segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Cantiga de enganar

O mundo não vale o mundo,
meu bem,
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê, de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe
algum som desse declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e de enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
do escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
- mas a conta não existe -
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: id
eias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que os pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
- mas o tempo não existe -,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.
Carlos Drummond de Andrade

O lirismo absoluto

Eu gostaria de explodir, escorrer, decompor-me - e que esta destruição seja a minha obra, minha criação, minha inspiração. Produzir-me no esvaziamento, elevar-me, num ímpeto demente, para além dos confins - e que minha morte seja meu triunfo. Eu gostaria de fundir-me ao mundo e que o mundo se fundisse em mim - que nós gerássemos, em nosso delírio, um sonho apocalíptico, estranho como uma visão do fim e magnífico como um grande crepúsculo. Que nasçam, do tecido de nosso sonho, esplendores enigmáticos e sombras conquistadoras, que um incêndio total engula este mundo e que suas chamas provoquem volúpias crepusculares, tão complicadas quanto a morte e tão fascinantes como o vazio. Preciso das tensões da demência para que o lirismo atinja sua expressão suprema. O lirismo absoluto é aquele dos últimos instantes. A expressão aí confunde-se com a realidade, torna-se tudo, torna-se uma hipóstase do ser. Não mais objetivação parcial, menor e não reveladora, mas parte integrante de nós mesmos. À partir de então, não contam mais apenas a sensibilidade e a inteligência, mas também o ser, o corpo inteiro e toda a nossa vida com seu ritmo e suas pulsações. O lirismo total não é nada mais que o destino levado ao grau supremo do conhecimento de si. Cada uma das suas expressões é um pedaço de nós mesmos. Só é possível encontrá-lo em momentos essenciais, quando os estados expressos consomem-se ao mesmo tempo em que a própria expressão - como o sentimento da agonia e o fenômeno complexo do morrer. O ato e a realidade coincidem: o primeiro não é mais uma manifestação da segunda, mas é ela própria. O lirismo como inclinação para a auto-objetivação situa-se para além da poesia, do sentimentalismo, etc. Ele se aproxima antes de uma metafísica do destino, na medida em que nele se encontram uma total atualidade da vida e o conteúdo mais profundo do ser em busca de conclusão. Em regra, o lirismo absoluto tende a tudo resolver - mas a resolver em direção à morte. Pois tudo aquilo que é capital relaciona-se com ela.
A sensação da confusão absoluta! Não mais ser capaz de qualquer distinção, nada mais poder esclarecer, nada mais entender... Esta sensação faz do filósofo um poeta. Todos os filósofos, enquanto isto, não podem, nem conhecê-la, nem vivê-la com uma intensidade permanente. Se eles a conhecessem, não poderiam mais filosofar de maneira abstrata e rigorosa. O processo de transformação do filósofo em poeta é essencialmente dramático. Do pico do mundo definitivo, formas e questões abstratas assombram-nos, em plena vertigem dos sentidos, na confusão do elementos da alma, que se entrelaçam para dar a luz à construções bizarras e caóticas. Como se poderia engajar na filosofia abstrata enquanto sente-se o desdobramento de um drama complexo em que se misturam um pressentimento erótico com uma inquietude metafísica torturante, o medo da morte com uma aspiração à inocência, a renúncia total com um heroísmo paradoxal, o desespero com o orgulho, o pressentimento da loucura com um desejo de anonimato, o grito com o silêncio e o entusiasmo com o vazio? Além disso, estas tendências misturam-se e elevam-se numa efervescência suprema e numa loucura interior, até a confusão total. Isto exclui toda filosofia sistemática, toda construção precisa. Muitos espíritos começaram pelo mundo das formas para terminar na confusão. Também eles já não podem mais filosofar de uma maneira diferente da poética. Mas neste grau de confusão, somente contam os suplícios e as volúpias da loucura.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Esculturas fantásticas em aço

Escultura de Robin Wright: Uma fada soprando um dente de leão

“Una Furtiva Lacrima”

Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom olhar para dentro. Então seu ideal se transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela. Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:
Você sabe se a gente pode comprar um buraco?
Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta?
Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste. Quando ele falava em ficar rico, uma vez ela lhe disse:
Não será somente visão?
Vá para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu só não digo palavrões grossos porque você é moça-donzela.
Cuidado com suas preocupações, dizem que dá ferida no estômago.
Preocupações coisa nenhuma, pois eu sei no certo que vou vencer. Bem, e você tem preocupações?
Não, não tenho nenhuma. Acho que não preciso vencer na vida.
Foi a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus. Estava habituada a se esquecer de si mesma. Nunca quebrava seus hábitos, tinha medo de inventar.
Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado “Alice no País das Maravilhas” e que era também um matemático? Falaram também em “élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra”?
Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher. Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça direita.
Nessa rádio eles dizem essa coisa de “cultura” e palavras difíceis, por exemplo: o que quer dizer “eletrônico”? Silêncio.
Eu sei mas não quero dizer.
Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic. A rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?
Cultura é cultura — continuou ele emburrado. Você também vive me encostando na parede.
É que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer “renda per capita”?
Ora, é fácil, é coisa de médico.
O que dizer rua Conde de Bonfim? O que é que conde? É príncipe?
Não contou que o roubara no mictório da fábrica: o colega o tinha deixado na pia quando lavara as mãos. Ninguém soube, ele era um verdadeiro técnico em roubar: não usava o relógio de pulso no trabalho.
Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se devia ter alegria de viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma música linda, eu até chorei.
Era samba?
Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música chamava-se “Una Furtiva Lacrima”. Não sei por que eles não disseram lágrima.
Una Furtiva Lacrima” fora a única coisa belíssima na sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era “assim”. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma. Muitas coisas sabia que não sabia entender. “Aristocracia” significaria por acaso uma graça concedida? Provavelmente. Se é assim, que assim seja. O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se entender. Seu coração disparara. E junto de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojando-se no desconhecido de si mesma disse:
Eu acho que até sei cantar essa música. Lá-lá-lá-lá-lá.
Você até parece uma muda cantando. Voz de cana rachada.
Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida. Ela achava que “lacrima” em vez de lágrima era erro do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos domingos, só tinha essa música. O substrato último da música era a sua única vibração.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

A pirâmide visual da leitura

O Egito floresceu no século XI sob o domínio dos fatímidas, tirando sua riqueza do vale do Nilo e do comércio com seus vizinhos do Mediterrâneo, enquanto suas fronteiras arenosas eram protegidas por um exército recrutado no exterior - berberes, sudaneses e turcos. Esse arranjo heterogêneo de comércio internacional e mercenários deu ao Egito fatímida todas as vantagens e desígnios de um estado verdadeiramente cosmopolita. Em 1004, o califa al-Hakim (que assumira o poder aos onze anos de idade e desaparecera misteriosamente durante uma caminhada solitária 25 anos depois) fundou uma grande academia no Cairo - a Dar al-Ilm, ou Casa da Ciência - segundo o modelo de instituições pré-islâmicas, doando ao povo sua importante coleção de manuscritos e decretando que “todo mundo pode vir aqui para ler, transcrever e instruir-se”. As decisões excêntricas de al-Hakim - proibiu jogo de xadrez e a venda de peixes sem escamas - e sua notória sede de sangue foram temperadas, na imaginação popular, por seu sucesso administrativo. Seu objetivo era tornar o Cairo fatímida não apenas o centro simbólico do poder político, mas também a capital da busca artística e da pesquisa científica; com essa ambição, convidou para a corte muitos astrônomos e matemáticos famosos, entre eles al-Haytham. A missão oficial de al-Haytham era estudar um método que regulasse o fluxo do Nilo. Isso ele fez, sem êxito, mas também gastou seus dias preparando uma refutação das teorias astronômicas de Ptolomeu (que, segundo seus inimigos, “era menos uma refutação do que um novo conjunto de dúvidas”) e suas noites escrevendo o grosso volume sobre ótica que lhe asseguraria a fama.
De acordo com al-Haytham, todas as percepções do mundo externo envolvem uma certa influência deliberada que deriva da nossa faculdade de julgar. Para desenvolver essa teoria, al-Haytham seguiu o argumento básico da teoria da intromissão de Aristóteles - segundo a qual as qualidades do que vemos entram no olho por meio do ar - e fundamentou sua escolha com explicações físicas, matemáticas e fisiológicas precisas.
Mas, de forma mais radical, al-Haytham fez uma distinção entre “sensação pura” e “percepção”, sendo a primeira inconsciente ou involuntária - ver a luz fora da minha janela e as formas cambiantes da tarde – e exigindo a segunda um ato voluntário de reconhecimento seguir um texto numa página. A importância do argumento de al-Haytham estava em identificar pela primeira vez, no ato de perceber, uma gradação da ação consciente que vai do ver ao decifrar ou ler.
Al-Haytham morreu no Cairo, em 1038. Dois séculos mais tarde, o erudito inglês Roger Bacon - tentando justificar o estudo da ótica ao papa Clemente IV numa época em que certas facções da Igreja Católica sustentavam violentamente que a pesquisa científica era contrária ao dogma cristão – ofereceu um resumo revisado da teoria al-Haytham.
Segundo al-Haytham (e, ao mesmo tempo, minimizando a importância da sabedoria islâmica), Bacon explicou a Sua Santidade a mecânica da teoria da intromissão.
Segundo Bacon, quando olhamos para um objeto (uma árvore ou as letras SOL), forma-se uma pirâmide visual que tem sua base no objeto e seu ápice no centro da curvatura da córnea. Nós “vemos” quando a pirâmide entra em nosso olho e seus raios são dispostos sobre a superfície do nosso globo ocular, refratados de tal forma que não se cruzam. Ver, para Bacon, era o processo ativo pelo qual uma imagem do objeto entrava no olho e era então apreendida pelos “poderes visuais” dele.
Mas como essa percepção se torna leitura? Como o ato de apreender letras relaciona-se com um processo que envolve não somente visão e percepção, mas inferência, julgamento, memória, reconhecimento, conhecimento, experiência, prática? Al-Haytham sabia (e Bacon certamente concordava) que todos esses elementos necessários para realizar o ato de ler conferiam-lhe uma complexidade impressionante, cujo desempenho satisfatório exigia a coordenação de centenas de habilidades diferentes. E não apenas essas habilidades, mas o momento, o lugar e a plaquinha, o rolo, a página ou a tela sobre a qual o ato é realizado afetam a leitura: para o pastor sumério anônimo, a aldeia perto de onde pastoreava suas cabras e a argila arredondada; para al-Haytham, a nova sala branca da academia do Cairo e o manuscrito de Ptolomeu lido desdenhosamente; para Bacon, a cela da prisão a que fora condenado por seus ensinamentos heterodoxos e seus preciosos volumes científicos; para Leonardo, a corte do rei Francisco I, onde passou seus últimos anos, e os cadernos de anotações que mantinha em código secreto, os quais só podem ser lidos diante de um espelho. Todos esses elementos desconcertantemente diversos unem-se naquele ato único; até aí, al-Haytham presumira.
Mas o modo como tudo acontecia, que conexões intrincadas e fabulosas esses elementos estabeleciam entre eles, essa era uma questão que, para al-Haytham e seus leitores, permanecia sem resposta.
Os estudos modernos de neurolinguística, a relação entre cérebro e linguagem, começaram quase oito séculos e meio depois de al-Haythan, em 1865. Naquele ano, dois cientistas franceses, Michel Dax e Paul Brocat sugeriram em estudos simultâneos, mas separados, que a grande maioria da humanidade, em consequência de um processo genético que começa na concepção, nasce com um hemisfério cerebral esquerdo que se tornará a parte dominante do cérebro para codificar e decodificar a linguagem; uma proporção muito menor, em sua maioria canhotos ou ambidestros, desenvolve essa função no hemisfério direito. Em uns poucos casos (pessoas predispostas geneticamente a um hemisfério esquerdo dominante), danos precoces ao hemisfério esquerdo resultam numa reprogramação cerebral e levam ao desenvolvimento da função da linguagem no hemisfério direito. Mas nenhum dos hemisférios atuará como codificador e decodificador enquanto a pessoa não for exposta efetivamente à linguagem.
No momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras letras, o corpo humano já era capaz de executar os atos de escrever e ler que ainda estavam no futuro.
Ou seja, o corpo era capaz de armazenar, recordar e decifrar todos os tipos de sensação, inclusive os sinais arbitrários da linguagem escrita ainda por ser inventados. Essa noção de que somos capazes de ler antes de ler de fato - na verdade, antes mesmo de vermos uma página aberta diante de nós - leva-nos de volta à ideia platônica do conhecimento preexistente dentro de nós antes de a coisa ser percebida. A própria fala desenvolve-se seguindo um padrão semelhante. “Descobrimos” uma palavra porque o objeto ou ideia que ela representa já está em nossa mente, pronto para ser ligado à palavra. É como se nos fosse oferecido um presente do mundo externo (por nossos antepassados, por aqueles que primeiro falam conosco), mas a capacidade de apreender o presente é nossa. Nesse sentido, as palavras ditas (e, mais tarde, as palavras lidas) não pertencem a nós nem aos nossos pais, aos nossos autores: elas ocupam um espaço de significado compartilhado, um limiar comum que está no começo da nossa relação com as artes da conversação e da leitura.
Alberto Manguel, in Uma história da leitura

Fábula

Todo mundo sabe como se define a palavra fábula: uma história curta de onde se tira uma lição ou um preceito moral. Lembro-me de quando era criança alguém alegando que aquela leitura seria importante para a minha educação, dando-me para ler As fábulas de Esopo, uma coleção de narrativas creditadas a um escravo contador de histórias que viveu na Grécia Antiga, nos anos 620-560 a.C.
Como disse um estudioso, a fábula é um conto de moralidade popular, uma lição de inteligência, de justiça, de sagacidade, trazida até nós desde a mais remota antiguidade.
Já adulto, uma noite eu estava deitado no meu quarto, lendo, quando notei que um corpo estranho deitara-se na minha cama. Era um inseto escuro, de uns sessenta milímetros de comprimento. Gosto de todos os animais, mas é claro que tenho minhas preferências; além dos favoritos, cavalos e cães de grande porte, eu gosto muito de sapos e lagartixas. Percebi que o meu visitante era uma cigarra. Durante o verão eu as ouvia cantar na praça que fica perto da minha casa.
Para não assustá-la, apaguei a luz da cabeceira. Eu durmo sem me mexer muito na cama. A cigarra também. Foi uma noite tranquila.
Pela manhã, ao acordar, a cigarra estava quieta, certamente estranhava aquele ambiente. Eu vesti-me apressadamente, peguei a cigarra, levei-a para a praça e coloquei-a numa árvore.
Quis saber mais sobre o meu visitante. Aquele som lancinante é emitido pelo macho procurando seduzir a fêmea para o acasalamento, é uma súplica de amor que comove o coração de quem ouve.
Então, lembrei-me da fábula de Esopo, “A cigarra e a formiga”.
Qual é a lição, o preceito moral desta fábula? Que cantar é um crime que merece ser punido? Que a alegria é um mal a ser combatido? Que o desejo e o amor devem ser execrados?
Todo animal, de certa forma, tem uma atividade predatória maior ou menor, claro que ninguém chega a ser tão destruidor quanto o ser humano. Mas entre a formiga e a cigarra, quem é pior? Algumas poucas cigarras, cujas ninfas, ao se alimentarem da seiva das plantas, causam danos à árvore, ou os milhões de formigas, que, organizadas em verdadeiros exércitos apocalípticos, escondidas em buracos, saem de maneira sorrateira sem nenhum tipo de desejo ou amor a não ser o de roubar furtivamente plantações inteiras para estocar em seus subterrâneos?
As fábulas de Esopo são uma lição de astúcia, de inteligência, de sagacidade, uma lição moral?
Podem jogar essa merda no lixo. O meu exemplar eu já joguei.
Rubem Fonseca, in Amálgama

Os sentimentos da massa

A massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela. Pensa em imagens que evocam umas às outras associativamente, como no indivíduo em estado de livre devaneio, e que não tem sua coincidência com a realidade medida por uma instância razoável. Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza.
Ela vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se torna um ódio selvagem.
Inclinada a todos os extremos, a massa também é excitada apenas por estímulos desmedidos. Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa.
Como a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso, e tem consciência da sua enorme força, ela é, ao mesmo tempo, intolerante e crente na autoridade. Ela respeita a força, e deixa-se influenciar apenas moderadamente pela bondade, que para ela é uma espécie de fraqueza. O que ela exige de seus heróis é fortaleza, até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida, quer temer os seus senhores. No fundo inteiramente conservadora, tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição.
Sigmund Freud, in Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923)

As três palavras mais estranhas

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.

Wislawa Szymborska

Capítulo 68 - O Vergalho

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: - “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio - o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É, sim, nhonhô.
- Fez-te alguma coisa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a cavar cá dentro uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre.
Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente.
Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

sábado, 29 de dezembro de 2018

Rumo à face escura

Em “A tosse de uma senhora alemã”, um artigo breve que publicou em 1994 na revista Proa, de Buenos Aires, o escritor argentino Julio Cortázar defende a ideia de que a literatura é muito mais que um exercício de linguagem, e bem mais ainda que uma construção intelectual. Ela é uma espécie de operação fantástica, diz, que nos leva a “deslizar até um outro lado”. Lançados na face escura de nós mesmos, nossos poros se esgarçam. Experimentamos, então, sensações e ouvimos coisas que desconhecíamos. O artigo de Cortázar ressurge agora em Papéis inesperados (Civilização Brasileira, organização de Aurora Bernárdez e Carles Álvarez Garriga, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht).
A viagem à face escura começa no dia em que o escritor ouve uma antiga gravação do “Concerto em ré”, de Beethoven, realizada em 1947. Gravado ao vivo pela Rádio Alemã, o concerto – que tem na regência o falecido maestro Wilhelm Furtwängler – permaneceu esquecido durante trinta anos. Nos anos 1970, ele ressurge nos estúdios da rádio France-Musique, que lhe destina uma audição especial. Exilado em Paris, Cortázar ouve o concerto. Emociona-se não só com a regência de Furtwängler e com a performance do violinista judeu Yehudi Menuhin. Algo o afeta mais ainda.
Em meio a um “pianíssimo”, surge aquilo que realmente o derruba: um único golpe seco e claro de tosse. Uma tosse de mulher, que não se repete – a tosse imprevisível de uma senhora alemã. “Impossível saber quem tossiu naquela noite”, Cortázar medita. “Nenhuma ciência, nenhum cavalheiro Dupin poderia rastrear sua origem.” Contudo, é na tosse bruta e inconveniente, que surge fora do lugar e que não interessa a ninguém, que ele fixa sua atenção. Mais que a melodia de Beethoven ou a habilidade do violinista, é nela, naquele ruído desagradável e absurdo, que Cortázar constrói um caminho.
Mesmo a ciência, que a tudo captura, reflete o escritor, mesmo ela se torna impotente diante daquela tosse. Abandonando a catedral cheia de intenções de Beethoven, e atravessando a performance impecável do violinista Menuhin, um voluntarioso Cortázar desliza até os subterrâneos da plateia escura onde, trinta anos antes, uma desconhecida, atordoada por uma gripe ou por uma alergia passageira, não controla a tosse, permitindo que ela escape e se grave onde não devia estar nem devia se gravar.
Os críticos mais severos, por certo, lamentaram aquela tosse desnecessária e, mais que isso, inoportuna que por um ou dois segundos feriu a perfeição do concerto. Julio Cortázar faz exatamente o contrário: é daquele ponto deslocado e imprevisível que, ele percebe, algo vivo se desenrola e se fixa. É ali que a coisa está. Mas que coisa? Cortázar detecta naquela tosse “uma ponte e um sinal e um chamado”. Ponte, sinal e chamado que abrem um rombo na noite e sobre os quais a literatura, enfim, se ergue. A literatura vista não mais como a costura impecável de uma trama, mas como um incômodo e um ferimento.
Ainda penso nas ideias de Cortázar quando me cai nas mãos um livrinho simpático: 90 livros clássicos para apressadinhos, de Henrik Lange (editora Record, tradução e adaptação de Ota). Conservo ao meu lado a reunião dos inéditos do escritor argentino. Deixo os dois livros frente a frente; deixo que se desafiem e lutem. O que faz Henrik Lange senão buscar o sumo poderoso de noventa grandes romances? O que faz, ao contrário, Cortázar senão nos mostrar que este sumo não existe e que, mesmo que existisse, não teria importância alguma?
Detenho-me nas adaptações assinadas pelo desenhista sueco Henrik Lange de livros fabulosos como Odisseia, Em busca do tempo perdido, Morte em Veneza e Dom Quixote. Cada uma delas se comprime em uma única página, dividida em quatro partes, sendo a primeira, sempre, destinada ao título. Nas outras três, desenhos bem-humorados sustentam uma ou duas frases curtas, resumindo (comprimindo – como nas cápsulas fantasiosas vendidas para emagrecer) o livro que os preguiçosos não leem.
Lange se concentra no conteúdo das ficções, isto é, em seu enredo – naquilo que, em geral, supomos ser o próprio livro. Deixa de lado, assim, o que a ficção tem de mais próprio e que, de fato, constitui a sua alma: a voz singular (e feroz) de um autor. É claro: Henrik Lange extrai humor dessas reduções absurdas, mostrando o quanto é inútil se deter no enredo de um romance – como se bastasse a um doente ler a bula de um remédio para se curar, ou a um piloto estudar um guia de instruções aeronáutico para pilotar um avião. Ele denuncia, assim, o quanto é perigoso reduzir um livro a seu enredo. O quanto um enredo, em vez de fazer falar, amordaça e ilude.
Uma vez, em uma oficina literária, propus aos alunos que escrevessem uma pequena narrativa. Deveriam contar a história de uma mulher que, limpando o quarto de empregada, se depara com uma barata, a espreme contra a porta do armário e depois a leva à boca. Meus alunos riram de minha proposta, que acreditavam ser apenas uma piada cruel. Riram e debocharam até que uma moça, um tanto aflita, os interrompeu para exclamar: “Meu Deus, isso é A paixão segundo G. H., de Clarice!”. E era mesmo. Arranquei do mais genial romance que Clarice Lispector escreveu aquilo que ele tem de mais central, mas também de mais insuficiente, e lhes ofereci como um desafio. Tentei, assim, mostrar que toda escrita literária é lateral; que a literatura não se interessa pela boa organização, pelo relato coerente e pela ordem, mas, ao contrário, se debruça sobre tudo o que deles sobra.
Diz Julio Cortázar que a tosse da senhora alemã em meio ao concerto de Beethoven é “uma ponte e um sinal e um chamado”. Ponte que nos conduz a regiões que, em geral, desprezamos. Sinal da impossibilidade de normalizar o mundo real. Chamado para que tenhamos coragem de escutar o incoerente e o inconveniente. A literatura, nos mostra Cortázar, não é uma fantasia consoladora. Não é uma distração ou uma ilusão. Ela nos conduz aos limites escuros do humano e, assim, reafirma a importância de “viver porosamente, aberto a tudo o que habita e respira”.
José Castello, in Sábados inquietos

Costela marinada

Marcelo sentiu alguma coisa acariciar a sua perna por baixo da mesa. Lentamente, do calcanhar até atrás do joelho. O pé da Ana Luiza, só podia ser. Ana Luiza estava sentada do seu lado esquerdo, o lado da perna acariciada. Só ela podia alcançar a sua perna com seu pé sem se esticar. A Julinha, sentada na sua frente, teria que estender a perna ao ponto de quase desaparecer debaixo da mesa. E, mesmo, a Julinha era sua mulher. Por que ela faria aquilo? Era o pé da Ana Luiza, não havia dúvida. E se não fosse? Podia ter sido o gato. O rabo do gato. Difícil confundir um rabo de gato com um pé subindo por baixo da sua calça, mas a alternativa era aceitar que a Ana Luiza, logo a Ana Luiza, estava acariciando a sua perna. O gato era preferível, o gato seria um alívio. A Ana Luiza acariciando a sua perna, depois de todos aqueles anos, inauguraria tanta coisa diferente e surpreendente na vida deles todos, dele, da Julinha, do Alemão, marido da Ana Luiza, seu companheiro no tênis, sentado à sua direita, que precisava ser o gato. O gato, rezou Marcelo, em silêncio. Por favor, o gato. Não o pé da Ana Luiza. Não o pé da mulher do Alemão, seu melhor amigo. Qualquer coisa menos o pé da Ana Luiza. Um fantasma e não o pé da Ana Luiza! Marcelo olhou para Ana Luiza. Ela estava falando com a Julinha. Ela não é feia, pensou Marcelo. Nunca notara os seus seios. Mesmo na praia, nunca notara os seios altos e cheios da mulher do Alemão. Altos, cheios e juntos, como ele gostava. Cinco para a uma em vez de quinze para as três, como os da Julinha. Tentou se lembrar das pernas da Ana Luiza. Eram curtas, tinha quase certeza que eram curtas. Ela não conseguiria alcançar sua perna com o pé. Não sem se esticar por baixo da mesa. Fora o gato. Estava resolvido. Fora o gato. “Que fim levou o Clodovil?”, perguntou. Clodovil era o nome do gato. “No veterinário”, disse o Alemão. Pronto, não era o gato. Era o pé da Ana Luiza. A Ana Luiza está a fim. De uma hora para outra, depois de o quê? Doze, quinze anos de amizade, a Ana Luiza está me dizendo com o pé que está a fim de mim. Que depois de todos estes anos quer trocar a amizade por outra coisa, um caso, uma loucura. Que precisamos nos encontrar, longe do Alemão e da Julinha. Que nossas vidas mudarão por completo. Que adeus parceria no tênis. Que adeus temporadas na praia, quando as crianças se entendiam tão bem. Que adeus jantares alternados na casa de um e do outro casal, quando o Alemão cozinhava. Nunca mais as excursões de fim de semana. Nunca mais as noitadas de buraco e risadas. Meu Deus, nunca mais a costela marinada do Alemão! Marcelo sentiu o pé da Ana Luiza acariciando sua perna outra vez. Chutou o pé da Ana Luiza. “Sua costela está melhor do que nunca, Alemão”, disse Marcelo para o amigo. “Se desmanchando. Se desmanchando!”
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

As Tentações ou Eros, Pluto e a Glória

Dois soberbos Satãs e uma Diaba, não menos extraordinária, subiram, a noite passada, uma escada misteriosa, por onde o Inferno dá acesso à fraqueza do homem que dorme, comunicando-se secretamente com ele. Vieram pôr-se gloriosamente diante de mim, de pé, como num estrado. Um esplendor sulfuroso emanava das três personagens, que se destacavam do fundo opaco da noite. Tinham um ar tão altivo e cheio de domínio que os tomei a princípio por verdadeiros Deuses.
A fisionomia do primeiro Satã era de um sexo ambíguo e havia, nas linhas do seu corpo, a moleza dos antigos Bacos. Seus belos olhos lânguidos, a cor tenebrosa e indecisa, pareciam violetas ainda carregadas dos pesados prantos da borrasca, e os lábios entreabertos caçoletas candentes exalando um aroma de perfumaria. E, toda vez que suspirava, insetos musgados iluminavam-se, voando aos ardores do seu hálito.
Ao redor de sua túnica de púrpura enrolava-se, como um cíngulo, uma fúlgura serpente que, de cabeça erguida, volvia para ele os lânguidos olhos de brasa. Nesse cíngulo vivo suspendiam-se, alternando-se com frascos cheios de sinistros licores, facas brilhantes e instrumentos cirúrgicos. Tinha na mão direita outro frasco, cujo conteúdo era de um vermelho luminoso, e que trazia no rótulo estas palavras estranhas: BEBA, É O MEU SANGUE, PERFEITO CORDIAL. Com a mão esquerda, segurava um violão que lhe servia, certamente, para cantar os seus prazeres e desgostos, ou espalhar o contágio de sua loucura nas noites de sabá.
Nas delicadas cravelhas, penduravam-se anéis de uma corrente de ouro partida, e, quando a tristeza que tal fato lhe causara o forçava a baixar os olhos, contemplava vaidosamente as unhas dos próprios pés, brilhantes e polidas como pedras bem trabalhadas.
Olhou-me com os olhos inconsolavelmente aflitos, de onde deslizava uma insidiosa embriaguez, e me disse com voz modulada: — Se quiseres, far-te-ei senhor das almas, dono da matéria viva, mais ainda do que o escultor pode ser da argila. Conhecerás o prazer, sempre novo, de saíres de ti mesmo para te esqueceres em outrem e de atrair as outras almas até confundi-las com a tua.
E eu lhe respondi: — Muito obrigado! Nada posso fazer desse punhado de seres que, sem dúvida, não valem mais do que o meu pobre eu. Embora tenha vergonha de me lembrar, não quero esquecer. Mesmo que eu não te conhecesse, velho monstro, a tua misteriosa cutelaria, os teus frascos equívocos, as correntes que te prendem os pés, são símbolos que explicam com clareza os inconvenientes da tua amizade. Guarda os teus presentes.
O segundo Satã não tinha nem esse ar ao mesmo tempo trágico e sorridente, nem essas belas maneiras insinuantes, nem essa beleza esbelta e perfumada. Era um homem vasto, enorme rosto sem olhos, ventre imenso caindo sobre as coxas, a pele dourada e ilustrada, como numa tatuagem, com uma porção de pequenas figuras movediças representando as numerosas formas da miséria universal.
Havia ainda uns homenzinhos descarnados, suspendendo-se voluntariamente num prego. Pequenos gnomos disformes, magros, cujos olhos suplicantes reclamavam melhor a esmola do que as mãos trementes. Velhas mães carregando abortos seguros nas maminhas extenuadas. E muitos outros.
O grande Satã batia com o punho na barriga enorme, produzindo um longo e estridente tilintar metálico, que terminava num vago gemido feito de numerosas vozes humanas. E, mostrando imprudentemente os dentes podres, dava uma gargalhada imbecil, como certos homens de todos os países depois de um bom jantar.
Foi esse que me disse: — Posso dar-te o que produz tudo, o que vale tudo, o que tudo substitui! — E bateu no ventre monstruoso, cujo eco sonoro foi o comentário dessa frase grosseira.
Volte-me de má vontade e respondi-lhe: — Não preciso, para o meu bem-estar, da miséria de ninguém. Não desejo uma riqueza atormentada, como um papel de parede, por todas as desgraças representadas em tua pele.
Quanto à Diaba, eu mentiria se não confessasse que descobri nela, à primeira vista, uma sedução estranha. Para definir esse encanto, eu só poderia compará-lo ao dessas lindas mulheres maduras, que não envelhecem e conservam a magia penetrante das ruínas. Tinha um ar ao mesmo tempo imperioso e desajeitado, e os olhos, embora endurecidos, encerravam uma força fascinadora. E o que mais me impressionou foi o mistério de sua voz, que me evocou os contraltos mais deliciosos e também a rouquidão das gargantas incessantemente lavadas pela aguardente.
Queres conhecer o meu poder? — disse a falsa deusa com sua voz encantadora e paradoxal — Escuta.
Levou à boca uma gigantesca trombeta enfeitada de fitas, como uma flauta, nas quais e liam os títulos de todos os jornais do universo. Através essa trombeta, gritou o meu nome, que reboou o espaço com o ruído de cem mil trovões e voltou a mim repercutido pelo eco do mais longínquo planeta.
Diabo! — exclamei, meio vencido, — é fantástico! Mas, examinando com mais atenção a sedutora virago, pareceu-me vagamente que a reconhecia, por a ter visto bebendo com uns folgazões meus conhecidos. E o som rouquenho do cobre trouxe-me aos ouvidos não sei que de recordações de uma trombeta prostituída.
Respondi-lhe, por fim, com desprezo: — Vai-te! Não fui feito para desposar a amante de certos tipos que não quero citar.
Eu teria, decerto, o direito de vangloriar-me por tão corajosa abnegação. Mas, infelizmente, despertei e toda a minha força abandonou-me.
Na verdade, — disse comigo — era mesmo preciso que eu estivesse dormindo para mostrar tais escrúpulos. Se eles pudessem voltar quando despertei, eu não seria tão delicado! Invoquei-os em voz alta, suplicando-lhes que me perdoassem, oferecendo-lhes a minha humilhação tantas vezes quantas fossem necessárias para merecer os seus favores.
Mas, a ofensa fora muito grave, pois nunca mais voltaram.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

Direito de viver

Albert Schweitzer conta que foi numa noite – ele e remadores navegavam pelo rio para chegar a uma outra aldeia –, seu pensamento não parava, e ele se perguntava: “Qual é o princípio ético fundamental?”. De repente, como um relâmpago, apareceu na sua cabeça a expressão: reverência pela vida. Tudo o que é vivo deseja viver. Tudo o que é vivo tem o direito de viver. Nenhum sofrimento pode ser imposto sobre as coisas vivas, para satisfazer o desejo dos homens.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

A confissão de Navaia

Quem, eu? Mexer-lhe nas suas coisas? O senhor pode inquirir em todos: não mexi nem toquei na sua mala. Alguém fez. Não eu, Navaia Caetano. Não vou dizer quem foi. A boca fala mas não aponta. Além disso, o morcego chorou por causa da boca. Mas eu vi esse mexilhento. Sim, vi. Era um vulto abutreando as coisas do senhor. Aquela sombra esvoou e pousou nos meus olhos, pousou em todos os cantos da escuridão. Nem parecia arte de gente. Chiças, até me estremexe a alma só de lembrar.
Mas agora eu pergunto: levaram-lhe coisas? É que os velhos, aqui, são os próprios tiradores. Não é que roubem. Só tiram. Tiram sem chegarem nunca a roubar. Eu explico: nesta fortaleza ninguém é dono de nada. Se não há proprietário não há roubo. Não é assim? Aqui o capim é que come a vaca.
Nego o roubo mas confesso o crime. Digo logo, senhor inspector: fui eu que matei Vasto Excelêncio. Já não precisa procurar. Estou aqui, eu. Vou juntar outra verdade, ainda mais parecida com a realidade: esse mulato se matou ele mesmo usando minhas mãos. Ele que se condenou, eu só executei seu desejo matador. O que cumpri, se fiz com alma e corpo, não foi por ódio. Não tenho força para odiar. Eu sou como a minhoca: não encosto desvontades contra ninguém. A minhoca, senhor inspector, assim cega e rasa, quem ela pode odiar?
Lhe explico, com permissão de sua paciência. Chegue-se mais à luz, não receie o fumo. Nem tenha medo de queimar: não há outra maneira de me escutar. Minha voz se está enfraquecendo, mais débil ficando à medida que eu desfiar estas confidências. Enquanto ouvir estes relatos você se guarde quieto. O silêncio é que fabrica as janelas por onde o mundo se transparenta. Não escreva, deixe esse caderno no chão. Se comporte como água no vidro. Quem é gota sempre pinga, quem é cacimbo se esvapora. Neste asilo, o senhor se aumente de muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente.

Tudo começa antes do antigamente. Nós dizemos: ntumbuluku. Parece longe mas é lá que nascem os dias que estão ainda em botão. A morte desse Excelêncio já começou antes dele nascer. Começou comigo, a criança velha.
A maldição pesa sobre mim, Navaia Caetano: sofro a doença da idade antecipada. Sou um menino que envelheceu logo à nascença. Dizem que, por isso, me é proibido contar minha própria história. Quando terminar o relato eu estarei morto. Ou, quem sabe, não? Será mesmo verdadeira esta condenação? Mesmo assim me intento, faço na palavra o esconderijo do tempo. À medida que vou contando me sinto cansado e mais velho. Está a ver estas rugas nos meus braços? São novas, antes de falar consigo eu não as tinha. Mas eu sigo adiante, não encontrando atalho nem alívio. Sou como a dor que não tivesse carne onde sofrer, sou a unha que teima em nascer num pé que foi cortado. Me dê suas paciências, doutor.
Meu tio materno, Taúlo Guiraze, me disse: as demais pessoas contam a história de suas vidas de maneira muito ligeira. Uma criança-velha não. Enquanto os outros envelhecem as palavras, no meu caso quem envelhece sou eu próprio. E me aconselhou:
Meu filho, eu lhe conheço uma saída. Caso se um dia você decidisse ser contadeiro...
E qual seria?
Ele ouvira falar de uma criança-velha nascida em outro tempo, outro lugar. Essa criança se divertia contando a sua história, vendo como os outros se angustiavam na ansiedade de o ver morrer. Findas as muitas histórias, porém, ele permanecia vivo.
Não morreu, sabe porquê? Porque mentiu. Histórias dele eram inventadas.
Meu tio me convidava a mentir? Só ele podia saber. O que vou contar agora, com risco de meu próprio fim, são pedaços soltos de minha vida. Tudo para explicar o sucedido no asilo. Eu sei, estou enchendo de saliva sua escrita. Mas, no fim, o senhor vai entender isto que estou para aqui garganteando.
Minha mãe, abro falas nela. Nunca eu vi mulher tão demasiado parideira. Quantas vezes ela saltou a lua? Lhe nasciam muitos filho. Digo bem: filho, não filhos. Pois ela dava à luz sempre o mesmo ser. Quando ela paria um novo menino, desaparecia o anterior filho. Mas todos esses que se sucediam eram idênticos, gotas rivalizando a mesma água. A gente da aldeia suspeitava de castigo, uma desobediência às leis dos antigos. Qual a razão desse castigo? Ninguém falava, mas a origem do mal todos conheciam: meu pai visitava muito o corpo de minha mãe. Ele não tinha paciências para esperar durante o tempo que minha mãe aleitava. É ordem da tradição: o corpo da mulher fica intocável nos primeiros leites. Meu velho desobedecia. Ele mesmo anunciou como superar o impedimento. Levaria para os namoros um cordão abençoado. Quando se preparasse para trebeliscar a esposa ele amarraria um nó na cintura da criança. O namoro poderia então acontecer sem consequências.
Resolvia-se, na aparência, o adoentado destino de minha mãe. Digo bem, aparência. Porque começou aí minha desgraça. Agora sei: nasci de um desses nós mal atados na cintura de um falecido irmão.
Calma, inspetor, estou chegando a mim. Não se lembra como falei? Nasci em corpito frágil, sempre dispensado da sede. Minha estreia parecia ter sido abençoada: foram lançadas as seis sementes de hacata. Os caroços tombaram de modo certeiro, alinhados pelos bons espíritos.
Esta criança há-de ser mais antiga que a vida.
Meu avô me levantou em bênção e me deixou suspenso em seus braços. Ficou sem falar como se pesasse a minha alma. Quem sabe o que ele procurava? Entre os mil bichos, só o homem é um escutador de silêncios. Meu avô me voltou a ajeitar no seu peito, todo ele posto em riso. Mas a felicidade dele se enganava. Sobre mim recaía a maldição. Fui sabendo dessa maldição nas primeiras vezes que chorei. Enquanto lacrimejava eu ia desaparecendo. As lágrimas lavavam a minha matéria, me dissolviam a substância. Mas não era apenas aquele o sinal da minha condição. Antes, eu já havia nascido sem parto. Ao sair do corpo não dei nenhuma sofrência para minha mãe, desprovido de substância. Escorreguei ventre abaixo, me drenei pela carne materna mais líquido que o próprio sangue.
Minha mãe logo pressentiu que eu era um enviado dos céus. Chamou meu pai que baixou os olhos em nenhuma direção. Um homem está interdito de enfrentar o filho antes que lhe caia o cordão umbilical. Meu velho mandou chamar o chirema. O adivinho me cheirou os espíritos, espirrou, tossiu e, depois, vaticinou:
Este menino não pode sofrer nenhuma tristeza. Qualquer tristeza, mesmo que mínima, lhe será muito mortal.
O velho acenou fingindo perceber. Fica mal um homem perguntar explicação de prosa alheia. Minha mãe é que confessou não ter entendimento:
O que lhe digo, mamã, é que, se chorar, esta criança pode nunca mais reaparecer.
Basta uma lágrima?
Menos de uma. Basta um pedaço de lágrima.
As lágrimas me confirmavam criança, negando meu corpo envelhecido. O chirema voltou a ser atacado por convulsões. Os espíritos falavam por sua boca mas era como se, antes, atravessassem a minha carne mais profunda. A poderosa voz do adivinho seguia entre rouquidão e canto. Se entornava em frases, ascendia por espasmos. Às vezes, simples fio, sem corpo. Outras, torrente, espantada com sua própria grandeza.
Eu era mais recém que recente mas já escutava com total discernência. O curandeiro me perguntou qualquer coisa em xi-ndau, língua que eu desconhecia e ainda hoje desconheço. Mas alguém, dentro de mim, me ocupou a voz e respondeu nesse estranho idioma. Os ossinhos da adivinhação disseram que me devia ser posto um xi-tsungulo . Rodeou-me o pescoço com esse colar feito de panos. Eu não sabia mas, dentro dos panos, estavam os remédios contra a tristeza. Esse feitiço me haveria de defender contra o tempo.
Agora, vai.
E explicou: aquelas palavras eram chaves que se quebravam dentro das portas depois de as terem aberto. Não serviam duas vezes. Minha mãe guardou silêncio e assim, internada em si mesma, me foi arrastando no caminho de casa.
Mãe: qual é a doença que eu sofro?
Minha mãe me apertou com força. Nunca eu sentiria tal firmeza em sua mão.
Não posso falar disso, meu filho.
Parecia ela estava em véspera de lágrima. Mas não, simplesmente virou o rosto. E se afastou, cabisbaixa. Herdei de minha mãe esse modo de entristecer: só quando não choro eu acredito em minhas lágrimas. Naquele momento, restava meu tio Taúlo para me desvendar os meus padecimentos. O irmão de minha mãe me falou:
Você, Caetanito, você não tem nenhuma idade.
Tinha sido assim: eu nascera, crescera e envelhecera num só dia. A vida da pessoa se estende por anos, demorada como um desembrulho que nunca mais encontra as destinadas mãos. Minha vida, ao contrário, se despendera toda num único dia. De manhã, eu era criança, me arrastando, gatinhoso. De tarde, era homem feito, capaz de acertar no passo e no falar. Pela noite, já minha pele se enrugava, a voz definhava e me magoava a saudade de não ter vivido.
Passou-se o dia primeiro, a minha família chamou os habitantes e pediu que esperassem à volta da nossa casa. O menino que assim nascera certamente trazia novidades, presságios sobre o futuro da terra. Nessa altura, já eu não exibia convidativas aparências: minha pele tinha mais rugas que a tartaruga, os cabelos me tinham crescido e as unhas eram compridas e curvas como um lagarto. Sofria de fomes sucessivas e quando minha pobre mãe me ofereceu o seio mamei com tal sofreguidão que ela quase desfaleceu. Preparava-se a seguinte mamada, meu tio Taúlo levantou o braço e mandou parar o mundo:
Nenhuma mulher lhe ofereça o peito!
Ele estava avisado. Se lembrava de um outro menino-velho: chupou o seio da mãe com tais ganâncias que ela não resistiu e faleceu, mirrada como a cana numa prensa. Vieram as tias, ofereceram o seio: também elas morreram. Sempre de braço em riste, meu tio Taúlo concluía:
Ninguém lhe dê de mamar!
Minha mãe sacudiu uma invisível mosca e se aproximou de mim, deitando-me em seu colo.
Não posso deixar o meu filho sofrer de fome, disse ela.
E puxou o seio para fora da capulana. Os presentes taparam o rosto. Todos recusaram assistir, mesmo meu tio. Foi pena. Assim, ninguém testemunhou como ela morreu.
Foi então que me expulsaram, me excomungando para este asilo. Eu trazia maldição, estava contaminado com um mupfukwa, o espírito dos que morreram por minha culpa. Minha doença foi nascer. Estou pagando com minha própria vida. Outra condenação me atrapalha: quando acabar de contar minha história eu morrerei. Como essas mães que amamentam até se extinguirem. Agora entendo. O parto é uma mentira: nós não nascemos nele. Antes, já estamos nascendo. A gente vai acordando no antecedente tempo, antes mesmo de nascer. É como a planta que, no segredo da terra, já é raiz antes de proclamar seu verde sobre o mundo.
O que é, inspetor? Está a ouvir essa coruja? Não receie. Ela é a minha dona, eu pertenço a essa ave. Essa coruja me padrinhou e sustenta. Todas as noites ela me traz restos de comida. Ao senhor lhe faz medo. Entendo-lhe, inspetor. O piar da coruja faz eco no oco da nossa alma. A gente se arrepia por vermos confirmados os buracos por onde nos vamos escoando. Antes, eu me assustava também. Agora, essa piagem me requenta as minhas noites. Daí a um apouco vou ver o que, desta vez, ela me trouxe.
Estou me perdendo, o senhor diz. Não, só estou enxotando cacimbos. Quando começar o serviço de duvidar, o senhor vai pensar que quem matou o diretor foi o velho português, o Domingos Mourão. Não encontrou ainda com ele? Amanhã, vai ver. Depois de falar com esse branco já você vai escolher decisão. Mas tome cuidado, inspetor: quem matou Vasto Excelêncio fui eu. É verdade: o português lhe vai presentar razões para deitar morte no mulato. Minhas razões são, no entanto, mais poderosas. Já vai ver. Continuo, vou puxando lembrança.

Quando cheguei ao asilo entendi que esta era minha última e definitiva residência. Fiquei derreado, durante dias e dias nem pus dente em côdea. Padeci tais fomes que só não morri porque a morte não me encontrou, tão magro que estava. Nessa altura, fiz pacto com a coruja e recebi migalhas das suas réstias. Depois, muito depois, uma notícia me trouxe esperança.
Nessa altura chegou ao asilo uma velha chamada de Nãozinha. Logo correram os ditos: ela era uma feiticeira. Uma ideia me luzinhou: se calhar ela me podia ajudar a voltar à minha verdadeira idade! Falei com essa Nãozinha. A feiticeira primeiro negou-se. Ela dizia não ter poderes. Minha esperança se desfez.
Um dia, porém, ela mudou de ideias, sem explicação. Chamou-me para me dizer que iria aprontar uma cerimónia para agarrar o mupfukwa, esse mau espírito que me perseguia . Era preciso um animal, carecia-se de fazer descer o sangue à terra. Mas animal, ali, onde eu iria desencantar? Falei com a coruja e lhe encomendei peça viva. Nessa noite, me coube uma garça em estado moribundo. Despescoçámos a garça. Contudo, o sangue da ave era tão leve que não tombou no soalho. Foi preciso apanhá-lo junto do pescoço. A cerimónia estava pronta a ter início. Nãozinha falou claro: o espírito de minha mãe que exigia satisfação.
O que ela quer?, perguntei.
Minha velhota falou por voz do nyanga: a paz só me visitaria se, em trocapartida, eu lhe concedesse paz a ela. Eu que desse total andamento à minha infância. De dia me ocupasse de brincar, redondeando alegrias pela velha fortaleza. Fosse totalmente menino, para que ela escutasse minhas folias. E se consolasse em estado de mãe.
Desde então, meus gritos e risos se acenderam nos corredores do asilo. Era eu menino a tempo quase inteiro. De dia, meu lado criança governava meu corpo. De noite, me pesava a velhice. Deitado no meu leito, chamava os outros velhos para lhes contar um pedaço de minha história. Meus companheiros conheciam o perigo mortal daqueles relatos. No final de um trecho, eu podia ser abocanhado pela morte. Mesmo assim me pediam que prosseguisse minhas narrações. Desfiava prosa e mais prosa e eles se cansavam:
Porra, este gajo não morre nunca...
Acabam as histórias, acabamos nós e ele ainda há-de sobresistir...
Com certeza, ele inventa. Anda-se a esquivar da verdade.
Era verdade que inventava. Mas nem sempre, nem tudo. Certa noite, depois de muita palavreação me senti esgotar. Pensei: agora é que estou pisando o fim! Passaram diante de mim estrelas que em nenhuma noite foram vistas. Por minha boca já não transitavam palavras. Será que eu tinha morrido?
Não, meu peito ainda se movia. E o mais estranho: enquanto roçava a derradeira fronteira meu corpo se desenrugava, eu perdia a aparência da velhice. A vida me expirava o prazo e eu desabrochava em aspecto de renascer?
Os velhos se entreolhavam: desta vez eu teria contado a verdade? Senti que alguns deles choravam. Primeiro, ansiavam ver o espectáculo de uma morte. Agora, se arrependiam. Porque esse que em mim morria não era, afinal, parecido com eles. Era uma criança, um ser totalmente em infância. Esse menino não podia morrer. Lhes doía uma súbita saudade das minhas criançuras. Eu era a única luz que entrava nos escuros corredores. Meu arco quem o brincaria, agora? Aquela roda de bicicleta que antes barulhava pelos corredores, quem lhe iria agora dar voltas e tonturas?
Me vendo morrer eles se decidiram. Havia que acontecer urgente e autenticada cerimônia. Havia que reclamar a salvação desse menino, eu, Navaia Caetano. E se prepararam: tambores, capulanas, panos escondidos. Tudo para sossegar o muzimo que me tinha ocupado.
Afinal, tínhamos as tantas coisas, nós?
Sim, até tambores se inventaram. Se improvisaram panelas, tubos da canalização. De tudo, enfim, a tristeza tem artes de fazer música. Na noite anterior tinham preparado o tontonto. Roubaram produtos na despensa do asilo. Durante horas festejaram, bebendo, excedendo as bocas. De quando em quando, me espreitavam no leito: eu ainda resistia. E, de novo, dançavam, cantavam. Mesmo o velho branco era atiçado a dançar. A feiticeira colocou as duas mãos sobre o rosto do português e lhe disse:
Quero saber que língua fala o teu demônio.
Assim falou Nãozinha, ordenando às gentes que continuassem dançando. Depois, de mão em mão, transitaram ervas fumáveis e os perfumes se espalharam como tonturas.
Vejo o mar — disse o branco.
Não admirava: o português sempre via o mar, só via o mar. A feiticeira então baralhou os braços nos gestos, entrando em transe. Parecia o corpo lhe saía fora da alma. Por sua fala começou a caminhar uma outra voz, vinda das profundidades. Mandei os outros se calarem:
Deixem ouvir!
O espírito fala português.
Isso é português? Nem se entende...
Era língua portuguesa mas de antigamente. O espírito era o de um soldado branco que morrera no pátio desta fortaleza. Esse português, disse a feiticeira, esperava um barco, olhando o mar.
É como você, Domingos, sempre a olhar o mar.
Mas eu não espero nenhum barco...
Isso pensa você, velho.
Calem-se vocês, deixem ouvir o espírito.
Sim, queremos saber quem é esse soldado.
O soldado tinha adoecido, quase ficara louco. De tanto olhar o mar seus olhos mudaram de cor. A última coisa que ele viu foi a chegada do temporal, a branca viuvez da garça. Depois, os olhos lhe desapareceram. Ficaram só duas cavidades, grutas por onde ninguém ousava espreitar. Ele morreu sem enterro, sem despedida...
De súbito, surgiu o estrondo. Parecia a guerra tinha retornado. Paramos a dança e olhamos Nãozinha, cheios de inquietação. Ela nos sossegou: apenas eram nuvens entrechocando. Olhei o céu mas não havia vestígio de nuvem. No fundo estreloso da noite não vislumbrei senão a fugidia passagem de uma ave rapineira. Atravessava, soberana, a claridade da noite. Seria a coruja? E, afinal, onde se raspavam tais nuvens? Deflagrou um segundo estrondo, desta vez bem terrestre. Olhei: afinal, era o director pontapeando o bidão de tontonto. A bebida se vazou pelo chão, desperdiçada. Nem os antepassados careciam de tanto beber.
Que merda é esta? Que se passa aqui?
Nossa cerimônia era bruscamente interrompida por Vasto Excelêncio. O diretor abusou de boca, sujou-nos o nome.
Eu não disse que estão proibidas estas macacadas no asilo?
Os outros velhos explicaram: aquela cerimônia era para me salvar a mim. O mulato me olhou, espantado. Se aproximou do meu leito como se se quisesse certificar da minha identidade. Quando seus olhos se fixaram nos meus foi como se um golpe o derrubasse. Sacudiu a cabeça, esfregou as pálpebras a esborratar a visão. Depois, virou-me as costas e proclamou:
Ou me arrumam já esta merda ou pego fogo a tudo, bebidas, velhos, crianças, tudo.
E saiu. Os velhos se olharam, mais vazios que o tontonto. Nãozinha se levantou e chegou-se ao meu leito. Ergueu o lençol e começou a esfregar-me as pernas com óleos. As forças lhe vão chegar , disse. Eu senti um calor me corroendo os ossos interiores. Passado um tempo, a feiticeira me encorajou a sair da cama:
Vai você, Navaia. Faz o que tem a fazer-se...
Sem esforço, me levantei. Havia como que uma mão invisível me empurrando. E as vozes me incitavam:
Você é que é criança, tem forças de meninice.
Sim, Navaia, vai lá matar esse filho de uma quinhenta...
Fechei os olhos. Afinal, tinha sido para matar que a morte disputara meu corpo? Desencrispei as mãos. Apoiado pelos velhos fui sendo arrastado para a porta. Sobre mim tombou o luar. Só então notei um punhal brilhando, justiceiro, em minha mão direita.
Mia Couto, in A varanda do frangipani