Visão de Hamblet (1893), de Pedro Américo
segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
Cantiga de enganar
O mundo
não vale o mundo,
meu bem,
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê, de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe
algum som desse declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e de enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
do escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
- mas a conta não existe -
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: ideias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que os pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
- mas o tempo não existe -,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.
meu bem,
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê, de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe
algum som desse declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e de enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
do escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
- mas a conta não existe -
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: ideias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que os pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
- mas o tempo não existe -,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.
Carlos
Drummond de Andrade
O lirismo absoluto
Eu
gostaria de explodir, escorrer, decompor-me - e que esta destruição
seja a minha obra, minha criação, minha inspiração. Produzir-me
no esvaziamento, elevar-me, num ímpeto demente, para além dos
confins - e que minha morte seja meu triunfo. Eu gostaria de
fundir-me ao mundo e que o mundo se fundisse em mim - que nós
gerássemos, em nosso delírio, um sonho apocalíptico, estranho como
uma visão do fim e magnífico como um grande crepúsculo. Que
nasçam, do tecido de nosso sonho, esplendores enigmáticos e sombras
conquistadoras, que um incêndio total engula este mundo e que suas
chamas provoquem volúpias crepusculares, tão complicadas quanto a
morte e tão fascinantes como o vazio. Preciso das tensões da
demência para que o lirismo atinja sua expressão suprema. O lirismo
absoluto é aquele dos últimos instantes. A expressão aí
confunde-se com a realidade, torna-se tudo, torna-se uma hipóstase
do ser. Não mais objetivação parcial, menor e não reveladora, mas
parte integrante de nós mesmos. À partir de então, não contam
mais apenas a sensibilidade e a inteligência, mas também o ser, o
corpo inteiro e toda a nossa vida com seu ritmo e suas pulsações. O
lirismo total não é nada mais que o destino levado ao grau supremo
do conhecimento de si. Cada uma das suas expressões é um pedaço de
nós mesmos. Só é possível encontrá-lo em momentos essenciais,
quando os estados expressos consomem-se ao mesmo tempo em que a
própria expressão - como o sentimento da agonia e o fenômeno
complexo do morrer. O ato e a realidade coincidem: o primeiro não é
mais uma manifestação da segunda, mas é ela própria. O lirismo
como inclinação para a auto-objetivação situa-se para além da
poesia, do sentimentalismo, etc. Ele se aproxima antes de uma
metafísica do destino, na medida em que nele se encontram uma total
atualidade da vida e o conteúdo mais profundo do ser em busca de
conclusão. Em regra, o lirismo absoluto tende a tudo resolver - mas
a resolver em direção à morte. Pois tudo aquilo que é capital
relaciona-se com ela.
A
sensação da confusão absoluta! Não mais ser capaz de qualquer
distinção, nada mais poder esclarecer, nada mais entender... Esta
sensação faz do filósofo um poeta. Todos os filósofos, enquanto
isto, não podem, nem conhecê-la, nem vivê-la com uma intensidade
permanente. Se eles a conhecessem, não poderiam mais filosofar de
maneira abstrata e rigorosa. O processo de transformação do
filósofo em poeta é essencialmente dramático. Do pico do mundo
definitivo, formas e questões abstratas assombram-nos, em plena
vertigem dos sentidos, na confusão do elementos da alma, que se
entrelaçam para dar a luz à construções bizarras e caóticas.
Como se poderia engajar na filosofia abstrata enquanto sente-se o
desdobramento de um drama complexo em que se misturam um
pressentimento erótico com uma inquietude metafísica torturante, o
medo da morte com uma aspiração à inocência, a renúncia total
com um heroísmo paradoxal, o desespero com o orgulho, o
pressentimento da loucura com um desejo de anonimato, o grito com o
silêncio e o entusiasmo com o vazio? Além disso, estas tendências
misturam-se e elevam-se numa efervescência suprema e numa loucura
interior, até a confusão total. Isto exclui toda filosofia
sistemática, toda construção precisa. Muitos espíritos começaram
pelo mundo das formas para terminar na confusão. Também eles já
não podem mais filosofar de uma maneira diferente da poética. Mas
neste grau de confusão, somente contam os suplícios e as volúpias
da loucura.
Emil
Cioran,
in Nos cumes do desespero
“Una Furtiva Lacrima”
Em
pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal
onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom olhar para dentro.
Então seu ideal se transformara nisso: em vir a ter um poço só
para ela. Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:
– Você
sabe se a gente pode comprar um buraco?
– Olhe,
você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você
pergunta não tem resposta?
Ela
ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica
triste. Quando ele falava em ficar rico, uma vez ela lhe disse:
– Não
será somente visão?
– Vá
para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu só não digo palavrões
grossos porque você é moça-donzela.
– Cuidado
com suas preocupações, dizem que dá ferida no estômago.
– Preocupações
coisa nenhuma, pois eu sei no certo que vou vencer. Bem, e você tem
preocupações?
– Não,
não tenho nenhuma. Acho que não preciso vencer na vida.
Foi
a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus.
Estava habituada a se esquecer de si mesma. Nunca quebrava seus
hábitos, tinha medo de inventar.
– Você
sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro
chamado “Alice no País das Maravilhas” e que era também um
matemático? Falaram também em “élgebra”. O que é que quer
dizer “élgebra”?
– Saber
disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher. Desculpe a
palavra de eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça
direita.
– Nessa
rádio eles dizem essa coisa de “cultura” e palavras difíceis,
por exemplo: o que quer dizer “eletrônico”? Silêncio.
– Eu
sei mas não quero dizer.
– Eu
gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim:
tic-tac-tic-tac-tic. A rádio Relógio diz que dá a hora certa,
cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?
– Cultura
é cultura — continuou ele emburrado. Você também vive me
encostando na parede.
– É
que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer “renda per
capita”?
– Ora,
é fácil, é coisa de médico.
– O
que dizer rua Conde de Bonfim? O que é que conde? É príncipe?
Não
contou que o roubara no mictório da fábrica: o colega o tinha
deixado na pia quando lavara as mãos. Ninguém soube, ele era um
verdadeiro técnico em roubar: não usava o relógio de pulso no
trabalho.
– Sabe
o que mais eu aprendi? Eles disseram que se devia ter alegria de
viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma música linda, eu até
chorei.
– Era
samba?
– Acho
que era. E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já
morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música
chamava-se “Una Furtiva Lacrima”. Não sei por que eles não
disseram lágrima.
“Una
Furtiva Lacrima” fora a única coisa belíssima na sua vida.
Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a
sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu
começara chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que
tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais
por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque,
não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era
“assim”. Mas também creio que chorava porque, através da
música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia
existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma. Muitas
coisas sabia que não sabia entender. “Aristocracia” significaria
por acaso uma graça concedida? Provavelmente. Se é assim, que assim
seja. O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se
entender. Seu coração disparara. E junto de Olímpico ficou de
repente corajosa e arrojando-se no desconhecido de si mesma disse:
– Eu
acho que até sei cantar essa música. Lá-lá-lá-lá-lá.
– Você
até parece uma muda cantando. Voz de cana rachada.
