sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O vagabundo de Valparaíso

Valparaíso está muito próximo de Santiago. São separadas somente pelas montanhas hirsutas em cujos cimos se erguem, como obeliscos, grandes cactos hostis e floridos. No entanto, algo infinitamente indefinível distancia Valparaíso de Santiago. Santiago é uma cidade prisioneira, cercada por muros de neve. Valparaíso, por sua vez, abre as portas ao mar infinito, aos gritos das ruas e aos olhos das crianças.
No momento mais desordenado de nossa juventude nos metíamos apressadamente, sempre de madrugada, sempre sem ter dormido, sempre sem um centavo nos bolsos, em um vagão de terceira classe. Éramos poetas ou pintores de pouco mais ou pouco menos de vinte anos, providos de uma carga valiosa de loucura inconsequente que queria transbordar, estender-se, estalar. A estrela de Valparaíso nos chamava com sua força magnética.
Somente anos depois voltei a sentir o mesmo chamado inexplicável, de outra cidade, durante meus anos em Madri. Inesperadamente, em uma cervejaria, saindo de um teatro de madrugada ou simplesmente andando pelas ruas, ouvia a voz de Toledo que me chamava, a muda voz de seus fantasmas, de seu silêncio. E a essas altas horas, junto com os amigos tão loucos quanto os de minha juventude, nos largávamos para a antiga cidadela calcinada e retorcida para dormir vestidos sobre as areias do Tajo, debaixo das pontes de pedra.
Não sei por que, entre minhas decantadas viagens a Valparaíso, uma ficou gravada, impregnada por um aroma de ervas arrancadas à intimidade dos campos. Íamos nos despedir de um poeta e de um pintor que viajariam para a França em terceira classe. Como nenhum de nós tinha com que pagar nem o mais ínfimo dos hotéis, procuramos Novoa, um de nossos loucos favoritos do grande Valparaíso. Não era tão simples chegar à sua casa. Subindo e resvalando por colinas até o infinito, víamos na escuridão a silhueta imperturbável de Novoa que nos guiava.
Era um homem imponente, de barba cerrada e grossos bigodões. As abas de sua roupa escura batiam como asas nas alturas misteriosas daquela cordilheira que subíamos cegos e trôpegos. Ele não parava de falar. Era um santo louco, canonizado exclusivamente por nós, os poetas. E era, naturalmente, um naturalista, um vegetariano vegetal. Exaltava as relações secretas que só ele conhecia entre a saúde natural e as dádivas da terra. Catequizava-nos enquanto caminhava. Dirigia para trás a voz atroadora como se fôssemos seus discípulos, com o vulto descomunal avançando como o de um São Cristóvão nascido nos subúrbios noturnos e solitários.
Finalmente chegamos à sua casa, uma cabana de duas peças. A cama do nosso São Cristóvão ocupava uma delas. A outra era tomada em grande parte por uma imensa poltrona de vime profusamente entrecruzada por supérfluos florões de palha e estantezinhas estranhas, incrustadas nos braços uma obra-prima do estilo vitoriano. A poltrona grande me foi destinada para dormir naquela noite. Meus amigos estenderam no chão os jornais da tarde e se deitaram precariamente sobre as notícias e os editoriais.
Logo soube, por respirações e roncos, que todos já dormiam. Sentado naquele móvel monumental, era difícil conciliar o sono com meu cansaço. Ouvia-se um silêncio de altura, de cumes solitários. Só alguns latidos de cães austrais que cruzavam a noite, só um apito longíssimo de navio que chegava ou saía me davam conta da noite de Valparaíso.
De repente senti um poder estranho e arrebatador me invadindo: uma fragrância montanhosa, um cheiro de pradaria, de vegetações que tinham crescido com a infância e que eu tinha esquecido no fragor da vida da cidade. Senti-me reconciliado com o sonho, envolto pelo acalanto da terra maternal. De onde poderia vir aquela palpitação silvestre da terra, aquela pureza de aromas? Metendo os dedos por entre os vãos ásperos do vime da poltrona colossal descobri inumeráveis compartimentos e, neles, apalpei plantas secas e lisas, ramos ásperos e redondos, folhas lanceoladas, tenras ou enrijecidas. Todo o arsenal medicinal de nosso pregador vegetariano, o modelo inteiro de uma vida consagrada a recolher arbustos com as grandes mãos de São Cristóvão exuberante e andarilho. Revelado o mistério, dormi placidamente, velado pelo aroma daquelas ervas guardiãs.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Trago

Trago nas mãos o calor
Que deponho a cada instante
No teu rosto que aspira a primavera que se pisa no chão
E espera o outono das folhas e dos caminhos
E desce comigo ao sabor
Que à terra dá cada breve estação

Trago-te o calor e as mãos inteiras
E nos olhos o horizonte dos nevoeiros no enredo das
florestas
Das vinhas colhidas pêlos amantes reunidos à beira
das manhãs
E dos barcos e das pombas em planícies sem trincheiras

Trago para nós a largura das terras e do mar
Onde se perpetue o amor dos homens
Na paz de cada olhar.
Orlando Costa

