sábado, 30 de junho de 2018

O nível

Wilton quase engoliu a pedra de gelo do uisquinho:
- Elas querem o quê?!
- Calma, Wilton. Olha a pressão...
- Repete, Marilza. Eu não devo ter ouvido bem.
- Ai, meu Deus! Não fica assim, Tico!
- Não me chame por esse apelidinho idiota. Repete o que tu falou. Repete que é pra ver se eu não tô maluco.
- Chega de drama, Wilton! Elas são meninas normais As coleguinhas na escola falam no assunto, juram que já viram e é perfeitamente natural que elas queiram ver também, pombas!
- Eu não acho nada natural que elas, aos treze e aos quinze anos, queiram ver pombas e pembas!
- Olha o nível, Wilton, olha o nível!
- Nível? Você vem me dizer que minhas filhas querem ver um filme pornô no meu vídeo e ainda tem a coragem de falar em nível?
- Tudo bem, Wilton. Se você prefere que elas aceitem o convite de um desses jogadores de futebol do conjunto, tudo bem.
- Convite?! Eu mato um cachorro desses! Eu...
- Por favor, Wilton! Me escuta, cara! Me ouve, ao menos uma vez na vida ! Nós temos uma porrada de fitas dessas, né? É só selecionar uma menos... menos... traumatizante. Nada de chicote, vibrador, anão bem-dotado...
- Péra lá, Marilza! Que história é essa de anão bem-dotado? Eu não tenho fita com anão. Onde é que tu viu isso?
- Era só um exemplo, meu nego. A gente escolhe uma fita mais soft, faz o desejo delas, o troço perde o mistério e pronto! Elas cantam marra com as coleguinhas, também já vimos etc., e fica tudo na maior limpeza. Qualé, Wilton? Eles vêem pornô até na Escola Superior de Guerra, né? É moda, querido. Feito a vizinha do 801: dá e passa!
Wilton renovou a dose e os dois partiram pra seleção:
- Hum... tô me sentindo meio Brossard...
- E daí? Eu também tô dando uma de Dona Solange, não tô? Fica frio.
A primeira fita selecionada por Wilton era uma tal de Suzy’s Centerfolds. Marilza vetou:
- Masturbação não!
- Ué, mas isso é o que elas mais fazem!
- Mas não há necessidade de aprenderem novas técnicas com essas louças. Uma coisa é a masturbação como um estágio do desenvolvimento sexual normal das minhas meninas, certo? Agora, piranha tocando siririca profissional é outro departamento.
- É a minha vez de dizer: olha o nível!
- Desculpe.
- Tem essa outra aqui: Superwoman. É uma sátira. Pode ser que o clima de gozação atenue a brabeira.
- Acontece aquela coisa horrorosa de espirrar na cara da mulher?
- Espirrar?
- Não banca o gaiato, Wilton! Você sabe de que qui eu tô falando... - Ora, Marilza, esses lances são quase obrigatórios nesses filmecos. São o creme, rá, rá, rá!... Não precisa me olhar com essa cara...
Acabaram resolvendo botar só um trecho de um filme não muito explícito, metido a artístico, City Heat ou coisa parecida.
Marilza fez uma exposição preliminar sobre enamoramento, amor, escolhas insensatas, complexo de Cinderela, Mariazinhas, prós e contras da obra de Milan Kundera e encerrou, brilhantemente, estabelecendo um paralelo entre pornografia barata e a lavagem de roupa suja nos debates políticos.
Wilton apertou a tecla play e recolheu-se ao banheiro, acometido de avassaladora diarréia. A fita correu. Lá pelas tantas, Helô comentou com Nandinha:
- Tô achando o pau desse cara meio barro, meio tijolo.
- Podes crer. Desde o 69 que tá assim.
- Também ela mamou mal paca.
- Não sabe prender entre a língua e o céu da boca.
Não temos o resto da conversinha. Wilton tá no Miguel Couto, onde o tubarão virou boto, e a Marilza foi pro Pedro Emesto, onde tu entra Maluf e sai honesto.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

Único fim

O dinheiro é um dos fins para se viver feliz: os homens transformaram-no no único fim.
Anatole France

Sem resposta

Estiquei o braço para pegar o colírio que estava sobre o criado-mudo. Meus olhos estavam cheios de areia. Defeito do mecanismo ótico cuja função é lubrificar a córnea com lágrimas. O meu oftalmo me disse que essas lágrimas são uma reminiscência dos tempos em que vivíamos dentro d’água, milhões de anos atrás. Saímos da água, mas o corpo teve de arranjar um artifício que continuasse a lubrificar os olhos. Com a idade, ele já não funciona direito. Daí a necessidade do colírio.
Acendi a luz, pinguei o colírio, consultei o relógio, cinco e meia, não acordei nem uma vez durante a noite, nem mesmo para fazer xixi. Lembrei-me do jantar feliz da noite anterior. Duas amigas me visitaram (segundo elas mesmas, foi uma visita atrasada; deveria ter sido feita pelo menos dois meses antes, quando estava me recuperando da costura de cinquenta centímetros que os cirurgiões fizeram na minha barriga, estômago e coração). Trouxeram o jantar pronto. Enquanto as esperava, fui me aquecendo com meu sacramento Jack Daniel’s e daí passamos para o vinho tinto. Se alguém me perguntasse como tinha sido a minha noite, eu responderia automático: “Foi bem, graças a Deus...”.
Ainda no automático, eu iria tomar um banho e comer uma banana e chupar uma manga, mas logo me lembrei de que eu tinha de fazer um exame de sangue em jejum para ver o estado das plaquetas (não me perguntem o que são plaquetas) que haviam descido a um nível perigoso em consequência das cirurgias.
Peguei o jornal sem interesse. Chamou a minha atenção com tristeza e com um sentimento de “assim é a vida” a notícia da morte daquela mulher paradigmática que foi a senhora Zilda Arns, irmã do cardeal Arns, totalmente dedicada à causa das crianças. Setenta e cinco anos. Eu, setenta e seis... Com a idade nos setenta, é normal e esperado que se morra. Ela morreu, eu quase, estive bem perto do buraco negro. Tristeza, mas não espanto. Morrer faz parte da normalidade da vida.
Só li as letras grandes. As pequenas não consigo ler. Pus os óculos. Aí o mundo ficou absurdo. Zilda Arns, que só vivia para as crianças, havia sido morta atingida por escombros de um terremoto grau 7 enquanto caminhava numa missão de paz, para que as crianças do Haiti sofressem menos. Logo o Haiti, um dos países mais pobres do mundo.
O jornal New York Times, no dia seguinte ao ataque terrorista às torres do World Trade Center, publicou um editorial com o título “Onde estava Deus no dia 11 de setembro de 2001?”. Era a pergunta certa a ser feita. Milhares de perguntas técnicas poderiam e foram feitas. Mas a pergunta crucial não tinha a ver com segurança militar, nem com a economia, nem com a morte de centenas de pessoas. A pergunta crucial seria aquela que atinge o nervo da alma. A pergunta crucial tem a ver com a última palavra que se pronuncia quando “o destino bate à porta”. Valem, para aquele momento, as palavras de Unamuno: “O que existe de mais sagrado num templo é o fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere cantado em coro por uma multidão açoitada pelo destino vale tanto quanto uma filosofia”. Os Estados Unidos são um país cheio de templos, moradas de Deus. Muitas pessoas foram chorar nos templos naquele dia. Mas Deus, onde estava ele naquele dia? Deus é confiável? Se ele tivesse querido bastaria ter movido um dedo... Pode-se acreditar nas palavras sagradas do salmista que declarou: “Caem mil à tua esquerda e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido”. O sentido da pergunta era a resposta que ninguém se atrevia a dizer: “Não temos mais um Deus em quem confiar”... Ou o certo será “Deus é fiel?”.
Misturei a pergunta teológica com a manchete do jornal. Fui para a Clínica Lane. A televisão dava notícias graves sobre o acontecido no Haiti, mas logo passou a dar notícias alegres sobre futebol. É difícil viver num mundo em que a tragédia e o banal aparecem juntos, na mesma tela. O certo é chorar ou é rir? Ou tudo será uma farsa?
Uma senhora lia um Novo Testamento enquanto esperava sua vez. Há Novos Testamentos por todos os lugares, distribuídos pelos “Gedeões”. Pensei que um bom versículo para ser lido seria Romanos 8:28: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus...”. Confesso não entender: qual o bem que acontece aos milhares de velhos, crianças, homens e mulheres mortos por um deslizamento de terra, terremoto ou tsunami? Segundo dizem os teólogos, Deus, onisciente e onipotente, sabia com antecedência de milênios que as tragédias iriam acontecer e ele poderia tê-las evitado apenas com um piscar de olhos. Não evitou porque não quis.
Com a morte de dona Zilda Arns, o mundo ficou mais triste. Sentimo-nos mais órfãos. Podemos gritar. Não haverá resposta: “Nenhuma palavra veio ao homem ajoelhado. Ele só ouviu a canção do vento. Ou o barulho seco de asas que não via, não eram anjos, eram morcegos no alto do forro da igreja. Ele não virá mais...”.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Inscrição para uma lareira



A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida…
Mário Quintana

Fala muito!

As pessoas que falam muito acabam sempre contando coisas que ainda não aconteceram.”
Millôr Fernandes

Que estranho viver

Li em algum lugar que o escritor português António Lobo Antunes sofre de problemas de audição. Seu avô materno, José, era surdo. Ainda moça, sua mãe, Maria Margarida, também passou a não escutar bem. Lobo Antunes convive, sem dramas, com as limitações que a genética lhe impôs. Da falta, faz combustível.
As vozes que vacilam no exterior se multiplicam em sua mente. Seus romances são um grande vozerio. Essas falas nos açoitam, de novo, em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (Alfaguara). Vozes que lutam entre si, que se combatem, como se disputassem, a cada linha, seu lugar na página. António Lobo Antunes, o homem, é só o campo de batalha.
A experiência na guerra foi decisiva em sua formação. Em 1971, embarcou para Angola, onde lutou a guerra colonial. De volta a Lisboa, dois anos depois, era outro homem. “A guerra me obrigou a relativizar tudo”, explicou. “Era tão simples morrer, e morríamos em plena saúde.” Três anos se passaram e começou a escrever Memória de elefante, seu primeiro romance.
Finda a guerra, o combate se transferiu para o cenário interior. Os romances de Lobo Antunes capturam vozes que se desafiam. Aproveito uma ideia de José Saramago – seu mais notório desafeto: “Escreve-se com tudo o que se tem dentro, só com o que se tem dentro”. Lobo Antunes escreve com sua surdez (que se torna vozerio) e com suas feridas de guerra (que se tornam combustíveis).
Mais uma ideia de Saramago: “Cada um de nós só pode escrever seus próprios livros. Qualquer livro que eu escreva não tira o lugar de nenhum outro livro, se limita a ocupar o seu próprio lugar”. É a verdade. Eça não é superior a Machado, ou Pessoa superior a Drummond simplesmente porque Eça não é Machado e Pessoa não é Drummond.
Agora lembro onde li a história da surdez de Lobo Antunes: em uma longa entrevista a María Luisa Blanco (Conversas com Lobo Antunes, editora Dom Quixote, Lisboa, 2001). Ali, ele próprio dá razão a Saramago. Diz: “Não se inventa nada, a imaginação é a maneira como se arruma a memória. Tudo tem a ver com a memória”. A memória condena Lobo Antunes a ser Lobo Antunes e condena José Saramago a ser José Saramago. Ninguém pode ser mais do que é.
As vozes dos personagens de Que cavalos são aqueles..., emitidas por membros de uma mesma família, comprovam isso. O romance (parece, mas nada é seguro em seus livros) começa na voz de Beatriz, a filha que sobreviveu a dois casamentos infelizes. “Que estranho viver, como se faz, começa-se por onde, em que capítulo”, ela desabafa, enquanto reconstitui a história da mãe morta.
Beatriz idealiza os livros, que seriam nítidos e coerentes. Adoecido da mesma ilusão, o leitor de Lobo Antunes sente o golpe. Que estranho o livro que leio! O que fazer dessas vozes que se misturam? Como separá-las? Como ordená-las? E, no entanto, é assim, nessa ventania de palavras – e não na planície límpida e seca da retórica – que vivemos.
Quem fala? Rita, a filha que um câncer matou na juventude, ou Ana, a que se entregou às drogas? João, o filho que esconde sua homossexualidade, ou o velho pai? Vozes e mais vozes que se enroscam e, em vez de esclarecer, nos ensurdecem. Que estranho ouvi-las.
Lobo Antunes lembra, a respeito, uma sábia reflexão de Kipling: “Demasiadas palavras, há sempre demasiadas palavras!”. A constatação não o liberta do excesso. Escrito entre 2008 e 2009, seu novo romance tem 334 páginas. Que terminam por ser 668, ou quem sabe 1.336 – de tal forma ele nos obriga a ir e voltar, ir e voltar. Lemos, relemos, e nunca basta.
Quando lhe perguntam de que tratam seus livros, Lobo Antunes gosta de recordar uma ideia do escritor Francisco Manuel de Melo: “O livro trata do que está escrito nele”. As palavras (e só elas) geram palavras. São palavras, ainda, que trazemos grudadas na memória – palavras que procedem, talvez, de antes de nosso nascimento. Nelas existimos, pensava Manuel de Melo. Por isso somos humanos.
Lobo Antunes sabe que a literatura não é explicativa; nem decorativa. Não “ilustra”, não “exemplifica”, tampouco “ensina”. As palavras se limitam a roçar o mundo. Em dado momento de Que cavalos são aqueles... , a narradora, Beatriz, muito irritada, reclama de seu autor: “As palavras avançam depressa e o papel não chega, eis o António Lobo Antunes a saltar frases não logrando acompanhar-me e a afogar num tanque os gatinhos do que sinto para se desembaraçar de mim”. Exprimir não é dar conta. A língua é mais estreita que a experiência.
Volta e meia, um personagem se pergunta: “És tu?”. A dúvida acompanha o leitor até a última página. Como em um interurbano dissolvido em linhas cruzadas, nos perguntamos: afinal, quem fala? A voz de António Lobo Antunes, o homem, se mescla às vozes fictícias e se torna, ela (ele) também, ficção.
Lá pelas tantas, ele escreve: “Este livro é o teu testamento, António Lobo Antunes, não embelezes, não inventes, o teu último livro, o que amarelece por aí quando não existires”. A ideia da despedida percorre todo o romance, como um sinal (escandaloso) da estranheza de viver. Tudo por um fio, sempre.
Em outro momento, é o filho João quem ouve uma pergunta de seu autor: “Escrevo assim?”. E ele, muito compenetrado, responde: “Escreva”. O autor (Lobo Antunes) não está seguro do que faz. Como um transmissor precário (um velho rádio, com chiados e interferências), ele bem que tenta. Ficamos com o que consegue fazer. Isso é um romance.
Em outro momento, é o filho Francisco, o ganancioso, quem desconfia das palavras. No escritório da família, ele inventaria os objetos. Encontra um que parece uma estatueta ou um vaso. Não sabe ao certo o que é. “Com a palavra estatueta e a palavra vaso sem sentido, descrevam-me o que chamam estatueta e o que chamam vaso para me lembrar o que é”, diz.
Ainda no fecho, o romance trepida: “Não sei se tenho casa, mas é a casa que regresso”. O romance (a estrada) acaba, mas a carruagem das palavras continua a avançar. Ao concluir seus livros, repetindo a frase célebre de Gogol diante de Almas mortas, Lobo Antunes costuma pensar: “Sempre tenho a tentação de lhe chamar poema”.
José Castello, in Sábados inquietos

sexta-feira, 29 de junho de 2018

O socialismo é um estado de espírito

A experiência comunista foi evidentemente um fracasso, demonstrando que os caminhos que se tomaram estavam errados. E, de fato, a ideia de que o homem só pode ter uma justificação social integrada e funcionando harmonicamente dentro do corpus social, ignorando o foro da liberdade de cada um, falhou em toda a parte. E falhou, sobretudo, por pensar ser possível construir o socialismo sem a participação dos cidadãos. O que me leva a expressar a convicção — que não é nada materialista mas também tenho direito às minhas próprias contradições — de que o socialismo é um estado de espírito. O socialismo não faz os socialistas, são os socialistas que fazem o socialismo.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Rotativo

Hoje a lua vai embora;
o chorão chora,
o caldo entorna.
Amanhã, a rosa é branca,
o céu é limpo,
o beijo é largo.
Amanhã de manhã, a terra é morna.
Flora Figueiredo

Conversa de casados

Ora, dá-se que o jovem casal completou trinta e seis anos de união, e eu resolvi entrevistá-lo. Quem sabe se os dois teriam alguma receita de felicidade? Levei um questionário indiscreto. Primeira pergunta:
Como é que vocês conseguiram passar tanto tempo juntos?
Os dois, a uma voz:
Não foi tanto assim. Um terço (doze anos), dormindo oito horas por dia.
Mesmo assim, meus caros!
Ela esclareceu:
Havia o trabalho dele, que nos separava durante a maior parte do dia.
E ela passou a maior parte da vida no cabeleireiro — completou ele.
Eu: — Cabeleireiro, trabalho e sono: será isso a vida em comum?
Não — disse ela sorrindo. — Há os intervalos.
De qualquer maneira, trinta e seis anos! É um latifúndio.
Ela: — Bem, brigamos o necessário. — Está satisfeito agora?
Eu: — Ainda não. Brigas feias, dessas de atrair vizinho?
Ele ponderou: — Como quer você que uma briga seja bonita? Brigamos como foi possível. Confesso que a iniciativa geralmente era minha. Ela, porém, provocava sempre.
Ele trazia os motivos da rua, às vezes bem visíveis — informou ela.
Outras vezes, os motivos vinham da cozinha — emendou ele. — O homem gosta de variar, pelo menos de sobremesa.
Mas depois das brigas… — insinuei.
Sim, era bom — admitiram ambos.
E cada um por sua vez:
Nos primeiros tempos, ele punha bilhetes debaixo do travesseiro, pedindo perdão. Tenho um arquivo.
Ela, de desgosto, jejuava. Gostando tanto de bife!
Ficaram recordando.
Ele mentia muito.
Ela me chamava de mentiroso justamente quando eu falava verdade.
Ele era impaciente.
Ela fazia de boba, me enervava.
Ele tinha ódio de me ver doente. Embora sentindo pena, e querendo ajudar, virava onça.
Eu também não podia adoecer, os cuidados dela eram excessivos. Doente precisa de paz.
Algum dia, no íntimo, você pensou em matar sua mulher? — arrisquei.
Mais ou menos. Quando ela comprou um tapete horroroso.
E você já pensou em envenenar seu marido?
Nunca. Mas tinha medo de que outra mulher o fizesse.
Vocês discutiam por causa de dinheiro?
Ele, satisfeito: — O dinheiro não dava para isso.
Ela: — Não posso me queixar. Ele nunca me negou nada.
Ele: — Ela teve a esperteza de nunca me pedir nada que eu não pudesse dar.
Que foi que preservou o lar de vocês, nos momentos difíceis?
Ela: — O tricô, que apura as virtudes femininas, e o hábito.
Ele: — A poltrona, o cãozinho, o hábito.
Eu: — Só isso?
Os dois: — E tudo mais.
Quanto tempo leva para um se acostumar ao outro?
Ele: — Uma semana. Mas durante os primeiros vinte anos, uma vez ou outra, a gente se estranha ao acordar. E isto salva da rotina.
Qual o papel dos filhos no casamento?
Ele: — Educar os pais. Poucos o conseguem.
Vocês se educaram?
Ele: — Não. Continuamos a achar nossa filha mais moça do que nós. A verdade é que, nascendo depois, ela sabe muito mais. Os pais são rebeldes ao ensino.
Ela: — Ele é sofisticado. No fundo, coruja como os outros.
Qual foi o presente de aniversário que ele deu a você?
Um colar de pérolas barrocas.
Ele: — Para me fazer lembrado. Ela diz que sou uma pérola — mas barroca, isto é, imperfeita.
Ela: — E eu dei a ele um barbeador elétrico. Para lembrar que marido não deve ficar com a barba crescida quando não sai de casa.
Vocês se casariam de novo?
Como resposta, beijaram-se. Não aprendi nenhum segredo, mas afinal o segredo de todos os casais antigos deve ser mesmo esse.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

Auto-observação.

O convívio com os seres humanos atrai para a auto-observação.
Franz Kafka, in Aforismos reunidos

Aos desprezadores do corpo

Aos desprezadores do corpo desejo falar. Eles não devem aprender e ensinar diferentemente, mas apenas dizer adeus a seu próprio corpo — e, assim, emudecer.
Corpo sou eu e alma” — assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?
Mas o desperto, o sabedor, diz: corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo.
O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de “espírito”, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão.
Eu”, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer — é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu.
O que o sentido sente, o que o espírito conhece, jamais tem fim em si mesmo. Mas sentido e espírito querem te convencer de que são o fim de todas as coisas: tão vaidosos são eles.
Instrumentos e brinquedos são sentidos e espírito: por trás deles está o Si-mesmo. O Si-mesmo também procura com os olhos do sentido, também escuta com os ouvidos do espírito.
O Si-mesmo sempre escuta e procura: compara, submete, conquista, destrói. Domina e é também o dominador do Eu.
Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido — ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele.
Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria. E quem sabe por que teu corpo necessita justamente de tua melhor sabedoria?
Teu Si-mesmo ri de teu Eu e de seus saltos orgulhosos. “Que são para mim esses saltos e voos do pensamento?”, diz para si. “Um rodeio até minha meta. Eu sou a andadeira do Eu e o soprador dos seus conceitos.”
O Si-mesmo diz para o Eu: “Sente dor aqui!”. E esse sofre e reflete em como não mais sofrer — e justamente para isso deve pensar.
O Si-mesmo diz para o Eu: “Sente prazer aqui!”. E esse se alegra e reflete em como se alegrar mais — e justamente para isso deve pensar. Aos desprezadores do corpo tenho algo a dizer. O fato de desprezarem constitui o seu prezar. O que foi que criou o prezar e o desprezar, o valor e a vontade?
O Si-mesmo criador criou para si o prezar e o desprezar, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou para si o espírito, como uma mão de sua vontade.
Ainda em vossa tolice e desprezo, vós, desprezadores do corpo, atendeis ao vosso Si-mesmo. Eu vos digo: vosso próprio Si-mesmo quer morrer e se afasta da vida.
Já não é capaz de fazer o que mais deseja: — criar para além de si. Isso é o que mais deseja, isso é todo o seu fervor.
Mas ficou tarde demais para isso: — então vosso Si-mesmo quer perecer, desprezadores do corpo!
Vosso Si-mesmo quer perecer, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Pois não mais sois capazes de criar para além de vós.
E por isso vos irritais agora com a vida e a terra. Há uma inconsciente inveja no oblíquo olhar do vosso desprezo.
Não seguirei vosso caminho, desprezadores do corpo! Não sois, para mim, pontes para o super-homem! —

Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Ponderação

Refletir ponderadamente sobre alguma coisa antes de realizá-la; porém, uma vez realizada, e sendo previsíveis os seus resultados, não se angustiar com reflexões contínuas a respeito dos seus possíveis perigos. Em vez disso, libertar-se completamente do assunto, manter fechada a gaveta que o contém, tranquilizando-se com a certeza de que tudo foi devidamente analisado a seu tempo. Se, ainda assim, o resultado é negativo, é porque todas as coisas estão submetidas ao acaso e ao equívoco.”
Arthur Schopenhauer, in A arte de ser feliz

Na Garganta do Diabo

Odeio Carlos III e o Marquês de Pombal”, disse uma voz ao meu lado. “Quando eles expulsaram os jesuítas, destruíram um projeto civilizador. Foi uma tragédia para todos nós.”
Enquanto o guia falava em espanhol, os turistas o olhavam perplexos. Eu observava as ruínas de uma missão jesuítica perto de Posadas. Os turistas fotografaram as paredes e colunas amarelas, de um amarelo terroso, avermelhado, escurecido pelo tempo; depois se afastaram para beber refrigerante e cerveja. O guia, agora sozinho e calado, contemplava uma escola do século XVIII.
Parecia um homem tristíssimo. Quando me aproximei dele e disse que eu era um visitante interessado nessa tragédia, me encarou com seus olhos rasgados e perguntou: “Visitante ou turista?”.
Acho que dá no mesmo”, respondi.
Não, não dá no mesmo”, replicou em português, sem sotaque. “Hoje em dia os turistas fotografam tudo, sem conhecer nada. Não querem ouvir histórias do lugar, nem a história do lugar”.
Argumentei que a imensa maioria dos turistas sempre agiu assim.
Não é verdade”, disse em espanhol, também sem sotaque.
Perguntei se ele era bilíngue.
Sem nenhum pedantismo, disse que podia reverenciar a lua em seis idiomas. O pai de José Yu Hu era um chinês de Goa; a mãe, uma brasileira de Foz do Iguaçu, neta de índios.
Nasci a poucos metros do rio Paraná”, ele disse. “Cresci na tríplice fronteira, ouvindo o espanhol paraguaio e argentino, ouvindo o cantonês falado por meu pai e o português materno. Essas três línguas não são menos familiares para mim do que a paisagem de Foz, Puerto Iguazu e Ciudad del Este.”
Yu Hu contou que aos dezenove anos já era guia de turismo. Estudou a história dos países da tríplice fronteira, leu muitos livros da literatura desses países, leu tudo sobre a Guerra do Paraguai, que, para ele, era uma das maiores atrocidades desta América e a menos comentada, ou a mais ocultada.
Há quarenta e dois anos trabalho com turismo. Naveguei com turistas pelo rio Paraná, andei com eles pela floresta, levei-os para ver de perto as cachoeiras, principalmente a Garganta do Diabo. Antes, quando eu recitava poemas sobre a natureza selvagem, eles me ouviam com interesse. Recitava poemas chineses e uma lenda guarani, que eu mesmo tinha traduzido; recitava poemas ingleses, italianos, norte-americanos, franceses, latino-americanos, e os turistas se deleitavam com as minhas palavras; quer dizer, com os versos de grandes poetas traduzidos por mim.”
Bebeu água do cantil e fez um gesto contrariado com a cabeça. Eu me refugiara na sombra de uma parede de pedras, mas Yu Hu não saiu do sol. Era moreno, e seu rosto asiático podia ser também indígena.
Às vezes recitava poemas sobre a morte”, ele prosseguiu. “Quem, diante da Garganta do Diabo, a um passo desse abismo cercado de rochas e água, não pensa na morte? Eu dizia: ‘Esse abismo sem fundo, esse abismo quase infinito não nos remete ao nosso destino comum?’. Eles me olhavam com ar pensativo. Refletiam sobre minhas palavras, refletiam sobre a vida e seu avesso: o silêncio eterno. Talvez refletissem sobre o amor, nossa ansiada plenitude, ou sobre o vazio da vaidade. E, enquanto eles pensavam em coisas ao mesmo tempo simples e profundas, ouvíamos o barulho estrondoso da água caindo no abismo.”
Um escorpião saiu de uma fresta das pedras e ficou parado, à espera de algo. Perguntei a Yu Hu em que ele pensava.
Eu?”, ele disse, olhando o escorpião. “Eu também pensava no nosso destino. Naquela época eu era um jovem guia de turismo que olhava o rosto de jovens latino-americanos e pensava: estão todos perdidos? Estamos todos à deriva? Perdidos ou à deriva, não importa… Estávamos vivos, líamos e pensávamos muito, fazíamos perguntas sobre a nossa vida, nossa história. Mas isso faz muito tempo, mais de trinta anos… Na década de 1980, poucos queriam ouvir poemas. E hoje, já nem ouso recitar um soneto de amor. Há uns seis meses, aqui mesmo em Posadas, um turista me perguntou: ‘Yu Hu, você não gostaria de participar do Facebook?’. Os outros turistas tiraram fotos do meu corpo diante dessa parede de pedras. Enquanto riam e fotografavam, eu lhes dizia: ‘Não façam isso com esse velho inútil’. Acho que nem me escutaram. Outro dia, quase por distração, quando citei um poema de Borges, um brasileiro perguntou: ‘Borges, o centroavante do Santos?’. Fiquei mudo, senti um ardor nos olhos, senti saudades daqueles mochileiros da Garganta do Diabo, todos sabiam quem era Jorge Luis Borges, quem era Augusto Roa Bastos, quem era o autor do poema ‘Meditação sobre o Tietê’.”
A mão que segurava o cantil descaiu. Yu Hu virou o corpo para a escola arruinada, ia dizer alguma coisa, mas os turistas já estavam por ali. Seguravam latas e garrafas e um deles pediu ao guia para que fossem embora.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Da mutilação à plenitude

Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, baixou um decreto de brancura: ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio. Das três partidas que jogou, a seleção branca perdeu duas.
Nesse campeonato sul-americano Friedenreich não jogou. Naquela época, era impossível ser negro no futebol brasileiro, e ser mulato era difícil: Friedenreich entrava em campo sempre tarde, porque no vestiário demorava meia hora esticando o cabelo, e o único jogador mulato do Fluminense, Carlos Alberto, branqueava a cara com pó de arroz.
Depois, apesar dos donos do poder e não por causa deles, as coisas foram mudando. Bem mais tarde, com o passar do tempo, aquele futebol mutilado pelo racismo pôde se revelar em toda a plenitude de suas diversas cores. Após tantos anos é fácil comprovar que foram negros ou mulatos os melhores jogadores da história do Brasil, de Friedenreich a Romário, passando por Domingos da Guia, Leônidas, Zizinho, Garrincha, Didi e Pelé. Todos vinham da pobreza, e alguns voltaram a ela. Por outro lado, nunca houve nenhum negro ou mulato entre os campeões brasileiros de automobilismo. Como o tênis, o esporte das pistas exige dinheiro.
Na pirâmide social do mundo, os negros estão embaixo e os brancos em cima. No Brasil chamam isso de democracia racial , mas a verdade é que o futebol oferece um dos poucos espaços mais ou menos democráticos onde as pessoas de pele escura podem competir em pé de igualdade. Podem, mas até certo ponto – porque também no futebol uns são mais iguais que os outros. Embora tenham os mesmos direitos, nunca competem nas mesmas condições o jogador que vem da fome e o atleta bem alimentado. Mas pelo menos no futebol há alguma possibilidade de ascensão social para o menino pobre, em geral negro ou mulato, que só tem a bola como brinquedo: a bola é a única varinha mágica em que pode acreditar. Talvez ela lhe dê de comer, talvez ela o transforme num herói, talvez em deus.
A miséria o torna apto para o futebol ou para o delito. Desde que nasce, esse menino é obrigado a transformar em arma sua desvantagem física, e rapidamente aprende a driblar as normas da ordem que lhe nega um lugar. Aprende a descobrir como despistar cada pista, e torna-se sábio na arte de dissimular, surpreender, abrir caminho onde menos se espera e tirar o inimigo de cima com um requebro de cintura ou qualquer outra melodia da música malandra.
Eduardo Galeano, in Futebol ao sol e à sombra

É da pontinha!

Está desaparecendo a popularidade nacional do gesto de pegar no lóbulo da orelha e dizer: É da pontinha! proclamando a excelência do objeto indicado na ocasião.
À volta de 1922, Ano do Centenário da Independência e que atraiu para o Rio de Janeiro as curiosidades de todo o Brasil e de todo o Mundo, a frase era comum e ouvida em qualquer recanto carioca ou amazonense, gaúcho ou pernambucano. É da pontinha!... Daqui!... valiam aprovações e denúncia oral da indiscutível primazia. Com a simples mímica de tocar a orelha dava-se opinião suficiente sobre vinho, mulher, cavalo, culinária, versos, quadros, todos os motivos sedutores que podiam envolver a sensibilidade humana.
Já não ouço, com a mesma frequência, o é da pontinha ou o mero é daqui, bastantes para um notório julgamento.
Praticamente parece extinto e podemos dizer que os gestos, com voga e fama de vulgaridade expansionista, têm, como os livros, seu destino. Alguns atravessam o milênio e outras curtas décadas, vividas intensamente na simpatia do povo.
Quem não o conheceu, aplicado e expressivo, em todas as camadas sociais e em todos os quadrantes do Brasil, etnográfico e folclórico?
Tive mesmo ocasião de assistir a uma curiosa, e possivelmente única, utilização do gesto num discurso público de agradecimento, sonora e ruidosamente aplaudido. Não posso precisar o ano e mês mas, pela narrativa, será possível identificar-se no tempo a festa evocada. 1919?
Faziam a campanha oficial da nacionalização da pesca e os poveiros, pescadores veteranos, iam sendo compelidos a aceitar a condição de “brasileiros” ou abandonar os barcos e as redes ao redor da Baía da Guanabara. João do Rio (1881-1921) tomara a defesa dos poveiros, portugueses da Póvoa do Varzim, e estava sendo aclamado pela respectiva colônia. No Teatro João Caetano ou Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, uma companhia portuguesa ofereceu a João do Rio uma homenagem. Teatro repleto, assistência entusiástica, aplausos ensurdecedores. João do Rio, de um camarote perto do palco, agradeceu num rápido discurso, muito pouco entendido e conexo debaixo da tempestade de palmas. E o público explodiu numa apoteose quando o jornalista, fazendo o elogio do pescador poveiro, disse que, no ponto de vista de trabalho e caráter, era daqui, e segurou a extremidade do pavilhão auditivo. O gesto era português e popularíssimo em Portugal.
Aplicava-se especialmente aos vinhos e isto se verificava, porque havia e há em Portugal a frase vinho de orelha quando alguém quer referir-se a um bom vinho. E não querendo citar o de orelha, alusivo ao vinho, bastará fazer o gesto de tocar na orelha. É daqui... e todo bom bebedor entende perfeitamente. Pertencente à gíria dos provadores passou ao patrimônio comum da linguagem popular nas regiões da vindima.
Na sua seção Arquivo Etnográfico (Lusa, janeiro-junho, 1924, Viana do Castelo), Cláudio Basto recolheu um dos letreiros típicos da Feira de Agosto, em Lisboa (1915), nas barracas de comes e bebes.

É lá ti Mané Nabiço
Você é mais fino q’uma abelha,
Olhe q’o seu vinho é o melhor
é d’aqui... de traz d’orelha.

Eça de Queirós, em A ilustre casa de Ramires (cap. II), faz o grande Titó, D. Antônio Vilalobos, convidar Gonçalo Mendes Ramires, usando dessas tentações: “Ouve lá! Tu queres hoje à noite cear no Gago, comigo e com o João Gouveia? Vai também o Videirinha e o violão. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que comprei esta manhã a uma mulher da Costa por cinco tostões. Assada pelo Gago!... Entendido, hem? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abade de Chandin. Conheço o vinho. É daqui, da ponta fina. E Titó, com dois dedos, delicadamente, sacudiu a ponta mole da orelha”. E no encontro, Gonçalo aparece esfaimado, não permitindo que o Titó descesse à tabacaria do Brito, “a buscar uma garrafa de aguardente de cana da Madeira, velha e da ‘ponta fina’”.
E, narrando a jornada de Santa Clara para Oliveira, Titó dizia ao fidalgo: “Viemos juntos! Por sinal numa tranquitana infame... Até se nos desferrou uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha. Não se perdeu tempo, que há agora lá um vinhinho branco que é daqui da ponta fina!”. Beliscava a orelha.
Já em princípios do século XVII, dizia-se em Portugal: “Este vinho é d’orelha, por São Prisco!”, como se encontra na Comédia Ulissipo, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, a edição de Lisboa em 1618, que outra mais antiga não conheço.
A origem da frase portuguesa é a francesa “Vin d’une oreille, bon vin, dont on approuve le goût en inclinant la tête d’un seul coté”. O prestante Larousse informa que o “Vin des deux oreilles, mauvais vin, dont le goût désagreáble fait qu’on remue plusieurs fois la tête, et par conséquent l’une et l‘autre oreille”.
Os gestos franceses relativos ao vinho duma orelha e vinho de duas orelhas era inclinar a cabeça para um lado ou movê-la várias vezes, duma para outra orelha, desaprovativamente.
De Portugal seria o gesto de pegar no lóbulo da orelha como ato complementar significativo. Este é que veio atravessando tempo e monção e o registro de Eça de Queirós demonstra sua cotidianidade na segunda metade do século XIX. Ao contrário do Brasil, ainda está vivo e presente na mímica tradicional portuguesa.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

terça-feira, 26 de junho de 2018

A grande onda

A grande onda de Kanagawa (1832), de Katsushika Hokusai

Desde os seis anos tenho mania de desenhar a forma das coisas. Aos 50 anos, publiquei uma infinidade de desenhos. Mas tudo que produzi antes dos 70 não é digno de ser levado em conta. Aos 73 anos, aprendi um pouco sobre a verdadeira estrutura da natureza dos animais, das plantas, dos pássaros, dos peixes e dos insetos. Com certeza, quando tiver 80 anos, terei realizado mais progressos; aos 90, penetrarei nos mistérios das coisas; aos 100, por certo, terei atingido uma fase maravilhosa, e, quando tiver 110 anos, qualquer coisa que fizer, seja um ponto ou uma linha, terá vida”.
Katsushika Hokusai, pintor e gravurista japonês

Como se afundasse na noite

Estou com a boca cheia de terra.
Sim, padre.
Não diga: “Sim, padre.” Repete comigo o que eu for dizendo.
O que o senhor vai me dizer? Vai pegar a minha confissão outra vez? Por que outra vez?
Esta não vai ser uma confissão, Susana. Só vim conversar com você. Preparar você para a morte.
Eu já vou morrer?
Vai, filha.
Então por que não me deixa em paz? Estou com vontade de descansar. Devem ter pedido ao senhor que viesse tirar meu sono. Que ficasse aqui comigo até meu sono ir embora. E o que eu vou fazer depois para encontrar meu sono? Nada, padre. Então por que o senhor não vai embora de uma vez e me deixa tranquila?
Vou deixar você em paz, Susana. Conforme você for repetindo as palavras que eu disser, irá adormecendo. Vai sentir como se você mesma se ninasse. E vai ver que quando você dormir, ninguém mais irá despertá-la... Você não vai voltar a despertar nunca mais.
Está bem, padre. Vou fazer o que o senhor disser.
O padre Rentería, sentado na beira da cama, as mãos postas sobre os ombros de Susana San Juan, com sua boca assim quase grudada na orelha dela para não falar alto, encaixava secretamente cada uma de suas palavras: “Tenho a boca cheia de terra.” Depois se deteve. Tratou de ver se os lábios dela se moviam. E os viu balbuciar, embora sem deixar sair som algum.
Tenho a boca cheia de ti, da sua boca. Seus lábios apertados, duros como se mordessem oprimindo meus lábios...”
Também se deteve. Olhou de viés o padre Rentería e viu-o ao longe, como se estivesse por trás de um vidro embaçado.
Depois tornou a ouvir a voz esquentando seu ouvido:
Tenho saliva espumosa; mastigo torrões coalhados de vermes que se aninham na minha garganta e raspam o meu céu da boca... Minha boca se afunda, contorcendo-se em trejeitos, perfurada pelos dentes que a perfuram e devoram. O nariz amolece. A gelatina dos olhos se derrete. Os cabelos ardem numa labareda só...
Estranhava a quietude de Susana San Juan. Teria querido adivinhar seus pensamentos e ver a batalha daquele coração por rejeitar as imagens que ele estava semeando dentro dela. Olhou seus olhos e ela devolveu o olhar. E ele achou que estava vendo como os lábios dela forçavam um sorriso.
Ainda falta uma coisa. A visão de Deus. A luz suave de seu céu infinito. O gozo dos querubins e o canto dos serafins. A alegria dos olhos de Deus, a última e fugaz visão dos condenados à pena eterna. E não apenas isso, mas tudo conjugado com uma dor terrena. O tutano dos nossos ossos convertido em lume e as veias do nosso sangue em fios de fogo, fazendo-nos contorcer de uma dor incrível; que não míngua nunca; atiçado sempre pela ira do Senhor.
Ele me abrigava entre seus braços. Ele me dava amor.”
O padre Rentería repassou com os olhos as figuras que estavam à sua volta, esperando o último momento. Perto da porta, Pedro Páramo esperava com os braços cruzados; em seguida, o doutor Valência, e junto a eles outros senhores. Mais além, nas sombras, um punhado de mulheres para quem já estava se fazendo tarde para começar a rezar a oração dos defuntos.
Teve intenção de se levantar. Dar os santos óleos à enferma e dizer: “Terminei.” Mas não, ainda não terminara. Não podia entregar os sacramentos a uma mulher sem conhecer o tamanho de seu arrependimento.
Sentiu que entrava em dúvidas. Talvez ela não tivesse nada de que se arrepender. Talvez ele não tivesse nada a perdoar. Inclinou-se suavemente sobre ela, e sacudindo seus ombros, disse em voz baixa:
Você está indo até a presença de Deus. E sua sentença é desumana para os pecadores.
Depois aproximou-se outra vez de seu ouvido; mas ela sacudiu a cabeça:
Vá embora de uma vez, padre! Não se mortifique por mim. Estou tranquila e tenho sono.
Ouviu-se o soluço de uma das mulheres escondidas na sombra.
Então Susana San Juan pareceu recobrar a vida. Endireitou-se na cama e disse:
Justina, faça-me o favor de ir chorar em outro canto!
Depois sentiu que a cabeça se cravava em seu ventre. Tentou separar o ventre de sua cabeça; afastar aquele ventre que apertava seus olhos e cortava sua respiração; mas cada vez se inclinava mais como se afundasse na noite.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo