domingo, 30 de setembro de 2018

Um bolo que cresce

Então vieram a Revolução Científica e a ideia de progresso. A ideia de progresso se baseia na noção de que, se admitirmos nossa ignorância e investirmos recursos em pesquisa, as coisas podem melhorar. A ideia logo foi traduzida em termos econômicos. Quem acredita no progresso acredita que descobertas geográficas, invenções tecnológicas e avanços organizacionais podem aumentar a soma total da produção, do comércio e da riqueza humana. Novas rotas de comércio no Atlântico puderam florescer sem arruinar as velhas rotas no oceano Índico. Novos produtos puderam ser produzidos sem reduzir a produção dos velhos. Por exemplo, alguém podia abrir uma nova padaria especializada em bolos de chocolate e croissants sem fazer com que as padarias especializadas em pães fossem à falência. Todo mundo simplesmente desenvolveria novos gostos e comeria mais. Eu posso ser rico sem que você fique pobre; posso ser obeso sem que você morra de fome. O bolo do mundo inteiro pode crescer.
Nos últimos 500 anos, a ideia de progresso convenceu as pessoas a confiarem cada vez mais no futuro. Essa confiança gerou crédito; o crédito trouxe crescimento econômico real; e o crescimento fortaleceu a confiança no futuro e abriu caminho para ainda mais crédito. Não aconteceu da noite para o dia: a economia se comportou mais como uma montanha-russa do que como um balão. Mas, no longo prazo, com os obstáculos nivelados, a direção geral era inequívoca. Hoje, há tanto crédito no mundo que governos, corporações e indivíduos facilmente obtêm empréstimos grandes, de longo prazo e a juros baixos que excedem muitíssimo a receita atual.
A crença no crescimento do bolo global acabou por se tornar revolucionária. Em 1776, o economista escocês Adam Smith publicou A riqueza das nações, provavelmente o manifesto econômico mais importante de todos os tempos. No oitavo capítulo de seu primeiro volume, Smith apresentou o seguinte argumento original: quando um proprietário de terras, um tecelão ou um sapateiro tem mais lucro do que precisa para manter a própria família, ele usa o excedente para empregar mais assistentes, a fim de aumentar seu lucro. Quanto mais lucro tiver, mais assistentes pode empregar. Daí decorre que um aumento no lucro dos empreendedores privados é a base para o aumento na riqueza e prosperidade coletivas.
Isso talvez não soe tão original, porque todos vivemos em um mundo capitalista no qual o argumento de Smith é tido como algo natural. Ouvimos variações sobre esse tema todos os dias nos noticiários. Mas a afirmação de Smith de que o desejo humano egoísta de aumentar o lucro privado é a base para a riqueza coletiva é uma das ideias mais revolucionárias na história humana – revolucionária não só de uma perspectiva econômica como também de uma perspectiva moral e política. O que Smith afirma é, na verdade, que a ganância é algo bom e que ao ficar mais rico eu beneficio a todos, e não só a mim mesmo. Egoísmo é altruísmo.
Smith ensinou as pessoas a pensarem na economia como uma situação em que todos ganham, em que meus lucros são também seus lucros. Não só ambos podemos desfrutar de uma fatia maior de bolo ao mesmo tempo, como o aumento da sua fatia depende do aumento da minha fatia. Se sou pobre, você também será pobre, porque eu não posso comprar seus produtos ou serviços. Se sou rico, você também enriquecerá, já que agora pode me vender alguma coisa. Smith negou a contradição tradicional entre riqueza e moralidade e escancarou os Portões do Céu para os ricos. Ser rico significava ser moral. Na história de Smith, as pessoas ficam ricas não saqueando os vizinhos, e sim aumentando o tamanho do bolo. E quando o bolo cresce, todos se beneficiam. Os ricos são, portanto, as pessoas mais úteis e benévolas da sociedade, porque impulsionam o crescimento em benefício de todos.
Tudo isso depende, entretanto, de os ricos usarem seus lucros para abrirem novas fábricas e contratarem novos empregados, em vez de desperdiçá-los em atividades não produtivas. Smith, portanto, repetiu como um mantra a máxima de que “quando os lucros aumentam, o proprietário de terras ou o tecelão empregam mais assistentes”, e não “quando os lucros aumentam, Scrooge guarda seu dinheiro em um cofre e só o tira de lá para contar as moedas”. Uma parte crucial da economia capitalista moderna foi o surgimento de uma nova ética, segundo a qual os lucros tinham de ser reinvestidos na produção. Isto mais uma vez é investido na produção, o que gera mais lucro, et cetera ad infinitum. Os investimentos podem ser feitos de muitas maneiras: aumentando a fábrica, realizando pesquisas científicas, desenvolvendo novos produtos. Mas, de alguma forma, todos esses investimentos devem aumentar a produção e se traduzir em lucros maiores. No novo credo capitalista, o primeiro e mais sagrado mandamento é: “Os lucros da produção devem ser reinvestidos no aumento da produção”.
É por isso que o capitalismo é chamado de “capitalismo”. O capitalismo distingue o “capital” da mera “riqueza”. O capital consiste de dinheiro, bens e recursos que são investidos na produção. A riqueza, por outro lado, é enterrada debaixo do solo ou desperdiçada em atividades improdutivas. Um faraó que destina recursos a uma pirâmide improdutiva não é um capitalista. Um pirata que rouba uma frota de tesouro espanhola e enterra um cofre cheio de moedas brilhantes na praia de alguma ilha caribenha não é um capitalista. Mas um operário diligente que reinveste parte de sua renda na bolsa de valores, sim.
A ideia de que “os lucros da produção devem ser reinvestidos no aumento da produção” parece trivial. Mas foi uma ideia estranha à maioria dos povos ao longo da história. Em épocas pré-modernas, as pessoas acreditavam que o nível da produção fosse mais ou menos constante. Então, por que reinvestir seus lucros se a produção não crescerá muito, não importa o que você faça? Desse modo, os nobres da Europa medieval adotaram uma ética de generosidade e consumo ostensivo. Eles gastavam suas receitas em torneios, banquetes, palácios e guerras, e em caridade e catedrais monumentais. Poucos tentavam reinvestir os lucros para aumentar a produção de suas terras, desenvolver espécies melhores de trigo ou procurar novos mercados.
Na era moderna, a nobreza foi substituída por uma nova elite cujos membros acreditam verdadeiramente no credo capitalista. A nova elite capitalista é composta não de duques e marqueses, mas de presidentes de conselhos, corretores de ações e industrialistas. Esses magnatas são muito mais ricos que os membros da nobreza medieval, mas estão muito menos interessados em consumo extravagante e gastam uma parte muito menor de seus lucros em atividades não produtivas.
Os nobres medievais usavam mantos coloridos de ouro e prata e dedicavam grande parte de seu tempo a banquetes, carnavais e torneios glamorosos. Em comparação, os altos executivos modernos usam uniformes sombrios chamados ternos que lhes conferem todo o penacho de um bando de corvos e têm pouco tempo para festividades. O capitalista típico corre de uma reunião de negócios para outra, tentando decidir onde investir seu capital e seguindo as altas e baixas dos títulos e ações que possui. É verdade, seu terno talvez seja um Versace, e ele talvez viaje em um jato particular, mas essas despesas não são nada se comparadas com o que ele investe no aumento da produção humana.
Não só os magnatas usando Versace investem para aumentar a produtividade. Pessoas comuns e órgãos do governo pensam de maneira similar. Quantos jantares em bairros modestos mais cedo ou mais tarde se envolvem em um debate interminável sobre se é melhor investir as economias pessoais no mercado de ações, em títulos ou em propriedades? Os governos também se esforçam para investir a receita proveniente dos impostos em atividades produtivas que aumentarão a receita futura – por exemplo, construir um novo porto poderia facilitar a exportação de produtos, permitindo às fábricas gerar mais renda tributável, aumentando assim as receitas futuras do governo. Outro governo talvez prefira investir em educação, sob a justificativa de que pessoas instruídas são essenciais para indústrias lucrativas de alta tecnologia, que pagam muitos impostos sem demandar grande infraestrutura portuária.
O capitalismo começou como uma teoria sobre como a economia funciona. Era ao mesmo tempo descritivo e prescritivo – oferecia um relato de como o dinheiro funcionava e promovia a ideia de que reinvestir os lucros na produção leva a um rápido crescimento econômico. Mas, pouco a pouco, o capitalismo se tornou muito mais do que uma doutrina econômica. Hoje engloba uma ética – um conjunto de ensinamentos sobre como as pessoas devem se comportar, educar seus filhos e até mesmo pensar. Sua doutrina fundamental é que o crescimento econômico é o bem supremo, ou pelo menos uma via para o bem supremo, porque a justiça, a liberdade e até mesmo a felicidade dependem do crescimento econômico. Pergunte a um capitalista como trazer justiça e liberdade política para um lugar como o Zimbábue ou o Afeganistão, e você provavelmente ouvirá uma palestra sobre como a afluência econômica e uma classe média próspera são essenciais para instituições democráticas estáveis e sobre a consequente necessidade de inculcar nos aldeãos do Afeganistão os valores da livre-iniciativa, da prosperidade e da autossuficiência.
Essa nova religião também teve uma influência decisiva no desenvolvimento da ciência moderna. As pesquisas científicas geralmente são financiadas pelo governo ou por negócios privados. Quando os governos e os negócios capitalistas consideram investir em determinado projeto científico, a primeira questão costuma ser: “Esse projeto nos ajudará a aumentar a produção e os lucros? Produzirá crescimento econômico?”. Um projeto que não for capaz de lidar com essas questões tem poucas chances de encontrar um patrocinador. Nenhuma história da ciência moderna pode deixar o capitalismo de lado.
Da mesma forma, a história do capitalismo não pode ser compreendida se não levar em conta a ciência. A crença capitalista no crescimento econômico perpétuo desafia quase tudo que conhecemos sobre o universo. Uma sociedade de lobos seria extremamente tola em acreditar que a oferta de ovelhas continuaria crescendo por tempo indefinido. A economia humana, entretanto, conseguiu continuar crescendo exponencialmente durante toda a era moderna, graças apenas ao fato de que os cientistas produzem uma nova descoberta ou aparato a cada poucos anos – como o continente americano, o motor de combustão interna ou ovelhas geneticamente modificadas. Bancos e governos imprimem dinheiro, mas, em última análise, são os cientistas que pagam a conta.
Nos últimos anos, bancos e governos imprimiram dinheiro freneticamente. Todos estão morrendo de medo de que a atual crise econômica possa cessar o crescimento econômico. Então estão criando trilhões de dólares, euros e ienes do nada, injetando crédito barato no sistema, e esperando que os cientistas, técnicos e engenheiros consigam pensar em algo realmente grandioso, antes que a bolha exploda. Tudo depende das pessoas que trabalham nos laboratórios. Novas descobertas em áreas como a biotecnologia e a nanotecnologia poderiam criar indústrias inteiramente novas, cujos lucros poderiam salvaguardar os trilhões de dinheiro de faz de conta que os bancos e os governos criaram desde 2008. Se os laboratórios de pesquisa não cumprirem tais expectativas antes que a bolha exploda, nos dirigiremos rumo a tempos muito difíceis.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

Ressonância magnética

Já fazia algum tempo que eu estava a pensar num aprendizado extremamente complicado que acontece sem que disso nos apercebamos: somos desenhadores de mapas. A cabeça é um arquivo de mapas. Para ir do quarto para a cozinha, a criança consulta o mapa de sua casa que ela desenhou na sua cabeça. Caminha sem cometer erros. Também os adultos: gavetas, armários, caixas, álbuns. Por causa do mapa da casa que temos na cabeça, ao necessitar de uma agulha, de um lápis, de um martelo, de um remédio, não saímos a procurar a esmo. Vamos diretamente ao lugar indicado pelo mapa. Vêm depois os mapas da redondeza, da cidade, ruas, praças, bares, restaurantes, farmácias, hospitais — tudo organizado. É dizer o nome de um lugar para que o computador espacial cerebral trace imediatamente o caminho para se chegar até lá. Cidades, estradas, país. O universo. Nos céus, as constelações. Norte, sul, leste, oeste. Direções. Os navegadores de antigamente viam as rotas na terra refletidas nas estrelas dos céus. Até a Lua, até Marte... Sem os mapas mentais, somos crianças perdidas numa cidade grande desconhecida.
A minha amnésia passou, mas ficou a pergunta: o que a causou? Fui a um neurologista... Um neurologista é, antes de mais nada, uma pessoa que sabe os mapas do sistema nervoso. Porque o sistema nervoso em tudo se parece com uma cidade, com suas ruas, sinais, tráfego, mão, contramão, semáforos, engarrafamentos, colisões... Ele pediu que eu fizesse um exame chamado “ressonância magnética”. Eu já o havia feito uma vez, por causa de umas tonturas. Não dói nada. Mas é terrível! Não pelo que acontece de fato, mas pelo que se imagina. Colocam a gente deitado numa mesa, cabeça imobilizada com esparadrapos, e nos enfiam num tubo bem apertado, como se fosse uma urna funerária. Aí começa uma barulheira sem fim, marteladas, britadeiras, metralhadoras. Quem não está bem da cabeça corre o risco de entrar em pânico. Mas isso já está previsto: colocam na mão da gente um botão a ser apertado caso se sinta na iminência de ficar louco. Eu quase apertei o botão na primeira vez. O que me salvou foi a imaginação: comecei a pensar asneiras e besteiras. Na segunda vez foi mais fácil porque já fui preparado. Resolvi fechar os olhos e imaginar que estava na minha cama, luz apagada, olhos fechados — e o que eu iria ouvir seriam sonhos. Tratei de entrar nos sonhos. Bateu marreta e me vi de marreta na mão amassando automóveis num ferro-velho. Britadeiras? Lá estava eu com uniforme da prefeitura perfurando o asfalto. Metralhadora? Peguei uma e saí atirando como se fosse o demolidor do futuro. Assim, vivi virtualmente aventuras terríveis que só se tem quando se vai a um playcenter. Porque não é para isso que se vai a um playcenter, para se ter medo e sofrer? E até fiquei triste quando a enfermeira anunciou que o exame havia chegado ao fim. Saí da urna funerária revigorado, adrenalizado e cheio de ideias novas. O terrível não foi o que o exame revelou sobre a minha amnésia. O terrível foi o diagnóstico, igual ao do exame anterior: “Normal, para a idade”. Esse diagnóstico, afirmo, é mais traumático e humilhante que a amnésia.
Agora falando sério”, como na música do Chico: acho que os médicos deveriam preparar os pacientes, contando-lhes o que os aguarda, para que eles se munam de orações, terços, patuás, mantras, santos protetores, espíritos de luz, imaginação, a fim de espantar os fantasmas do exame. Como já disse: o terror não se encontra na coisa física. O terror se encontra na imaginação. Um amigo querido, segundo o que me relatou a sua viúva, tentou fazer o dito exame três vezes e não aguentou. Morreu sem diagnóstico.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

soma e subtração

Na busca do conhecimento a cada dia se soma algo.
Na busca do Caminho da Vida a cada dia se diminui algo.
Tao-Te-Ching, poema 48

Na floresta do alheamento

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. A minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para que há de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trêmula paisagem transparente! ...
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber...
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem..., e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo...
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita...
Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém. E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe...
Lá fora a antemanhã tão longínqua! A floresta tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro.
As árvores! As flores! O esconder-se copado dos caminhos!...
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor...
No nosso jardim havia flores de todas as belezas... — rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoilas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume... E, pasmados por cima de ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
Nós roçávamos a alma toda vista pelo fresco visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...
Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas...
O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos...
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?...
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...
O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço... Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa... E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la ela estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal...
Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.
Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais...
Ali vivemos horas cheias de um outro, sentimo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias...
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto...
Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.
Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.
Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida...
Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.
Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra...
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram relíquias de outrora felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima... Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!...
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...
A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas — de realidade que era, a ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...
Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar...
Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão tênues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...
Zumbe uma mosca, incerta e mínima…
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece...
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição…
Fernando Pessoa, in A hora do diabo e outros contos

sábado, 29 de setembro de 2018

Sofrimento

Você pode se conter diante dos sofrimentos do mundo – é algo que tem liberdade de fazer e corresponde à sua natureza, mas talvez seja esse autocontrole o único sofrimento que você poderia evitar.
Franz Kafka, in Aforismos reunidos

O casamento da lua

O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se de todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinha aumentado consideravelmente. E de tanto olharem através de seus telescópios, os bons e velhos sábios foram assumindo um ar preocupado e seus olhos já não sorriam mais; puseram-se, antes, melancólicos. E contaram-me ainda que não era incomum vê-los, peripatéticos, a conversar em voz baixa enquanto balançavam gravemente a cabeça.
É que os bons e velhos sábios haviam constatado que a Lua estava não só muito pálida, como envolta num permanente halo de tristeza. E que mirava o Mundo com olhos de um tal langor e dava tão fundos suspiros - ela que por milênios mantivera a mais virginal reserva - que não havia como duvidar: a Lua estava pura e simplesmente apaixonada. Sua crescente palidez, aliada a uma minguante serenidade e compostura no seu noturno nicho, induzia uma só conclusão: tratava-se de uma Lua nova, de uma Lua cheia de amor, de uma Lua que precisava dar. E a Lua queria dar-se justamente àquele de quem era a única escrava e que, com desdenhosa gravidade, mantinha-a confinada em seu espaço próprio, usufruindo apenas de sua luz e dando azo a que ela fosse motivo constante de poemas e canções de seus menestréis, e até mesmo de ditos e graças de seus bufões, para distraí-lo em suas periódicas hipocondrias de madurez.
Pois não é que ao descobrirem que era o Mundo a causa do sofrimento da Lua, puseram-se os bons velhos sábios a dar gritos de júbilo e a esfregar as mãos, piscando-se os olhos e dizendo-se chistes que, com toda franqueza, não ficam nada bem em homens de saber... Mas o que se há de fazer? Frequentemente, a velhice, mesmo sábia, não tem nenhuma noção do ridículo nos momentos de alegria, podendo mesmo chegar a dançar rodas e sarabandas, numa curiosa volta à infância. Por isso perdoemos aos bons e velhos sábios, que se assim faziam é porque tinham descoberto os males da Lua, que eram males de amor. E males de amor curam-se com o próprio amor - eis o axioma científico a que chegaram os eruditos anciãos, e que escreveram no final de um longo pergaminho crivado de números e equações, no qual fora estudado o problema da crescente palidez da Lua.
Virgens apaixonadas, disseram-se eles, precisam casar-se urgentemente com o objeto de sua paixão. Mas, disseram-se eles ainda, o que pensaria disso o desdenhoso Mundo, preocupado com as suas habituais conquistas? O problema era dos mais delicados, pois não se inculca tão facilmente, em seres soberanos, a ideia de desposarem suas escravas. Todavia, como havia precedentes, a única coisa a fazer era tentar. Do contrário operar-se-ia uma partenogênese na Lua, o que seria em extremo humilhante e sem graça para ela. Não. Proceder-se-ia a uma inseminação artificial e, uma vez o fato consumado, por força haveria de se abrandar o coração do Mundo.
E assim se fez. Durante meses estudaram os homens de saber, entre seus cadinhos e retortas, e com grande gasto de papel e tinta, o projeto de um lindo corpúsculo seminal que pudesse fecundar a Lua. Um belo dia ei-lo que fica pronto, para gáudio dos bons e velhos sábios, que o festejaram profusamente com danças e bebidas tendo havido mesmo alguns que, de tão incontinentes, deixaram-se a dormir no chão de seus laboratórios, a roncar como pagãos. Chamaram-no Lunik, como devia ser. E uma noite, em que o Mundo agitado pôs-se a sonhar sonhos eróticos, subitamente partiu ele, o lindo corpúsculo seminal, sequioso e certeiro em direção à Lua, que, em sua emoção pré-nupcial, mostrava com um despudor desconhecido nela as manchas mais capitosas de seu branco corpo à espera. Foi preciso que o Vento, seu antigo guardião, escandalizado, se pusesse a soprar nuvens por todos os lados, com toda a força de suas bochechas, para encobrir o firmamento com véus de bruma, de modo a ocultar a volúpia da Lua expectante, a altear os quartos nas mais provocadoras posições.
Hoje, fecundada, ela voltou finalmente ao céu, serena e radiosa como nunca a vira dantes. Pela expressão com que me olhou, penso que já está grávida. Ou muito me engano, ou amanhã deve estar cheia.
Vinicius de Moraes, in Prosa

Capítulo 55 - O velho diálogo de Adão e Eva

Brás Cubas
.......?
Virgília
.......
Brás Cubas 
....................
..........
Virgília
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Brás Cubas
............…
Virgília
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........................? ......................................................
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Brás Cubas
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Virgília
.......
Brás Cubas
.................................................................................
........................................................................…......
........................................................! .......................
....! ...........................................................!
Virgília
.......................................?
Brás Cubas
.....................!
Virgília
.....................!
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

Capítulo 10: O achado – o velho Hank Bunker – Disfarçado

Depois do café da manhã eu queria conversar sobre o homem morto e arriscar um palpite como é que tinha sido assassinado, mas Jim não tava a fim. Disse que chamava o azar e, além disso, disse ele, o homem podia vir nos assombrar; disse que um homem que não tava enterrado tinha mais vontade de sair assombrando o mundo do que aquele que tava plantado e confortável. Isso parecia bastante razoável, então eu não disse mais nada, mas não pude deixar de pensar no caso e ter vontade de saber quem matou o homem e por que fizeram isso.
Revistamos bem as roupas que pegamos e encontramos oito dólares em moedas de prata costuradas no forro de um velho casacão de cobertor. Jim disse que achava que o pessoal naquela casa tinha roubado o casaco, porque se soubessem que tinha dinheiro nos bolsos tinham levado a grana. Eu disse que achava que eles também mataram o cara, mas Jim não queria falar sobre isso. Eu disse:
Ora, ocê acha que dá azar, mas o que ocê disse quando peguei aquela pele de cobra que achei no topo da serrania anteontem? Ocê disse que era o pior azar do mundo tocar uma pele de cobra com as minhas mãos. Bem, taí o seu azar! Juntamos toda esta tralha e mais oito dólares. Queria ter um pouco desse azar todo dia, Jim.
Num lembra, meu fio, num lembra. Num fica atrevido demais. Vai chegá. Lembra o que eu disse procê, tá chegano.
E chegou. Foi numa terça-feira que tivemos essa conversa. Depois do jantar na sexta, a gente tava deitado pela grama na ponta mais alta da serrania, e acabou o tabaco. Fui até a caverna buscar um pouco e encontrei uma cascavel lá dentro. Matei o bicho e enrolei a cobra na ponta do cobertor de Jim, bem natural, pensando que ia ser divertido ver Jim encontrar o animal ali. Bem, de noite esqueci tudo sobre a cobra, e quando Jim se atirou sobre o cobertor enquanto eu acendia uma luz, o companheiro da cobra tava ali e picou Jim.
Ele pulou gritando, e a primeira coisa que a luz mostrou foi a besta toda enrolada e pronta pra um novo bote. Matei o bicho de paulada num segundo, e Jim agarrou o jarro de uísque do papai e começou a beber.
Ele tava descalço, e a cobra picou bem no calcanhar. Tudo porque fui muito burro de não me lembrar que sempre que a gente deixa uma cobra morta, o companheiro aparece e se enrola em volta. Jim me mandou cortar a cabeça da cobra e jogar fora, depois tirar a pele e assar um pedaço. Fiz o que mandou, e ele comeu e disse que isso ia ajudar na cura. E também me mandou tirar os chocalhos e amarrar ao redor do seu punho. Disse que ia ajudar. Depois eu saí sorrateiro bem quieto e atirei as cobras bem longe entre os arbustos, porque eu não ia deixar Jim descobrir que era tudo culpa minha, se pudesse evitar.
Jim mamou e mamou no jarro, e de vez em quando perdia a cabeça e se atirava no chão e gritava, mas toda vez que voltava a ser Jim, ia mamar de novo naquele jarro. O pé dele inchou muito, e também a perna, mas daí a pouco a bebida começou a fazer efeito, e então achei que ele tava bem, mas eu achava melhor ser picado por uma cobra do que tomar o uísque do papai.
Jim ficou deitado, bem doente, quatro dias e noites. Depois disso o inchaço sumiu e ele já andava por toda parte de novo. Decidi que nunca mais ia tocar na pele de uma cobra, agora que sabia o que acontecia. Jim disse que achava que eu ia acreditar nele na próxima vez. E disse que mexer na pele de uma cobra era um azar tão terrível que talvez ainda não tinha chegado ao fim. Disse que preferia mil vezes ver a lua nova sobre o próprio ombro esquerdo do que pegar uma pele de cobra com a mão. Bem, eu também tava me sentindo desse jeito, apesar de que eu sempre achei que olhar para a lua nova sobre o ombro esquerdo é uma das coisas mais descuidadas e tolas que alguém pode fazer. O velho Hank Bunker fez isto uma vez e saiu a se gabar do que tinha feito; menos de dois anos depois tomou uma bebedeira e caiu da torre em que faziam balas de chumbo e se esborrachou tanto no chão que ele virou uma espécie de camada, sabe; e eles enfiaram o velho entre duas portas de celeiro que fizeram as vezes de caixão e enterraram assim, é o que dizem, mas eu não vi. Foi o papai que me contou. Mas seja como for, tudo aconteceu porque ele olhou pra lua daquela maneira, como um tolo.
Bem, os dias passaram, e o rio desceu de novo entre as margens. E quase a primeira coisa que a gente fez foi colocar um coelho esfolado como isca num anzol bem grande, armar a linha e pegar um bagre do tamanho de um homem, com quase um metro e noventa de comprimento e pesando mais de noventa quilos. A gente não podia com ele, é claro, ele ia nos jogar longe lá pra Illinois. Então a gente só ficou parado ali e observou ele se debater com violência ao redor até se afogar. A gente encontrou um botão de latão no estômago dele, uma bola redonda e muito lixo. Abrimos a bola com a machadinha, e tinha um carretel lá dentro. Jim disse que devia tá ali muito tempo pra ficar todo coberto e formar uma bola. Era o maior peixe já fisgado no Mississippi, imagino. Jim disse que nunca tinha visto um maior. Valia um bocado na vila. Eles vendiam um peixe desses em pedaços de meio quilo no mercado, todo mundo comprava um pedaço. A carne era branca como a neve e dava uma boa fritada.
Na manhã seguinte, eu disse que tava ficando devagar e monótono, e eu queria um pouco de agito de qualquer jeito. Disse que tava pensando em sair meio escondido pelo rio e descobrir o que tava acontecendo. Jim gostou da ideia, mas disse que eu devia ir no escuro e ficar alerta. Depois pensou bem no caso e disse, eu não podia usar algumas daquelas roupas velhas e me vestir como uma garota? Essa era também uma boa ideia. Assim encurtamos um dos vestidos de chita e eu enrolei as pernas das minhas calças até os joelhos e me enfiei no vestido. Jim prendeu o pano atrás com os anzóis, e ficou uma bela roupa. Coloquei a touca de sol e amarrei com um cordão debaixo do queixo; então pra alguém olhar e ver o meu rosto era como olhar por um joelho de chaminé de fogão. Jim disse que ninguém ia me reconhecer, nem mesmo no dia claro. Pratiquei durante todo o dia pra me acostumar com as roupas e em pouco tempo já me sentia muito bem dentro delas, só que Jim disse que eu não caminhava como uma garota, e disse que eu devia parar de levantar a saia pra meter a mão no bolso das calças. Prestei atenção e me saí melhor.
Subi pela margem de Illinois na canoa pouco depois do anoitecer.
Comecei a atravessar pra cidade desde um ponto um pouco abaixo do desembarcadouro das barcas, e o impulso da corrente me levou pro final da cidade. Amarrei a canoa e saí caminhando pela margem. Tinha uma luz numa pequena choça onde ninguém vivia há muito tempo, e eu quis saber quem tinha se alojado ali. Cheguei perto com cuidado e espiei pela janela. Tinha uma mulher de uns quarenta anos lá dentro, fazendo tricô perto de uma vela que tava em cima de uma mesa de pinho. Eu não conhecia o rosto dela; era uma estranha, pois ninguém naquela cidade podia me mostrar uma cara que não fosse familiar pra mim. Ora, isso era uma sorte, porque eu já ia perdendo a coragem; tava com medo de ter vindo pra cidade; as pessoas podiam conhecer a minha voz e me descobrir. Mas se essa mulher tinha passado dois dias numa cidade tão pequena, ela podia me contar tudo o que eu queria saber. Então bati na porta e resolvi que não ia esquecer que eu era uma garota.
Mark Twain, in As aventuras de Huckleberry Finn

Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

* * *
Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.
Hilda Hilst

A paixão do absurdo

Nada saberia justificar o fato de viver. Podemos de fato, tendo partido ao limite de nós mesmos, invocar argumentos, causas, efeitos ou considerações morais? Certamente não: resta-nos para viver, portanto, apenas razões despidas de fundamento. No apogeu do desespero, somente a paixão do absurdo impede ainda a explosão de um caos demoníaco. Quando todos os ideais correntes, sejam eles de ordem moral, estética, religiosa, social ou outra, não chegam a imprimir à vida uma direção e finalidade, como preservá-la ainda do nada? Nisso, nós apenas podemos chegar agarrando-se ao absurdo e à inutilidade absoluta, a este nada profundamente insípido, mas cuja ficção é a mesma de criar a ilusão da vida.
Eu rio porque as montanhas não sabem rir, nem os vermes da terra cantar. A paixão do absurdo nasce somente no indivíduo em que tudo foi purgado, a este que é mais suscetível de submeter-se a temíveis transfigurações futuras. A quem tudo perdeu só resta esta paixão. Que charmes poderiam, à partir de então, seduzi-lo? Certas pessoas não deixarão de responder: o sacrifício em nome da humanidade ou do bem público, o culto do belo, etc. Eu amo apenas estes homens que chegaram a provar, ainda que provisoriamente, tudo isto. Eles são os únicos a ter vivido de maneira absoluta, os únicos habilitados a falar da vida. Se podemos reencontrar amor e serenidade, é através do heroísmo, não da inconsciência. Toda a existência que não contém uma grande loucura permanece despida de valor. Em que ponto uma tal existência se distinguiria da de uma pedra, de um pedaço de madeira ou de uma erva-daninha? Eu afirmo-o com toda a honestidade, devemos ser portadores de uma grande loucura para que queiramos nos tornar em pedra, pedaço de madeira ou erva-daninha.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

O bobo e a Vênus

Dia admirável! O vasto parque desmaia sob o olhar candente do sol, como a juventude sob o domínio do amor.
O êxtase universal das coisas exprime-se sem nenhum ruído. Até as águas parecem adormecidas. Ao contrário das festas humanas, há aqui uma orgia silenciosa.
Dir-se ia que uma luz cada vez mais intensa vai dando maior brilho aos objetos; que as flores excitadas ardem de desejo de rivalizar com o azul do céu pela energia das cores; e que o calor, tornando-lhes visível o perfume, fá-lo subir em direção ao astro, como fumaça.
Todavia, nessa felicidade universal, notei um ser aflito.
Aos pés de uma Vênus gigantesca, um desses bobos artificiais, desses tolos voluntários encarregados de fazer rir os reis quando o Remorso ou o Tédio os persegue, vestindo uma roupa berrante e ridícula, coroado de chifres e de guizos, todo encolhido junto à estátua, levanta os olhos cheios de lágrimas para a Deusa imortal.
Dizem os seus olhos: — Sou o último e o mais solitário dos homens, privado de amor e de amizade, e muito inferior, portanto, ao mais imperfeito dos animais. E fui feito, também eu, para compreender e sentir a Beleza imortal! Oh! Deusa! Tende pena da minha tristeza e do meu delírio! Mas, a Vênus implacável fita, ao longe, não sei quê, com seus olhos de mármore.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

A travessia do tempo (trecho)

Mwadia seguiu pelo corredor, guiada pela penumbra que escoava pelas janelas. A luz do dia não tardaria a encorpar. Empurrando o saco de viagem pelo chão, Mwadia avançava a custo. De súbito, embateu num vulto escuro.
Mãe?
Disforme e envelhecida, Dona Constança estava irreconhecível. Desde que a sua última filha se retirara, ela duplicara de volume. É sabido: a tristeza engorda mais que o caril de mandioca. Constança se arrastava, como se um pó lhe fosse tombando dos pés e ela, em cada passo, perdesse a sua própria substância.
Então, mãe, o que tem feito?
O que eu faço? Nestes dias, eu só adoeço.
As doenças são a sua única companhia agora que as suas filhas se foram e o marido Jesustino Rodrigues transitara de companheiro para companhia.
Por que é que a mãe nunca me visitou?
Não fui eu que saí de casa.
Mwadia não respondeu. Durante um tempo fixou o rosto da mãe, procurando vestígios da sua antiga formosura. Dona Constança evitou cruzar o olhar. A filha decidiu mudar de assunto.
A Tia Luzmina está acordada?
Não.
Posso bater na porta dela?
Não, não faça isso.
Mas ela iria gostar de saber que cheguei, vou acordá-la.
Espera filha, é que Luzmina... sua Tia vai demorar a acordar, no sono que ela está...
A mãe anunciava o irreparável? A voz de Mwadia lhe escapou por uma fresta no peito:
A Tia?
Sim, a Tia ausentou-se.
No lar dos Rodrigues não se pronunciava o verbo morrer. Dizia-se: ausentar. Mwadia sentiu que desabava no abismo do soluço. A mãe, autoritária, advertiu:
Nesta casa não se chora!
Sempre fora essa a interdição: chorar era um malfazejo hábito que se espalhara como doença. Eles, os Rodrigues, não choravam. Podiam beber sem medida, rir alto, descomportar-se com pompa e sem circunstância. Mas chorar não. O pranto convoca os espíritos da desgraça.

***
A fotografia estendida na mão de Dona Constança era um modo de deitar leveza no momento.
Veja, é a última foto da sua Tia.
Luzmina posava, magra, os olhos acrescidos no rosto escaveirado. Mwadia revirou a foto para olhar a data. Era recente e tinha sido enviada da capital.
Ela, aí, já estava muito doente.
A mãe não disse mais, apenas soergueu o queixo a apontar o corredor. Mwadia sabia do seu dever. Pegou na imagem e conduziu-a à chamada “parede dos ausentes”. No corredor exibiam-se as fotos dos familiares defuntos. No chão, um balde recolhia as lágrimas dos falecidos.
No alto da parede dos ausentes figurava a velha agogodela, uma espingarda de carregar pela boca que tinha sido propriedade do bisavô Rodrigues. Por baixo da arma, a moldura já estava preparada. Faltava só ajustar a fotografia e Mwadia, quando completou a tarefa, espreitou o seu próprio reflexo no vidro.
Agora, venha, disse a mãe. Venha que eu vou lavá-la.
Lavar-me?
Quero que seja você, sozinha com seu corpo, a entrar nesta casa.

***
As mãos da mãe fizeram escorrer a água pelo corpo nu de Mwadia. A moça sorriu da situação: durante anos fora ela que dera banho. Mais propriamente, dera banho a Zero Madzero. Agora, ela era a lavada. Fechou os olhos, embriagada, como se a alma estivesse sendo dissolvida.
Fosse no meu tempo não era com estas águas que você era banhada.
Eu sei, mãe.
Não sabe, não. Você era banhada com sangue de galinha. Para a lavar do sangue desse homem que se passeou pelo seu corpo.
Mas isso não é só água, mãe. O que é que deitou nesse balde?
Nada, filha, apenas uns cheiros.
A vida são golpes, costuras e pontes. Afinal, quando Mwadia dava banho a Zero ela apenas estava costurando os tempos, dando seguimento a uma tradição antiga.
Diga-me uma coisa, mãe, com sinceridade: a senhora acredita nisto?
Nisto, o quê?
Nas lavagens para afastar os maus espíritos...
Eu tenho saudade daquele tempo, é isso que eu sei...
A mãe suspendeu o gesto e apontou para a cozinha exterior. E confessou que, às vezes, ela ia para ali sentar-se só para reviver os tempos em que a família se arredondava, no grávido círculo da felicidade.
Vou para ali só para sentir saudade.
E gosta?
A saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores.
Deixou-se levar para o quarto e a mãe esfregou-a numa toalha velha. Tudo parecia perfeito, Mwadia era de novo menina e os beirais se enchiam de asas e cantos.

***
Como aconteceu, mãe? Como é que a Tia se ausentou?
Nem quero falar disso, Mwadia, respondeu Constança. É melhor você só lembrar aquela Luzmina que você conheceu quando era criança...
Nos últimos tempos, ela se revelou outra, contrariando o seu imaculado comportamento. Tudo começou quando uma noite, à mesa de jantar, perante visitas cerimoniosas, ela fingiu limpar os lábios e, ainda de guardanapo na mão, disse:
Não é para me gabar, mas tenho muito jeito para puta!
Enfrentando angelicamente os olhares reprovadores, Luzmina argumentou:
Falei torto? Está na Bíblia, tudo está na Bíblia.
Luzmina, por favor...
Luzmina, não. Sou Santa Luzmina, mãe dos pecadores, padroeira das prostitutas.
Nos dias seguintes, a família fez todo o possível para recuperar Luzmina para o seu privado juízo. Contudo, era tarde: a moça se agravava irreversivelmente. E já reclamava que Eva era indiana, da casta brâmane, e que ela própria, Luzmina Rodrigues, era Nossa Senhora. Estava ali, na recatada Vila Longe, à espera do Espírito Santo que deveria certamente ser um goês de casta elevada. Como o tempo passasse e o seu bem-amado tardasse, ela iria tomar o caminho da cidade e apressaria o ansiado encontro.
Mana, não diga isso. Deus castiga...
Já me castigou. E você sabe muito bem como, meu irmão.
Jesustino recuou, cabisbaixo, envergonhado com o comportamento de sua irmã mais velha. A quem não chegava o pudor era a Luzmina que prosseguiu com as inesperadas heresias:
Deus, Deus, Deus... Pois se eu fosse Deus, Jesus Cristo não tinha morrido.
Não havia tempo a perder: pediram ao padre que viesse da cidade para a benzer, conduziram-na ao curandeiro Lázaro Vivo que deitou as hakata para decifrar os presságios. Cortaram-lhe o sal na dieta para que o sangue corresse menos espesso, untaram-na de barro retirado da margem do rio e colocaram-lhe uma vara de muveva por baixo do travesseiro. Tudo isso foi em vão. A goesa teimava em seus delírios. E repetia, em queixosa ladainha: s ubi à cruz para descrucificar Cristo, dediquei toda a vida à devoção e Deus o que me deu em troca? Pois agora, sigo os conselhos do Diabo. A partir desse momento, Luzmina passou a dormir no sofá da sala, com uma mala de roupa a seu lado. Quando lhe pediram explicação, ela respondeu:
Estou à espera de ser levada, daqui para muito distante.
Mas nunca ninguém passou, ninguém visitava tão distante paradeiro. Foi ela que partiu, de madrugada, aproveitando boleia da carrinha do Tio Casuarino. Luzmina foi para a cidade, perdeu-se entre brumas e fumos. Jesustino ainda se deslocou para a procurar na cidade. Nem sinal dela. O alfaiate regressou, inconformado, culpando Casuarino por não ter impedido aquela intempestiva e irresponsável viagem de sua irmã. Ele era o único irmão, cabia-lhe tomar conta dela, tão só, outrora tão crente em Deus, agora tão tresmalhada da razão. Por diversas vezes, Jesustino ainda foi à decadente estação dos correios e inquiriu Matambira, o último funcionário sobrevivente, se havia carta da cidade.

***
Não veio carta, nem antes, nem depois. Foi Luzmina Rodrigues quem trouxe pessoalmente a notícia da sua própria morte. O corpo dela chegou numa carrinha de um anónimo mineiro. O homem estacionou junto à entrada da Vila, anichou o veículo à sombra de um portentoso embondeiro. Chamaram Jesustino para tomar conta da desocorrência. Só ele ficou sabendo do finar de sua mana Luzmina. O magaíça depôs o caixão na areia, enrolou o dinheiro que o goês lhe passou e partiu numa nuvem de poeira.
Era noite quando Jesustino entrou em casa e se aproximou de Dona Constança. Havia uma cansada lamparina que fantasmeava o quarto. A esposa adivinhou-lhe o amargo no rosto:
Tem uma notícia triste, marido?
Muito triste.
Então, já sabe como me vai contar.
Ela deitou-se, despiu-se e esperou que o marido se enroscasse a seu lado. Depois beijou-o e abraçou-o com força. Enquanto faziam amor ele lhe foi contando a novidade da morte de Luzmina, desfiando a tristeza que a mulher ia sufocando a golpes de ternura, corpo diluindo-se em outro corpo.
No fim do namoro, lágrimas já secas, Constança ainda espreitou o rosto do marido. Queria certificar-se de que não era uma mentira que ele inventara só para fazer amor. Mas o cansaço de Jesustino era genuíno. Ninguém pode estar assim fatigado se não estiver sofrendo de verdadeira melancolia.
Luzmina, de fato, falecera. Todavia, em Vila Longe a morte não é exatamente um fato. A tia falecera como é devido naquele lugar: sem nunca chegar a morrer. Quer dizer: a sua alma ficara acesa, brilhando entre sombras, suspiros e silêncios.
No dia seguinte, dilacerado pela dor de perder a sua única irmã, Jesustino tentou o suicídio. A receita era fatal: o venenoso tubérculo da gloriosa, essa florinha vermelha que espontaneja na areia das dunas. O goês esteve sete dias de coma, caíram-lhe os cabelos, dissolveram-se-lhe as unhas, azularam-se-lhe as babas. No oitavo dia, soergueu-se na cama, olhos piscos, mastigando palavras:
Nem morrer sei.
Você me matou foi a mim, meu caro Jesustino Rodrigues, murmurou Constança. O tom acusatório era tão sincero que o marido se interrogou sobre que segredos saberia a sua companheira.

***
De tudo isso estava distante Mwadia. Tudo aquilo ocorrera durante a sua longa ausência em Antigamente. A moça até se assustou quando a mão gorda de Dona Constança recobriu os seus dedos magros para a reconduzir ao presente.
Essa é a última fotografia de sua Tia...
Mão na mão, as duas mulheres percorreram as linhas do rosto da falecida Luzmina, como se lhe corrigissem o destino. Alinhavam a moldura na parede como quem ajeita flores sobre uma campa.
Que idade ela tinha nesta foto?
Tinha, não. Tem.
Não entendo.
Essa foto ela tirou-a com trinta e cinco anos. Mas a sua Tia continua a envelhecer na imagem.
Ora, mãe...
A última vez que peguei nessa foto ela nem tinha estes cabelos brancos...
Regressaram à mesa da cozinha para terminarem o chá. A mãe demorou a ajeitar o corpo na cadeira. Depois, puxou de uma cesta e dela retirou peças de vestuário. E fez aquilo que sempre fazia para ganhar sono: dobrou as peúgas coloridas de suas meninas. Os dedos gordos convocavam, uma por uma, as filhas que há muito saíram de casa. A voz já se inundava de sono quando Constança insistiu:
Lembra-se do tempo em que eu passava tardes e tardes costurando?
Lembro-me, mãe. Eram tantas filhas, tantas roupas!
A maior parte das vezes, eu só fingia que costurava.
Fingia? Fingia para quê?
Os homens não gostam que as mulheres pensem em silêncio. Nascem-lhes nervosas suspeitas.
Enquanto ia costurando, o seu pai não imaginava que eu estava pensando. Minha cabeça viajava por todo lado.
Nesses escassos momentos, Constança era mulher sem ter que pedir licença, existindo sem ter que pedir perdão.
Mia Couto, in O outro pé da sereia