Um sonho com Goethe

Sonhei que estava sentado numa sala de espera já fora de moda. A princípio sabia apenas que tinha uma entrevista marcada com alguma pessoa importante. Logo percebi que era o Sr. von Goethe quem iria receber-me. Infelizmente eu não estava ali em caráter pessoal, mas como correspondente jornalístico, o que muito me desagradava e não podia compreender por que demônios me tinham metido naquela enrascada. Além disso, estava preocupado com um escorpião que aparecia de vez em quando e tentava subir-me pela perna. É certo que saberia defender-me contra o negro rastejante, mas não sabia agora onde se escondera e não me atrevia a procurá-lo. Ademais, não estava muito certo se, por engano, me haviam anunciado a Matthinson, em vez de Goethe, a quem confundi de novo em sonhos com Bürger, pois lhe atribuía os poemas de Molly. Por outra parte, eu teria apreciado muito um encontro com Molly, pois a imaginava maravilhosa, delicada, musical. Se pelo menos não estivesse ali a mando daquele maldito jornal! Meu mau humor foi aumentando, aumentando, e pouco a pouco se concentrava sobre Goethe, a quem já intentava fazer várias reprovações. A entrevista talvez não se encaminhasse a bom termo. O escorpião, apesar perigoso e escondido bem próximo de mim, talvez não fosse tão mau assim; pareceu-me que podia significar também algo amistoso pareceu-me provável que tivesse algo a ver com Molly ser uma espécie de enviado seu, ou uma fera heráldina, belo e perigoso animal da feminilidade e do pecado. Não poderia chamar-se por acaso Vúlpius? Mas neste momento um criado abriu a porta, levantei-me e entrei. Lá estava o velho Goethe, baixo e muito ereto, trazendo no jeito clássico a enorme condecoração de alguma Ordem. Dava a impressão de que ainda governava, de que estava concedendo audiências, de que ainda controlava o mundo sentado em seu museu de Weimar. Pois mal olhou para mim, com um movimento de cabeça que lembrava um velho corvo, começou a falar pomposamente:
Com que então, vós, os jovens, não tendes grande apreço por nós e pelos nossos esforços?
Exatamente — disse eu, gelado pelo seu frio olhar ministerial. — Nós, os jovens, não estamos muito de acordo com Vossa Excelência. Sois demasiado solene para nós, demasiado vaidoso, demasiado auto-suficiente e pouco sincero Sem dúvida, este é o ponto capital: pouco sincero.
O homenzinho lançou a severa testa para a frente e enquanto sua boca dura e enrugada se distendia num leve sorriso e se tornava encantadoramente viva, o coração bateu-me com força, pois recordei a poesia “Desceu a tarde...” e que fora daquela boca e daquele homem que haviam brotado as palavras daquela poesia. Fiquei tão desarmado e vencido naquele instante que, sem dúvida, teria preferido ajoelhar-me diante dele. Mas me mantive de pé e ouvi-o dizer com um sorriso:
Então o senhor me acusa de insinceridade? Isso é coisa que se diga! Tenha a bondade de fazer-se mais explícito!
Eu estava contente em poder fazê-lo.
Como todos os grandes espíritos, Exmo. Sr. Goethe, o senhor claramente reconheceu e sentiu a dúvida e a desesperança da vida humana, com seus momentos de transcendência que vão afundar-se de novo na miséria, a impossibilidade de atingir-se a altura ideal dos sentimentos senão à custa de muitos anos de escravidão à labuta cotidiana; o ardente as pirar pelo reino do espírito em eterna luta mortal com o amor à perdida inocência da natureza, igualmente ardente e sagrado; todo este temeroso oscilar no vazio e na incerteza essa condenação ao transitório, incompleto, ao eternamente empírico e diletante; em suma, toda a falta de escopo a que o ser humano está condenado... para seu desespero devorador O senhor reconheceu tudo isso e houve tempo em que também o confessou, e no entanto consagrou toda sua vida a pregar o contrário, manifestando fé e otimismo e espalhando diante de si e dos demais a ilusão de que nosso esforço espiritual tinha algum significado e continuidade. O senhor fez ouvidos surdos àqueles que sondavam as profundezas e reprimiu as vozes dos que diziam a desesperada verdade, o que se aplica a Kleist e a Beethoven. Ano após ano, o senhor viveu em Weimar a acumular conhecimentos e a colecionar objetos de arte, a escrever cartas e a coletá-las, como se tivesse em sua idade provecta encontrado o verdadeiro caminho para eternizar o instante, embora só pudesse mumificá-lo, e a tentar espiritualizar a natureza, embora só conseguisse ocultá-la sob uma bela máscara. Esta é a insinceridade que nós lhe reprovamos.
O velho conselheiro olhou-me, pensativo, nos olhos, enquanto sua boca continuava a sorrir.
Logo perguntou, enchendo-me de admiração:
O senhor deve ter uma profunda objeção contra a Flauta Mágica de Mozart, não? E antes que eu pudesse responder, continuou:
A Flauta Mágica apresenta-nos a vida como se fora um canto prodigioso, celebra nossos sentimentos, ainda que transitórios como são, como algo divino e eterno, não estando pois de acordo nem com o Sr. Kleist nem com o Sr. Beethoven, já que predica a fé e o otimismo. — Já sei, já sei — gritei furioso. — Deus sabe que a Flauta Mágica que o senhor menciona é o que mais venero neste mundo! Mas Mozart não chegou aos oitenta e dois anos de idade, nem teve essas pretensões de continuidade, de ordem de rígida dignidade que o senhor teve. Não se deu tanta importância! Compôs suas divinas melodias e morreu; morreu cedo, pobre e desconhecido... O hálito me faltava. Quisera dizer mil coisas em dez palavras. Minha testa começou a suar. Goethe, no entanto, disse, muito amável:
Pode parecer imperdoável que eu tenha chegado aos oitenta e dois anos. Minha satisfação relativamente a esse fato é, entretanto, muito menor do que o senhor imagina. Tem razão quando afirma que sempre tive um grande anseio de perdurar; sempre vivi em luta contra a morte, temendo-a sempre. Creio que a luta contra a morte, a obstinação absoluta de querer continuar vivo, seja a força motivadora que jaz sobre as vidas e atividades de todos os homens representativos. Com meus oitenta e dois anos, meu jovem amigo, consegui provar apenas que o homem tem de morrer afinal, da mesma forma como teria morrido quando era um escolar. Se acaso servir de justificativa, queria dizer também que havia muito de infantilidade em minha natureza de curioso e muito desejo de matar o tempo em brincadeiras. E custei muito a dar-me conta de que o jogo haveria de acabar, afinal.
Ao dizer isso, sorria com muita sutileza, quase pilheriando. Sua figura tornara-se maior, desaparecera a rígida postura e a forçada dignidade de sua face. O ambiente que nos rodeava estava agora cheio de sonoras melodias, e harmoniosos lieder de Goethe; ouvi distintamente a Veilchen (Violetas), de Mozart e a Füllest wieder Busch und Tal (De Novo Enches o Bosque e o Vale), de Schubert. O rosto de Goethe estava agora cotado e jovem e sorria; parecia-se agora com Mozart, logo com Schubert, ou como se fora um seu irmão, e a roseta que havia em seu peito estava composta inteiramente de flores silvestres, com uma primavera amarela abrindo-se alegre e louçã no meio delas.
Não me agradou de todo que o ancião estivesse fugindo as minhas perguntas e reprovações daquela maneira tão irônica, e olhei para ele com olhar de censura. A isso, inclinou-se e aproximando de mim a boca que se havia tornado inteiramente infantil, sussurrou ao meu ouvido:
Meu amigo, levas o velho Goethe muito a sério. Não se devem tomar as pessoas idosas que já estão mortas demasiadamente a sério, pois seria cometer uma injustiça contra elas. Nós, os imortais, não gostamos de coisas que devem ser levadas a sério, preferimos gracejar. A seriedade, meu jovem é uma consequência do tempo; consiste, permito-me confiar-lhe, numa superestimação do tempo. Eu também, em minha época, dei valor demais ao tempo, por isso queria viver cem anos. Mas, na eternidade, como vês, não há tempo; a eternidade não é mais que um momento, cuja duração não vai além de um gracejo.
E, em verdade, já não se podia continuar falando a sério com o homem: dava pulos de contentamento, ágil e flexível, e logo deixou a primavera saltar de sua condecoração como se fosse um foguete para, em seguida, fazê-la encolher-se e desaparecer. Enquanto se exibia de um lado para outro com seus passos de dança e suas visagens, tive de admitir pelo menos que aquele homem não se havia esquecido de aprender a dançar. Fazia-o maravilhosamente. Então lembrei-me do escorpião, ou antes de Molly, e perguntei a Goethe:
Diga-me: Molly está aí?
Goethe riu sonoramente. Caminhou para a escrivaninha e abriu uma gaveta; tirou de dentro uma caixa de couro ou de veludo, abriu-a e colocou-a diante dos meus olhos. Dentro havia uma diminuta perna de mulher, perfeita e brilhante, repousando sobre o escuro fundo da caixa, uma perna encantadora, um pouco inclinada no joelho, estirando o pé para baixo e com os delicados dedos em ponta. Estendi a mão e quis apanhar a pequenina perna, que tanto me havia encantado, mas quando quis tomá-la entre os dedos me pareceu que o brinquedinho se movia com imperceptível movimento, e de súbito assaltou-me a suspeita de que podia ser o escorpião. Goethe pareceu compreendê-lo; parecia mesmo que o tivesse feito de propósito, com o fito de provocar aquela febril dissensão entre o desejo e o temor. Estendeu o provocante escorpião muito próximo do meu rosto, me viu desejá-lo, me viu retroceder horrorizado, e isto parecia causar-lhe grande prazer. Enquanto me provocava com o objeto encantador e perigoso, voltara a tornar-se novamente velho, convertera-se num ancião de mil anos, com os cabelos brancos como a neve; e o rosto enrugado de ancião sorria sereno e silencioso, um riso que lhe comovia as entranhas com o insondável humorismo dos velhos.
Quando despertei, havia esquecido o sonho, do qual só me recordei mais tarde. Dormira mais de uma hora, em meio à música e à algazarra, na mesa de um salão, como jamais julgara possível.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

