quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Legado

Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.
Carlos Drummond de Andrade

De roubos e negócios

[…] E agora, quando um negociante se põe a falar de serviço, fico me perguntando quem é que ele quer enrolar com aquela ladainha. Todo negociante tem que mentir e enganar. Diz que é uma coisa e vai ver é outra. É isso que importa. Se você roubasse o pneu seria considerado um ladrão e ia preso; ele tentou roubar-nos quatro dólares em troca de um pneu furado: isto se chama negócio.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

O entusiasmo como forma de amor

Existem indivíduos junto aos quais a vida se reveste em formas de pureza e limpidez dificilmente imagináveis por aqueles que são presas das contradições e do caos. Passar por conflitos interiores, consumir-se num drama íntimo, sofrer um destino colocado sob o signo do irremediável: eis uma vida da qual toda a claridade é expulsa. Aqueles cuja existência desenvolve-se sem solavancos nem obstáculos alcançam um estado de paz e contentamento, em que o mundo aparece luminoso e cativante. Não é o entusiasmo este estado que inunda um mundo de brilho feito de alegrias e atrativos? O entusiasmo permite a descoberta de uma forma particular do amor e revela uma maneira nova de se abandonar ao mundo. O amor tem tantas feições, tantos desvios, tantos aspectos que é difícil isolar seu cerne ou sua forma essencial. É central, para todo erotismo, identificar a manifestação original do amor, a maneira primordial através da qual ele se realiza. Fala-se de amor entre os sexos, de amor à divindade, pela arte ou pela natureza; fala-se também do entusiasmo como forma de amor, etc. Qual é a manifestação característica da qual todas as outras dependem, e digo mais, derivam? Os teólogos sustentam que sua forma primordial é o amor Dei: os outros não seriam mais do que pálidos reflexos. Certos panteístas com tendências estetizantes optam pela natureza, e os estetas puros, pela arte. Para os adeptos da biologia, é a própria sexualidade, sem afetividade; para certos metafísicos, enfim, o sentimento de identidade universal. Apesar do exposto, ninguém provará que a forma de amor por ele defendida é verdadeiramente constitutiva do homem, pois, na escala da história, esta forma terá variado tanto que ninguém mais saberá determinar o seu caráter específico. Penso, quanto a mim, que sua forma essencial é o amor entre o homem e a mulher, que, longe de se reduzir à sexualidade pura, implica todo um conjunto de estados afetivos, cuja riqueza se deixa facilmente compreender. Quem já suicidou por Deus, pela natureza ou pela arte? - realidades abstratas demais para que sejam amadas com intensidade. O amor é tanto mais intenso quanto mais é ligado ao individual, ao concreto, ao único; ama-se uma mulher devido àquilo que a diferencia no mundo, devido à sua singularidade: nos instantes de amor extremo, nada poderia substituí-la. Todas as outras formas de amor, ainda que elas tendam a se tornar autônomas, participam deste amor central. Considera-se o entusiasmo independente da esfera de Eros, mas suas raízes mergulham na própria substância do amor, apesar de seu poder de libertação. Toda natureza entusiasta cobre uma receptividade cósmica, universal, uma capacidade de tudo assimilar, de se orientar em todas as direções, e de se engajar em tudo com uma vitalidade transbordante, pelo único desejo de realização e paixão de agir. O entusiasta não conhece nem critérios, nem perspectivas, ou cálculo, mas somente o abandono, o suplício e a abnegação. A alegria da realização, a embriaguez da eficácia são o que há de essencial neste tipo humano, para quem a vida é um élan que leva a uma altitude em que as forças de destruição perdem todo o seu vigor. Todos nós temos momentos de entusiasmo, mas raros demais para nos definir. Eu falo aqui de um entusiasmo à toda prova: que não conhece derrotas, pois não faz caso do objeto, mas goza da iniciativa e da atividade como tal; quem se lança numa ação, não por ter meditado seu sentido ou utilidade, mas porque não pode fazer de outro jeito. Sem ser a eles totalmente indiferente, o sucesso ou a falha jamais estimulam ou desencorajam o entusiasmo: ele será a última pessoa a acreditar na falha. A vida é muito menos medíocre e fragmentária na sua essência do que se pensa: não é por esta razão que nós somente nos rebaixamos, perdemos a vivacidade de nossos impulsos e nos impomos formas, nos esclerosando às custas da produtividade e do dinamismo interior? A perda da fluidez vital destrói nossa receptividade e nossa capacidade de esposar generosamente a vida. Somente o entusiasta permanece vivo até a velhice: os outros, se já não veem ao mundo natimortos - como a maior parte dos homens -, morrem prematuramente. Quão raros, os verdadeiros entusiastas! Poderíamos imaginar um mundo em que todos fossem apaixonados por tudo? Seria mais sedutor que a própria imagem do paraíso, pois o excesso de sublime e generosidade ultrapassaria qualquer visão do Éden. A capacidade do entusiasta de renascer constantemente coloca-o para além das tentações demoníacas, do mundo do vazio e do suplício da agonia. Sua vida ignora o trágico, pois o entusiasmo constitui a única forma de existência que é inteiramente opaca ao sentimento da morte. Mesmo na graça - esta forma tão próxima do entusiasmo - o desconhecimento, a indiferença orgânica e a ignorância irracional da morte têm menos força. Entra, na graça, muito charme melancólico - charme que o entusiasmo de todo ignora. Minha admiração sem limites pelos entusiastas vem de minha impotência em compreender sua existência num mundo em que a morte, o vazio, a tristeza e o desespero compõem um sinistro cortejo. Que existam pessoas inaptas ao desespero - eis o que perturba e impressiona. Como se faz que o entusiasta seja indiferente ao objeto? Como ele pode ser animado somente pela plenitude e pelo excesso? E qual é esta estranha e paradoxal realização através da qual o amor chega ao entusiasmo? Pois quanto mais o amor tem de intensidade, mais ele é individualizado. Aqueles que amam de uma grande paixão não saberiam amar várias mulheres de uma só vez: quanto mais a paixão tem força, tanto mais seu objeto se impõe. Tentemos então imaginar uma paixão desprovida de objeto; figuremo-nos um homem sem uma mulher em que concentrar seu amor: o que restaria, senão uma plenitude de amor? Não existem homens devotados a grandes potencialidades amorosas, mas que jamais amaram deste amor primordial, original? O entusiasmo: um amor sem objeto individualizado. No lugar de se orientar por um outro, as virtualidades amorosas derramam-se em manifestações generosas, numa forma de receptividade universal.
O entusiasmo é, com efeito, um produto superior do Eros, em que o amor não se desperdiça no culto recíproco dos sexos, mas faz do entusiasta um ser desinteressado, puro e inacessível. De todas as formas do amor, o entusiasmo é a mais isenta de sexualidade, mais ainda que o amor místico, o qual não pode se livrar do simbolismo sexual. O entusiasmo também protege da inquietude e da confusão que fazem da sexualidade uma característica do elemento trágico do homem. O entusiasta é uma pessoa eminentemente não problemática. Ele pode compreender bastantes coisas, mas não as incertezas dolorosas nem a sensibilidade caótica do espírito torturado. Os espíritos problemáticos não podem resolver nada, pois não amam nada. Procuremos, neles, esta capacidade de abandono, este paradoxo do amor como estado puro, esta renovação permanente e total que se abre a tudo a cada instante, esta irracionalidade inocente. O mito bíblico do pecado do conhecimento é o mais profundo que a humanidade jamais imaginou. A euforia dos entusiastas mantém-se, precisamente, no fato de que eles ignoram a tragédia do conhecimento. Por que não dizê-lo? O conhecimento confunde-se com as trevas. Eu renunciaria de bom grado a todos os problemas insolúveis em troca de uma doce e inconsciente inocência. O espírito não eleva: ele aniquila. No entusiasmo - assim como na graça ou na magia - o espírito não se opõe antinomicamente à vida. O segredo da felicidade reside nesta indivisão inicial, que mantém uma unidade inatacável, uma convergência orgânica. O entusiasta ignora a dualidade - este veneno. Ordinariamente, a vida somente permanece fecunda pelo preço de tensões e antinomias, de tudo o que vem do combate. O entusiasmo excede este combate, no que diz respeito a ele mesmo, por meio de um salto isento do elemento trágico e de um amor isento de sexualidade.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

O bom

Tem uma crônica do Paulo Mendes Campos em que ele conta de um amigo que sofria de pressão alta e era obrigado a fazer uma dieta rigorosa.
Certa vez, no meio de uma conversa animada de um grupo, durante a qual mantivera um silêncio triste, ele suspirou fundo e declarou:
Vocês ficam aí dizendo que bom mesmo é mulher. Bom mesmo é sal!
O que realmente diferencia os estágios da experiência humana nesta Terra é o que o homem, a cada idade, considera bom mesmo. Não apenas bom. Melhor do que tudo. Bom MESMO.
Um recém-nascido, se pudesse participar articuladamente de uma conversa com homens de outras idades, ouviria pacientemente a opinião de cada um sobre as melhores coisas do mundo e no fim decretaria:
Conversa. Bom mesmo é mãe.
Depois de uma certa idade, a escolha do melhor de tudo passa a ser mais difícil. A infância é um viveiro de prazeres. Como comparar, por exemplo, o orgulho de um pião bem lançado, o volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entre os dedos, o cheiro da terra úmida, o cheiro do caderno novo?
Bom mesmo é cheiro de Vick-Vaporub!
Mas acho que, tirando-se uma média das opiniões de pré-adolescentes normais brasileiros, se chegaria fatalmente à conclusão de que nesta fase bom mesmo, melhor do que tudo, melhor até do que fazer xixi na piscina, é passe de calcanhar que dá certo.
Mais tarde a gente se sente na obrigação de pensar que bom mesmo é mulher, mas no fundo ainda acha que bom mesmo é acordar com febre e não precisar ir à aula.
Depois, sim, vem a fase em que não tem conversa. Bom mesmo é sexo! Quem diz outra coisa é porque está sendo ou muito honesto ou desconcertantemente original.
Bom mesmo é pudim de laranja.
Melhor do que sexo?
Bom... Cada coisa na sua hora.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Antonio Cícero

O homem que devia entregar a carta

Era sua primeira missão como office-boy. Estava com vinte anos, mas não tinha conseguido outro emprego. Apesar dos jornais garantirem que não havia crise, ele batera o nariz em dezenas de portas e tinha enfrentado filas de doze quilômetros. O patrão pediu que ele entregasse uma carta, com protocolo. Avisou: a pessoa que receber precisa assinar esse papelzinho. Só entregue ao destinatário, a ninguém mais. Essa carta é da maior importância.
Foi. Ao chegar, verificou o endereço: era um terreno baldio. Comparou, indagou. Não havia engano mesmo. O número correspondia ao terreno. Voltou ao patrão, contou.
O patrão:
Eu sei que é um terreno. Mas vão construir um prédio ali.
E o que faço?
Você entrega a carta, como mandei.
O patrão, homem ocupado, dispensou o boy. Ele voltou ao local. Nada. Um terreno sujo, cheio de mato. O que fazer? Sentou-se, pensando que se alguém chegasse por ali, poderia dar uma informação. No fim do dia, foi embora.
Na manhã seguinte, ao subir no elevador, encontrou o patrão.
Como é, entregou a carta?
Não tem prédio lá.
Mas vão construir. Já conseguiram o financiamento da Caixa Econômica.
O boy voltou ao terreno. Naqueles e nos dias seguintes. Nas semanas e meses. O patrão, inquieto, querendo saber da carta, o boy mais inquieto ainda, já sem saber por que não construíam logo o edifício. Um dia, viu homens carpindo o mato. No outro dia, ergueram um tapume. Em seguida, instalaram placas. Vieram tratores e máquinas. Cavaram, cavaram, caminhões basculantes levaram a terra, chegou cimento, aço, pedras. As fundações ficaram prontas.
O boy ali, todos os dias, firme. Fazendo amizade com os operários, capatazes da obra, aprendendo como se mistura o cimento, como se processa a concretagem, acompanhando os andares que subiam, as lajes sendo terminadas.
O prédio subiu. A esta altura o patrão, irritadíssimo com o boy, ameaçava despedi-lo.
Que porcaria você é! Nem consegue entregar uma carta!
O boy, ferido no orgulho, plantou-se então, dia e noite, sentado num dos andaimes. Amigo de todos os operários, comia e bebia com eles, contava casos, ouvia histórias do Nordeste, lendas da Bahia, conhecia a miséria que ia pelo interior, os dramas de fome e doença, o abandono, a seca. A parte mais demorada, lenta. Colocar portas, janelas, armários, rebocar, passar massa corrida, pintar, instalar pias, torneiras, vasos, tacos. Então, a festa de inauguração, chope. As faixas, os corretores ansiosos por enganar alguém com as compras maravilhosas que terminavam em pesadelo.
As pessoas começaram a se mudar. Todos os dias, o boy batia à porta do apartamento 114. O destinatário ainda não tinha se mudado. Agora, o boy já tinha feito vinte e três anos e o patrão tinha lhe dado um prazo fatal, irreversível. Ou entregava a carta, ou era despedido.
Ele batia à porta, ninguém atendia. Até que um caminhão trouxe mudança para o 114. Mas a porta continuava fechada, muda.
Batia, e nada.
Uma tarde, abriram. Um senhor grisalho, ar sonolento. O boy, triunfante, estendeu a carta. O homem olhou o destinatário.
Não sou eu. Nem sei quem é.
Como? O senhor comprou o apartamento de alguém?
Não. Comprei na planta. Não teve nenhum dono antes de mim.
O que faço?
Passa na portaria, fala com o zelador.
O boy passou, explicou a situação. O zelador apanhou um carimbo, bateu no envelope: DESTINATÁRIO DESCONHECIDO.
Devolveu a carta ao boy.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

Grogotó

Trinta e cinco anos fazendo roupas de talhe masculino, eah, trezentos e cinquenta ternos talvez, ixe, tesourei um sem-fim de casimiras linhos que tais, ufa, vida toda quase debruçado sobre aquela Singer velha de guerra, hã, infarto maldito me trouxe de repente pra esta UTI, hã, destino fez chanfreta comigo, puh, gostaria tanto de fazer meu próprio jaquetão de oito botões pra chegar vistoso que só vendo diante dele criador do Univer...
Evandro Affonso Ferreira, in Grogotó

O escritor e sua obra

Quando eu era mais jovem do que sou agora, achava que era relativamente simples escrever livros, e mesmo livros de boa qualidade. Eu achava que não era necessário nada além de colecionar um bom acervo de palavras da literatura clássica, encontrar algum tema pelo qual se tenha algum apreço e então investir-se da postura de um calmo amanuense e acrescentar uma folha escrita atrás da outra até se chegar a um livro. E todos ficariam contentes.
Não se trata de uma experiência insignificante, para alguém que escolheu a tarefa de escrever livros como a coisa mais importante da sua vida, descobrir que o livro é uma trapaça e que um livro jamais poderá ser um bom livro a não ser que o fato de ser um livro seja algo secundário. O livro é uma ilusão. Um indivíduo que escreve livros não escreve livros.
A gente deve conhecer tanto o espírito quanto o estilo da nossa língua materna nas diversas fases de sua literatura, além de ser capaz de ler fluentemente em algumas das principais línguas de cultura da nossa época e, se possível, ser razoavelmente capaz de escrever nestas mesmas línguas. De fato, estes são requisitos mínimos de formação para alguém a quem se exige um conhecimento preciso das palavras e das ideias, já que estas são a matéria-prima da sua arte, são a sua madeira e a sua argila.
Gramáticos e professores defendem amiúde nos jornais a importância de os escritores dominarem a ortografia. Trata-se de uma verdade incontestável. Os escritores deveriam não apenas dominar a ortografia, mas sim dominar pelo menos três ou quatro ortografias do seu idioma materno. Não é mais do que natural que um corredor profissional possua três pares de tênis. Porém, não se deve esquecer jamais que mesmo uma pessoa de pés descalços consegue ir mais longe do que alguém com três pares de tênis.
Amiúde, alguns energúmenos erguem sua voz para afirmar que o escritor deve ser nacional e não internacional. Quanto a isso, não resta qualquer dúvida, pois é um fato consumado que todos os bons escritores são tanto nacionais quanto internacionais a um só tempo.
O ser humano é – e, em especial, atualmente – pelo menos tão internacional quanto as aves. Um bom livro que é escrito na China também é escrito para a Islândia. Os idiomas são meramente recipientes diferentes para pensamentos, ideias e ideais que são atualmente mais internacionais do que em qualquer outro momento da história da humanidade.
Ninguém consegue se tornar um escritor razoável em nossa época, ou em qualquer outra, salvo se se esforçar em aprender o que deve ser aprendido no decorrer de uma vida breve visando fortalecer o espírito, não importa se este aprendizado venha de Berlim, de Londres, de Nova Iorque, de Moscou ou de Reiquiavique. O mundo é um só e o homem existe no mundo.
Quanto mais o autor se torna bitolado e faz profissão de fé do isolamento e do ódio à humanidade, tanto mais distante estará de ser um representante de seu tempo ou de qualquer tempo. Ele deve se deixar inundar pela vida do mundo inteiro, do século inteiro, caso pretenda infundir vida à sua obra.
Em geral, temos pouquíssima ideia disso quando começamos a escrever livros. Porém, quando menos se espera, nos damos conta de que o livro é mera ilusão, e de que a missão do escritor é arcar com o carma do seu século.
O vocabulário de um autor maduro não consiste de paráfrases cuidadosamente colhidas nos clássicos. Sua linguagem é, sim, o resultado de um sério conflito interior, sendo um caso perdido tentar explicar aos outros a natureza deste conflito.
Desconfio que os autores maduros têm em comum o fato de ver a forma como devem coadunar seus pensamentos e o seu mundo em palavras, a cada novo livro, como um problema eternamente insolúvel. Às vezes – provavelmente na maioria das vezes – o autor resolve esta questão dizendo aquilo que gostaria de dizer.
Por detrás de uma única oração podem estar várias noites de vigília, toda a batalha do escritor, a expressão de todas as forças de que ele foi capaz de lançar mão. E, no entanto, a frase sai-lhe torta. Porém, também pode ocorrer, e quando menos se espera, o escritor dar com um novo tom, ainda que apenas com três palavras, mais ou menos, um tom que é tão poderoso, tão robusto e tão sútil ao mesmo tempo que todas as vozes […] Uma frase curta que talvez encerre o segredo de uma vida inteira, de um século inteiro, de um mundo inteiro:
O crux ave spes unica” (“Salve a cruz, nossa única esperança”);
To be or not to be: that is the question” (“Ser ou não ser, eis a questão”);
Deyr fé” (“O gado morre” [verso inicial das estrofes 76 e 77 do poema medieval islandês Hávamál (“O Cantar do Altíssimo”): “Deyr fé, /deyja frændur, / deyr sjálfur ið sama. / En orðstír / deyr aldregi / hveim er sér góðan getur. // Deyr fé, / deyja frændur, / deyrsjálfur ið sama. / Eg veit einn / að aldrei deyr: / dómur um dauðn hvern”. (“Morre o gado / morrem os parentes / morre a gente mesmo. / Já a reputação / não morre jamais / de quem boa a tem. // Morre o gado, / morrem os parentes, / morre a gente mesmo. / Mas de algo sei / que não morre jamais: / o bom nome do morto”);
Upp upp mín sál” (“Ao alto, ao alto, minh’alma” [do verso inicial da invocação do livro Passíusalmar (“Salmos da Paixão”) do poeta islandês Hallgrímur Pétursson (1614-74): “Upp, upp mín sál og allt mitt geð, / upp mitt hjarta og rómur með, / hugur og tunga hjálpi til, / herrans pínu ég minnast vil“ (“Ao alto, ao alto, minh’alma e toda a minha mente, / ao alto, meu coração e minha voz candente, / que a mente e a língua possam me ajudar, / pois a paixão do Senhor pretendo lembrar“);
Ung var ég gefin Njáli” (“Jovem, minha mão foi concedida a Njáll” [do capítulo 129 da Brennu-Njáls saga (“Saga de Njáll, o Queimado”), saga de islandeses anônima do século XII: “Eg var ung gefin Njáli og hefi eg því heitið honum að eitt skyldi ganga yfir okkur bæði” (“Jovem, minha mão foi concedida a Njáll, a quem jurei que o mesmo destino seria partilhado por nós ambos”.).

Poucos jovens atenderiam ao chamado da literatura se soubessem o que lhes aguarda. Eu, pelo menos, não o teria feito. Na vida do escritor criativo não há dia santo nem de descanso, não há paz nem tranquilidade, e a recompensa é ínfima. Mesmo com tudo isso, o escritor não conta nem com uma mínima migalha de garantia de que irá conseguir, no lapso da sua vida, realizar algo que chegue perto de ser bem feito, o que dirá algo para além disso. Cem jovens escritores começam suas carreiras com um talento semelhante, com uma formação semelhante, sendo, porém, totalmente casual qual deles irá criar uma obra que possa ser considerada razoável. Sempre me parece algo absolutamente circunstancial quando alguém consegue compor nem que seja uma única frase bem escrita.
O que mais chama a atenção, porém, talvez seja o fato de que mesmo o mais corriqueiro dos simplórios é capaz de pensar e de dizer do nada coisas que os maiores escritores e gênios não foram capazes nem de dizer nem de pensar, apesar de terem sacrificado toda a sua vida a isso.
Halldór Laxness, escritor islandês, ganhador do prêmio Nobel de Literatura

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Capítulo LI - Entre luz e fusco

Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa dela, na sala de visitas, antes do acender das velas; aí é que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que havíamos de casar um com outro, e não foi só o aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção das nossas bocas amorosas... Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar. fica. E desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento divino quer é que não juremos em vão pelo santo nome de Deus. Eu não ia mentir ao seminário, uma vez que levava um contrato feito no próprio cartório do céu. Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de adolescentes... Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na aula de S. José, a buscar de aparência a investidura sacerdotal, e antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu.
Machado de Assis, in Dom Casmurro

Violões que Choram

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azuis da fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua.
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

E sons soturnos, suspiradas mágoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre remagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas no sonho,
Almas que se abismaram no mistério.
Cruz e Souza

Cinzas (trecho final)

[...] Sentou-se junto ao Lobo. Suas pernas ficaram balançando no ancoradouro. A única coisa que nele se movia era o cigarro apagado, que ia de um canto para outro da boca. Tinha se levantado da mesa depois de ter provado uns bocados. Quanto tempo fazia que ele tinha perdido o prazer de desfrutar de uma refeição? Quanto tempo fazia que ela já não sentia vontade de preparar para ele frango à calabresa ou ravioles caseiros? Quanto tempo fazia que a vida perigosa e o dinheiro tinham terminado?
Veja esta noite tão estranha – disse a Galega.
Colou-se a ele e agarrou em seu braço.
Cheiro coisa feia, homem. Vem coisa ruim. Vamos embora daqui. O que estamos esperando?
O Lobo não respondeu. Então ela perguntou pelo Colt. Tinha revirado a casa e não tinha encontrado o revólver.
Ele, com um puxão, se desvencilhou do seu braço.
Já sei. Você o vendeu – disse a Galega.
Ele se levantou. Ela se pôs na sua frente. – Você vai me contar – disse ela.
Ele a empurrou para o lado e ela o perseguiu, aos tropeções, segurando-o pela camisa e golpeando-lhe o peito.
Você está doente, Lobo. Está louco. O que estamos esperando? Que venham matar-nos? Eu já não posso viver assim. Porque eu, agora, eu... Quero que você saiba que...
Lobo cuspiu o cigarro e disse:
Reze. Se quiser, ou lembrar.
Ela deu um passo para trás e seus olhos brilharam:
Você já não tem grandeza nenhuma, nem para se gabar, Lobo.
Com a mão aberta, ele deu um tapa no rosto dela.

O riacho carregava uma água barrenta em direção ao rio aberto. A maré estava subindo.
O matador, escondido atrás dos juncos, estava com o dedo no gatilho do fuzil. Tinha amarrado seu barco na entrada de um canal e se aproximou, rodeando a ilha pelo lado de trás. Estava perto dos acossados. De onde estava, apesar de estar escuro e dos salgueiros, dava para ver bem os dois. Sempre pensara que matá-los de longe não teria graça. “Meu corpo é do tamanho do caixão desse homem”, tinha pensado sempre, “e o corpo dele tem o tamanho do meu”. Também sempre soube que era preciso matar a Galega, para que o Lobo morresse de verdade. Uma ou outra vez nas perseguições que o levaram a cidades e praias distantes, pensou que não seria má ideia amarrá-los cara a cara, levá-los para o barco e jogá-los no mar, para que tivessem o tempo suficiente de, atados um ao outro, odiarem-se até o fundo da alma antes que a sede queimasse suas gargantas. Mas decidiu-se pelas balas. Ia precisar de muita bala para acabar com as sete vidas que eles tinham.
Agora estava à mão. Era fácil.
Levantou o fuzil e o apoiou ao longo do rosto.
Então, ouviu a discussão.
Viu o Lobo dar o tapa e a Galega cair no chão. Viu quando o Lobo caiu de joelhos. O Lobo apertou a cabeça entre as mãos. O matador pensou ouvi-lo gemer. O Lobo passou a mão no rosto da Galega, pegou água do rio e molhou seu rosto. A Galega não reagia.
Mas o matador não matou. Passou anos perseguindo-os, mas não os matou. Talvez porque, junto com o momento da morte, chegou a revelação de que o castigo não está na morte, mas no mal que sua sombra faz; talvez porque tenha percebido que acossar era o que dava sentido a seus próprios dias de perseguidor.
Abaixou o fuzil.

Alonso cruzou com o barco que voltava. Na escuridão, ainda conseguiu ver os ataúdes. O forasteiro remava em pé, como na viagem de ida, sem pressa. Alonso deteve seu bote e esperou com os remos no ar. O forasteiro não voltou a cabeça.
Não há nada que fazer”, pensou Alonso. Mas seguiu viagem rio acima. Não demorou a ver a ilha aparecendo como um castelo de árvores na neblina negra: havia alguma coisa nela, uma luminosidade fantasmagórica, que gelava o sangue.
Alonso não escutou quando a Galega disse ao Lobo:
Não voltarei. Não estou esquecendo nada aqui.
A Galega estava em pé no ancoradouro, com a mala ao lado, esperando. Sozinha.
Está vivo? – perguntou Alonso.
Sim – disse a Galega.
Alonso viu seu rosto machucado mas não perguntou nada mais. Colocou a mala no bote e ela se sentou, de frente para a proa.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

Capítulo das águas

Quando voltava de Poços de Caldas para São Paulo, dei uma parada em Águas da Prata e acabei fazendo uma breve viagem ao passado.
Não fazia frio, como naquele inverno paulista de 1961, quando fiquei impressionado com as serras que cercam a estância hidromineral. Era uma paisagem exótica demais para um menino de Manaus. O rio que atravessava a pequena cidade, paralelo aos trilhos da estrada de ferro — o mesmo rio que agora vejo com outro olhar —, era, para mim, um córrego, ou um simples igarapé. Mas as serras, sim, eram colossais, em contraste com as colinas suaves de Manaus. O Planalto das Guianas e o Pico da Neblina ainda estavam longe do meu horizonte de curumim.
Mal desembarcamos em Águas da Prata, perguntei à minha mãe o que íamos fazer ali.
Vamos beber água e respirar o ar da serra”, ela disse.
Viajamos cinco horas de avião e mais quatro de ônibus para beber água?”
É uma água milagrosa, rica em magnésio e bicarbonato. Vai fazer bem para o teu fígado. Tu sabes o que o médico disse.”
Dr. Almada… Grande desalmado, isso sim. Depois de apalpar minha barriga, disse que meu fígado era desproporcional à minha idade; aconselhou que passássemos uma semana naquela estância hidromineral.
Águas da Prata: um nome gracioso de uma cidadezinha povoada de pessoas tristes e bem mais velhas que minha mãe, então uma jovem de trinta e poucos anos. Eram seres de um século de idade, que faziam fila para beber água em copos de plástico.
O hotel São Paulo era vistoso; os quartos, espaçosos, mobiliados com móveis antigos. Havia um salão enorme, iluminado por lustres de cristal pendurados no teto; num dos cantos do salão um piano preto prometia acordes nas noites silenciosas que, na minha lembrança, são fúnebres. Ao andar pelo hotel, vi um pátio interno com uma fonte: a boca aberta de um anjo de pedra que expelia água milagrosa. Quando catei umas moedas no fundo da fonte, levei uma bronca de minha mãe: “Tu sabes que as moedas são trocadas por promessas?”.
Tanto não sabia que troquei o dinheiro por um sorvete de morango, uma raridade na Manaus daquela época.
Passamos sete dias bebendo água e comendo pratos inesquecíveis, verdadeiras iguarias, só comparadas ao requinte da culinária hospitalar. Íamos de manhã cedo até uma fonte no outro lado da estação de trem, eu era a única criança na fila dos bebedores, a água que eu engolia em jejum tinha gosto de purgante. Não pensava no meu fígado de gigante Piaimã, e sim na crueldade do dr. Almada, que me privara das brincadeiras nas ruas e praças da cidade distante.
Nas férias de julho todo mundo empinava papagaio, as tranças no ar eram batalhas comoventes. Os navios estrangeiros, que em julho e agosto atracavam no Manaus Harbour, me fascinavam porque pareciam cidades flutuantes que nos traziam novidades do outro lado da Terra. Meu avô, que me levava para conhecê-los, dizia: “Esse aí veio de Gênova, aquele ali de Marselha, amanhã vai chegar um cruzeiro do Caribe”.
E, enquanto engolia o purgante prescrito por Almada, sonhava com os transatlânticos e com os balneários de Manaus. Para tentar antecipar nosso regresso ao Norte, bebia água além da conta, dizia à minha mãe que o meu fígado havia diminuído, já era tempo de voltarmos à nossa cidade. Mas ela era uma idólatra do dr. Almada, cumpriu à risca a orientação desse desmancha-prazeres, e desde então eu o odiei como um político deve odiar seus pares: um ódio figadal, como se diz.
Na manhã do dia 14 de julho, véspera da nossa volta para São Paulo, eu e minha mãe ouvimos uns gritos. Era um homem que corria como um louco, tentando alcançar uma charrete. Careca, e só de cueca no frio matinal, ele corria e gritava: “Volta aqui, mulher! Volta aqui…”.
Não havia mulher na charrete, apenas o cocheiro, que chicoteava o lombo do animal para se livrar do perseguidor. Foi uma cena que divertiu os hóspedes do hotel São Paulo. Mas nem todos: uma senhora se benzeu e tapou o rosto para não ver o sujeito quase nu.
Disse à minha mãe que aquele homem lembrava o Bombalá, um dos doidos mais públicos e notáveis de Manaus. Careca, descalço e só de calção, Bombalá marchava à frente da banda da polícia militar e era aplaudido pela multidão que agitava bandeirinhas do Brasil. Não gritava por uma mulher, mas era o mais patriota dos nossos maestros, pois regia uma banda no dia Sete de Setembro.
Minha mãe concordou: aquele homem de cueca devia ser doido mesmo. Depois ela acrescentou: “Mas andam dizendo por aí que até nosso presidente é doido, filho”.
Jânio é doido?”, perguntei.
Dizem…”
É doido porque é presidente? Ou é presidente porque é doido?”
Minha mãe me olhou com severidade:
Cuida do teu fígado, isso sim. Vamos já beber água. É o nosso último dia neste paraíso.”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Desinformação

A superabundância de informação pode fazer do cidadão um ser muito mais ignorante. Explico-me: creio que as possibilidades tecnológicas para desenvolver a massificação das informações surgiram rapidamente demais. O cidadão não dispõe dos elementos e da formação adequados para saber escolher e selecionar, o que o leva a ficar perdido no meio dessa selva. É justamente nessa defasagem que se produz a instrumentalização em prejuízo do indivíduo e, portanto, a desinformação.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Galáxias (trecho)

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso
e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever
mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para
começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso
recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é
o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites miluma-
páginas ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas
mesmam ensimesmam onde o fim é o comêço onde escrever sobre o escrever
é não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelo
descomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito e
forçoso um livro onde tudo seja não esteja um umbigodomundolivro
um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro
o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começo
e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro
é o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livro
e cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdo
da palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livro
todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fim-
comêço começa e fina recomeça e refina e se afina o fim no funil do
comêço afunila o comêço no fuzil do fim no fim do fim recomeça
o recomêço refina o refino do fum e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende
da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada
de nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas
e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e
nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total
tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro
e aqui me meço e começo e me projeto eco do comêço eco do eco de um
começo em eco no soco de um comêço em eco no oco de um soco
no osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou em
nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrás
ou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começo
rés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me come
não me consome não me doma não me redoma pois no osso do comêço só conheço
o osso o osso buço do comêço a bossa do comêço onde é viagem
onde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornassol viagem de maravilha
onde a migalha a maravilha a apara é maravilha é vanilla é vigília
é cintila de centelha é favilha de fábula é lumínula de nada e descanto
a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala
Haroldo de Campos

Folhas secas

Ir para onde? ... Não importa, para a frente é que a gente vai! ... Mas, depois. Agora é sentar nas folhas secas, e aguentar. O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Pára, para tremer. E para pensar. Também.
Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas, como o corselete de um cassununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.
- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p'r'a gente deitar no chão e se acabar!…
Guimarães Rosa, in Sarapalha

Sapatos de tacão alto

Passou-se nos coloniais tempos, eu ainda antecedia a adolescência. A vida decorria num tal Esturro, bairro cheio de vizinhança. Nesse lugarinho, os portugueses punham sua existência a corar. Aqueles não ascendiam a senhores, mesmo seus sonhos eram de pequena ambição. Se exploravam era arredondando as alheias quinhentas. Se roubavam era para nunca ficarem ricos. Os outros, os verdadeiros senhores, nem eu sabia onde moravam. Com certeza, nem moravam. Morar é um verbo que apenas se usa nos pobres.
Nós morávamos nesse bairrinho de ruas poeirentas, onde o poente começava mais cedo que no resto da cidade. Tudo decorria sem demais. Nosso vizinho era a única, intrigante personagem: homem graúdo, barbalhudo, voz de trovoada. Mas afável, de maneiras e requintes. Lhe chamavam o Zé Paulão. O português trabalhava nos pesados guindastes, em rudes alturas. Seu tipo era o de um galo de hasteada crista, cobridor de vastas capoeiras. Mas vivendo totalmente sozinho. Os homens se admiravam da sua sozinhidez, as mulheres maldiziam aquele desperdício. Todos comentavam: homem tão humano, macho tão dotado de machezas e vivendo apenas de si para si. Nem nunca se lhe testemunhavam nenhumas companhias. Afinal, Deus não deu nozes a ninguém, comentavam as mulheres.
Dele se sabia apenas o condensado sumário: sua esposa fugira. Quais as razões de se desconsumar um tal casamento ninguém sabia. Ela era a tugazinha modesta, filha de lavradores muito campestres. Linda, de despontante idade. Uma vez a vimos, saindo de casa, sustosamente branca. Vinha pelo meio da avenida em certo e exposto perigo. Os carros rangiam, derrapados. A branca moça não parecia nem ouvir. Então, eu vi: a moça chorava, em aberto pranto. Meu pai estancou a nossa viatura e lhe perguntou qual podia ser nossa valência. Mas a mulher não ouvia, sonambulante. Decidiu meu pai escoltar a criatura, protegendo-a dos perigos da avenida, até ela se perder no último escuro. Só então confirmámos: a mulher saía de casa, em muito definitiva partida.
Desse momento em adiante, só a solidão aconchegou o Zé Paulão. O que se semelhava, na pública vizinhança. Só nós sabíamos, porém, o conteúdo da autêntica verdade. No quintal de trás, onde não se punham os alheios olhos, nós víamos, cada vez em quando, roupas de mulher se estendendo no sol. O Paulão, afinal, tinha seus esquemas. Mas ficava em nós o nosso segredo. Minha família queria gozar, exclusiva, aquela revelação. Os outros que sentissem pena do solitário. Nós, sozinhos, conhecíamos as traseiras da realidade.
E outro segredo nós guardávamos: de noite escutávamos os femininos passos do outro lado da parede. Em casa de Zé Paulão, não havia dúvida, tiquetaqueavam sapatos de tacão alto. Rodavam no quarto, corredor e salas noturnas do vizinho.
Grande malandrão, este Paulão!
Minhas tias autenticavam as malícias, riso por trás dos dentes, dentes por trás das mãos. E se falava muito da misteriosa mulher: quem seria que nunca se via entrar nem sair? Minha mãe apostava: consistiria em dona alta, muito mais alta que o Paulão. Os passos pareciam antes de uma gorda, contrafalava minha tia. Vai ver que é tão gorda que não consegue passar a porta, brincava nosso pai. E ria:
É por isso que a gaja não sai nunca!
Eu sonhava: a mulher seria a mais bela, tão bela e fina que só podia circular de noite. Os olhos deste mundo não lhe mereciam. Ou seria uma anja? O Paulão, lá nas alturas do guindaste, a tinha desavisadamente pegado. Certo é que a misteriosa mulher do lado me enchia os sonhos, me engelhava os lençóis e me fazia sair do corpo.
Uma noite eu exercia a minha infância com as miudagens, brincando às aventuras, heróis dos mais pistoleiros filmes. Subindo os telhados, eu escapava de mortal perseguição, enganando as centenas de índios. Em derradeiro instante, saltei para a varanda do vizinho Paulão. Ainda senti as imaginárias setas me raspando a alma. Suspirei e aproveitei para carregar a minha plástica pistola. Então, a luz se acendeu no interior da casa. Me agachei, receando ser confundido com um vulgar larápio. Apanhar uns sopapos do corpãozudo vizinho não seria bom agrado. Me afundei no canto de um escuro. Nem via nem me podia ser visto. Então, meus ouvidos se arrepiaram. Os tacões! A tal misteriosa mulher devia rondar os anexos aposentos. Não pude evitar espreitar. Foi quando vi as longas saias de uma mulher. Me alertei todo: finalmente estava ali, ao alcance de um olhar, a mulher de nossos mistérios. Estava ali aquela que dava tema aos meus desejos. Que se lixassem os índios, que se danasse o Paulão. Me cheguei mais para a luz, desafiando os preceitos da prudência. Agora, se via a sala toda do vizinho. A fascinável dama estava de costas. Não era afinal tão alta, nem tão gorda como as suposições da minha família. De repente, a mulher se virou. Foi o baque, a terra se abrindo num total abismo. Os olhos de Zé Paulão, ornamentados de pinturas, me fitaram num relâmpago. A luz se apagou e eu saltei daquela varanda com o coração hecatombando num poscepício.
Voltei a casa de cabeça desafinada. Me fechei no meu quartinho, manipulando silêncios. Horas mais tarde, no retângulo do jantar, o tema voltou. Nosso vizinho, esse eterno namorador, ainda há pouco lá andavam os tacões. Era meu pai, inaugurando as más-línguas. Vocês o que têm é inveja de não poderem fazer o mesmo, sentenciava minha tia. E se riam, em concerto. Apenas eu me fiquei, calado em deveres de tristeza.
Mais tarde, quando todos dormiam na soltura do sono, ouvi os tacões altos. Em meus olhos sobrou uma funda, inexplicável tristeza. Chorava de quê, afinal? Minha mãe, em suspeitas que apenas as mães são capazes, invadiu o quarto, enchendo-o de luz.
Por que choras, meu filho?
Então anunciei o falecimento de incerta moça que eu amara muito. Ela se retirara de minha esperança, traindo-me com um homem da vizinhança. Minha mãe se fingiu, em seu umbilical condão. E sorriu estranhas suspeições. Me ternurou seus dedos em meus cabelos e disse:
Deixa, amanhã mudas para outro quarto, nunca mais vais escutar esses sapatos…
Mia Couto, in Estórias abensonhadas