– Deve
ser porque é a primeira vez que canto na vida. Ela achava que
“lacrima” em vez de lágrima era erro do homem da rádio. Nunca
lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil
se falava brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos domingos, só
tinha essa música. O substrato último da música era a sua única
vibração.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
A pirâmide visual da leitura
O
Egito floresceu no século XI sob o domínio dos fatímidas, tirando
sua riqueza do vale do Nilo e do comércio com seus vizinhos do
Mediterrâneo, enquanto suas fronteiras arenosas eram protegidas por
um exército recrutado no exterior - berberes, sudaneses e turcos.
Esse arranjo heterogêneo de comércio internacional e mercenários
deu ao Egito fatímida todas as vantagens e desígnios de um estado
verdadeiramente cosmopolita. Em 1004, o califa al-Hakim (que assumira
o poder aos onze anos de idade e desaparecera misteriosamente durante
uma caminhada solitária 25 anos depois) fundou uma grande academia
no Cairo - a Dar al-Ilm, ou Casa da Ciência - segundo o modelo de
instituições pré-islâmicas, doando ao povo sua importante coleção
de manuscritos e decretando que “todo mundo pode vir aqui para ler,
transcrever e instruir-se”. As decisões excêntricas de al-Hakim -
proibiu jogo de xadrez e a venda de peixes sem escamas - e sua
notória sede de sangue foram temperadas, na imaginação popular,
por seu sucesso administrativo. Seu objetivo era tornar o Cairo
fatímida não apenas o centro simbólico do poder político, mas
também a capital da busca artística e da pesquisa científica; com
essa ambição, convidou para a corte muitos astrônomos e
matemáticos famosos, entre eles al-Haytham. A missão oficial de
al-Haytham era estudar um método que regulasse o fluxo do Nilo. Isso
ele fez, sem êxito, mas também gastou seus dias preparando uma
refutação das teorias astronômicas de Ptolomeu (que, segundo seus
inimigos, “era menos uma refutação do que um novo conjunto de
dúvidas”) e suas noites escrevendo o grosso volume sobre ótica
que lhe asseguraria a fama.
De
acordo com al-Haytham, todas as percepções do mundo externo
envolvem uma certa influência deliberada que deriva da nossa
faculdade de julgar. Para desenvolver essa teoria, al-Haytham seguiu
o argumento básico da teoria da intromissão de Aristóteles -
segundo a qual as qualidades do que vemos entram no olho por meio do
ar - e fundamentou sua escolha com explicações físicas,
matemáticas e fisiológicas precisas.
Mas,
de forma mais radical, al-Haytham fez uma distinção entre “sensação
pura” e “percepção”, sendo a primeira inconsciente ou
involuntária - ver a luz fora da minha janela e as formas cambiantes
da tarde – e exigindo a segunda um ato voluntário de
reconhecimento seguir um texto numa página. A importância do
argumento de al-Haytham estava em identificar pela primeira vez, no
ato de perceber, uma gradação da ação consciente que vai do ver
ao decifrar ou ler.
Al-Haytham
morreu no Cairo, em 1038. Dois séculos mais tarde, o erudito inglês
Roger Bacon - tentando justificar o estudo da ótica ao papa Clemente
IV numa época em que certas facções da Igreja Católica
sustentavam violentamente que a pesquisa científica era contrária
ao dogma cristão – ofereceu um resumo revisado da teoria
al-Haytham.
Segundo
al-Haytham (e, ao mesmo tempo, minimizando a importância da
sabedoria islâmica), Bacon explicou a Sua Santidade a mecânica da
teoria da intromissão.
Segundo
Bacon, quando olhamos para um objeto (uma árvore ou as letras SOL),
forma-se uma pirâmide visual que tem sua base no objeto e seu ápice
no centro da curvatura da córnea. Nós “vemos” quando a pirâmide
entra em nosso olho e seus raios são dispostos sobre a superfície
do nosso globo ocular, refratados de tal forma que não se cruzam.
Ver, para Bacon, era o processo ativo pelo qual uma imagem do objeto
entrava no olho e era então apreendida pelos “poderes visuais”
dele.
Mas
como essa percepção se torna leitura? Como o ato de apreender
letras relaciona-se com um processo que envolve não somente visão e
percepção, mas inferência, julgamento, memória, reconhecimento,
conhecimento, experiência, prática? Al-Haytham sabia (e Bacon
certamente concordava) que todos esses elementos necessários para
realizar o ato de ler conferiam-lhe uma complexidade impressionante,
cujo desempenho satisfatório exigia a coordenação de centenas de
habilidades diferentes. E não apenas essas habilidades, mas o
momento, o lugar e a plaquinha, o rolo, a página ou a tela sobre a
qual o ato é realizado afetam a leitura: para o pastor sumério
anônimo, a aldeia perto de onde pastoreava suas cabras e a argila
arredondada; para al-Haytham, a nova sala branca da academia do Cairo
e o manuscrito de Ptolomeu lido desdenhosamente; para Bacon, a cela
da prisão a que fora condenado por seus ensinamentos heterodoxos e
seus preciosos volumes científicos; para Leonardo, a corte do rei
Francisco I, onde passou seus últimos anos, e os cadernos de
anotações que mantinha em código secreto, os quais só podem ser
lidos diante de um espelho. Todos esses elementos desconcertantemente
diversos unem-se naquele ato único; até aí, al-Haytham presumira.
Mas
o modo como tudo acontecia, que conexões intrincadas e fabulosas
esses elementos estabeleciam entre eles, essa era uma questão que,
para al-Haytham e seus leitores, permanecia sem resposta.
Os
estudos modernos de neurolinguística, a relação entre cérebro e
linguagem, começaram quase oito séculos e meio depois de
al-Haythan, em 1865. Naquele ano, dois cientistas franceses, Michel
Dax e Paul Brocat sugeriram em estudos simultâneos, mas separados,
que a grande maioria da humanidade, em consequência de um processo
genético que começa na concepção, nasce com um hemisfério
cerebral esquerdo que se tornará a parte dominante do cérebro para
codificar e decodificar a linguagem; uma proporção muito menor, em
sua maioria canhotos ou ambidestros, desenvolve essa função no
hemisfério direito. Em uns poucos casos (pessoas predispostas
geneticamente a um hemisfério esquerdo dominante), danos precoces ao
hemisfério esquerdo resultam numa reprogramação cerebral e levam
ao desenvolvimento da função da linguagem no hemisfério direito.
Mas nenhum dos hemisférios atuará como codificador e decodificador
enquanto a pessoa não for exposta efetivamente à linguagem.
No
momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras
letras, o corpo humano já era capaz de executar os atos de escrever
e ler que ainda estavam no futuro.
Ou
seja, o corpo era capaz de armazenar, recordar e decifrar todos os
tipos de sensação, inclusive os sinais arbitrários da linguagem
escrita ainda por ser inventados. Essa noção de que somos capazes
de ler antes de ler de fato - na verdade, antes mesmo de vermos uma
página aberta diante de nós - leva-nos de volta à ideia platônica
do conhecimento preexistente dentro de nós antes de a coisa ser
percebida. A própria fala desenvolve-se seguindo um padrão
semelhante. “Descobrimos” uma palavra porque o objeto ou ideia
que ela representa já está em nossa mente, pronto para ser ligado à
palavra. É como se nos fosse oferecido um presente do mundo externo
(por nossos antepassados, por aqueles que primeiro falam conosco),
mas a capacidade de apreender o presente é nossa. Nesse sentido, as
palavras ditas (e, mais tarde, as palavras lidas) não pertencem a
nós nem aos nossos pais, aos nossos autores: elas ocupam um espaço
de significado compartilhado, um limiar comum que está no começo da
nossa relação com as artes da conversação e da leitura.
Alberto
Manguel, in Uma história da leitura
domingo, 30 de dezembro de 2018
Fábula
Todo
mundo sabe como se define a palavra fábula: uma história curta de
onde se tira uma lição ou um preceito moral. Lembro-me de quando
era criança alguém alegando que aquela leitura seria importante
para a minha educação, dando-me para ler As fábulas de Esopo,
uma coleção de narrativas creditadas a um escravo contador de
histórias que viveu na Grécia Antiga, nos anos 620-560 a.C.
Como
disse um estudioso, a fábula é um conto de moralidade popular, uma
lição de inteligência, de justiça, de sagacidade, trazida até
nós desde a mais remota antiguidade.
Já
adulto, uma noite eu estava deitado no meu quarto, lendo, quando
notei que um corpo estranho deitara-se na minha cama. Era um inseto
escuro, de uns sessenta milímetros de comprimento. Gosto de todos os
animais, mas é claro que tenho minhas preferências; além dos
favoritos, cavalos e cães de grande porte, eu gosto muito de sapos e
lagartixas. Percebi que o meu visitante era uma cigarra. Durante o
verão eu as ouvia cantar na praça que fica perto da minha casa.
Para
não assustá-la, apaguei a luz da cabeceira. Eu durmo sem me mexer
muito na cama. A cigarra também. Foi uma noite tranquila.
Pela
manhã, ao acordar, a cigarra estava quieta, certamente estranhava
aquele ambiente. Eu vesti-me apressadamente, peguei a cigarra,
levei-a para a praça e coloquei-a numa árvore.
Quis
saber mais sobre o meu visitante. Aquele som lancinante é emitido
pelo macho procurando seduzir a fêmea para o acasalamento, é uma
súplica de amor que comove o coração de quem ouve.
Então,
lembrei-me da fábula de Esopo, “A cigarra e a formiga”.
Qual
é a lição, o preceito moral desta fábula? Que cantar é um crime
que merece ser punido? Que a alegria é um mal a ser combatido? Que o
desejo e o amor devem ser execrados?
Todo
animal, de certa forma, tem uma atividade predatória maior ou menor,
claro que ninguém chega a ser tão destruidor quanto o ser humano.
Mas entre a formiga e a cigarra, quem é pior? Algumas poucas
cigarras, cujas ninfas, ao se alimentarem da seiva das plantas,
causam danos à árvore, ou os milhões de formigas, que, organizadas
em verdadeiros exércitos apocalípticos, escondidas em buracos, saem
de maneira sorrateira sem nenhum tipo de desejo ou amor a não ser o
de roubar furtivamente plantações inteiras para estocar em seus
subterrâneos?
As
fábulas de Esopo são uma lição de astúcia, de inteligência,
de sagacidade, uma lição moral?
Podem
jogar essa merda no lixo. O meu exemplar eu já joguei.
Rubem
Fonseca, in Amálgama
Os sentimentos da massa
A
massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica,
o improvável não existe para ela. Pensa em imagens que evocam umas
às outras associativamente, como no indivíduo em estado de livre
devaneio, e que não tem sua coincidência com a realidade medida por
uma instância razoável. Os sentimentos da massa são sempre muito
simples e muito exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza.
Ela
vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de
imediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se torna um
ódio selvagem.
Inclinada
a todos os extremos, a massa também é excitada apenas por estímulos
desmedidos. Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir
logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes,
exagerar e sempre repetir a mesma coisa.
Como
a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso, e tem
consciência da sua enorme força, ela é, ao mesmo tempo,
intolerante e crente na autoridade. Ela respeita a força, e deixa-se
influenciar apenas moderadamente pela bondade, que para ela é uma
espécie de fraqueza. O que ela exige de seus heróis é fortaleza,
até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida, quer temer os
seus senhores. No fundo inteiramente conservadora, tem profunda
aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência
pela tradição.
Sigmund
Freud,
in Psicologia das massas e análise do eu e outros textos
(1920-1923)
As três palavras mais estranhas
Quando
pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.
a primeira sílaba já se perde no passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.
Wislawa Szymborska
Capítulo 68 - O Vergalho
Tais
eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora,
logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento;
era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia
a fugir; gemia somente estas únicas palavras: - “Não, perdão,
meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso,
e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
-
Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
-
Meu senhor! gemia o outro.
-
Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei,
olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos
que o meu moleque Prudêncio - o que meu pai libertara alguns anos
antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção;
perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
-
É, sim, nhonhô.
-
Fez-te alguma coisa?
-
É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na
quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a
quitanda para ir na venda beber.
-
Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
-
Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí
do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas.
Segui caminho, a cavar cá dentro uma infinidade de reflexões, que
sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom
capítulo, e talvez alegre.
Eu
gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era
torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente.
Logo
que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato,
fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se
desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em
criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem
compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre,
dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar,
folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele
se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro,
as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
sábado, 29 de dezembro de 2018
Rumo à face escura
Em
“A tosse de uma senhora alemã”, um artigo breve que publicou em
1994 na revista Proa, de Buenos Aires, o escritor argentino
Julio Cortázar defende a ideia de que a literatura é muito mais que
um exercício de linguagem, e bem mais ainda que uma construção
intelectual. Ela é uma espécie de operação fantástica, diz, que
nos leva a “deslizar até um outro lado”. Lançados na face
escura de nós mesmos, nossos poros se esgarçam. Experimentamos,
então, sensações e ouvimos coisas que desconhecíamos. O artigo de
Cortázar ressurge agora em Papéis inesperados (Civilização
Brasileira, organização de Aurora Bernárdez e Carles Álvarez
Garriga, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht).
A
viagem à face escura começa no dia em que o escritor ouve uma
antiga gravação do “Concerto em ré”, de Beethoven, realizada
em 1947. Gravado ao vivo pela Rádio Alemã, o concerto – que tem
na regência o falecido maestro Wilhelm Furtwängler – permaneceu
esquecido durante trinta anos. Nos anos 1970, ele ressurge nos
estúdios da rádio France-Musique, que lhe destina uma audição
especial. Exilado em Paris, Cortázar ouve o concerto. Emociona-se
não só com a regência de Furtwängler e com a performance do
violinista judeu Yehudi Menuhin. Algo o afeta mais ainda.
Em
meio a um “pianíssimo”, surge aquilo que realmente o derruba: um
único golpe seco e claro de tosse. Uma tosse de mulher, que não se
repete – a tosse imprevisível de uma senhora alemã. “Impossível
saber quem tossiu naquela noite”, Cortázar medita. “Nenhuma
ciência, nenhum cavalheiro Dupin poderia rastrear sua origem.”
Contudo, é na tosse bruta e inconveniente, que surge fora do lugar e
que não interessa a ninguém, que ele fixa sua atenção. Mais que a
melodia de Beethoven ou a habilidade do violinista, é nela, naquele
ruído desagradável e absurdo, que Cortázar constrói um caminho.
Mesmo
a ciência, que a tudo captura, reflete o escritor, mesmo ela se
torna impotente diante daquela tosse. Abandonando a catedral cheia de
intenções de Beethoven, e atravessando a performance impecável do
violinista Menuhin, um voluntarioso Cortázar desliza até os
subterrâneos da plateia escura onde, trinta anos antes, uma
desconhecida, atordoada por uma gripe ou por uma alergia passageira,
não controla a tosse, permitindo que ela escape e se grave onde não
devia estar nem devia se gravar.
Os
críticos mais severos, por certo, lamentaram aquela tosse
desnecessária e, mais que isso, inoportuna que por um ou dois
segundos feriu a perfeição do concerto. Julio Cortázar faz
exatamente o contrário: é daquele ponto deslocado e imprevisível
que, ele percebe, algo vivo se desenrola e se fixa. É ali que a
coisa está. Mas que coisa? Cortázar detecta naquela tosse “uma
ponte e um sinal e um chamado”. Ponte, sinal e chamado que abrem um
rombo na noite e sobre os quais a literatura, enfim, se ergue. A
literatura vista não mais como a costura impecável de uma trama,
mas como um incômodo e um ferimento.
Ainda
penso nas ideias de Cortázar quando me cai nas mãos um livrinho
simpático: 90 livros clássicos para apressadinhos, de Henrik
Lange (editora Record, tradução e adaptação de Ota). Conservo ao
meu lado a reunião dos inéditos do escritor argentino. Deixo os
dois livros frente a frente; deixo que se desafiem e lutem. O que faz
Henrik Lange senão buscar o sumo poderoso de noventa grandes
romances? O que faz, ao contrário, Cortázar senão nos mostrar que
este sumo não existe e que, mesmo que existisse, não teria
importância alguma?
Detenho-me
nas adaptações assinadas pelo desenhista sueco Henrik Lange de
livros fabulosos como Odisseia, Em busca do tempo perdido, Morte
em Veneza e Dom
Quixote. Cada uma delas se comprime em uma única página,
dividida em quatro partes, sendo a primeira, sempre, destinada ao
título. Nas outras três, desenhos bem-humorados sustentam uma ou
duas frases curtas, resumindo (comprimindo – como nas cápsulas
fantasiosas vendidas para emagrecer) o livro que os preguiçosos não
leem.
Lange
se concentra no conteúdo das ficções, isto é, em seu enredo –
naquilo que, em geral, supomos ser o próprio livro. Deixa de lado,
assim, o que a ficção tem de mais próprio e que, de fato,
constitui a sua alma: a voz singular (e feroz) de um autor. É claro:
Henrik Lange extrai humor dessas reduções absurdas, mostrando o
quanto é inútil se deter no enredo de um romance – como se
bastasse a um doente ler a bula de um remédio para se curar, ou a um
piloto estudar um guia de instruções aeronáutico para pilotar um
avião. Ele denuncia, assim, o quanto é perigoso reduzir um livro a
seu enredo. O quanto um enredo, em vez de fazer falar, amordaça e
ilude.
Uma
vez, em uma oficina literária, propus aos alunos que escrevessem uma
pequena narrativa. Deveriam contar a história de uma mulher que,
limpando o quarto de empregada, se depara com uma barata, a espreme
contra a porta do armário e depois a leva à boca. Meus alunos riram
de minha proposta, que acreditavam ser apenas uma piada cruel. Riram
e debocharam até que uma moça, um tanto aflita, os interrompeu para
exclamar: “Meu Deus, isso é A paixão segundo G. H., de
Clarice!”. E era mesmo. Arranquei do mais genial romance que
Clarice Lispector escreveu aquilo que ele tem de mais central, mas
também de mais insuficiente, e lhes ofereci como um desafio. Tentei,
assim, mostrar que toda escrita literária é lateral; que a
literatura não se interessa pela boa organização, pelo relato
coerente e pela ordem, mas, ao contrário, se debruça sobre tudo o
que deles sobra.
Diz
Julio Cortázar que a tosse da senhora alemã em meio ao concerto de
Beethoven é “uma ponte e um sinal e um chamado”. Ponte que nos
conduz a regiões que, em geral, desprezamos. Sinal da
impossibilidade de normalizar o mundo real. Chamado para que tenhamos
coragem de escutar o incoerente e o inconveniente. A literatura, nos
mostra Cortázar, não é uma fantasia consoladora. Não é uma
distração ou uma ilusão. Ela nos conduz aos limites escuros do
humano e, assim, reafirma a importância de “viver porosamente,
aberto a tudo o que habita e respira”.
José
Castello, in Sábados inquietos
Costela marinada
Marcelo
sentiu alguma coisa acariciar a sua perna por baixo da mesa.
Lentamente, do calcanhar até atrás do joelho. O pé da Ana Luiza,
só podia ser. Ana Luiza estava sentada do seu lado esquerdo, o lado
da perna acariciada. Só ela podia alcançar a sua perna com seu pé
sem se esticar. A Julinha, sentada na sua frente, teria que estender
a perna ao ponto de quase desaparecer debaixo da mesa. E, mesmo, a
Julinha era sua mulher. Por que ela faria aquilo? Era o pé da Ana
Luiza, não havia dúvida. E se não fosse? Podia ter sido o gato. O
rabo do gato. Difícil confundir um rabo de gato com um pé subindo
por baixo da sua calça, mas a alternativa era aceitar que a Ana
Luiza, logo a Ana Luiza, estava acariciando a sua perna. O gato era
preferível, o gato seria um alívio. A Ana Luiza acariciando a sua
perna, depois de todos aqueles anos, inauguraria tanta coisa
diferente e surpreendente na vida deles todos, dele, da Julinha, do
Alemão, marido da Ana Luiza, seu companheiro no tênis, sentado à
sua direita, que precisava ser o gato. O gato, rezou Marcelo, em
silêncio. Por favor, o gato. Não o pé da Ana Luiza. Não o pé da
mulher do Alemão, seu melhor amigo. Qualquer coisa menos o pé da
Ana Luiza. Um fantasma e não o pé da Ana Luiza! Marcelo olhou para
Ana Luiza. Ela estava falando com a Julinha. Ela não é feia, pensou
Marcelo. Nunca notara os seus seios. Mesmo na praia, nunca notara os
seios altos e cheios da mulher do Alemão. Altos, cheios e juntos,
como ele gostava. Cinco para a uma em vez de quinze para as três,
como os da Julinha. Tentou se lembrar das pernas da Ana Luiza. Eram
curtas, tinha quase certeza que eram curtas. Ela não conseguiria
alcançar sua perna com o pé. Não sem se esticar por baixo da mesa.
Fora o gato. Estava resolvido. Fora o gato. “Que fim levou o
Clodovil?”, perguntou. Clodovil era o nome do gato. “No
veterinário”, disse o Alemão. Pronto, não era o gato. Era o pé
da Ana Luiza. A Ana Luiza está a fim. De uma hora para outra, depois
de o quê? Doze, quinze anos de amizade, a Ana Luiza está me dizendo
com o pé que está a fim de mim. Que depois de todos estes anos quer
trocar a amizade por outra coisa, um caso, uma loucura. Que
precisamos nos encontrar, longe do Alemão e da Julinha. Que nossas
vidas mudarão por completo. Que adeus parceria no tênis. Que adeus
temporadas na praia, quando as crianças se entendiam tão bem. Que
adeus jantares alternados na casa de um e do outro casal, quando o
Alemão cozinhava. Nunca mais as excursões de fim de semana. Nunca
mais as noitadas de buraco e risadas. Meu Deus, nunca mais a costela
marinada do Alemão! Marcelo sentiu o pé da Ana Luiza acariciando
sua perna outra vez. Chutou o pé da Ana Luiza. “Sua costela está
melhor do que nunca, Alemão”, disse Marcelo para o amigo. “Se
desmanchando. Se desmanchando!”
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
As Tentações ou Eros, Pluto e a Glória
Dois
soberbos Satãs e uma Diaba, não menos extraordinária, subiram, a
noite passada, uma escada misteriosa, por onde o Inferno dá acesso à
fraqueza do homem que dorme, comunicando-se secretamente com ele.
Vieram pôr-se gloriosamente diante de mim, de pé, como num estrado.
Um esplendor sulfuroso emanava das três personagens, que se
destacavam do fundo opaco da noite. Tinham um ar tão altivo e cheio
de domínio que os tomei a princípio por verdadeiros Deuses.
A
fisionomia do primeiro Satã era de um sexo ambíguo e havia, nas
linhas do seu corpo, a moleza dos antigos Bacos. Seus belos olhos
lânguidos, a cor tenebrosa e indecisa, pareciam violetas ainda
carregadas dos pesados prantos da borrasca, e os lábios entreabertos
caçoletas candentes exalando um aroma de perfumaria. E, toda vez que
suspirava, insetos musgados iluminavam-se, voando aos ardores do seu
hálito.
Ao
redor de sua túnica de púrpura enrolava-se, como um cíngulo, uma
fúlgura serpente que, de cabeça erguida, volvia para ele os
lânguidos olhos de brasa. Nesse cíngulo vivo suspendiam-se,
alternando-se com frascos cheios de sinistros licores, facas
brilhantes e instrumentos cirúrgicos. Tinha na mão direita outro
frasco, cujo conteúdo era de um vermelho luminoso, e que trazia no
rótulo estas palavras estranhas: BEBA, É O MEU SANGUE, PERFEITO
CORDIAL. Com a mão esquerda, segurava um violão que lhe servia,
certamente, para cantar os seus prazeres e desgostos, ou espalhar o
contágio de sua loucura nas noites de sabá.
Nas
delicadas cravelhas, penduravam-se anéis de uma corrente de ouro
partida, e, quando a tristeza que tal fato lhe causara o forçava a
baixar os olhos, contemplava vaidosamente as unhas dos próprios pés,
brilhantes e polidas como pedras bem trabalhadas.
Olhou-me
com os olhos inconsolavelmente aflitos, de onde deslizava uma
insidiosa embriaguez, e me disse com voz modulada: — Se quiseres,
far-te-ei senhor das almas, dono da matéria viva, mais ainda do que
o escultor pode ser da argila. Conhecerás o prazer, sempre novo, de
saíres de ti mesmo para te esqueceres em outrem e de atrair as
outras almas até confundi-las com a tua.
E
eu lhe respondi: — Muito obrigado! Nada posso fazer desse punhado
de seres que, sem dúvida, não valem mais do que o meu pobre eu.
Embora tenha vergonha de me lembrar, não quero esquecer. Mesmo que
eu não te conhecesse, velho monstro, a tua misteriosa cutelaria, os
teus frascos equívocos, as correntes que te prendem os pés, são
símbolos que explicam com clareza os inconvenientes da tua amizade.
Guarda os teus presentes.
O
segundo Satã não tinha nem esse ar ao mesmo tempo trágico e
sorridente, nem essas belas maneiras insinuantes, nem essa beleza
esbelta e perfumada. Era um homem vasto, enorme rosto sem olhos,
ventre imenso caindo sobre as coxas, a pele dourada e ilustrada, como
numa tatuagem, com uma porção de pequenas figuras movediças
representando as numerosas formas da miséria universal.
Havia
ainda uns homenzinhos descarnados, suspendendo-se voluntariamente num
prego. Pequenos gnomos disformes, magros, cujos olhos suplicantes
reclamavam melhor a esmola do que as mãos trementes. Velhas mães
carregando abortos seguros nas maminhas extenuadas. E muitos outros.
O
grande Satã batia com o punho na barriga enorme, produzindo um longo
e estridente tilintar metálico, que terminava num vago gemido feito
de numerosas vozes humanas. E, mostrando imprudentemente os dentes
podres, dava uma gargalhada imbecil, como certos homens de todos os
países depois de um bom jantar.
Foi
esse que me disse: — Posso dar-te o que produz tudo, o que vale
tudo, o que tudo substitui! — E bateu no ventre monstruoso, cujo
eco sonoro foi o comentário dessa frase grosseira.
Volte-me
de má vontade e respondi-lhe: — Não preciso, para o meu
bem-estar, da miséria de ninguém. Não desejo uma riqueza
atormentada, como um papel de parede, por todas as desgraças
representadas em tua pele.
Quanto
à Diaba, eu mentiria se não confessasse que descobri nela, à
primeira vista, uma sedução estranha. Para definir esse encanto, eu
só poderia compará-lo ao dessas lindas mulheres maduras, que não
envelhecem e conservam a magia penetrante das ruínas. Tinha um ar ao
mesmo tempo imperioso e desajeitado, e os olhos, embora endurecidos,
encerravam uma força fascinadora. E o que mais me impressionou foi o
mistério de sua voz, que me evocou os contraltos mais deliciosos e
também a rouquidão das gargantas incessantemente lavadas pela
aguardente.
— Queres
conhecer o meu poder? — disse a falsa deusa com sua voz encantadora
e paradoxal — Escuta.
Levou
à boca uma gigantesca trombeta enfeitada de fitas, como uma flauta,
nas quais e liam os títulos de todos os jornais do universo. Através
essa trombeta, gritou o meu nome, que reboou o espaço com o ruído
de cem mil trovões e voltou a mim repercutido pelo eco do mais
longínquo planeta.
— Diabo!
— exclamei, meio vencido, — é fantástico! Mas, examinando com
mais atenção a sedutora virago, pareceu-me vagamente que a
reconhecia, por a ter visto bebendo com uns folgazões meus
conhecidos. E o som rouquenho do cobre trouxe-me aos ouvidos não sei
que de recordações de uma trombeta prostituída.
Respondi-lhe,
por fim, com desprezo: — Vai-te! Não fui feito para desposar a
amante de certos tipos que não quero citar.
Eu
teria, decerto, o direito de vangloriar-me por tão corajosa
abnegação. Mas, infelizmente, despertei e toda a minha força
abandonou-me.
— Na
verdade, — disse comigo — era mesmo preciso que eu estivesse
dormindo para mostrar tais escrúpulos. Se eles pudessem voltar
quando despertei, eu não seria tão delicado! Invoquei-os em voz
alta, suplicando-lhes que me perdoassem, oferecendo-lhes a minha
humilhação tantas vezes quantas fossem necessárias para merecer os
seus favores.
Mas,
a ofensa fora muito grave, pois nunca mais voltaram.
Charles
Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa
Direito de viver
Albert
Schweitzer conta que foi numa noite – ele e remadores navegavam
pelo rio para chegar a uma outra aldeia –, seu pensamento não
parava, e ele se perguntava: “Qual é o princípio ético
fundamental?”. De repente, como um relâmpago, apareceu na sua
cabeça a expressão: reverência pela vida. Tudo o que é vivo
deseja viver. Tudo o que é vivo tem o direito de viver. Nenhum
sofrimento pode ser imposto sobre as coisas vivas, para satisfazer o
desejo dos homens.
Rubem
Alves, in
Do universo à jabuticaba
A confissão de Navaia
Quem,
eu? Mexer-lhe nas suas coisas? O senhor pode inquirir em todos: não
mexi nem toquei na sua mala. Alguém fez. Não eu, Navaia Caetano.
Não vou dizer quem foi. A boca fala mas não aponta. Além disso, o
morcego chorou por causa da boca. Mas eu vi esse mexilhento. Sim, vi.
Era um vulto abutreando as coisas do senhor. Aquela sombra esvoou e
pousou nos meus olhos, pousou em todos os cantos da escuridão. Nem
parecia arte de gente. Chiças, até me estremexe a alma só de
lembrar.
Mas
agora eu pergunto: levaram-lhe coisas? É que os velhos, aqui, são
os próprios tiradores. Não é que roubem. Só tiram. Tiram sem
chegarem nunca a roubar. Eu explico: nesta fortaleza ninguém é dono
de nada. Se não há proprietário não há roubo. Não é assim?
Aqui o capim é que come a vaca.
Nego
o roubo mas confesso o crime. Digo logo, senhor inspector: fui eu que
matei Vasto Excelêncio. Já não precisa procurar. Estou aqui, eu.
Vou juntar outra verdade, ainda mais parecida com a realidade: esse
mulato se matou ele mesmo usando minhas mãos. Ele que se condenou,
eu só executei seu desejo matador. O que cumpri, se fiz com alma e
corpo, não foi por ódio. Não tenho força para odiar. Eu sou como
a minhoca: não encosto desvontades contra ninguém. A minhoca,
senhor inspector, assim cega e rasa, quem ela pode odiar?
Lhe
explico, com permissão de sua paciência. Chegue-se mais à luz, não
receie o fumo. Nem tenha medo de queimar: não há outra maneira de
me escutar. Minha voz se está enfraquecendo, mais débil ficando à
medida que eu desfiar estas confidências. Enquanto ouvir estes
relatos você se guarde quieto. O silêncio é que fabrica as janelas
por onde o mundo se transparenta. Não escreva, deixe esse caderno no
chão. Se comporte como água no vidro. Quem é gota sempre pinga,
quem é cacimbo se esvapora. Neste asilo, o senhor se aumente de
muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente.
Tudo
começa antes do antigamente. Nós dizemos: ntumbuluku. Parece longe
mas é lá que nascem os dias que estão ainda em botão. A morte
desse Excelêncio já começou antes dele nascer. Começou comigo, a
criança velha.
A
maldição pesa sobre mim, Navaia Caetano: sofro a doença da idade
antecipada. Sou um menino que envelheceu logo à nascença. Dizem
que, por isso, me é proibido contar minha própria história. Quando
terminar o relato eu estarei morto. Ou, quem sabe, não? Será mesmo
verdadeira esta condenação? Mesmo assim me intento, faço na
palavra o esconderijo do tempo. À medida que vou contando me sinto
cansado e mais velho. Está a ver estas rugas nos meus braços? São
novas, antes de falar consigo eu não as tinha. Mas eu sigo adiante,
não encontrando atalho nem alívio. Sou como a dor que não tivesse
carne onde sofrer, sou a unha que teima em nascer num pé que foi
cortado. Me dê suas paciências, doutor.
Meu
tio materno, Taúlo Guiraze, me disse: as demais pessoas contam a
história de suas vidas de maneira muito ligeira. Uma criança-velha
não. Enquanto os outros envelhecem as palavras, no meu caso quem
envelhece sou eu próprio. E me aconselhou:
— Meu
filho, eu lhe conheço uma saída. Caso se um dia você decidisse ser
contadeiro...
— E
qual seria?
Ele
ouvira falar de uma criança-velha nascida em outro tempo, outro
lugar. Essa criança se divertia contando a sua história, vendo como
os outros se angustiavam na ansiedade de o ver morrer. Findas as
muitas histórias, porém, ele permanecia vivo.
— Não
morreu, sabe porquê? Porque mentiu. Histórias dele eram inventadas.
Meu
tio me convidava a mentir? Só ele podia saber. O que vou contar
agora, com risco de meu próprio fim, são pedaços soltos de minha
vida. Tudo para explicar o sucedido no asilo. Eu sei, estou enchendo
de saliva sua escrita. Mas, no fim, o senhor vai entender isto que
estou para aqui garganteando.
Minha
mãe, abro falas nela. Nunca eu vi mulher tão demasiado parideira.
Quantas vezes ela saltou a lua? Lhe nasciam muitos filho. Digo bem:
filho, não filhos. Pois ela dava à luz sempre o mesmo ser. Quando
ela paria um novo menino, desaparecia o anterior filho. Mas todos
esses que se sucediam eram idênticos, gotas rivalizando a mesma
água. A gente da aldeia suspeitava de castigo, uma desobediência às
leis dos antigos. Qual a razão desse castigo? Ninguém falava, mas a
origem do mal todos conheciam: meu pai visitava muito o corpo de
minha mãe. Ele não tinha paciências para esperar durante o tempo
que minha mãe aleitava. É ordem da tradição: o corpo da mulher
fica intocável nos primeiros leites. Meu velho desobedecia. Ele
mesmo anunciou como superar o impedimento. Levaria para os namoros um
cordão abençoado. Quando se preparasse para trebeliscar a esposa
ele amarraria um nó na cintura da criança. O namoro poderia então
acontecer sem consequências.
Resolvia-se,
na aparência, o adoentado destino de minha mãe. Digo bem,
aparência. Porque começou aí minha desgraça. Agora sei: nasci de
um desses nós mal atados na cintura de um falecido irmão.
Calma,
inspetor, estou chegando a mim. Não se lembra como falei? Nasci em
corpito frágil, sempre dispensado da sede. Minha estreia parecia ter
sido abençoada: foram lançadas as seis sementes de hacata. Os
caroços tombaram de modo certeiro, alinhados pelos bons espíritos.
— Esta
criança há-de ser mais antiga que a vida.
Meu
avô me levantou em bênção e me deixou suspenso em seus braços.
Ficou sem falar como se pesasse a minha alma. Quem sabe o que ele
procurava? Entre os mil bichos, só o homem é um escutador de
silêncios. Meu avô me voltou a ajeitar no seu peito, todo ele posto
em riso. Mas a felicidade dele se enganava. Sobre mim recaía a
maldição. Fui sabendo dessa maldição nas primeiras vezes que
chorei. Enquanto lacrimejava eu ia desaparecendo. As lágrimas
lavavam a minha matéria, me dissolviam a substância. Mas não era
apenas aquele o sinal da minha condição. Antes, eu já havia
nascido sem parto. Ao sair do corpo não dei nenhuma sofrência para
minha mãe, desprovido de substância. Escorreguei ventre abaixo, me
drenei pela carne materna mais líquido que o próprio sangue.
Minha
mãe logo pressentiu que eu era um enviado dos céus. Chamou meu pai
que baixou os olhos em nenhuma direção. Um homem está interdito de
enfrentar o filho antes que lhe caia o cordão umbilical. Meu velho
mandou chamar o chirema. O adivinho me cheirou os espíritos,
espirrou, tossiu e, depois, vaticinou:
— Este
menino não pode sofrer nenhuma tristeza. Qualquer tristeza, mesmo
que mínima, lhe será muito mortal.
O
velho acenou fingindo perceber. Fica mal um homem perguntar
explicação de prosa alheia. Minha mãe é que confessou não ter
entendimento:
— O
que lhe digo, mamã, é que, se chorar, esta criança pode nunca mais
reaparecer.
— Basta
uma lágrima?
— Menos
de uma. Basta um pedaço de lágrima.
As
lágrimas me confirmavam criança, negando meu corpo envelhecido. O
chirema voltou a ser atacado por convulsões. Os espíritos falavam
por sua boca mas era como se, antes, atravessassem a minha carne mais
profunda. A poderosa voz do adivinho seguia entre rouquidão e canto.
Se entornava em frases, ascendia por espasmos. Às vezes, simples
fio, sem corpo. Outras, torrente, espantada com sua própria
grandeza.
Eu
era mais recém que recente mas já escutava com total discernência.
O curandeiro me perguntou qualquer coisa em xi-ndau, língua que eu
desconhecia e ainda hoje desconheço. Mas alguém, dentro de mim, me
ocupou a voz e respondeu nesse estranho idioma. Os ossinhos da
adivinhação disseram que me devia ser posto um xi-tsungulo .
Rodeou-me o pescoço com esse colar feito de panos. Eu não sabia
mas, dentro dos panos, estavam os remédios contra a tristeza. Esse
feitiço me haveria de defender contra o tempo.
— Agora,
vai.
E
explicou: aquelas palavras eram chaves que se quebravam dentro das
portas depois de as terem aberto. Não serviam duas vezes. Minha mãe
guardou silêncio e assim, internada em si mesma, me foi arrastando
no caminho de casa.
— Mãe:
qual é a doença que eu sofro?
Minha
mãe me apertou com força. Nunca eu sentiria tal firmeza em sua mão.
— Não
posso falar disso, meu filho.
Parecia
ela estava em véspera de lágrima. Mas não, simplesmente virou o
rosto. E se afastou, cabisbaixa. Herdei de minha mãe esse modo de
entristecer: só quando não choro eu acredito em minhas lágrimas.
Naquele momento, restava meu tio Taúlo para me desvendar os meus
padecimentos. O irmão de minha mãe me falou:
— Você,
Caetanito, você não tem nenhuma idade.
Tinha
sido assim: eu nascera, crescera e envelhecera num só dia. A vida da
pessoa se estende por anos, demorada como um desembrulho que nunca
mais encontra as destinadas mãos. Minha vida, ao contrário, se
despendera toda num único dia. De manhã, eu era criança, me
arrastando, gatinhoso. De tarde, era homem feito, capaz de acertar no
passo e no falar. Pela noite, já minha pele se enrugava, a voz
definhava e me magoava a saudade de não ter vivido.
Passou-se
o dia primeiro, a minha família chamou os habitantes e pediu que
esperassem à volta da nossa casa. O menino que assim nascera
certamente trazia novidades, presságios sobre o futuro da terra.
Nessa altura, já eu não exibia convidativas aparências: minha pele
tinha mais rugas que a tartaruga, os cabelos me tinham crescido e as
unhas eram compridas e curvas como um lagarto. Sofria de fomes
sucessivas e quando minha pobre mãe me ofereceu o seio mamei com tal
sofreguidão que ela quase desfaleceu. Preparava-se a seguinte
mamada, meu tio Taúlo levantou o braço e mandou parar o mundo:
— Nenhuma
mulher lhe ofereça o peito!
Ele
estava avisado. Se lembrava de um outro menino-velho: chupou o seio
da mãe com tais ganâncias que ela não resistiu e faleceu, mirrada
como a cana numa prensa. Vieram as tias, ofereceram o seio: também
elas morreram. Sempre de braço em riste, meu tio Taúlo concluía:
— Ninguém
lhe dê de mamar!
Minha
mãe sacudiu uma invisível mosca e se aproximou de mim, deitando-me
em seu colo.
— Não
posso deixar o meu filho sofrer de fome, disse
ela.
E
puxou o seio para fora da capulana. Os presentes taparam o rosto.
Todos recusaram assistir, mesmo meu tio. Foi pena. Assim, ninguém
testemunhou como ela morreu.
Foi
então que me expulsaram, me excomungando para este asilo. Eu trazia
maldição, estava contaminado com um mupfukwa, o espírito dos que
morreram por minha culpa. Minha doença foi nascer. Estou pagando com
minha própria vida. Outra condenação me atrapalha: quando acabar
de contar minha história eu morrerei. Como essas mães que amamentam
até se extinguirem. Agora entendo. O parto é uma mentira: nós não
nascemos nele. Antes, já estamos nascendo. A gente vai acordando no
antecedente tempo, antes mesmo de nascer. É como a planta que, no
segredo da terra, já é raiz antes de proclamar seu verde sobre o
mundo.
O
que é, inspetor? Está a ouvir essa coruja? Não receie. Ela é a
minha dona, eu pertenço a essa ave. Essa coruja me padrinhou e
sustenta. Todas as noites ela me traz restos de comida. Ao senhor lhe
faz medo. Entendo-lhe, inspetor. O piar da coruja faz eco no oco da
nossa alma. A gente se arrepia por vermos confirmados os buracos por
onde nos vamos escoando. Antes, eu me assustava também. Agora, essa
piagem me requenta as minhas noites. Daí a um apouco vou ver o que,
desta vez, ela me trouxe.
Estou
me perdendo, o senhor diz. Não, só estou enxotando cacimbos. Quando
começar o serviço de duvidar, o senhor vai pensar que quem matou o
diretor foi o velho português, o Domingos Mourão. Não encontrou
ainda com ele? Amanhã, vai ver. Depois de falar com esse branco já
você vai escolher decisão. Mas tome cuidado, inspetor: quem matou
Vasto Excelêncio fui eu. É verdade: o português lhe vai presentar
razões para deitar morte no mulato. Minhas razões são, no entanto,
mais poderosas. Já vai ver. Continuo, vou puxando lembrança.
Quando
cheguei ao asilo entendi que esta era minha última e definitiva
residência. Fiquei derreado, durante dias e dias nem pus dente em
côdea. Padeci tais fomes que só não morri porque a morte não me
encontrou, tão magro que estava. Nessa altura, fiz pacto com a
coruja e recebi migalhas das suas réstias. Depois, muito depois, uma
notícia me trouxe esperança.
Nessa
altura chegou ao asilo uma velha chamada de Nãozinha. Logo correram
os ditos: ela era uma feiticeira. Uma ideia me luzinhou: se calhar
ela me podia ajudar a voltar à minha verdadeira idade! Falei com
essa Nãozinha. A feiticeira primeiro negou-se. Ela dizia não ter
poderes. Minha esperança se desfez.
Um
dia, porém, ela mudou de ideias, sem explicação. Chamou-me para me
dizer que iria aprontar uma cerimónia para agarrar o mupfukwa, esse
mau espírito que me perseguia . Era preciso um animal, carecia-se de
fazer descer o sangue à terra. Mas animal, ali, onde eu iria
desencantar? Falei com a coruja e lhe encomendei peça viva. Nessa
noite, me coube uma garça em estado moribundo. Despescoçámos a
garça. Contudo, o sangue da ave era tão leve que não tombou no
soalho. Foi preciso apanhá-lo junto do pescoço. A cerimónia estava
pronta a ter início. Nãozinha falou claro: o espírito de minha mãe
que exigia satisfação.
— O
que ela quer?, perguntei.
Minha
velhota falou por voz do nyanga: a paz só me visitaria se, em
trocapartida, eu lhe concedesse paz a ela. Eu que desse total
andamento à minha infância. De dia me ocupasse de brincar,
redondeando alegrias pela velha fortaleza. Fosse totalmente menino,
para que ela escutasse minhas folias. E se consolasse em estado de
mãe.
Desde
então, meus gritos e risos se acenderam nos corredores do asilo. Era
eu menino a tempo quase inteiro. De dia, meu lado criança governava
meu corpo. De noite, me pesava a velhice. Deitado no meu leito,
chamava os outros velhos para lhes contar um pedaço de minha
história. Meus companheiros conheciam o perigo mortal daqueles
relatos. No final de um trecho, eu podia ser abocanhado pela morte.
Mesmo assim me pediam que prosseguisse minhas narrações. Desfiava
prosa e mais prosa e eles se cansavam:
— Porra,
este gajo não morre nunca...
— Acabam
as histórias, acabamos nós e ele ainda há-de sobresistir...
— Com
certeza, ele inventa. Anda-se a esquivar da verdade.
Era
verdade que inventava. Mas nem sempre, nem tudo. Certa noite, depois
de muita palavreação me senti esgotar. Pensei: agora é que estou
pisando o fim! Passaram diante de mim estrelas que em nenhuma noite
foram vistas. Por minha boca já não transitavam palavras. Será que
eu tinha morrido?
Não,
meu peito ainda se movia. E o mais estranho: enquanto roçava a
derradeira fronteira meu corpo se desenrugava, eu perdia a aparência
da velhice. A vida me expirava o prazo e eu desabrochava em aspecto
de renascer?
Os
velhos se entreolhavam: desta vez eu teria contado a verdade? Senti
que alguns deles choravam. Primeiro, ansiavam ver o espectáculo de
uma morte. Agora, se arrependiam. Porque esse que em mim morria não
era, afinal, parecido com eles. Era uma criança, um ser totalmente
em infância. Esse menino não podia morrer. Lhes doía uma súbita
saudade das minhas criançuras. Eu era a única luz que entrava nos
escuros corredores. Meu arco quem o brincaria, agora? Aquela roda de
bicicleta que antes barulhava pelos corredores, quem lhe iria agora
dar voltas e tonturas?
Me
vendo morrer eles se decidiram. Havia que acontecer urgente e
autenticada cerimônia. Havia que reclamar a salvação desse menino,
eu, Navaia Caetano. E se prepararam: tambores, capulanas, panos
escondidos. Tudo para sossegar o muzimo que me tinha ocupado.
— Afinal,
tínhamos as tantas coisas, nós?
Sim,
até tambores se inventaram. Se improvisaram panelas, tubos da
canalização. De tudo, enfim, a tristeza tem artes de fazer música.
Na noite anterior tinham preparado o tontonto. Roubaram produtos na
despensa do asilo. Durante horas festejaram, bebendo, excedendo as
bocas. De quando em quando, me espreitavam no leito: eu ainda
resistia. E, de novo, dançavam, cantavam. Mesmo o velho branco era
atiçado a dançar. A feiticeira colocou as duas mãos sobre o rosto
do português e lhe disse:
— Quero
saber que língua fala o teu demônio.
Assim
falou Nãozinha, ordenando às gentes que continuassem dançando.
Depois, de mão em mão, transitaram ervas fumáveis e os perfumes se
espalharam como tonturas.
— Vejo
o mar — disse o branco.
Não
admirava: o português sempre via o mar, só via o mar. A feiticeira
então baralhou os braços nos gestos, entrando em transe. Parecia o
corpo lhe saía fora da alma. Por sua fala começou a caminhar uma
outra voz, vinda das profundidades. Mandei os outros se calarem:
— Deixem
ouvir!
— O
espírito fala português.
— Isso
é português? Nem se entende...
Era
língua portuguesa mas de antigamente. O espírito era o de um
soldado branco que morrera no pátio desta fortaleza. Esse português,
disse a feiticeira, esperava um barco, olhando o mar.
— É
como você, Domingos, sempre a olhar o mar.
— Mas
eu não espero nenhum barco...
— Isso
pensa você, velho.
— Calem-se
vocês, deixem ouvir o espírito.
— Sim,
queremos saber quem é esse soldado.
O
soldado tinha adoecido, quase ficara louco. De tanto olhar o mar seus
olhos mudaram de cor. A última coisa que ele viu foi a chegada do
temporal, a branca viuvez da garça. Depois, os olhos lhe
desapareceram. Ficaram só duas cavidades, grutas por onde ninguém
ousava espreitar. Ele morreu sem enterro, sem despedida...
De
súbito, surgiu o estrondo. Parecia a guerra tinha retornado. Paramos
a dança e olhamos Nãozinha, cheios de inquietação. Ela nos
sossegou: apenas eram nuvens entrechocando. Olhei o céu mas não
havia vestígio de nuvem. No fundo estreloso da noite não vislumbrei
senão a fugidia passagem de uma ave rapineira. Atravessava,
soberana, a claridade da noite. Seria a coruja? E, afinal, onde se
raspavam tais nuvens? Deflagrou um segundo estrondo, desta vez bem
terrestre. Olhei: afinal, era o director pontapeando o bidão de
tontonto. A bebida se vazou pelo chão, desperdiçada. Nem os
antepassados careciam de tanto beber.
— Que
merda é esta? Que se passa aqui?
Nossa
cerimônia era bruscamente interrompida por Vasto Excelêncio. O
diretor abusou de boca, sujou-nos o nome.
— Eu
não disse que estão proibidas estas macacadas no asilo?
Os
outros velhos explicaram: aquela cerimônia era para me salvar a mim.
O mulato me olhou, espantado. Se aproximou do meu leito como se se
quisesse certificar da minha identidade. Quando seus olhos se fixaram
nos meus foi como se um golpe o derrubasse. Sacudiu a cabeça,
esfregou as pálpebras a esborratar a visão. Depois, virou-me as
costas e proclamou:
— Ou
me arrumam já esta merda ou pego fogo a tudo, bebidas, velhos,
crianças, tudo.
E
saiu. Os velhos se olharam, mais vazios que o tontonto. Nãozinha se
levantou e chegou-se ao meu leito. Ergueu o lençol e começou a
esfregar-me as pernas com óleos. As forças lhe vão chegar , disse.
Eu senti um calor me corroendo os ossos interiores. Passado um tempo,
a feiticeira me encorajou a sair da cama:
— Vai
você, Navaia. Faz o que tem a fazer-se...
Sem
esforço, me levantei. Havia como que uma mão invisível me
empurrando. E as vozes me incitavam:
— Você
é que é criança, tem forças de meninice.
— Sim,
Navaia, vai lá matar esse filho de uma quinhenta...
Fechei
os olhos. Afinal, tinha sido para matar que a morte disputara meu
corpo? Desencrispei as mãos. Apoiado pelos velhos fui sendo
arrastado para a porta. Sobre mim tombou o luar. Só então notei um
punhal brilhando, justiceiro, em minha mão direita.
Mia
Couto,
in A varanda
do
frangipani