Sempre há um melhor para o ruim

Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.
O pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em meditação inquieta, o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha saudade de quando era pequena – farofa seca – e pensava que fora feliz. Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que susto. Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim mesmo e – quem organizou a terra dos homens? Na certa mereceria um dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás não é entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo. Juro que nada posso fazer por ela. Afianço-vos que se eu pudesse melhoraria as coisas. Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de brutalidade pior que qualquer palavrão.
(Quanto a escrever, mas vale um cachorro vivo).
Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos de artifício. Ela quis mais porque uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é? Não havia meio – pelo menos eu não posso – de obter os multiplicantes brilhos em chuva chuvisco dos fogos de artifício. Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era. Quando via um, pensava com estremecimento de prazer: será que ele vai me matar?
Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profundo tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra. E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos. Mas como as roía quase até o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se o sujo preto por baixo.
E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser. Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair. A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um acaso na vida?
Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato que é um fato. É quando entro em contato forças interiores minhas, encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro. A nordestina não acreditava na morte, como eu já disse, pensava que não – pois não é que estava viva? Esquecera os nomes da mãe e do pai, nunca mencionados pela tia. (Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da Ordem e cair no abismo povoado de gritos: o Inferno da liberdade. Mas continuarei.) Continuando.
Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”, e nenhuma música, só pingava em som gotas que caem – cada gota de minuto que passava. E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para das anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse a precisar saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus. Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação. Mas nunca se sabe, quem espera sempre alcança. Ouvira também a informação de que o único animal que não cruza com filho era o cavalo.
Isso, moço, é indecência, disse ela para a rádio. Outra vez ouvira: “Arrepende-te em Cristo e Ele te dará felicidade”. Então ela se arrependera. Como não sabia bem de quê, arrependia-se toda e de tudo. O pastor também falava que vingança é coisa infernal. Então ela não se vingava.
Sim, quem espera sempre alcança. É?
Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas. Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de tanta interioridade, eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma prévia experiência de – de êxtase, digamos. A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela era santa? Ao que parece. Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais.
Mas tinha prazeres. Nas frígidas noites, ela, toda estremecente sob o lençol de brim, costumava ler à luz de vela os anúncios que recortava de jornais velhos do escritório. Colava-os no álbum. Havia um anúncio, o mais precioso, que mostrava em cores o pote aberto de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela. Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os olhos, ficava só imaginando com delícia: o creme era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria, isso sim, à colheradas no pote mesmo. É que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada. Tornara-se com o tempo apenas matéria vivente em sua fonte primária. Talvez fosse assim para se defender da grande tentação de ser infeliz de uma vez e ter pena de si. (Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E parece-me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos.)
Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor. Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente. Sempre há um melhor para o ruim. Mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe o que respiro.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

Os homens que contavam

Estava contando os dedos, para saber se tinha cinco ou seis, quando viu, no banco à sua frente, um homem contando os cabelos. Observou quietamente. Duas horas depois percebeu que o homem parecia aborrecido, sacudindo a cabeça, desanimado.
O que foi, perdeu a conta?
Perdi. Viu só? Tinha chegado ao 4.657 e me confundi com dois fios brancos. Preciso começar tudo de novo. – Tive sorte. A mim coube apenas contar os dedos.
Mais sorte teve um amigo meu. Ele precisa contar quantas bocas tem.
Você não acha uma bobagem essa nova lei de recenseamento total?
Acho. Principalmente porque estou perdendo um tempo desgraçado. Sabe há quanto tempo tento contar os cabelos? Seis semanas. Outro dia, consegui terminar. Acontece que era sexta-feira e as repartições estavam fechadas. Você sabe que elas funcionam um dia da semana, durante trinta e sete segundos? Daí, a fila diante do guichê é fenomenal. Na última vez que estive lá, tinha oito quilômetros de extensão. E esta fila é apenas daqueles que têm de contar os cabelos. Fiquei lá, com minha mulher levando marmitas e cobertores. Foi aí que descobri o problema. O meu cabelo estava caindo. Quer dizer que quando chegasse a minha vez diante do guichê, o número estaria errado. Se eu fosse escolhido para verificação, estaria perdido. Saí da fila e fui fazer tratamento. Gastei muito até conseguir o preparado que me conservasse o cabelo por algum tempo. Aí, o prazo estava esgotado. Paguei a multa. Doze salários mínimos, divididos em setenta e duas prestações na Tabela Price. Agora, estou contando outra vez, para me apresentar no dia quinze. E você? Contou todos os dedos?
Já. São dez nas mãos e dez nos pés. Cinco para cada mão. Cinco para cada pé. O problema é que o funcionário sempre tenta fazer com que a gente caia em contradição. Outro dia, um primo voltou da repartição muito confuso. Quase chorando. Tinha apresentado o seu relatório de dedos, confirmado por testemunhas. O homem do guichê verificou as testemunhas e descobriu que uma delas tinha ficha negra no serviço de proteção ao crédito. Daí, não podiam confiar em alguém condenado por mentira ao comércio. O relatório foi invalidado. Quando o meu primo voltou, o funcionário desconfiado pediu para ele apresentar mãos e pés. Descobriu uma verruga junto ao indicador esquerdo e perguntou:
O que é isto?
Uma verruga.
Não seria um dedo deformado?
Não! É uma verruga.
Quem sabe é o princípio de um novo dedo?
Não é. É uma verruga. Tenho há anos.
Você precisa de um certificado do Dr. Schol, provando que é verruga.
Onde consigo?
Nas lojas do Dr. Schol. Todas têm nossos formulários.
No entanto, você precisa ver as filas diante das lojas do Dr. Schol, uns provando que têm verrugas e não dedos, outros para certificar-se de que possuem calcanhar, e assim por diante. Tenho a impressão de que este recenseamento vai durar uma eternidade. Eles são muito rígidos.
Dizem que é necessário. Estão fazendo o levantamento total do país.
Para quê?
Não me pergunte! O melhor, hoje, é a gente saber pouco.
Saiu pela praça, onde as pessoas contavam bancos, folhas de árvores, postes, folhas de grama, flores, lâmpadas, cartazes, bancas de frutas, olhos, pernas, cabeças, ônibus, carros amarelos, carros brancos, carros de cada cor, bolinhas de vidro, doces nas vitrinas, gritos, apitos, sussurros, assobios, murmúrios, risos, palavras, arrotos, jornais, letras, sapatos, camisas amarelas, camisas brancas, camisas de cada cor, calças, cidades, estados, países, continentes, estrelas, planetas, galáxias, universos.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

Vício

Quem bebe da lua
Licor de prata (de amor!),
Haikai pela rua.
Ederson Peka

Nascimento e choro de Tita


Pães de Natal
INGREDIENTES:
1 lata de sardinha
½ chouriço
1 cebola Orégano
1 lata de chiles serranos (pimentões picantes)
10 teleras (pão mexicano ovalado e tostado)

MODO DE PREPARAR: 
 
A cebola deve ser picada bem fininha. Sugiro colocar um pedaço no alto da cabeça enquanto corta, com a finalidade de evitar o choro (que é muito irritante!). O problema em chorar quando se corta cebolas é não conseguirmos parar quando surgem as lágrimas. Não sei se isso já aconteceu a você, mas devo confessar que me ocorreu muitas vezes. Mamãe costumava dizer que eu era especialmente sensível a cebolas, como minha tia-avó Tita.
Diziam que Tita era tão suscetível a cebolas que chorava sem parar quando quer que fossem cortadas. Quando ainda estava na barriga de minha bisavó, seu choro era tão alto que Nacha, a cozinheira meio surda, podia ouvi-lo facilmente. Certo dia, os soluços foram tão violentos que adiantaram o trabalho de parto. E antes que minha bisavó pudesse dizer uma palavra, Tita chegou a este mundo prematuramente. Bem ali na mesa da cozinha, entre os aromas de sopa de macarrão cozinhando em fogo brando, de tomilho, de louro, de coentro, de leite fervido, de alho e, é claro, de cebola. Não houve necessidade da habitual palmada no traseiro, porque ela já estava chorando quando nasceu. Talvez porque soubesse que seu destino era ser impedida de casar. Nacha contava que Tita chegou a este mundo literalmente banhada em uma torrente de lágrimas que transbordavam da mesa ao chão da cozinha.
Naquela tarde, quando o alvoroço terminou e a luz do sol secou a água, Nacha lavou os resíduos deixados pelas lágrimas no chão de lajotas vermelhas. Havia sal o suficiente para encher um saco de cinco quilos, que foi utilizado para cozinhar por bastante tempo. Graças ao parto incomum, Tita apaixonou-se profundamente pela cozinha, onde passou a maior parte da vida desde o dia em que nasceu.
O pai de Tita, meu bisavô, morreu devido a um ataque do coração quando ela tinha apenas dois dias de vida. Com o choque, o leite de Mãe Elena secou. Como não havia leite em pó naquele tempo, e como não conseguiam encontrar uma ama de leite em lugar algum, estavam apavorados para satisfazer a fome do bebê. Nacha, que sabia tudo sobre culinária – e sobre muitas outras coisas que agora não vem ao caso –, ofereceu-se como encarregada da alimentação de Tita. Ela sentiu que seria a melhor oportunidade de “educar o estômago de uma criança inocente”, mesmo sem ter se casado ou tido filhos. Embora não soubesse ler ou escrever, conhecia tudo o que dizia respeito à comida. Mãe Elena aceitou a oferta, agradecida. Tinha muito a fazer entre o luto pelo marido e a enorme responsabilidade de administrar o rancho – e era o rancho que proveria seus filhos com a alimentação e a educação que mereciam – sem precisar se preocupar com a nutrição de uma recém-nascida.
Daquele dia em diante, a cozinha foi o domínio de Tita, onde ela cresceu vigorosa e saudável com uma dieta de chás e mingaus ralos de milho. Isso explica o sexto sentido que desenvolveu sobre tudo o que diz respeito à comida. Seus hábitos alimentares, por exemplo, eram afinados com a rotina da cozinha. De manhã, quando podia sentir o cheiro do feijão pronto; ao meio-dia, quando percebia que a água estava no ponto para depenar as galinhas; à tarde, quando se assava o pão do jantar, Tita sabia que era hora de ser alimentada.
Algumas vezes, chorava sem motivo algum, como quando Nacha cortava cebolas, mas já que ambas conheciam a causa daquelas lágrimas, não davam muita atenção. Faziam disso uma fonte de diversão, de modo que, durante a infância, Tita não fazia distinção entre lágrimas de alegria e de tristeza. Para ela, rir era uma forma de chorar.
Da mesma forma, a alegria de viver, para Tita, era embalada pelas delícias da comida. Não era fácil, para alguém cujo conhecimento da vida estava fundamentado na cozinha, entender o mundo externo. Aquele mundo era uma extensão infinita que começava além da porta da cozinha, enquanto o restante, considerando tudo o que estava na área próxima e além da porta dos fundos que levava ao pátio e à horta era completamente seu: eram os domínios de Tita.
Para suas irmãs, valia exatamente o contrário: o mundo de Tita parecia repleto de perigos desconhecidos, que temiam. Elas achavam que brincar na cozinha era algo tolo e imprudente. Mas, certa vez, Tita conseguiu convencê-las a assistir ao fascinante espetáculo das gotas de água saltando no comal, uma frigideira usada para assar tortillas de milho.
Enquanto Tita cantava e sacudia as mãos molhadas para fazer as gotas de água entrarem na frigideira e respingarem, Rosaura escondia-se em um canto, assustada com o espetáculo. Gertrudis, por sua vez, considerava a brincadeira tentadora e participava com o entusiasmo sempre demonstrado onde quer que ritmo, movimento e música estivessem envolvidos.
Depois, Rosaura tentara acompanhá-las, porém molhou pouco as mãos e sacudiu-as cautelosamente, então suas iniciativas não surtiam o efeito desejado. Tita procurou aproximar as mãos dela da frigideira. Rosaura resistiu. Cada uma tentou dominar a situação até que Tita se aborreceu e soltou as mãos da irmã, cujo impulso levou-as à frigideira. Tita levou uma surra terrível e foi proibida de brincar com as irmãs nos domínios daquele seu universo particular. Nacha tornou-se sua companhia para brincadeiras. Juntas inventavam jogos e atividades relacionadas à cozinha. Como no dia em que viram, na praça da cidade, um homem que produzia figuras de animais ao torcer longas bexigas cheias de ar, e decidiram fazer o mesmo com chouriços. Não se limitavam a reproduzir animais de verdade, elas inventavam criaturas próprias com o pescoço de um cisne, as pernas de um cachorro, o rabo de um cavalo e assim por diante.
Entretanto, havia problemas quando os animais precisavam ser desmontados para fritar o chouriço. Tita se recusava. Só concordava quando o destino do chouriço eram os pães de Natal que adorava. Nesse caso, não só permitia que seus animais fossem desmontados, mas assistia à fritura com alegria.
O chouriço para pães deve ser frito em fogo brando, de modo que seja inteiramente dourado sem ficar escurecido. Quando estiver no ponto, tire do fogo e acrescente as sardinhas, já sem as espinhas. Qualquer mancha preta na pele deve ser removida com uma faca. Misture as cebolas, as pimentas picadas e o orégano. Deixe a mistura descansar antes de rechear os pães.
Tita apreciava imensamente essa etapa; enquanto o recheio descansava, era muito prazeroso sentir o cheiro que se desprendia, pois aromas têm o poder de evocar o passado, trazendo de volta sons e até mesmo odores que não têm equiparação com as sensações do presente. Tita gostava de inspirar profundamente e deixar a fumaça e o aroma transportar seus pensamentos aos recônditos de sua memória.
Era inútil tentar relembrar a primeira vez em que sentiu o cheiro desses pães – ela não conseguia, possivelmente porque aconteceu antes de ter nascido. Pode ter sido a mistura incomum de sardinhas e chouriços que a impressionou e a fez decidir trocar a paz da existência etérea no ventre de Mãe Elena pela vida como sua filha, e assim ingressar na família De la Garza e compartilhar suas deliciosas refeições e seu chouriço maravilhoso.
Laura Esquivel, in Como água para chocolate

A insatisfação total

Devido a que anátema certas pessoas não se sentem à vontade em lugar nenhum? Nem com, nem sem o sol; nem com os homens, nem sem eles... Ignorar o bom humor - eis uma coisa desconcertante. Os homens mais infelizes - são aqueles que não têm direito à inconsciência. Ter uma consciência sempre alerta, redefinir sem parar suas relações com o mundo, viver numa tensão perpétua do conhecimento - isto nos leva a estar perdidos para a vida. Não vive acaso o homem a tragédia de um animal constantemente insatisfeito, suspenso entre a vida e a morte? Minha condição humana irrita-me profundamente. Se pudesse, eu renunciaria a ela sem pensar duas vezes; o que me tornaria então? Um animal? Não há marcha à ré possível. Além disto, eu arriscaria de me tornar um animal consciente da história da filosofia. Tornar-se um super-homem me parece uma impossibilidade e idiotice, um fantasma risível. A solução - aproximativa, certamente - não residiria numa espécie de supra-consciência? Não se poderia viver para além (e não aquém, no sentido da animalidade) de todas as formas complexas da consciência, dos suplícios e das ansiedades, dos problemas nervosos e das experiências espirituais, numa esfera de existência em que a ascensão à eternidade deixaria de ser um simples mito? Naquilo que me diz respeito, eu renuncio à humanidade: não posso, nem quero, permanecer humano. O que me restaria a fazer enquanto tal - servir um sistema social e político, ou ainda, causar a infelicidade de uma pobre garota? Trilhar as inconsequências dos vários sistemas filosóficos ou dedicar-me a realizar um ideal moral e estético? Tudo isto me pareceria ridículo - nada poderia me tentar. Eu renuncio à minha condição de homem, sob o risco de me encontrar sozinho nos degraus que quero subir. Acaso já não estou sozinho neste mundo do qual nada espero? Para além das aspirações e ideais correntes, uma supra-consciência forneceria, provavelmente, um espaço em que se possa respirar. Ébrio de eternidade, eu esqueceria a futilidade deste mundo; nada mais viria atrapalhar um êxtase em que o ser seria tão puro e imaterial quando o não-ser.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

terça-feira, 27 de novembro de 2018

No meio da rua, não

Mas por que você não deita as suas ideias por escrito? — digo-lhe. Ele entrepara, não sabe se ofendido ou lisonjeado. Explico-lhe:
É que, por escrito, a gente pode ler em casa com todo o tempo…
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

O ciclista

Eu não tenho pai, só tenho mãe. Quer dizer, eu tinha pai, mas ele largou a minha mãe quando eu tinha seis anos e foi ela quem me criou. Isso não é nada de mais, na escola pública primária onde estudei a maior parte das crianças era criada pelas mães, os pais também tinham sumido. Um dia eu achei um retrato do meu pai na gaveta da minha mãe. As mulheres são incríveis, ele batia nela, corneava ela, largou ela com filho pequeno, e a minha mãe guardava o retrato dele. Peguei o retrato, rasguei em mil pedacinhos, joguei na privada, mijei em cima e dei a descarga. Nem me lembro como era a cara dele, nem no retrato nem antes.
Quando terminei o curso primário, arranjei um emprego para ajudar a minha mãe. De bicicleta eu fazia a entrega de produtos de beleza de uma firma que não tinha loja, só anunciava pela internet. O nome era Slim Beauty, acho que é assim que se escreve, é inglês, creio que significa beleza e magreza. Mas quando eu tocava a campainha das casas para entregar os pacotes, as mulheres que abriam a porta estavam cada vez mais gordas.
Meu patrão era um sujeito legal, mais magro do que eu, careca, nariz torto, me levou com ele para escolher a bicicleta que eu ia usar. Escolhi uma com pneu bem grosso, uma bicicleta pesada, eu gostava de fazer exercício. Meu patrão, o seu Zeca, me deixava levar a bicicleta para casa.
Andando de bicicleta pela cidade a gente tem uma boa ideia do mundo. As pessoas são infelizes, as ruas são esburacadas e fedem, todo mundo anda apressado, os ônibus estão sempre cheios de gente feia e triste. Mas o pior não é isso. O pior são as pessoas más, aquelas que batem em crianças, que batem em mulheres, urinam nos cantos das ruas. Andando na minha bicicleta, vejo tudo isso e chego em casa preocupado, e minha mãe pergunta o que aconteceu, você está triste, e eu respondo não é nada, não é nada. Mas é tudo, é eu não poder ajudar ninguém, hoje mesmo vi uma velhinha ser assaltada por dois moleques e não fiz nada, fiquei olhando de longe, como se aquilo não fosse assunto meu. Será que eu vou ser igual ao meu pai, um covarde filho da puta que não teve coragem de enfrentar a trabalheira de criar uma família e fugiu? É isso? Vou ser um cagão igual a ele?
Nessa noite não dormi. No dia seguinte, depois de fazer a entrega da última encomenda para uma senhora gorda ― essas gordas sempre dão gorjeta ―, estava voltando para casa quando vi um homem barbudo batendo num garotinho. Ele dava tapas na cara com tanta força que o barulho me chamou a atenção. Acho tapa na cara, ainda mais com aquela força, pior do que soco, porque é uma coisa, além de dolorosa, humilhante, um garotinho que cresce levando tapa na cara quando adulto vai ser um pobre-diabo. Dei a volta, pedalei com força e, controlando a direção com mão firme no guidão, atropelei o filho da puta, bem entre as pernas, e ele caiu no chão gemendo, e eu ainda passei por cima da cara dele.
Como consegui tudo isso? Faço misérias com uma bicicleta. Ando em cima dela o dia inteiro, sou capaz de descer escada e até mesmo subir alguns degraus. O pneu grosso dela me ajudou semana passada a arrebentar uma cerca de madeira. Por isso arrebentar os cornos do canalha que esbofeteava o menino não foi tão difícil.
Outro dia, depois de ter feito outra entrega, a sorte sorriu para mim, como diz a minha mãe, que vê muita novela na televisão, e esse papo só pode ser de novela, a sorte sorriu para mim. Encontrei os dois moleques que haviam assaltado a velhinha seguindo outra na rua. Pedalando mais depressa passei rente a um deles e dei-lhe um soco na nuca. O puto caiu estatelado no chão. Depois de uma freada, voltei e arremeti em cima do outro dando uma pancada violenta na barriga dele com o guidão.
Fiz tudo isso me equilibrando em cima das duas rodas, como um desses caras que trabalham no circo. Para falar a verdade, meu desejo secreto, todo mundo tem um desejo secreto, meu desejo secreto é trabalhar num circo dando voltas de bicicleta dentro do Globo da Morte. Sim, eu sei que isso é feito com uma motocicleta, mas eu acho que posso fazer o mesmo na minha bicicleta.
A velhinha nem viu que eu a salvei daqueles dois sacripantas ― quem fala assim também é a minha mãe, aprendeu isso quando trabalhou na casa de uma senhora portuguesa. Minha mãe me explicou que sacripanta é uma pessoa capaz das mais abjetas ações e de todas as indignidades e violências. A velhinha continuou andando pela rua com o seu passinho miúdo, segurando a bolsa com as duas mãos.
Não sei o que deu em mim. Uma crise de megalomania? Como disse o meu patrão ao afirmar que vai ser o maior fabricante de produtos de beleza do Brasil, e eu perguntei se ia demorar para isso acontecer, e ele respondeu, esquece, meu filho, não acredite nisso, é uma crise de megalomania, e quando perguntei o que era megalomania, ele disse que era mania de grandeza, coisa de maluco.
Eu estou ficando maluco? Todo dia fico procurando em cima da minha bicicleta alguma pessoa má para punir. Os maus devem ser punidos, e não digo isso como um coroinha falando na igreja, mesmo porque eu nunca vou à igreja, nem digo isso como se fosse um tira, nem digo isso porque o meu pai abandonou a família quando eu tinha seis anos, nem digo isso porque minha mãe está desdentada e eu vou pelo mesmo caminho, eu digo isso porque odeio gente má. E sei quando a pessoa é má só de olhar para a cara dela.
Hoje à noitinha passei por um homem na rua carregando uma saca e pelo perfil notei que ele era mau. Dei a volta para ver a cara dele de frente. Sim, ele era mau, muito mau. Adiantei a minha bicicleta, retornei e fiquei parado de frente para ele. Ficamos olhando um para o outro, ele um tanto ou quanto surpreso, com aquele menino olhando-o fixamente. Então comecei a pedalar furiosamente dirigindo minha bicicleta para cima dele, o cara meteu a mão na saca, tirou um revólver, mas, nesse momento, eu acertei os colhões dele com os pneus e em seguida atingi a barriga dele com o guidão. Ele caiu desmaiado. Saltei da bicicleta e peguei o revólver, que estava no chão. Dei dois tiros para o alto. Eu não tenho telefone celular e achei que aquela era uma boa maneira de chamar a polícia. Pouco depois chegou um carro da polícia e um carro de reportagem de um jornal. Expliquei que o sujeito estava andando com um revólver na mão e que eu decidira fazer alguma coisa, pois ele certamente era um bandido. Claro que eu disse uma pequena mentira, essa do revólver na mão, mas eu não podia dizer que sabia pela cara quais as pessoas que eram más.
O sujeito era um bandido procurado pela polícia, e o jornal publicou uma foto em que eu aparecia montado na minha bicicleta e embaixo escrito: “O jovem herói.”
Não estou interessado em ser o jovem herói. Estou interessado em punir as pessoas más e isso eu pretendo continuar fazendo. A menos que seja convidado para fazer no circo o Globo da Morte na minha bicicleta.
Rubem Fonseca, in Amálgama

O telhado

Em janeiro choveu a potes na cidade, mas onde choveu dez vezes mais do que em outro lugar qualquer foi na Rocinha. Isso me garantiu Biguá, uma semana depois da enchente trágica. Apareceu arrasado, no escritório. Seu barraco não rolou no abismo porque Deus não quis, ou porque, a certa altura, achou que era exagero ferir assim um humilde. Mas o quartinho das crianças ficou sem telhado, os móveis fugiram na correnteza, e se vier outro toró…
Coragem, Biguá. Pelo menos, não morreu ninguém em casa.
Não morreu, porque pobre não morre, senão acabava a pobreza na Terra.
Os colegas ajudaram Biguá como foi possível, com roupas e um dinheirinho; não era o único atingido pela calamidade. As precisões mais urgentes foram atendidas. Restava reconstruir o barraco, e a Caixa Econômica veio em auxílio dos flagelados, seiscentos mil cruzeiros de empréstimo a cada um.
Para mim ela não vem, que eu não tenho pistolão. Já morei na jogada.
De qualquer jeito, taca o pedido, Biguá.
Vou tacar, mas sei que é bobagem. Vê lá se eles dão pelota a um joão-ninguém como eu.
Dias depois, com o sorriso amargo e triunfante do pessimista, comentava:
Eu não falei? Os engenheiros estiveram lá, viram uma porção de barracos, nem pararam na minha porta.
Mais uma semana, duas, os engenheiros pararam, assuntaram, tomaram apontamento, mas Biguá mantinha-se cético:
Qual. Seiscentos contos, que é bom, eles não me dão.
E os meninos — sete — dormindo na casa arruinada, à luz das estrelas, quando havia estrelas. Se chovia, era um corre-corre assustado, para tirar os colchões, defender os pobrezinhos. E o vento, mosquitos, todos os males e perigos da noite, cercando a família de Biguá.
Como é? Já chegou o tutu?
Não chegou nem chega nunca. Eu sabia que era só pra uns, os folgados. Isso não endireita não.
Os acontecimentos passam mais depressa do que o tempo, e o tempo vai na chispada. Quem se lembra hoje do terrível janeiro? Vaga recordação, se tanto, daqueles dias e noites de pesadelo. Os que sofreram e escaparam não se queixam mais. Até Biguá, o ácido, o inconformado e descrente, silenciou — ou são os colegas que já não lhe dão ouvidos à plangência.
Até que afinal, em dia de pouco serviço ou pouca novidade, à hora do cafezinho, alguém bole naquelas horas medonhas que o Rio passou, desabamentos, mortes, a comoção geral, o impacto.
Ah, é verdade, Biguá, e aquele empréstimo da Caixa Econômica, hem? Você recebeu?
Custou muito, mas recebi. Mixaria.
Quer dizer que teu barraco foi consertado, e você nem contou pra gente.
Não deu pra consertar nada.
Espera aí, rapaz, seiscentos contos! Ou você queria trocar por um duplex?
Vocês estão debochando, porque não conhecem meu barraco. Não adiantava botar telhado novo. Quem chegava lá e via a pobreza, nem olhava pra cima: baixava a cabeça. Eu tinha tristeza quando as colegas de minhas garotas iam estudar ou bater papo. Pobreza é apelido.
E que é que você fez com o dinheiro?
Que que eu fiz? Que que eu podia fazer? Me ofereceram uma televisão e uma geladeira de segunda mão, negócio bacana, todo mundo lá na Rocinha tem esses troços, só eu não tinha, dei quinhentos e oitenta contos pelos dois, foi isso que eu fiz. O telhado não tem jeito não, eu sei que não dou sorte, fico só pensando noutra enchente!
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

O novelo ensarilhado

Um dos meus momentos mais antigos é o seguinte: estou sentado, de braços estendidos, frente à minha mãe que vai enrolando um novelo de lã a partir de uma meada suspensa nos meus pulsos. Eu era menino, mas aquela tarefa era mais que uma incumbência: eu estava dando corpo a um ritual antiquíssimo, como se houvesse antes de mim uma outra criança em cujos braços se enrolava o mesmo infinito fio de lã. Esta persistente lembrança, que eu saboreio como uma sombra eterna, é quase uma metáfora do trabalho da memória: um fio tênue, juntando-se a outros fios que se enroscam num redondo ventre.
Revisito este momento como uma primeira pedra deste texto. Este é um encontro sobre memórias e eu começo com uma lembrança que me inaugura a mim, enquanto produtor de memórias e outras falsidades. Regressarei, mais tarde, ao novelo de lã e ao infinito sossego da minha casa de infância.
Fomos aqui chamados para falar de história e de memórias, de paz e de guerras. Como se, enquanto escritores, tivéssemos uma competência particular nestes domínios.
Num romance que estou escrevendo há uma personagem a quem perguntam: “E onde irás ser sepultado?”. E ela responde: “A minha sepultura maior não mora no futuro. A minha cova é o meu passado”.
De fato, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.
Falar de guerras é um assunto nada pacífico. Falar de memórias é um assunto cheio de esquecimento. É estranho olhar-se o escritor que cuida do passado como um guardião do cais, alguém que fiscaliza as amarras dos barcos. De fato, o escritor é alguém que solta o barco e convida para a errância da viagem. Sempre que invoca o passado, o escritor está construindo uma mentira, está inventando um tempo que está fora do Tempo. Este estatuto de mentirosos que mentem para serem acreditados deve ser ressalvado num debate como este. Caros amigos e colegas, verdadeiros colegas do ofício da mentira:

No primeiro dia deste congresso, o José Luis Cabaço perguntou por que é que os nossos escritores não usam a luta armada de libertação nacional como sua fonte de inspiração.
Felizmente ele levantou essa questão numa mesa anterior, em que o tema era outro e a resposta ficou adiada. Se tivesse de responder, nessa altura, eu diria: porque é muito próximo no tempo e porque é muito próximo do sonho. Responderia que essa luta foi sentida como uma ficção, foi vivida como uma narrativa épica. Estamos perante um desses casos em que a personagem engole o narrador, o herói devora o autor.
Mas a pergunta foi feita há dois dias e, em casa, eu pensei que poderiam existir outros motivos. E creio que, na realidade, existem. Um destes motivos é que, sendo próxima no tempo, a luta armada de libertação se afastou da sua anterior proximidade afetiva. A narrativa deste processo histórico foi sendo apropriada por um discurso de exaltação e ganhou demasiada solenidade. A epopeia perdeu sedução e passou a ser figurada apenas por heróis que têm nomes nas ruas e praças, mas que não têm rosto nem voz. Herdamos uma história heroica de heróis sem história. Personagens sobre-humanas destronaram as pessoas comuns, essa gente humilde que teve medo, que hesitou, que namorou, que se tornou semelhante a todos nós.
Na verdade, a pergunta do meu amigo Cabaço pode estender-se a várias outras guerras e outros episódios épicos do nosso país. Onde estão as histórias dessa História com H maiúsculo? Não existem. Ou talvez existam em confins secretos, mas é preciso atravessar desertos para as descobrir.
De fato, nós não esquecemos apenas a luta de libertação nacional. Nós esquecemos a recentíssima guerra de desestabilização, cujo drama ainda ecoa no nosso quotidiano. Nós esquecemos as guerras de resistência colonial, esquecemos as guerras contra ocupações regionais (como a desencadeada contra os invasores ngunis), esquecemos as guerras dos prazeiros contra as autoridades coloniais. E esquecemos com comprovada eficácia a guerra secular contra a escravatura. Este desmemorial é longo e comprova que somos peritos na arte do esquecimento.
Por que tanta competência no olvido, por que este sistemático apagar de pegadas do tempo? A resposta mais simples está na ausência da escrita. Em termos de registo temporal, nós estamos no território de ninguém: os testemunhos da oralidade ou ainda não se fizeram ou já se perderam. Esta é, certamente, a grande justificação. Mas a ausência da escrita não pode explicar tudo. Não pode explicar, por exemplo, a espantosa amnésia colectiva que apagou os sinais exteriores e interiores da recente guerra civil.
Eu creio que é preciso procurar outras respostas. Não é apenas a hegemonia da oralidade que nos impede de fixar os acontecimentos que nos fizeram desacontecer e voltar a acontecer. É preciso uma outra hipótese que explique esta estranha necessidade de excluirmos o passado da nossa mitologia caseira. À boa maneira africana, nós não sabemos fazer do passado um nosso antepassado.
Acredito que essa hipótese alternativa possa ser resumida da seguinte maneira: esquecemos as nossas guerras porque, em todos esses conflitos, não estivemos todos do mesmo lado. Esquecemos esses conflitos porque em todos eles nos distribuímos entre vencidos e vencedores. Esquecemos porque não éramos ainda esta entidade que somos hoje (moçambicanos, habitantes da mesma casa existencial que é a nação moçambicana). Esses outros que já fomos têm dificuldade em transitar para a categoria daqueles que “somos” no presente. Fomos “eles” e mantemo-nos na terceira pessoa para continuarmos a ser “nós”, esta entidade colectiva que nasceu de guerras que se esquecem de si mesmas. Não sabemos sepultar dentro de nós aquilo que de nós foi falecendo. Não temos na nossa alma lugar para esses cemitérios vivos que são as memórias socialmente credenciadas.
Comecemos pela luta de libertação nacional. Quando a Frelimo desencadeou a insurreição geral armada foi difundido um apelo de mobilização que dizia, a certo passo: Operários e camponeses, trabalhadores, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres…
Esta menção particular aos soldados moçambicanos nas fileiras portuguesas merece explicação. No exército colonial português chegou a haver 60 mil soldados. Destes, mais de metade eram moçambicanos. Estou certo de que, na totalidade dos dez anos que durou a luta de libertação, havia mais moçambicanos lutando nas fileiras do exército colonial do que nas fileiras nacionalistas. Durante este mesmo período, dezenas de milhares de moçambicanos integraram não apenas o exército regular colonial, como deram corpo a forças paramilitares como os Flechas, os Grupos Especiais, a OPVDC e os Grupos Especiais de Pára-quedistas. Para não falar dos que integraram a Pide. Numa palavra, e sem mais contas: estivemos dos dois lados da guerra, fomos vítimas e culpados, anjos e demônios.
Mas essa distribuição pelo paraíso e pelo inferno não ocorreu apenas na luta de libertação nacional. Aconteceu nas lutas de resistência em que frequentes vezes, naquilo que viria a ser o território moçambicano, nações inteiras se aliavam aos portugueses para resistir contra ameaças internas e externas. Entre os séculos XVII e XIX as tropas coloniais sempre foram compostas por uma maioria de soldados negros. O herói da resistência anticolonial Gungunhana (tão bem retratado em Ualalapi) foi, ao mesmo tempo, coronel do exército português. No seu quartel-general esteve hasteada a bandeira lusitana. Muitos dos outros candidatos a heróis da resistência (como Farelay de Angoche) não podem ser cantados sob risco de despertarem fantasmas dos que foram escravizados por essas mesmas personagens.
A mesma dificuldade isentou de registo narrativo o longo e dramático período da escravatura. Por que não temos memória dessa tragédia? A resposta pode ser: é que nós fomos, ao mesmo tempo, escravos e esclavagistas.
Em suma, em toda a nossa história vencidos e vencedores se imiscuíram e agora nenhum deles quer desenterrar tempos carregados de culpa e de ressentimento. Há nesta reserva uma economia de paz, uma mediação de silêncios, cuja inteligência não pode ser minimizada.
O passado é sagrado porque é moradia dos mortos. Para se ter acesso a esse respeitoso átrio é necessário um mito fundador partilhado em consenso. Falta-nos esse password comum que nos devolva o tempo e, ao mesmo tempo, nos liberte do remorso e da necessidade de perdoarmos e sermos perdoados. A nossa comissão da verdade trabalha por ausência e na pressa de começar um novo texto usa apenas a tecla do delete.
Poder-se-ia pensar que o nascimento da nação (este que ainda vivemos) fosse o momento mais apropriado para recolher e reinventar o nosso comum patrimônio de lembranças. Mas acontece exatamente o contrário. Este é o período mais frágil, onde sabemos possível a emboscada do julgamento passadista. Em todos os países do mundo sucedeu o mesmo: o início da narrativa da nação nasceu daquilo que alguns chamaram de “sintaxe do esquecimento”. Os processos de aglutinação homogênea sugerem que diferentes comunidades se esqueçam de si mesmas, e os diversos grupos abdiquem das suas singularidades. Somos uma mesma nação porque esquecemos as mesmas coisas da mesma maneira.
É preciso vazar de lembranças o território simbólico da nação para o poder povoar de novo, preenchendo o imaginário de formas novas, num espelho que mostra não tanto o que somos, mas o que poderemos ser. Na pressa de termos futuro, atiramos fora os degraus do caminho percorrido. Todos experimentamos isso recentemente. Com o processo da Independência esquecemos que tínhamos raça, tribo, individualidade. Mesmo que fosse uma falsa amnésia, o facto é que ela foi vivida com a intensidade de uma verdade.
Regresso ao primeiro episódio da minha fala, essa lembrança do modo como eu enovelava fios de lã nas mãos da minha mãe. Para agora, já em final de fala, confessar o seguinte: esse momento tão cheio de sossego tem uma outra versão. Se perguntarem à minha mãe ela dirá que aquilo era um inferno. É assim que ela me responde ainda hoje: “Tu não paravas quieto, queixavas-te que aquilo não era tarefa para um rapaz e eu tinha que te dar umas sapatadas para não ensarilharmos o novelo”.
Esta é a lição: aprendi que se eu quero celebrar a casa, essa que depois de tantas casas é a minha única casa, eu não posso sentar todas as lembranças junto de minha velha mãe. Um de nós tem de esquecer. E acabamos esquecendo os dois, para que a antiga casa possa renascer na penumbra do tempo. Para não ensarilharmos o novelo da memória.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

Chineses

Chu En-lai não devia ser um bom garfo. Primeiro, porque os revolucionários são geralmente pessoas ascéticas que preferem ir direto ao núcleo das coisas e têm pouca paciência com temperos, molhos e outros prazeres do supérfluo. É difícil saborear o mundo quando se está tentando transformá-lo. Segundo, porque tinha que dar um exemplo de frugalidade às massas chinesas, renunciando à fartura, às receitas exóticas e à massa chinesa. E terceiro, porque na China ninguém usa garfo, é só pauzinho. E não ficaria bem chamar o primeiro-ministro de “um bom palito”. Mas desconfio que, enquanto Mao não enganava ninguém no seu entusiasmo pela mesa sortida, Chu preferia dissimular um secreto gosto pelo rigorismo clássico da melhor cozinha chinesa. Em particular, discretamente, naqueles momentos em que o homem se recolhe com dois ou três fantasmas e os seus hábitos mais íntimos, Chu devia ser um bom e seletivo palito.
Pois, se a grande cozinha da França é o resultado de um nobre compromisso histórico entre o francês e o seu próprio fígado, a cozinha italiana um pretexto para reunir a família e falar com a boca cheia, a alemã uma permanente precaução contra os rigores do inverno e outras exigências de calorias e vitalidade e a suíça uma indefinível combinação de tudo isto, a cozinha chinesa é a única que fala ao cérebro antes de fazer qualquer outro apelo. A notória falta de substância da comida chinesa (tradicionalmente, você está com fome de novo depois do maior banquete chinês) é uma prova de que é feita para os sentidos — a visão, o olfato, o paladar — e não para os instintos. Depois de ingerida, é como se nunca tivesse existido. Diante de uma coleção de pratos chineses você não está a ponto de se alimentar, você está “às vésperas de experimentar alguns dos milhares de possibilidades de percepção humana do mundo vegetal e animal”, e bota molho de soja nisso. E se no fim tudo vira bolo fecal mesmo, a culpa é de como nós somos feitos, não é dos chineses.
A variedade é a característica mais atraente da cozinha chinesa — ou das cozinhas clássicas chinesas, pois elas também variam de região para região. Os extremos do acre e do doce no mesmo prato, a combinação de opostos para que a antítese seja descoberta em cima da língua... A dialética chinesa precedeu em alguns séculos a dos filósofos alemães. E a prática de fritar com uma imersão rápida, de segundos, no óleo fervendo, que os minceurs franceses estão recém-descobrindo, já era história antiga na China quando na França ainda catavam raízes.
Era só olhar para a cara do velho Chu para saber que ele não apenas apreciava a boa cozinha do seu país como até tinha aprendido com ela. Era uma cara inteligente.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora