domingo, 31 de março de 2019

Razão e caos

Hegel escreveu, no prefácio à Fenomenologia de Espírito, que o triunfo da razão é uma orgia bacanal na qual nem um dos participantes está sóbrio.
Digo-lhes: é preciso ter caos dentro de vocês mesmos a fim de dar à luz uma estrela dançante. Digo-lhes: vocês ainda têm caos dentro de vocês. Ai, o tempo está chegando quando o homem não mais dará à luz uma estrela dançante...” (Nietzsche).
Rubem Alves, in Da jabuticaba ao universo

O poeta não pode temer o povo

Chegamos ao estranho templo da Serpente, nos subúrbios da cidade de Penang, no que antes se chamava Indochina. Este templo foi muito descrito por viajantes e jornalistas. Com tantas guerras, tantas destruições e tanto tempo e chuva que caíram sobre as ruas de Penang, não sei se ainda existirá. Sob o teto de telhas, um edifício baixo e encardido, carcomido pelas chuvas tropicais, entre a espessura das grandes folhas dos plátanos. Cheiro de umidade. Aroma de frangipana. Quando entramos no templo não vemos nada na penumbra. Um cheiro forte de incenso e ali adiante algo se move. É uma serpente que se espreguiça. Pouco a pouco notamos que há algumas outras. Logo observamos que talvez são dezenas. Mais tarde compreendemos que são centenas ou milhares de serpentes. Há pequenas enroscadas nos candelabros, há escuras, metálicas e delgadas, todas parecem adormecidas e saciadas. De fato, por toda parte se veem finas travessas de porcelana, algumas transbordantes de leite e outras cheias de ovos. As serpentes não olham para nós. Passamos roçando-as pelos estreitos labirintos do templo, estão sobre nossas cabeças, suspensas da arquitetura dourada, dormem sobre os muros, enroscam-se sobre os altares. Eis aí a temível víbora de Russell, engolindo um ovo junto de uma dezena de mortíferas cobras-corais, cujos anéis de cor escarlate denunciam seu veneno instantâneo. Vi a ”fer de lance”, vários e grandes pitons, a “coluber de rusi” e a “coluber noya”. Serpentes verdes, cinzentas, azuis e negras enchiam a sala. Tudo em silêncio. De vez em quando um bonzo vestido de açafrão atravessa a sombra. A cor brilhante de sua túnica faz com que ele pareça mais uma serpente, movediça e preguiçosa, em busca de um ovo ou de um bebedouro de leite.
Estas cobras foram trazidas até aqui? Como se acostumaram? Nossas perguntas são respondidas com um sorriso; dizem-nos que vieram sozinhas e que irão sozinhas quando tiverem vontade. O certo é que as portas estão abertas e não há grades ou vidros nem nada que as obrigue a ficar no templo.
O ônibus saía de Penang e devia atravessar a selva e as aldeias da Indochina para chegar a Saigon. Ninguém entendia meu idioma nem eu entendia o de ninguém. Parávamos nas curvas da mata virgem, ao longo do caminho interminável, e desciam os viajantes, camponeses de vestimentas estranhas, taciturna dignidade e olhos oblíquos. Já restavam só uns três ou quatro no interior do imperturbável calhambeque que rangia e ameaçava se desintegrar na noite quente.
De repente me senti em pânico. Onde estava? Aonde ia? Por que passava essa noite longuíssima entre desconhecidos? Atravessávamos o Laos e o Camboja. Observei os rostos impenetráveis de meus últimos companheiros de viagem. Iam com os olhos abertos. Suas feições me pareciam patibulares. Eu estava sem dúvida entre típicos bandidos de um conto oriental.
Trocavam olhares de compreensão e me olhavam de soslaio. Nesse momento exato o ônibus se deteve silenciosamente em plena selva. Escolhi meu lugar para morrer. Não permitiria que me levassem para ser sacrificado debaixo daquelas árvores ignotas cuja sombra escura ocultava o céu. Morreria ali, num banco do ônibus desconjuntado, entre cestas de vegetais e gaiolas de galinhas, única coisa familiar naquele minuto terrível. Olhei ao redor, decidido a enfrentar a sanha de meus verdugos, e percebi que também eles tinham desaparecido.
Esperei longo tempo sozinho, com o coração oprimido pela escuridão intensa da noite estrangeira. Ia morrer sem ninguém saber, tão distante de meu pequeno país amado, tão separado de todos meus amores e de meus livros!

Logo apareceu uma luz e depois outra. O caminho encheu-se de luzes. Soou um tambor; irromperam as notas estridentes da música cambojana. Flautas, tamborins e archotes encheram de claridade e sons o caminho. Subiu um homem que me disse em inglês:
- O ônibus sofreu uma avaria. Como a espera será longa, talvez até o amanhecer, e não tem aqui onde dormir, os passageiros foram buscar uma troupe de músicos e dançarmos para que o senhor se entretenha.
Durante horas, sob aquelas árvores que já não me ameaçavam, presenciei as maravilhosas danças rituais de uma nobre e antiga cultura e escutei, até o sol raiar, a música deliciosa que invadia o caminho.
O poeta não pode temer o povo. Pareceu-me que a vida fazia uma advertência e me ensinava para sempre uma lição: a lição da honra oculta, da fraternidade que não conhecemos e da beleza que floresce na escuridão.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Vida é fábula

Quomodo fabula, sic vita; non quam diu, sed quam bene acta sit, refert.” (A vida é como uma fábula; não importa quanto seja longa, mas que seja bem narrada).
Sêneca

O homem, animal insone

Alguém disse que o sono equivale à esperança: admirável intuição da importância assustadora do sono - tanto quanto da insônia. Esta representa uma realidade tão colossal que me pergunto se o homem não seria um animal inapto ao sono. Por que chamá-lo animal razoável quando se pode encontrar em algumas feras tanta razão quanto se queira? Por outro lado, não existe em todo o reino animal, outra fera que queira dormir sem podê-lo. O sono faz esquecer o drama da vida, suas complicações, suas obsessões; cada despertar é um recomeço e uma nova esperança. A vida conserva assim uma agradável descontinuidade, que dá a impressão de uma regeneração permanente. As insônias engendram, ao contrário, o sentimento da agonia, uma tristeza incurável, o desespero. Para o homem com saúde plena - a saber, o animal - é fútil interrogar-se sobre a insônia: ele ignora a existência de indivíduos que dariam tudo pela sonolência; assombrados da cama que sacrificariam um reino para reencontrar a inconsciência que a terrível lucidez das noites em claro lhes tomou. A ligação é indissolúvel entre a insônia e o desespero. Creio que a perda total da esperança não pode ser concebida sem o concurso da insônia. O paraíso e o inferno não apresentam outra diferença que esta: pode-se dormir, no paraíso, o quanto se quiser; no inferno, não se dorme jamais. Deus não pune o homem removendo-lhe o sono para lhe dar o conhecimento? O mais terrível castigo não é ter o sono proibido? Impossível amar a vida quando não se pode dormir. Os loucos sofrem frequentemente de insônias - daí suas apavorantes depressões, seu desgosto com a vida e sua propensão ao suicídio. Ainda, esta sensação de afundar-se, como um mergulhador do nada, nas profundezas - sensação própria às vigílias alucinadas - não revela uma forma de loucura? Aqueles que se suicidam jogando-se na água, ou precipitando-se no vazio, agem sob um impulso cego, loucamente atraídos pelo abismo. Os que nunca sofreram tais vertigens não poderiam compreender o irresistível fascínio pelo nada que move alguns à renúncia suprema.

***
Há em mim mais confusão e caos do que a alma humana deveria suportar. Vocês encontrarão em mim tudo o que quiserem. Eu sou um fóssil das fundações do mundo, no qual os elementos não se cristalizaram, no qual o caos inicial entrega-se ainda à sua louca efervescência. Eu sou a contradição absoluta, o paroxismo das antinomias e o limite das tensões; em mim tudo é possível, pois sou o homem que rirá no momento supremo, na agonia final, na hora da última tristeza.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

sábado, 30 de março de 2019

Tá tudo em ordem, meu bem?

Ah, que delícia se alguém abrisse a porta da sala, do quarto ou do banheiro e me dissesse solícito: “Tá tudo em ordem, meu bem?”. Há quantos anos isso não acontece comigo! E tô vendo todo mundo esbravejando porque o presidente Itamar tem uma divina assessora que abre todas as portas e diz exatamente isso: “Tá tudo em ordem, meu bem?”. Seja lá quem for essa maravilhosa dona Rute, seria lindo encontrar um duplo dela para senhoras como eu, complexas, muitas vezes prolixas e com tudo em desordem. E ainda que as coisas não se arrumem com essa simples frase, a esperança de que um dia alguém possa arrumá-las já nos dá um grande alívio. “A ideia do suicídio nos alivia de muitas noites más”, disse Nietzsche. E que delícia então ter a ideia de chamar a Rute ao invés de pensar em se matar. No meu caso, eu digo porque o presidente não tem motivos para pensar nisso. A inflação está só vinte e sete por cento ao mês. Alguém em Nova York perguntou ao prefeito Maluf (dias atrás) a quanto estava a inflação no Brasil. Ele respondeu: vinte e seis por cento. O que perguntou: “Ah, isso é muito, vinte e seis por cento ao ano é muito mesmo!”. Os ministros do presidente, os que se foram e os que “estão” ministros, resolveram aderir ao conceito de um Prêmio Nobel: “Só existe um meio seguro de evitar erros: não fazer nada ou ao menos evitar fazer algo novo”. Uma frase digna de um Dalai-Lama. Ou de um iniciado, pelo menos. Há um grande iniciado que todo mundo, no Brasil, devia conhecer ou aderir: padre Bede Griffiths. Ele diz em algum momento: “A divina escuridão… nela, encontramos Deus”. Tá tudo tão escuro por aqui, apesar do ainda verão. Será que é Deus que vem vindo? Outra coisa agora: quem é que vai ser a rainha se aparecer um rei? Não paro de rir atrás das portas com essa ideia de monarquia. Gente!!! Não combina! Já pensou todo o povão gritando: “Viva o rei! Viva a rainha!”. E nós todos desdentados, famélicos apontando os dois: oia o rei, oia a rainha! E se alguém descobrir um dia (como naquela estorinha infantil) que o rei está nu?
Hilda Hilst, in Crônica publicada originalmente no jornal Correio Popular em 1993

A Bela Adormecida

Estou alegre e o motivo
beira secretamente à humilhação,
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.
No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa dele que volta
e põe tudo arcaico,
como a matéria da alma,
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.
O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja
quando ele vem eu sei,
porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço
a cada ano mais.
Sob juramento lhes digo:
tenho 18 anos. Incompletos.
Adélia Prado

Literatura e ciência

Acreditamos que os homens mentem, mas a realidade não mente. As coisas, pensamos, são sempre verdadeiras. Mas por que confiar tanto no mundo real? Para desmascarar sua instabilidade, temos a ficção. A literatura não é uma fantasia ingênua, um divertimento sem consequências. Ao contrário: ela é uma máquina de interrogar as coisas. Com suas bordas frouxas, seu olhar “de banda” e sua inconstância, só a literatura pode desmascarar as ilusões da Verdade.
Ideias assim, que reviram o mundo de ponta-cabeça, agitam a alma do escritor português Gonçalo M. Tavares. Em uma bela caixa azul, nomeada Breves notas (editora UFSC / Editora da Casa), me chegam três de seus preciosos livros. O primeiro, Breves notas sobre ciência, é o que me interessa aqui. Mas os outros dois – Breves notas sobre o medo e Breves notas sobre as ligações – são igualmente imperdíveis.
Escolho as notas sobre a ciência porque, no século do poder tecnológico, ela costuma nos oprimir. Todos nos sentimos paralisados diante de um diagnóstico médico ou de uma perícia científica. Ditadas em nome da ciência, essas verdades podem até produzir alívio ou gerar belas demonstrações, quando nada mais fazem que repetir e levar ao mesmo lugar.
Ser exato é encaixar a exatidão nas coisas”, alerta Gonçalo. A exatidão é uma caixa que lacra a Verdade. Os obedientes e os crentes pensam que o mundo é perfeito, a imperfeição está em nós. Armado com sua artilharia de métodos, o cientista – nos alerta Gonçalo – cria dificuldades e conceitos para chegar ao que já conhece. Nada repugna mais aos sistemas detectores da Verdade do que a presença da Mentira. Só a Verdade, nada mais que a Verdade, pregam os cientistas, e o mundo que se dane.
Não é por outro motivo, diz Gonçalo, que a ciência está sempre atrasada em relação ao Desejo. “É como se os cavalos fossem o Desejo e a carroça puxada por eles a ciência”, compara. Se os cavalos se separam da carroça, ganham velocidade, mas se tornam inúteis. Mas o pior sucede à carroça: “Se os cavalos se separam dela, ela não mais se moverá”. Interessado em manter o controle da carruagem, o cientista exerce uma coação feroz sobre as coisas. A ciência “embeleza” a vida, isto é, lhe empresta coerência e limpidez. “Queres trazer-te o novo?”, Gonçalo pergunta. Ele mesmo responde: “Sai de ti”. O novo está sempre deslocado em relação a nosso olhar. Está sempre fora de nós.
Chegar sempre aos mesmos resultados – acreditar que a Verdade está nas provas que se repetem, como faz a ciência, não é pensar, é imitar. A rigor, os instrumentos científicos não fornecem respostas ao desconhecido. O que fazem? Enquadram o desconhecido no conhecido e, assim, acreditam dominá-lo. O investigador vê o que seus olhos querem ver. “Isto é: vês os teus olhos.” Quando a ciência não passa de uma luta com os objetos do mundo. Não se trata, portanto, de Verdade ou de Mentira, mas de forças ou de fraquezas, Gonçalo aponta. “O evidente é aquilo que é mais forte que nós.”
A prova é uma questão de poder (de força), e não de Verdade. Se fosse sábio, o investigador observaria as coisas de banda, e não de frente. “Observar a realidade pelo canto do olho, isto é: pensar ligeiramente de lado.” Isso é a criatividade, Gonçalo sugere. Seu livro é uma reunião de notas rápidas, trepidantes, que nos atravessam como choques. Por isso ele é um escritor genial: não escreve para tranquilizar, mas para acordar. Por isso faz literatura mesmo quando parece fazer filosofia: não abdica do singular. Mantém-se, firme, na esfera do “1” – título, aliás, de um de seus livros de poemas (Bertrand Brasil, 2005). Se o leitor é alguém que dorme, a literatura não é um cobertor (a ciência), mas um despertador (a arte).
Breves notas sobre ciência é um incomum, mas ardente, exercício de topografia. Como um topógrafo sutil, Gonçalo acomoda as coisas lado a lado, enfileira os conceitos e os pensamentos, e os confronta. A ciência parte do princípio de que as coisas são estáveis e “verdadeiras”. Contudo, alerta Gonçalo, as coisas não são verdadeiras, as coisas mentem! “Um átomo não poderá mentir? Uma substância química não poderá mentir? Uma pedra?”, se pergunta. Toda a ciência parte do pressuposto de que a realidade não mente; chegar à Verdade seria trazer à luz a realidade imóvel. Alerta Gonçalo: esse é um pressuposto não comprovado. Aí está a literatura, que, com seus rasgões e suas guinadas, desmascara esse real de gelo.
Afirmar a topografia é, pois, afirmar a inconstância da visão. “Há algo de místico na convicção de que a palavra descreve melhor a verdade do mundo”, diz Gonçalo. Porque repudia o singular e aprecia a repetição, a ciência prefere as palavras que, como ovos, se acomodam com serenidade em uma caixa. A ciência foge do desenho, que achata e quebra os ovos, expondo o que não se pode nomear. A ciência só se aproxima do ilógico para projetar leis que o acorrentem. Só a literatura persiste no ilógico e faz uma aposta corajosa no Um.
A ciência considera o singular (o Um) só um pormenor, mas o singular é a prova da inconstância (da mentira) das coisas. Muitos cientistas trabalham armados de mapas (modelos); mas se esquecem de confirmar se representam, de fato, o lugar em que estão perdidos. “A ciência parte sempre do princípio de que tem o mapa certo.” Tudo não passaria de uma questão de empenho. Por isso ela não suporta a metáfora, instrumento da linguagem ilógica que, em vez de acomodar, empurra. A ciência prefere os instrumentos sólidos, como o martelo, que bate sempre as mesmas coisas.
Contra a figura asséptica do cientista, surge o escritor, sem método e sem princípios, apostando tudo em seu olhar torto. A Verdade, nos diz Gonçalo, é sempre o resultado de um método; o resto é Mentira. Ocorre que, se mudamos o método, a Verdade também muda. O que leva à conclusão inquietante de que, no absoluto, nada é verdadeiro. Só a poesia suporta essa verdade feita de estilhaços. Resume Gonçalo: “Funcionar é repetir um raciocínio. Eis o martelo. Investigar é não repetir um raciocínio. Eis o difícil”.
José Castello, in Sábados inquietos

Capítulo 87 - Geologia

Sucedeu por esse tempo um desastre: a morte do Viegas.
O Viegas passou aí de relance, num capítulo, com os seus setenta anos, abafados de asma, desconjuntados de reumatismo, e uma lesão de coração por quebra. Foi um dos finos espreitadores da nossa aventura. Virgília nutria grandes esperanças em que esse velho parente, avaro como um sepulcro, lhe amparasse o futuro do filho, com algum legado; e, se o marido tinha iguais pensamentos, encobria-os ou estrangulava-os. Tudo se deve dizer: havia no Lobo Neves certa dignidade fundamental, uma camada de rocha, que resistia ao comércio dos homens. As outras, as camadas de cima, terra solta e areia, levou-lhes a vida, que é um enxurro perpétuo. Se o leitor ainda se lembra do capítulo 23, observará que é agora a segunda vez que eu comparo a vida a um enxurro; mas também há de reparar que desta vez acrescento-lhe um adjetivo - perpétuo. E Deus sabe a força de um adjetivo, principalmente em países novos e cálidos.
O que é novo neste livro é a geologia moral do Lobo Neves, e provavelmente a do cavalheiro, que me está lendo. Sim, essas camadas de caráter, que a vida altera, conserva ou dissolve, conforme a resistência delas, essas camadas mereciam um capítulo, que eu não escrevo, por não alongar a narração.
Digo apenas que o homem mais probo que conheci em minha vida foi um certo Jacó Medeiros ou Jacó Valadares, não me recorda bem o nome. Talvez fosse Jacó Rodrigues; em suma, Jacó. Era a probidade mesma; podia ser rico, violentando um pequenino escrúpulo, e não quis; deixou ir pelas mãos fora nada menos de uns quatrocentos contos; tinha a probidade tão exemplar, que chegava a ser miúda e cansativa. Um dia, como nos achássemos, a sós, em casa dele, em boa palestra, vieram dizer que o procurava o Doutor B., um sujeito enfadonho. Jacó mandou dizer que não estava em casa.
- Não pega, bradou uma voz do corredor; cá estou de dentro.
E, com efeito, era o Doutor B., que apareceu logo à porta da sala. O Jacó foi recebê-lo, afirmando que cuidava ser outra pessoa, e não ele, e acrescentando que tinha muito prazer com a visita, o que nos rendeu hora e meia de enfado mortal, e isto mesmo porque o Jacó tirou o relógio; o Doutor B. perguntou-lhe então se ia sair.
- Com minha mulher, disse o Jacó.
Retirou-se o Doutor B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao Jacó que ele acabava de mentir quatro vezes, em menos de duas horas: a primeira, negando-se; a segunda, alegrando-se com a presença do importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta, acrescentando que com a mulher. O Jacó refletiu um instante, depois confessou a justeza da minha observação, mas desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompatível com um estado social adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas... Ah! lembra-me agora: chamava-se Jacó Tavares.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

quinta-feira, 28 de março de 2019

Uma mulher chamada guitarra


Um dia, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era “a música em forma de mulher”. A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam un mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.
O violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina - viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo - o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.
Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em beneficio de agentes excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.
Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer “passado na cara” por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do Esqueleto.
Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na maneira de ser tocado - contra o peito - lembra a mulher que se aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.
Ponha-se num céu alto uma Lua tranquila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seu tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis) uma Lua tranquila num céu alto? E eu vos responderei: um violão. Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua.
Vinicius de Moraes, in Prosa

Está na mesa

Vem de dentro um rumor de pratos e talheres. Alguém põe a mesa. Vovô enrola um último cigarro, ao sereno. Lili vem brincar mais perto da porta. De misteriosas andanças, aponta, à esquina, o cachorro da casa.
Está na mesa!”
Agora todos se reunirão em torno à sopa fumegante.
E em vão a noite apertará o cerco primitivo. E em vão o antigo Caos, nos confins do horizonte, ficará rondando como um iguanodonte esfomeado…
Mário Quintana, in Sapato florido

Tantos anos depois, Paris parece tão distante...

Que distração: em abril de 1989 publiquei meu primeiro romance, cujo esboço inicial foi feito em dezembro de 1980 e nos primeiros meses de 1981. O relato seria um conto, mas foi crescendo com o calor da viagem sinuosa e atropelada da escrita.
Às vezes, quando essa viagem é interrompida, você diz a si mesmo que é uma pausa provisória, mas há textos que ficam no meio do caminho e são abandonados ou esquecidos: assuntos que não dão certo, temas ou questões que não se desdobram e morrem nas primeiras páginas. Na verdade não é o tema que morre, e sim a forma, a arquitetura, o projeto que não vinga. Mas aquele conto expandiu-se, uma voz puxava outra, vozes tão intrometidas que nem sei de onde vinham. Quando me dei conta, já tinha escrito mais de cem páginas no quarto parisiense que eu havia alugado por uma bagatela, um quartinho pouco arejado cuja única vantagem era situar-se no Marais.
O mais belo bairro de Paris compensava o espaço exíguo do quarto de empregada, com uma janela inclinada que dava para o pátio interno do edifício. Mesmo no inverno, três crianças brincavam ao redor de uma fonte no centro do pátio. Isso me bastava e até me contentava. Mas tinha de suportar meus senhorios, um casal francês da província, talvez de Brest. O marido era discreto, lacônico, deixava a mulher falar e agir por ele.
Lembro que no terceiro mês a mulher decidiu que a prateleira mais baixa da geladeira seria a minha, as outras seriam dela e do marido; a divisão se estendia à porta, às gavetas e ao congelador, de modo que a garrafa de leite, a carne, os legumes e os ovos do casal proprietário ficavam separados. Um dia decidi desocupar a geladeira e tornar-me independente.
Talvez por se sentir culpada, a mulher de Brest bateu na porta do meu quarto numa noite de inverno e perguntou se eu queria tomar o resto da sopa de cenoura. Se a minha querida avó escutasse essa oferta tão generosa, não sei o que diria. Quer dizer, sei, mas é melhor não mencionar. Eu disse um “Non, merci, madame” com uma voz cavernosa, fechei a porta e continuei a escrever, pensando que nunca ia terminar aquele texto, pensando no poema “O lutador”, de Carlos Drummond de Andrade: lutar com as palavras é a luta mais vã.
O lutador” — uma das melhores definições do trabalho com a linguagem — evoca o esforço do narrador na batalha com as palavras e termina com a certeza de que “o inútil duelo jamais se resolve”.
Um poema deve ser perfeito, ou quase perfeito, mas um romance é, com frequência, uma obra imperfeita, um calhamaço com vários deslizes ou momentos de frouxidão. Nessa batalha de fôlego longo, cada página é uma batalha, uma tentativa de pôr de pé alguns personagens, de ir até o fundo de uma questão, de transferir aos personagens todo o ódio, paixão, frustração e ressentimento do narrador.
No fim, quando o livro é publicado, os personagens vivem nas páginas do romance e passam a existir na imaginação do leitor; mas o narrador está seco, exaurido na noite sem lua, sem sopa de cenoura, apenas com uma baguete adormecida e fatias murchas de presunto espalhadas sobre a escrivaninha.
De manhã uma mulher ou um casal te olha como se você fosse um demente ou um inútil. Demente, ainda não. Inútil, talvez: a utilidade e o afã missionário fazem mal à literatura, que não deve explicar nem convencer, apenas insinuar e interrogar.
Enquanto escrevia meu primeiro romance, eu e uma amiga traduzíamos ensaios sobre o crescimento da economia sul-americana, o milagre das ditaduras do Cone Sul. Essas traduções tediosas garantiam pão, queijo e vinho, e também livros de bolso, um bom filme e o aluguel do quarto, e assim podia recusar sopa morna de cenoura nas noites geladas de janeiro. Sem sopa, mas com Marcel Schwob, Baudelaire e Stendhal, anotando versos e frases que depois eu escrevia nas paredes do quarto.
Tantos anos depois, Paris parece tão distante, e agora surge sem nostalgia na minha memória. Nunca mais vi o casal de Brest. Eu e minha amiga perdemos o fio da conversa e os laços de amizade se afrouxaram. A distância é essa hidra terrível que nos afasta das pessoas, e só uma década depois — em 1991 ou 92 — eu tive notícias da minha amiga e do Marais, onde ela mora. O bairro, que era calmo — mas não bucólico —, tornou-se chique e presunçoso, sem os artesãos, chapeleiros e pequenos atacadistas de acessórios de couro, sem Les Halles, tão evocado na prosa francesa do século XIX.
Nada disso restou? Mas alguma coisa sempre sobrevive na memória.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

quarta-feira, 27 de março de 2019

O mar de meus olhos

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes.
 
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens…
Há mulheres que são maré em noites de tardes…
e calma.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Você pensa no teu futuro?

Às vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até passar (parece-me que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava). Em pé pensando em nada, os olhos moles.
Nem Glória era uma amiga: só colega. Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?
Em relação a Macabéa, Glória tinha um vago senso de maternidade. Quando Macabéa lhe parecia murcha demais, dizia:
E esse ar é por causa de?
Macabéa, que nunca se irritava com ninguém, arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada. Glória usava uma forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha estômago delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto. Em compensação se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse era parecer com Marylin. Um dia, em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de ser. E Glória caiu na gargalhada:
Logo ela, Maca? Vê se te manca!
Glória era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor. Sabia que o sestro molengole de mulata, uma pintinha marcada junto da boca, só para dar uma gostosura, e um buço forte que ela oxigenava. Sua boca era loura. Parecia até um bigode. Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração. Penalizava-se com Macabéa mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola? E Glória pensava: não tenho nada a ver com ela.
Ninguém pode entrar no coração de ninguém. Macabéa até que falava com Glória — mas nunca de peito aberto.
Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos internináveis com Olímpico. Ela era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia nela um desafio que se resumia em “ninguém manda em mim”. Mas lá um dia pôs-se a olhar e a olhar e a olhar Macabéa. De repente não agüentou e com um sotaque levemente português disse:
Oh mulher, não tens cara?
Tenho sim. É porque sou achatada de nariz, sou alagoana.
Diga-me uma coisa: você pensa no teu futuro?
A pergunta ficou por isso mesmo, pois a outra não soube responder.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

Pantera negra


A lembrança do orangotango Rango é outra imagem tema, que vem das ondas. Em Medán, Sumatra, bati algumas vezes na porta do arruinado jardim botânico. Para meu assombro, era ele quem vinha sempre abrir. De mãos dadas, percorríamos um caminho até sentar-nos numa mesa que ele golpeava com as mãos e os pés. Aparecia então um criado que servia uma jarra de cerveja, nem pequena nem grande, boa para o orangotango e para o poeta.
No zoológico de Cingapura víamos o pássaro-lira dentro de uma jaula, fosforescente e colérico, esplêndido em sua beleza de ave recém-saída do éden. E mais além passeava em sua jaula uma pantera negra ainda cheirando à selva de onde veio. Era um fragmento curioso da noite estrelada, uma faixa magnética que se agitava sem cessar, um vulcão negro e elástico que queria arrasar o mundo, um dínamo de força pura que ondulava; e dois olhos amarelos, certeiros como punhais, que interrogavam com seu fogo, que não compreendiam nem a prisão nem o gênero humano.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Os sóis da noite

O mineiro é um pássaro de plumas negras que os mineiros perseguem e não veem nunca. Voa muito alto e vai alvoroçando com seu grito duro o topo das montanhas. Sabe-se que descansa nos últimos galhos dos cedros das farrobas. Há outros pássaros, o capanero e a piscua, que também anunciam o esconderijo dos diamantes. Quando a piscua está muito alegre e canta piiiiscua, piiiiiiscua, é por alguma coisa boa, mas cuidado com esse passarinho manso, de plumas cinzentas, quando fica triste e canta baixo, como se estivesse com raiva: melhor é ir embora. Em compensação, cada vez que o mineirinho arisco grita seu único grito, está mostrando o diamante que foge, para que os homens se lancem sobre a pedra e a levantem no punho. O mineiro conduz os mineiros até o fundo da selva de Guaniamo, onde vive. Quando sai na savana, mal começa a voar, morre, porque o ar da planura bate em seu peito.
O diamante é uma pedra que magicamente aparece no meio das peneiras, desprendida de uma massa de pedras inúteis e barro, depois de esconder-se nos leitos de areia dos rios ou nas profundidades da terra, entre os sinais delatores: coisas que parecem grafite de lápis, lentilhas, merda de papagaio, pedaços de metal e sementes de romã. Para encontrar o diamante, este senhor, é preciso ter sangue nas veias.
O mineiro é um preto velho que protesta porque são três da manhã e na rua da Salvação já não se pode beber. O que é meu é meu, grita. Eu tenho reales, não preciso pedir dinheiro a esses botequineiros. Somos gente boa, mas quando dá raiva, dá raiva. Tenho um diamante grande como o da África aqui no meu bolso, e não me atendem. Que cantem as máquinas! Que saiam as mulheres! Estão pensando que Marchán é algum vira-latas, nesse negócio? Não me deem nada. Eu tenho mais reales, mais que esses que têm negócios e picas, eu tenho reales no bolso e no banco de Caracas e em todos os lugares. Aqui estou com meu burrico e quero que as mulheres tirem a roupa e deem banho no meu burrico com brandy, porque é assim que ele gosta! Don Marchán é o homem mais rico de todas as minas desse país, que caralho, e eu me chamo Dionísio Marchán. Quem quiser dormir nesse país que faça casa. Aqui tem muita madeira. Você vai me fazer calar? Eu não tenho medo de você nem de ninguém. Eu é que faço você calar. Faço você calar a boca a machadada. Eu nunca, em nenhuma mina, pedi esmola a ninguém. E quem tiver raiva de mim eu me mato com ele, eu ou ele, a machado ou a bala ou do jeito que for. E o homem que me venha, que me venha frente a frente, assim, porque mamãe não me pariu escravo. Eu sou um homem sem amo! Um homem sem medo! O tigre mais bravo que sair, já o amamentei. Eu sou Marchán. Eu aprendi para saber. Que ninguém banque o inimigo comigo. Uns quiseram, mas não puderam. Que saiam as mulheres, todas as mulheres! Peladas, que Marchán paga esta noite a festa da mina! Que saiam a Mena e a Turca e a Rosa! Aqui a máquina tem de cantar! Seja doutor, capitão, seja o que for, ninguém na Salvação vai fechar a porta para mim. Porque eu sou Marchán. Já estou passando dos setenta, mas sou como burro bom, o brio eu não perdi, já conheço a vida! Eu sou um homem que mata de frente! Hoje já não sobram homens, isso sim. Hoje o que existe são punheteiros. Que cantem as máquinas, eu falei! Vamos arrebentar o pescoço das garrafas! As mulheres, que dancem! Hoje sou o que ontem não fui e o que posso ser não sou, pois esse dia de hoje é o que digo de mim. Que Dionísio Marchán morreu de velho. Esse não foi morto, esse não!
O diamante é uma planta que nasce em qualquer parte, porque para existir não exige boa terra. Mas tem seus mistérios. Se faz perseguir pelos túneis a golpes de lança e apaga quando quer a vela ou os pulmões dos mineiros.
O diamante está no topo de um morro invencível, onde muitos quiseram subir e rodaram encosta abaixo pelas pedreiras. O morro, que se ergue nas costas do Caura, mostra, apesar disso, cicatrizes de escaladas que se perdem de vista muito lá em cima, e do alto se desprende, pelas manhãs, uma cascata de laranjas muito doces (nestas terras onde só crescem a seringueira e a sarrapia).
O diamante jaz no fundo do leito arenoso do rio Paragua, no sítio exato e secreto onde uma mulher encontrou, quando as águas baixaram, um canhão de bronze com o suporte quebrado, um tremendo canhão daqueles que os conquistadores carregavam pela boca e punham fogo na mecha. O canhão estava ali, embora fosse impossível estar ali, porque as cataratas do rio teriam sucumbido os galeões ou as corvetas e ninguém poderia ter aberto uma picada, de tão longe, através da selva cerrada.
Don Sifonte! Mandam-lhe lembranças.
Como andam as coisas?
Até o momento, não andam.
Como vai você?
Mais velho que ontem, mais perto da morte.
Pasteizinhos quentes! Para velhos que não têm dentes! Os caraquenhos são uns frescos.
As luzes que nascem do diamante cortam como faca. Os comerciantes os examinam com lentes grossas. Às vezes o diamante não é um diamante: é um quase quase.
O mineiro é um barulho que nasce pelas noites, quando todos dormem, e levanta levemente e flutua sobre o sonho de todos.
O mineiro é o murmúrio das surucas nas mãos dos fantasmas; a surda agitação dos pedregulhos lavando-se e filtrando-se por três peneiras sucessivas; o som quase secreto da areia que, de filtro em filtro, vai caindo.
O mineiro é o ruído de ferro das pás e das lanças que solitárias se erguem, dançam, se esfregam entre si e se põem em movimento até os poços, e vão penetrando a terra e cavam os socavãos enquanto todos dormem.
E é o eleito que escuta, com o rosto crispado e todos os músculos em tensão, até que finalmente o ruído cessa e fogem os fantasmas para que não os surpreenda e os mate a luz do dia. E então, desesperadamente, o escolhido se afunda no grotão onde o diamante o espera.
O diamante é uma presa que se esconde debaixo da língua de um homem muito magro, que treme de medo. Outros homens tiraram sua roupa, arrancaram sua roupa em farrapos. “Você roubou-nos cinco baldes”, dizem. “Vimos quando você os roubou.” Falam com os dentes apertados. “Todo mundo viu”, dizem.
O homem muito magro nega agitando a cabeça e murmura algumas palavras sem que ninguém perceba que tem o diamante debaixo da língua.
Nadando, nessa água imunda? Nem você acredita em você. Estava roubando. Isso é o que você estava fazendo. Roubando. E isso não se faz. Isso é pecado. É feio, muito feio, fazer isso.
O homem magro está rodeado por eles, um anel de homens com olhares acesos. Um deles atira cuidadosamente o nó escorregadio de uma corda longa que tem numa das mãos para o galho alto de uma árvore, e o homem muito magro engole o diamante e se condena.
O mineiro é um homem com um arco e uma flecha tatuados no peito.
O mineiro fala, movimento de arco em tensão: Barrabás abriu uma época. Lá pelos anos quarenta, diz, Barrabás encontrou no Polaco um diamante do tamanho de um ovo de pomba, que valia meio milhão de dólares. Essa manhã, diz, os comerciantes lhe haviam negado café com pão.
Voo alto da flecha em direção ao alvo: o diamante era perfeito, transparente e com reflexos azulados, embora tivesse as beiradas irregulares. Nunca visto.
Alegria da flecha no ar: Barrabás oferecia banquetes ao presidente e dava grandes festas em Caracas. Passeava pelas ruas e gostava das moças nas varandas: comprava delas um olhar e um copo d’água por cem bolívares. Mandou arrancar todos dos dentes e fazer uma dentadura de ouro puro. Apaixonou-se pela filha do presidente.
A flecha bate: o mineiro diz que Barrabás ofereceu dez mil bolívares para entrar nos salões do Tamanaco, e que não deixaram, por ser preto. Mas o Tamanaco não existia.
A flecha quebrada: Barrabás definha, pobre e velho, numa mina perdida da fronteira.
Aniquilação da flecha: quando voltou de Caracas, não conseguia nem um quilo de arroz fiado. E já não pode contar nem consigo.
O diamante é um espelho profundo onde os mortos de fome acreditam encontrar seus verdadeiros rostos.
O diamante é um recém-nascido que se oferece às putas colombianas da zona vermelha ou se evapora em rum ou uísque escocês ou cai na emboscada dos baralhos marcados nas vendinhas dos trapaceiros profissionais.
O diamante faz dançar os milhões à luz da lua, e, quando sai o sol, no bolso não sobra nem um trocado para comprar a bala que faria falta.
O diamante espera, adormecido, entre as raízes de uma gameleira que arde, ao pé das galhadas em chamas, no centro do delírio de um homem que desesperadamente sabe que não lembrará.
O mineiro é um corpo quente e gelado que treme numa rede, à intempérie, com os olhos queimados pela febre. O mineiro acha que chove. Mas a chuva é uma folha de palmeira que um homem arrasta por um caminho poeirento, recém-aberto a machado e já rachado pelo sol, e a folha avança e soa como uma chuva que roda. Se a chuva caísse, a verdadeira chuva, talvez aliviasse os fervores da febre do mineiro que queria sair da rede e da febre, mas está preso, as pernas não respondem, o queixo treme, os dentes se enlouqueceram e chocam-se entre si, esse diamante é meu, uma mão na garganta o afoga e resseca sua boca, esse diamante tão grande como um penhasco, necessita vomitar o que não comeu nem bebeu, lambido pelo fogo, eu, eu que me banhei a sexta-feira santa e não fui transformado em peixe, aonde me vão levar, os poros se dilatam, estouram, aonde a transpiração salta a jorros, se aqui não temos nem cemitério, o diamante reina no incêndio das raízes espantosas das gameleiras e no incêndio da febre na cabeça do mineiro, a cabeça se parte, eu que dormi com mulher numa sexta-feira santa e não fiquei grudado, aonde vão me levar, um alicate quente que tritura o crânio e suprime a respiração, querem me despojar, querem me roubar, a transpiração aos jorros, abusadores, filhos da mãe, a pedra nascida para mim aí embaixo da árvore que arde, a morte, quando os que não voaram voam, aonde, quando os que não correram correm, as flores grudadas, os pássaros mudos, e bruscamente surge então a invasão de borboletas negras, grandes como urubus, apagam o céu e cortam os caminhos e o mineiro sente que está indo, abre caminho entre as borboletas a machadadas, invencível e veloz, a sopros de vento puro abre caminho, deixa-se ir rumo à pedra que o chama, fulgurante, da fogueira de árvores à beira do rio e do fim de todas as coisas.
O diamante é uma pedra maldita. O diamante é uma pedra só. Com suas línguas de diamante, as antigas bruxas poderosas cortam o osso e o aço e atravessam a carne dos planetas.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

terça-feira, 26 de março de 2019

Minha unidade interior

Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma - nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus projetos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia.
Devo-me a humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino patrimônio possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus.
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.
Fernando Pessoa, in Inéditos

Foi mudando, mudando

Tempos e tempos passaram
por sobre teu ser.
Da era cristã de 1500
até estes tempos severos de hoje,
quem foi que formou de novo teu ventre,
teus olhos, tua alma?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?

Os modos de rir, o jeito de andar,
pele,
gozo,
coração...
Negro, índio ou cristão?
Quem foi que te deu esta sabedoria,
mais dengo e alvura,
cabelo escorrido, tristeza do mundo,
desgosto da vida, orgulho de branco, algemas, resgates, alforrias?

Foi negro, foi índio ou foi cristão?
Quem foi que mudou teu leite,
teu sangue, teus pés,
teu modo de amar,
teus santos, teus ódios,
teu fogo,
teu suor,
tua espuma,
tua saliva, teus abraços, teus suspiros, tuas comidas,
tua língua?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?
Jorge de Lima

Ideias fortes

O jardim das delícias terrenas (1504), de Hieronymus Bosch

Nos tempos em que eu praticava a feitiçaria chamada psicanálise, estava atendendo uma paciente e ela disse:
É, eu tenho ideia fraca...”
Num tom de brincadeira, interferi:
Alto lá! Nesta sala somente eu tenho ideias fracas...”
Ela ficou espantada e não entendeu.
Aí eu expliquei: “Eu penso as mesmas coisas doidas que você pensa...”.
Levantei-me e a chamei para ir ver um quadro de Hyeronimus Bosch, Jardim das Delícias. É uma loucura completa. Cenas inimagináveis, infernais. De onde Bosch tirou aquelas coisas medonhas? De dentro de sua própria cabeça. Quer dizer: a cabeça de Bosch era um hospício. Mas ele não era louco. Era um artista, pintor. Ele não era louco porque suas ideias eram “fracas”. Ele sabia que as ideias não eram coisas. Só existiam na sua cabeça. Agora, se ele pensasse que suas ideias eram realidade, então ele seria doido.
Eu penso as mesmas coisas estranhas que você”, continuei. “Mas sei que são só pensamentos, nuvens brancas levadas por uma brisa. Sou dono deles. E com eles eu faço literatura da mesma forma como Bosch fez pintura surrealista. Mas os seus pensamentos são fortes. As nuvens brancas se transformam em nuvens negras, e chove, com trovões e relâmpagos, e você fica toda molhada. Você não é dona deles. Eles são mais fortes que você... Você fica ‘possuída’ por eles...”
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

O direito à felicidade (trecho II)

Existem, é claro, tendências opostas e muito mais encorajadoras. O drástico decréscimo na mortalidade infantil certamente acarretou um aumento da felicidade humana e em parte serviu de compensação por todo o estresse da vida moderna. Ainda assim, apesar de sermos um pouco mais felizes do que nossos ancestrais, o aumento de nosso bem-estar é muito menor do que o esperado. Na Idade da Pedra o ser humano médio tinha à sua disposição 4 mil calorias de energia por dia. Além de alimento, esse número incluía a energia investida na preparação de ferramentas, vestimentas, arte e fogueiras. Hoje um americano médio usa 228 mil calorias diárias de energia para alimentar não apenas seu estômago, mas também seu carro, seu computador, sua geladeira e sua televisão. O americano médio usa, portanto, sessenta vezes mais energia do que um caçador-coletor da Idade da Pedra. O americano médio é sessenta vezes mais feliz? Não há dúvida de que podemos ser bem céticos quanto a essas visões cor-de-rosa.
E mesmo que tenhamos superado muitas agruras do passado, alcançar uma felicidade afirmativa pode ser muito mais difícil do que abolir completamente o sofrimento. Um pedaço de pão era suficiente para alegrar um camponês medieval faminto. Como alegrar um engenheiro entediado, muito bem remunerado e obeso? A segunda metade do século XX foi uma era de ouro para os Estados Unidos. A vitória na Segunda Guerra Mundial, seguida de uma vitória ainda mais decisiva na Guerra-Fria, transformou-os na maior superpotência global. Entre 1950 e 2000, o PIB americano cresceu de US $ 2 trilhões para US $ 12 trilhões. A renda real per capita dobrou. A então recém-inventada pílula anticoncepcional tornou o sexo mais livre do que nunca. Mulheres, homossexuais, afro-americanos e outras minorias finalmente ganharam uma fatia maior da torta americana. Carros baratos, geladeiras, aparelhos de ar-condicionado, aspiradores de pó, lavadoras de louça, máquinas de lavar, telefones, televisões e computadores transformaram a vida cotidiana e a fizeram ficar quase irreconhecível. Mas estudos revelam que os níveis de percepção subjetiva de bem-estar dos americanos permaneceram mais ou menos os mesmos da década de 1950.
No Japão, a renda real média multiplicou-se por cinco entre 1958 e 1987, num dos mais rápidos booms econômicos da história. Essa avalanche de riqueza, aliada a numerosas mudanças positivas e negativas no estilo de vida e nas relações sociais dos japoneses, surpreendentemente teve reduzido impacto nos níveis de bem-estar subjetivo da população. Os japoneses na década de 1990 estavam tão satisfeitos — ou insatisfeitos — quanto estavam na década de 1950.
A impressão que se tem é de que nossa felicidade vai de encontro a um misterioso teto de vidro que não permite seu crescimento, a despeito das conquistas sem precedentes que foram alcançadas. Mesmo que provêssemos alimento grátis para todos, curássemos todas as doenças e assegurássemos a paz mundial, tudo isso não iria necessariamente fazer em pedaços o teto de vidro. Alcançar a verdadeira felicidade não vai ser muito mais fácil do que vencer a velhice e a morte.
O teto de vidro da felicidade é mantido no lugar por dois pilares sólidos, um psicológico e outro biológico. No nível psicológico, a felicidade depende mais de expectativas do que de condições objetivas. Não ficamos satisfeitos com uma existência pacífica e próspera. Em vez disso, nosso contentamento resulta de a realidade corresponder a nossas expectativas. A má notícia é que, à medida que as condições melhoram, nossas expectativas inflam. Melhoras dramáticas nas condições, como as que a humanidade vem experimentando em décadas recentes, se traduzem em expectativas maiores e não em mais contentamento. Se não fizermos alguma coisa quanto a isso, ficaremos insatisfeitos também com nossas conquistas futuras.
No nível biológico, tanto nossas expectativas como nossa felicidade são determinadas mais pela bioquímica do que pela situação econômica, social ou política. Segundo Epicuro, ficamos felizes quando desfrutamos de sensações agradáveis e nos sentimos livres das desagradáveis. Jeremy Bentham, de modo semelhante, sustentava que a natureza deu o domínio sobre o homem a dois senhores — o prazer e a dor — e eles sozinhos determinam tudo o que fazemos, dizemos e pensamos. O sucessor de Bentham, John Stuart Mill, explicou que a felicidade nada é senão o prazer e a libertação da dor e que, para além de um e de outro, não há nem o bem nem o mal. Aquele que buscar deduzir o bem e o mal de algo diferente (como a palavra de Deus ou o interesse nacional) estará tentando enganá-lo, e talvez enganando a si mesmo também.
Nos tempos de Epicuro, tal discurso seria uma blasfêmia. Nos tempos de Bentham e de Mill, era subversão radical. Mas, no início do século XXI, é ortodoxia científica. Segundo as ciências biológicas, a felicidade e o sofrimento não são mais do que sensações corporais balanceadas de maneiras diferentes. Nunca reagimos a acontecimentos no mundo exterior, somente a sensações que ocorrem em nosso corpo. Ninguém sofre porque perdeu o emprego, porque se divorciou ou porque o governo deu início a uma guerra. O que faz as pessoas infelizes são as sensações desagradáveis verificadas no próprio corpo. Perder o emprego certamente pode desencadear uma depressão, que é em si um tipo de sensação corporal desagradável. São vários os motivos que podem nos fazer ficar com raiva, porém a raiva nunca é uma abstração. Ela sempre é sentida como uma sensação de calor e tensão no corpo, que é o que a torna tão irritante. Não é à toa que dizemos que estamos “ardendo” de raiva.
Inversamente, de acordo com a ciência ninguém fica feliz ao conseguir uma promoção, ganhar na loteria ou encontrar o amor verdadeiro. As pessoas ficam felizes com uma coisa, e uma coisa apenas — sensações de prazer no corpo. Imagine que você é Mario Götze, meio-campo da seleção alemã na final da Copa do Mundo de Futebol de 2014 contra a Argentina; já se passaram 113 minutos e a partida segue sem gols. Faltam apenas sete minutos para a temida decisão por pênaltis. Cerca de 75 mil fãs excitados enchem o estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, e incontáveis milhões assistem ao jogo pela televisão no mundo inteiro. Você está a poucos metros do gol argentino quando André Schürrle faz um magnífico passe em sua direção. Você ajeita a bola no peito, ela rola até seu pé e você a chuta de voleio, e a vê passar voando pelo goleiro argentino e se acomodar no interior da rede. Goooooooool! O estádio entra em erupção, como um vulcão. Dezenas de milhares de pessoas gritam como loucas, seus companheiros correm para abraçá-lo e beijá-lo, milhões de pessoas em Berlim e em Munique irrompem em lágrimas na frente da televisão. Você está em êxtase, mas não por causa da bola na rede argentina ou das comemorações que começam nos apinhados Biergartens da Bavária. Você na realidade está reagindo a uma tempestade de sensações internas. Arrepios percorrem sua espinha de cima a baixo, ondas de eletricidade varrem seu corpo, e a sensação é de que você está se dissolvendo em milhões de bolas de energia em plena explosão.
Você não precisa marcar o gol da vitória na final da Copa do Mundo de Futebol para ser tomado por essas sensações. Se você acabou de ouvir que recebeu uma promoção inesperada no trabalho e começa a dar pulos de alegria, está reagindo ao mesmo tipo de sensação. As partes mais profundas de sua mente nada sabem de futebol ou de empregos. Elas conhecem apenas sensações. Se você recebeu uma promoção, mas por algum motivo não sente nenhuma sensação prazerosa, não ficará satisfeito. O oposto também é verdadeiro. Se você acabou de ser despedido (ou perdeu um jogo de futebol decisivo), mas está experimentando sensações muito prazerosas (talvez por ter tomado algum comprimido), poderá assim mesmo sentir que está no topo do mundo.
A má notícia é que sensações agradáveis passam rapidamente e mais cedo ou mais tarde tornam-se desagradáveis. Nem mesmo marcar o gol da vitória da final da Copa do Mundo de Futebol garante felicidade eterna. Na verdade, a partir daí tudo pode seguir ladeira abaixo. De modo similar, se no ano passado eu ganhei uma promoção inesperada no trabalho, posso até ainda estar ocupando a nova posição, mas as agradáveis sensações que experimentei ao ouvir a notícia desapareceram em poucas horas. Se quiser sentir novamente aquelas sensações maravilhosas, terei de conseguir outra promoção. E depois outra. E se não a conseguir, posso ficar ainda mais amargo e enraivecido do que estaria se tivesse continuado a ser um humilde carregador de piano.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã