absorto nos prazeres do divino ócio”, eu por mim tinha sempre bem afinado o meu violão Del Vecchio, e me comprazia em machucar-me as saudades com os doridos acordes de tantas canções feitas para a bem-amada. E assim não me era por nada difícil passar de faturas a doçuras, e desligar-me da rotina do trabalho para a comunhão com a amiga distante, num lento evolar-se do meu ser empós sua adorável imagem, que às vezes parecia corporificar-se na lua que estava no céu. E não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu esvaindo-me de amor em seu luar. Pois era aquele o luar do meu bem no seu pungente exílio, a segredar-me que, mesmo ausente, ali estava para iluminar as minhas horas; e eu tivesse paciência e a esperasse dentro e fora de mim, que ela se vestira toda de luz para o nosso futuro encontro; e não me desesperasse, pois estava próximo o dia em que nunca mais nos haveríamos de separar.
De outros turnos - como no caso de frei Bertolameu, que dessem-lhe azo os negócios, “subia sobre tarde a um eirado que mandou fazer em uma casa das mais altas do Paço; e como o passarinho, que depois de andar todo o dia ocupado na fábrica de seu ninho, quando vai caindo o Sol, e as sombras crescendo, estende as asas pelo ar, dando umas voltas alegres, e desenfadadas, que parece não bole pena, ou posto sobre um raminho canta descansadamente”, - também eu deixava-me estar no terraço de meu apartamento, um dos mais altos de Pocitos: e feito ele que, à imagem da avezinha, “depois de alargar os olhos pelas serras e outeiros, que do alto se descobriam, estendia os de sua alma às maiores alturas do Céu, voava com a consideração por aquelas eternas moradas, desabafava, e em voz baixa entoava de quando em quando alegres Hinos” - eu por minha vez, ante a ideia de compartilhar com a bem-amada a visão dos amplos espaços crepusculares do estuário do rio da Prata, e de rodeá-la, com meus braços dentro das iluminações do poente oriental, punha-me, tal um menino que, ai de mim, já não sou mais, a tamborilar com os dedos e a cantar com ela alegres sambas do meu Rio, que não é da Prata nem do Ouro, mas que é cidade de muito instante, e em hoje mora, em casa única, o meu antes triste e multifário coração.
Vinicius de Moraes, in Prosa

O dono da verdade

O homem que se gaba de só dizer a verdade é simplesmente um homem sem nenhum respeito por ela. A verdade não é uma coisa que rola por aí, como dinheiro trocado; é algo para ser acalentada, acumulada e desembolsada apenas quando absolutamente necessário. O menor átomo da verdade representa a amarga labuta e agonia de algum homem; para cada pilha dela, há o túmulo de um bravo dono da verdade sobre algumas cinzas solitárias e uma alma fritando no Inferno.
H. L. Mencken, in O livro dos insultos

Uma tentativa de explicação

O Sr. José Osório Oliveira, ensaísta e crítico português, a propósito de um concurso da Revista Acadêmica, para saber quais os melhores romances brasileiros, escreveu um artigo em que, depois de citar numerosos livros de literatura brasileira, dela se despedia, mal dissimulando um rancor justo. Esse artigo, anterior à Blitzkrieg, ainda é oportuno. Depois dele muita gente nasceu, mais gente morreu, e os habitantes de cidades grandes começaram a dormir debaixo do chão como tatus.
Mas, graças a Deus, estamos longe disso, pelo menos por enquanto, e podemos, como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, beber honradamente a nossa cerveja. Bebendo a cerveja, com fatalismo, esperando ser chamados ao tribunal divino antes que ela se acabe, esquecemos os bombardeios aéreos, pensamos nas letras nacionais, coitadas, e no descontentamento dum amigo que se cansou de nos prestar favores e afinal se aborreceu da nossa ingrata indiferença.
O Sr. José Osório de Oliveira tem razão. Contudo várias pessoas ficaram magoadas com ele, talvez igualmente com razão. O que há neste caso é apenas um equívoco; tanto nos diferençamos dos europeus que já nem nos entendemos. Será bom tentarmos, embora tarde, uma explicação desse negócio.
O escritor português desejou que nos comportássemos como se estivéssemos à direita do Atlântico, ao norte; aqui imaginaram que o Sr. José Osório de Oliveira , tendo vivido no Rio, conhecesse os nossos hábitos e os tolerasse. Para o estrangeiro do Velho Mundo a correspondência é coisa séria. O cidadão envia um bilhete a outro, não obtém resposta — e naturalmente se ofende: é como se falasse a um indivíduo e este se conservasse calado. Nós, brasileiros, sabemos o que se deve fazer, mas procedemos de modo contrário. Deixamos para amanhã as conversas com pessoas ausentes, arranjamos novo prazo, as cartas fervilham, envelhecem — e excelentes relações desanimam.
É possível que a nossa descortesia seja involuntária. Talvez preguiça, talvez excesso de escrúpulo, receio de, arrumando algumas linhas à pressa, cometer leviandades, dizer inconveniências. A verdade é que somos assim. Não agradecemos os livros que nos remetem, não agradecemos as críticas que nos dispensam. Apoiamo-nos em desculpas frágeis: os livros ainda não foram lidos ou nos desagradam, recusamos o juízo do crítico. Evasivas: se admirarmos os livros, aceitarmos a crítica, também permaneceremos em silêncio.
Certamente nos consideram bárbaros. E somos. A extrema urbanidade reside no extremo oriente. À medida que avançam para oeste, os povos se tornam cada vez menos mesureiros. No Brasil atingimos a culminância.
Nossos vizinhos não se espantam. Por estes meridianos mais próximos o defeito a que nos referimos é comum. Se recebermos uma proposta de qualquer país da América do Sul e, contrariando o mau costume, nos interessarmos por ela, é quase certo que o avião da Panair vai levar ao proponente um papel que já não terá para ele nenhuma significação.
Realmente há entre nós quem ponha os seus escritos em ordem e numa gavetinha do bureau guarde as folhas timbradas, os envelopes, o frasco de goma e a caixa de selos. Isto, porém, é exceção: as censuras que nos vêm de Lisboa mostram que em geral somos desleixados.
Poderemos justificar-nos dizendo que possuímos ideias escassas, as indispensáveis à composição da nossa minguada literatura. Seremos com efeito literatos? Este nome encerrava ainda há pouco um sentido prejudicial, herança provável do tempo em que arte era indício de boêmia e sujeira. Escrevemos efetivamente, mas desconfiados, no íntimo desgostosos com um gênero de trabalho que não pode ser profissão. A nossa mercadoria vai sem verniz para o mercado e não nos desperta, posta em circulação, nenhum entusiasmo. Somos diletantes. Receamos que nos discutam, que nos analisem, que nos exibam os aleijões. Se eles começarem a ser indicados, multiplicar-se-ão, ocuparão toda a obra. A referência que nos contenta é o elogio bem derramado. Não faz mal que seja idiota: precisamos vê-lo, repeti-lo, convencer-nos de que realizamos qualquer coisa notável.
Trabalhamos um pouco à toa, e o pensamento que surge no café e briga às vezes com outros pensamentos acha meio de estabelecer-se: em falta de argumentos, é defendido com gritos. Esses gritos são impossíveis na carta, onde as incongruências avultam. Gostamos de falar, discutir — e opiniões antagônicas já têm rolado no chão, atracadas, resistindo a murros. Somos bastante expansivos, mas a expansão só se manifesta cara a cara. Separados arrefecemos, murchamos. Para que nos gastarmos em correspondência que nos roubaria grande parte do tempo? Desejamos ler sobre nós o que julgamos conveniente. Podemos até redigir nós mesmos os louvores, celebrar-nos com exagero. Há quem faça isto à força de imaginação, enganar-se, acreditar no panegírico, chegar quase a apertar a mão do pseudônimo.
Graciliano Ramos, in Garranchos (Revista Acadêmica º 54, maio/1941)

domingo, 28 de abril de 2019

Pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para senhores e donas de casa durante o Carnaval

I

Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Aí ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:

Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero renascer brasileiro
E poeta.
Quem te ouvir vai ficar besta.

II

Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Tá na hora.

III

Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.

IV

Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.

V

Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se.)

VI

Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome científico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.

VII

Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro à noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis à sua mãe, seus canalhas!

VIII

(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta.)
Faça um buquê de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buquê para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antônio para o povão era, na “tua” tradução, “Emprestai-me vossas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso mesmo.

IX

Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça.)
Hilda Hilst, in Contos d’escárnio/ Textos grotescos

Ironia

O último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade.”
Millôr Fernandes, in O livro vermelho dos pensamentos de Millôr

Desventurada família humana (trecho inicial)

Li em alguns ensaios sobre minha poesia que a permanência no Extremo Oriente influiu em determinados aspectos de minha obra, especialmente em Residencia en la Tierra. Na verdade, meus únicos versos daquele tempo foram os de Residencia en la Tierra, mas, sem me atrever a sustentá-lo de forma peremptória, digo que isso da influência me parece um equívoco.
Todo o esoterismo filosófico dos países orientais, confrontado com a vida real, se revelava como um subproduto da inquietude, da neurose, da desorientação e do oportunismo ocidentais; quer dizer, da crise de princípios do capitalismo. Na Índia não havia, naquela época, muitos lugares para contemplações do umbigo profundo. Uma vida de brutais exigências materiais, uma condição colonial sedimentada na mais intensa abjeção, milhões de mortos cada dia, de cólera, de varíola, de febres e de fome, organizações feudais desequilibradas por sua imensa população e sua pobreza industrial, imprimiam à vida uma grande ferocidade na qual os reflexos místicos desapareciam.
Quase sempre os núcleos teosóficos eram dirigidos por aventureiros ocidentais, sem faltar americanos do Norte e do Sul. Não resta dúvida que entre eles havia gente de boa-fé, mas a maioria explorava um mercado barato onde se vendiam, a preços altos, amuletos e fetiches exóticos, envoltos em embalagem metafísica. Essa gente enchia a boca com o Dharma e a Poga. Encantava-os a ginástica religiosa, impregnada de vazio e palavrório.
Por tais razões, o Oriente me impressionou como uma grande e desventurada família humana, sem destinar lugar em minha consciência para seus ritos nem para seus deuses. Não creio pois que minha poesia de então tenha refletido outra coisa que a solidão de um forasteiro transplantado para um mundo violento e estranho.
Lembro de um daqueles turistas do ocultismo, vegetariano e conferencista. Era um sujeito pequenino, de estatura média, calva reluzente e total, claríssimos olhos azuis, olhar penetrante e cínico, de sobrenome Powers. Vinha da América do Norte, da Califórnia, professava a religião budista e suas conferências finalizavam sempre com a seguinte prescrição dietética: “Como dizia Rockefeller, alimente-se com uma laranja por dia.”
Powers me pareceu simpático pelo seu jeito alegre. Falava espanhol. Depois de suas conferências, íamos devorar juntos grandes buchadas de carneiro assado (khebab) com cebola. Era um budista teológico, não sei se legítimo ou ilegítimo, com uma voracidade mais autêntica que o conteúdo de suas conferências.
Logo se ligou, em primeiro lugar, a uma jovem mestiça, enamorada por seu smoking e por suas teorias, uma senhorita anêmica, de olhar dolente, que o julgava um deus, um Buda vivo. Assim começam as religiões.
Ao cabo de alguns meses desse amor, veio me buscar certo dia para que presenciasse um novo casamento seu. Na motocicleta, cedida pela firma comercial em que trabalhava como vendedor de refrigeradores, deixamos velozmente para trás bosques, mosteiros e arrozais. Chegamos finalmente a uma pequena aldeia de construção chinesa e habitantes chineses. Powers foi recebido com foguetes e música, enquanto a noiva adolescente permanecia sentada, maquilada de branco como um ídolo em uma cadeira mais alta que as outras. Ao compasso da música tomamos limonadas de todas as cores. Em momento nenhum Powers e sua nova esposa se dirigiram a palavra.
Regressamos à cidade. Powers explicou que nesse ritual somente a noiva se casava. As cerimônias continuariam sem necessidade de sua presença. Mais tarde voltaria para viver com ela.
- Você se dá conta que está praticando poligamia? - perguntei.
- Minha outra esposa sabe de tudo e ficará muito contente - respondeu.
Nesta afirmação havia tanta verdade como em sua história da laranja cada dia. Uma vez chegados à sua casa, à casa de sua primeira mulher, a mestiça dolente, encontramo-la agonizando com o copo de veneno na mesinha de cabeceira e uma carta de despedida. Seu corpo moreno, totalmente nu, estava imóvel sob o mosquiteiro. Durou várias horas sua agonia.
Acompanhei Powers porque ele sofria evidentemente, apesar de começar a achá-lo repulsivo. O cínico que carregava no íntimo tinha desmoronado. Fui com ele à cerimônia funerária. Na margem de um rio colocamos o ataúde barato sobre um monte de lenha. Powers ateou fogo nos gravetos com um fósforo, murmurando frases rituais em sânscrito.
Uns poucos músicos vestidos com túnicas alaranjadas salmodiavam ou sopravam tristíssimos instrumentos. A lenha se apagava e era preciso reavivar o fogo com os fósforos. O rio corria indiferente dentro de suas margens. O eterno céu azul do Oriente demonstrava também uma impassibilidade absoluta e um desamor infinito para com aquele triste funeral solitário de uma pobre abandonada.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

A morte de Fantasma

Fantasma morreu durante o sono. Nas últimas semanas comia pouco. Verdade seja dita, nunca comera muito – não havia muito para comer – e talvez isso explique o facto de ter vivido tantos anos. Experiências em laboratório demonstraram que a expetativa de vida de ratinhos sujeitos a uma baixa dieta calórica aumenta muito.
Ludo acordou, e o cão estava morto.
A mulher sentou-se no colchão, frente à janela aberta. Abraçou os joelhos magros. Ergueu os olhos para o céu, onde, pouco a pouco, se iam desenhando leves nuvens cor-de-rosa. Galinhas cacarejavam no terraço. Um choro de criança subia do andar inferior. Ludo sentiu o peito esvaziar-se. Alguma coisa – uma substância escura – escapava de dentro dela, como água de um recipiente estalado, e deslizava depois pelo cimento frio. Perdera o único ser no mundo que a amava, o único que ela amava, e não tinha lágrimas para o chorar.
Ergueu-se, escolheu um pedaço de carvão, afiou-o, e atacou uma das paredes, ainda limpas, no quarto das visitas.

Fantasma morreu esta noite. Tudo é agora tão inútil. O olhar dele me acarinhava, me explicava e me sustinha.

Subiu ao terraço sem o amparo da velha caixa de papelão. O dia expandia-se, num bocejo morno. Talvez fosse domingo. As ruas estavam quase desertas. Viu passar um grupo de mulheres vestidas de um branco imaculado. Uma delas, ao avistá-la, ergueu a mão direita, numa saudação feliz.
Ludo recuou.
Podia saltar, pensou. Avançaria. Subiria ao parapeito, tão simples.
As mulheres, lá em baixo, vê-la-iam um instante, sombra levíssima, a adejar e a cair. Recuou, foi recuando, acuada pelo azul, pela imensidão, pela certeza de que continuaria a viver, mesmo sem nada que desse sentido à vida.

A morte gira ao meu redor, mostra os dentes, rosna. Ajoelho-me e ofereço-lhe a garganta nua. Vem, vem, vem agora, amiga. Morde. Deixa-me partir. Ah, hoje vieste e esqueceste-te de mim. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A noite. É outra vez noite. Tenho contado mais noites do que dias. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - As noites, pois, e o clamor dos sapos. Abro a janela e vejo a lagoa. A noite desdobrada em duas. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Chove, tudo transborda. De noite, é como se a escuridão cantasse. A noite subindo e ondulando, devorando os prédios. Penso, outra vez, naquela mulher a quem devolvi o pombo. Alta, de ossos salientes, com o leve desdém com que as mulheres muito bonitas circulam pela realidade. Passeia no Rio de Janeiro, pela orla da Lagoa (vi fotografias, encontrei na biblioteca vários álbuns sobre o Brasil). Ciclistas cruzam-se com ela. Os que nela demoram o olhar nunca mais regressam. A mulher chama-se Sara, eu chamo-lhe Sara. Parece saída de uma tela de Modigliani.
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

A solução

O custo de vida continuava subindo. Subindo.
Os tratadistas de ciências econômicas já não tinham explicações científicas para a ascensão contínua, cada vez mais acelerada.
Deve ser fenômeno psicológico — explicou um explicador. — O custo de vida sobe porque a gente acha que ele está subindo. Se a gente achasse o contrário, ele iria baixando, baixando, até ficar deste tamanhim — e levantava o dedo mínimo, esse que serve para fixar o salário.
Os habitantes fizeram tamanha força para achar que estava baixando, que muitos adoeceram de exaustão, com febre que também subia a cada hora. Como subiam os remédios febrífugos, cada vez mais caros.
Então as autoridades especializadas propuseram ao governo uma linha de financiamentos para montagem de fábricas de escadas elásticas, que os habitantes passarão a usar, acompanhando a elevação do custo de vida. Sempre. Ad astra.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

sábado, 27 de abril de 2019

Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem freq
uente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Gregório de Matos

Pobreza da sabedoria

Odeio os sábios por sua complacência, sua covardia e sua reserva. Amo infinitamente mais as paixões devorantes do que o humor equilibrado, que torna um homem insensível tanto ao prazer quanto à dor. O sábio ignora o trágico da paixão e do medo da morte, assim como desconhece o élan e o risco, o heroísmo bárbaro, grotesco ou sublime. Ele expressa-se por meio de máximas e dá conselhos. O sábio nada vive, nada sente, nem deseja ou espera. Ele regozija-se em nivelar diversos conteúdos da vida e a assumir-lhes as consequências. Muito mais complexos parecem-me aqueles que, apesar deste nivelamento, não param de se atormentar. A existência do sábio é vazia e estéril, pois desprovida de antinomias e desespero. As existências devoradas pelas contradições intransponíveis são infinitamente mais fecundas. A resignação do sábio vem do vazio, e não do fogo interior. Eu preferiria mil vezes morrer deste fogo do que do vazio e da resignação.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

O enterro do avô Joad

Uma fogueira ardia no fundo da vala, à margem da estrada. Tom tinha feito, com estacas e arame, uma armação de onde pendiam duas panelas em que a água borbulhava furiosamente. De sob as tampas das panelas escapavam rolos de vapor branco. Rosa de Sharon estava ajoelhada no chão, um pouco afastada do calor intenso da fogueira, e tinha uma colher na mão. Ela viu a mãe saindo da tenda, ergueu-se e foi ao encontro dela.
Mãe — disse —, preciso perguntar uma coisa à senhora.
Cê já está com medo outra vez? — inquiriu a mãe. — Queria passar todos os nove meses sem ter um aborrecimento?
Mas... isso não vai fazer mal à criança?
A mãe disse:
Tem um dito assim: “Uma criança que nasce no pesar não terá do que se lamentar.” Não é mesmo, senhora Wilson?
Sim, também já ouvi dizer isso — disse Sairy. — E tem outra frase assim: “Quem com muita alegria nascer, em muita dor vai viver.”
Mas eu estou tremendo tanto por dentro! — disse Rosa de Sharon.
Todos nós estamos — disse a mãe. — Bem, agora vai tomar conta das panelas.
À margem do anel de luz que rodeava a fogueira, os homens se agruparam. Por ferramenta, tinham apenas uma pá e uma picareta. O pai demarcou o lugar — dois metros e meio de comprimento e um de largura. Revezavam-se no trabalho. O pai rasgava a terra com a picareta e tio John jogava-a de lado com a pá. Depois Al pegava na picareta e Tom na pá, e depois vinham Noah e Connie, e assim sucessivamente. E a cova ia ficando mais e mais funda, pois que eles trabalhavam incessante e vigorosamente. A terra voava da cova em uma chuva de torrões. Quando já estava numa cova retangular que lhe vinha até a altura dos ombros, Tom disse:
Mais fundo ainda, pai?
Tem que ser bastante funda. Só um pouco mais. Sai daí agora, Tom. Vai escrever aquele papel que falamos.
Tom içou-se da cova e Noah tomou o lugar dele. Tom foi para junto da mãe, que estava avivando o fogo.
A senhora tem papel branco e caneta, mãe?
A mãe sacudiu vagarosamente a cabeça:
Não. Justamente isso a gente não trouxe... — Lançou um olhar para Sairy. E a pequena senhora foi depressa à tenda e voltou com uma Bíblia e metade de um lápis.
Tome — falou. — Pode tirar a primeira página da Bíblia, que está em branco. — E entregou o livro e o lápis a Tom.
Tom sentou junto ao fogo. Apertou os olhos num gesto de concentração mental e logo começou a escrever, vagarosa e cuidadosamente, desenhando letras bem graúdas. — “Este qui aqui jaz é William James Joad qui morreu di um ataque já muito velho e a família dele enterrou ele aqui purque não tinha dinheiro pro funeral. Ninguém matô ele só qui ele teve um ataque e morreu.”
Mãe, escuta. — E leu vagarosamente o que tinha escrito.
Está bem, até que não soa mal — disse ela. — Mas cê não podia escrever aí alguma coisa da Bíblia, hem? É pra ser um enterro religioso. Procura um pedaço bonito da Bíblia e escreve no papel também.
Sim, mas não pode ser uma coisa comprida, porque não dá. O papel é muito pequeno.
Sairy disse:
Que tal isto: “Que Deus guarde a sua alma”?
Não — disse Tom. — Isso soa como se ele tivesse sido enforcado. Deixe que eu vou ver se copio um pedaço qualquer da Escritura. — Foi virando as páginas, leu, movimentando os lábios, murmurando baixinho. — Aqui tem um pedaço bonito e bem curto — falou, afinal. — “E Lot disse-lhe: Oh, não é assim, Senhor.”
Mas isso não quer dizer coisa nenhuma — disse a mãe. — Já que ocê tá escrevendo, escreve qualquer coisa que tenha sentido.
Sairy disse:
Veja nos Salmos, mais adiante. Nos Salmos sempre se encontra alguma coisa.
Tom foi folheando e lendo os versículos.
Aqui tem um — disse. — É bonito e bem religioso: “Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas e cujos pecados são esquecidos.” Que tal?
Este, sim. É bonito mesmo — disse a mãe. — Pode escrever.
Tom copiou o trecho cuidadosamente. A mãe enxaguou e limpou um vidro de conserva; Tom botou nele o papel e atarraxou firmemente a tampa.
Quem sabe o reverendo devia ter escrito isso? — disse.
Não, o reverendo não é parente nosso — opinou a mãe. Ela pegou o vidro e entrou com ele na tenda escura. Abriu um dos pontos em que o lençol estava seguro pelos alfinetes, meteu o vidro entre as mãos frias do morto e tornou a fechar o lençol. Depois voltou para junto da fogueira.
Os homens estavam regressando da cova e suas faces brilhavam de suor.
Pronto — disse o pai. Foi com John, Noah e Al à tenda e voltaram, carregando o comprido embrulho até a beira da cova. O pai pulou para dentro, pegou o embrulho nos braços e depositou-o cuidadosamente no fundo. Tio John estendeu as mãos e ajudou o pai a subir novamente. O pai perguntou:
Como é que vai ser com a avó?
Vou ver ela — disse a mãe. Foi até o colchão e olhou a anciã por um instante. Depois voltou à cova. — Ela está dormindo — disse. — Talvez se aborreça comigo depois, mas não posso acordar ela. Tá muito cansada.
Onde está o pregador? Ele tem que rezar uma coisa qualquer — disse o pai.
Tom respondeu:
Eu vi ele andando aí pela estrada. Mas ele não gosta mais de rezar.
Não gosta de rezar?
Não — disse Tom. — Ele não é mais um pregador, disse. E diss’que não é direito enganar o povo, fazer o papel de pregador, já que ele não é mais. Aposto que fugiu pra que a gente não pudesse pedir a ele que rezasse.
Casy vinha se aproximando em silêncio e ouvira as últimas palavras de Tom.
Não fugi, não — disse. — Quero ajudar vocês, mas não quero tapear ninguém.
O pai disse:
Mas o senhor não podia dizer umas palavras ao menos? Ainda ninguém da nossa família foi enterrado sem que alguém dissesse algumas palavras.
Bem, então eu vou dizer — falou o pregador.
Connie conduziu Rosa de Sharon até a cova. Ela o seguiu com relutância.
Cê tem que vir — disse Connie. — Não fica direito. E termina logo.
A luz da fogueira caía sobre o grupo, destacando-lhes as faces e os olhos e refletindo-se fracamente nas suas vestes escuras. Todos tiraram os chapéus. A luz bailava, saltitante, sobre o grupo.
Casy disse:
Não vou demorar muito tempo. — Baixou a cabeça e os outros seguiram-lhe o exemplo. Casy disse com solenidade:
Este ancião aqui viveu longa vida, ao fim da qual morreu. Não sei se era bondoso ou mau, e isso não importa. Ele viveu, e isto é o principal. E agora está morto, e acabou-se. Uma vez ouvi alguém recitar um poema que dizia assim: “Tudo que vive é sagrado.” Basta pensar um pouco nessas palavras para descobrir que significam muito mais do que aparentam. Não quero rezar por um homem que está morto. Ele cumpriu o seu destino. Está como deve estar. Tem uma tarefa a cumprir, uma tarefa só dele e só há uma maneira de ele conseguir. E nós, nós também temos uma missão a cumprir, mas não sabemos exatamente o que fazer, porque são muitos os caminhos que se abrem diante de nós. E já que tenho que rezar, vou rezar pelas pessoas que não sabem qual o caminho que devem escolher. O avô, aqui, já tem seu caminho. Portanto, cubram-no e deixem que ele cumpra a sua missão. — E Casy ergueu a cabeça.
O pai disse “Amém”. E todos os outros murmuraram: “Amém.” Depois, o pai pegou a pá, encheu-a de terra e deixou-a cair lentamente na cova. Entregou a pá a tio John, e também ele jogou um pouco de terra na cova. A pá passou de mão em mão, até que todos os homens cumpriram a sua obrigação. Cumprida esta tarefa, o pai tomou de novo a pá e foi lançando rapidamente a terra, cobrindo a cova. As mulheres voltaram para junto da fogueira, a fim de tratarem de preparar a comida. Ruthie e Winfield olhavam tudo, absortos.
Ruthie disse solenemente:
O avô agora está aí embaixo.
E Winfield olhou-a com olhos horrorizados. Depois correu até a fogueira, sentou-se no chão e ficou soluçando.
O pai tinha enchido a cova somente até a metade. Parou, afegando de cansaço, e tio John se encarregou de terminar a tarefa. John estava modelando a saliência sobre o túmulo quando Tom interrompeu-o:
Escute, tio John — disse —, se a gente mostrar que isto aqui é um túmulo, vão querer logo abrir ele. É melhor aplainar a terra em cima e espalhar capim sobre ela. É o único jeito.
O pai disse:
Nem pensei nisso. Mas uma cova que nem tem forma de cova não fica direito.
Paciência. É o único jeito — disse Tom. — Senão, eles vão logo desenterrar o avô e então a gente vai passar um mau pedaço por não ter cumprido a lei. E o senhor sabe o que vai acontecer então comigo, não sabe?
É, eu me esqueci disso. — Tirou a pá da mão de tio John e foi aplainando a superfície da cova. — No inverno vai afundar — comentou.
Que é que se vai fazer? — disse Tom. — No inverno a gente já está bem longe. Vamos pisar bem e jogar capim por cima.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

Desolados

Uma senhora carregando um pequinês, outra, mais velha, carregando a si mesma com a mesma pose. Sentaram à mesa ao lado da nossa. Não, não, o pequinês não quis fazer amor com o meu calcanhar, esta é outra história. Aristocracia francesa ao ponto da caricatura, possivelmente mãe e filha. Deixaram o peixe pedido no prato e a mais velha disse ao garçom que o ponto de cozimento estava errado. La cuisson, um daqueles parâmetros sagrados pelos quais os franceses estabelecem a justeza de tudo, não era a que ela tinha determinado. E o garçom cometeu um erro. O garçom não disse desolê.
O ponto da cuisson não serve apenas para a carne, que pode vir sangrando, rosada, ao ponto ou (há gosto para tudo) bem passada, mas também para o peixe, e neste caso sua definição requer mais tempo e um vocabulário ainda mais minucioso. E o maître obviamente não transmitira as instruções corretas ao chef, ou transmitira e o chef não ligara. Mas quando veio a madame, mulher do chef e dono do restaurante, saber o que tinha havido, nossa vizinha disse que perdoava tudo. Perdoava o peixe errado, pois afinal o chef era obrigado a pensar no gosto dos turistas (nós) e perdoava, estava subentendido, a invasão da França pelos bárbaros e o declínio generalizado de critérios num mundo em crise. Só não perdoava o garçom não ter dito, nem uma vez, desolê.
Os franceses se declaram desolê por qualquer coisa. Você os deixa desolados, desconsolados, arrasados com o menor pedido que não podem atender, ou com a menor demonstração de decepção ou desconforto. É uma declaração tão forte de contrição e empatia que, mesmo automática e distraída, deixa você sem ação. O que mais você pode pedir de quem está pensando no suicídio por sua causa? Desolê absolve tudo. Desolê encerra tudo. E o garçom negou mesmo um desolê protocolar pelo mau cozimento do peixe.
As duas recolheram as suas coisas e saíram do restaurante com mercis que eram agulhadas. O mais indignado era o pequinês.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

sexta-feira, 26 de abril de 2019

A verdade

A verdade é aquilo que todo o homem precisa para viver e que ele não pode obter nem adquirir de ninguém. Todo o homem deve extraí-la sempre nova do seu próprio íntimo, caso contrário ele arruína-se. Viver sem verdade é impossível. A verdade é talvez a própria vida.”
Franz Kafka, in Conversas com Kafka

Agora é que são elas - Capítulo 2

1

Telefone para o senhor.
Olhei para o mordomo, entre atônito e incrédulo. Telefonema para mim? Aqui? Como?
O professor Propp, meu analista, me garantiu, ninguém me reconheceria nesta festa.
Segundo ele, nas histórias de magia e de mistério, o narrador está sempre ausente, nunca participando da festa, quero dizer, das ações.
Tentei explicar isso ao lacaio, que continuou impávido de pé, o telefone numa bandeja como uma lagosta, esperando, esperando, pergunta.
Levei a mão ao aparelho, apavorado com a ideia de que tinha uma voz ali dentro, vinda de algum lugar, e tudo podia acontecer.
O mordomo não mostrou sinais de vida quando minha mão parou em pleno ar e comecei a lhe explicar os meandros do pensamento do professor Propp, para sua ignorância plebeia, eram menos interessantes que um peido, podia ver isso em sua cara que consistia toda em uma superfície sem profundidade, um lago plácido com a fundura de uma folha de papel.
O mordomo insistiu. Era comigo mesmo.
Pensei, já quase suando. E se for “você sabe com quem está falando?”
E que tal seu coração diante de um “fuja enquanto é tempo, tudo foi descoberto”? Insuportável imaginar um “desculpe, foi engano”.
De qualquer forma, é contra meus princípios demonstrar fraqueza diante da criadagem. Levei a mão ao aparelho, com a determinação de um coronel de hussardos de Napoleão levando a mão ao sabre, bradando “carga!”.
O telefone, agora, eu colava aquele búzio na orelha, e ouvi do outro lado o marulhar da vida, aquele silêncio febril de um formigueiro na primavera. As cacofonias da festa se multiplicavam em minha volta, enquanto me chegavam partículas de palavras, destroços de frases, poeiras de som: (...) tesão, o maior tesão (...), ... me comer (...), meter de uma vez só (...), tudo aqui dentro (...) tudo, de uma vez (...).
Tirei o telefone do ouvido, as orelhas ardendo com aquela queimadura. E olhei para o mordomo. Tentei olhar, isto é. Nada na minha frente, tinha se dissolvido naqueles rios de cabeças gargalhantes, altos penteados, dentaduras escancaradas.
Eu estava sozinho com um telefone no colo e, dentro dele, uma voz que dizia o que só se diz, bem, vocês sabem.
Na mão esquerda, eu ainda segurava um cigarro por acender.
Cheguei devagar o telefone no ouvido e do outro lado ouvi... merda!, tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar.

2

Levantei os olhos devagar para o carnaval de luzes em minha volta. Tudo parecia idêntico. As mesmas pessoas. As mesmas gargalhadas. Os gestos todos certos. A certeza.
Só que tinha uma coisa errada. TUDO tinha mudado.
Por segundos girei numa vertigem, sem saber o quê, em quê, por quê.
Ah, por quês?, como atingir a sabedoria sem vocês, porquês, por quês, porquês, diabólica máquina das causas e efeitos. O que tinha mudado? Nenhum POR QUÊ?, por favor. TUDO.

3

De repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. De repente, tudo ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficou corado. E tudo empalideceu, como, como é que foi mesmo que eu não dei pela ausência de Norma, aquela coisa gostosa entre as mulheres, sorvete reinando sobre meu reino de prazer com um morango por coroa?

4

E como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também. Meu rosto, de senhorial mudou para o desespero, de raivoso passou para o desânimo, em meu rosto, meu rosto mudou, rapidamente, flashes de slide projetados na cara de uma estátua por uma máquina desgovernada.
Me levantei, à procura de alguém conhecido, diante de mim, o desconhecido oeste selvagem, infestado de ursos e índios antropófagos, nenhum amigo, nenhuma amiga, pratos célebres, unhas feitas por joalheiros inacessíveis, vozes estrangeiras, sotaques dissonantes.
Levantar me fez bem. Circulei com segurança, sentindo meu rosto voltar à forma primitiva, a cara que eu fazia antes, bem antes de começar este romance, meu romance com Norma.
Respondi ao ligeiro cumprimento de um senhor parecido com meu tio, provavelmente me confundindo com algum sobrinho, me aproximei soberano.
Os tempos estão mudando, comentei, certo de que o tempo é um assunto universal bastante para interessar a todas as pessoas e de que a mudança é uma experiência geral.
Ela não me respondeu. Seus olhos (opala? ágata?) me atravessavam, como se eu fosse uma vidraça entre ela e o Mediterrâneo.
Vamos mudar. Mas vai mudar assim na puta que o pariu.
Me afastei com raiva em direção a um sofá que jazia num canto, um hipopótamo verde-musgo e dourado, debaixo do grande relógio, que eu já sabia tinha pertencido ao tetravô do dono da casa e da festa.
Do dono da casa e da festa, já tinha ouvido falar muito. Sabia que era senhor de muitos recursos, e tinha se dedicado à caridade, desde a morte da mãe, abastecendo com festas o tédio de gente como eu.
Olhei para o relógio. Meia-noite e quinze, os ponteiros escreviam um L. Sentei e olhei em frente.
Só existia uma verdade absoluta. TUDO tinha mudado.

5

Para melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, bem e mal, já não faziam diferença, não tinham mais nada a fazer naquele jogo, entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podia sentir os sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido. Mas eu lá tenho cara de quem vai atrás do papo de um judeuzinho da Europa Central, óculos na ponta do nariz, a cabeça cheia de teorias e esquemas, caverna atravessada de teias de aranha, por onde voam vocês, morcegos milenares? A gente arrasta o rabo do dia a dia, os dias na esperança de um só dia, um momento máximo, o campeonato nacional, a decisão, a final. Esta era a final. Daqui para diante, só as florestas, os desertos, os pantanais e os céus da sabedoria.
Mas foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondas de com licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesa do ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como o vinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou de constatar amargurado, e me resignar com a evidência gritante de que aquilo fosse o que era, a queda do império, a passagem do cometa Halley, o primeiro lugar na lista dos sucessos, uma bobagem dessas qualquer.
Já era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma? E o que fazer com a lição do professor Propp, isso não existe? Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com as mãos suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silêncios insuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudo aquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta:
É grave, doutor?
O doutor Wiesengrund achava que quem sabe. E acreditava sinceramente que isso tudo tinha cura. Era da velha escola. Um pouco de ar puro, farta alimentação, muita abstinência de lipídios, e uma buceta de vez em quando. Para as senhoras, caralhos, evidentemente. Um pinheirinho de Natal, coruscante de esmeraldas e rubis, ao seu lado, a senhora Wiesengrund fazia que sim com a cabeça, a cada palavra que o eminente pentelho regurgitava.
A cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, e eu ficava cada vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diante daquele rato que me roía as entranhas, polo ártico na boca do estômago, meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o pavor.
A gente se conhecia desde a infância, o medo cresceu comigo. Quando eu era garoto, meu medo principal era que a casa do meu pai desabasse. Mas era apenas o centro do terror. Deste centro se irradiavam miríades de medos, aquelas coisas que, com uma picada de frio na minha barriga, me enchiam a vida de vibração e significado, os mínimos medos que cintilavam em volta, e se estendiam até os inumeráveis horizontes do desconhecido. De repente, fiquei apavorado. A partir desse momento, não senti mais NADA. Estava na companhia de algo maior, muito maior, infinitamente maior que qualquer medo. TUDO tinha mudado.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas