O auto-retrato

No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…

e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!
Mário Quintana

Os mortos não se queixam mais


No começo do amanhecer, o dia vai dando voltas, com pausas; quase dá para ouvir as dobradiças da terra, que giram emboloradas; a vibração desta terra velha que derrama sua escuridão.
É verdade que a noite está cheia de pecados, Justina?
É, Susana.
De verdade?
Deve ser, Susana.
E o que você acha que a vida é, Justina, a não ser um pecado? Está ouvindo? Está ouvindo como a terra range?
Não, Susana, eu não consigo ouvir nada. Minha sorte não é tão grande como a sua.
Você iria se espantar. Eu digo que você iria se espantar se ouvisse o que eu ouço.
Justina continuou arrumando o quarto. Repassou uma vez e outra a estopa grossa sobre as tabuonas úmidas do assoalho. Limpou a água do floreiro quebrado. Recolheu as flores. Pôs os cacos de vidro no balde cheio d’água.
Quantos pássaros você matou na vida, Justina?
Muitos, Susana.
E não sentiu tristeza?
Senti, Susana.
Então, está esperando o quê para morrer?
A morte, Susana.
Se é só isso, já, já ela chega. Não se preocupe.
Susana San Juan estava erguida sobre seus travesseiros. Os olhos inquietos, olhando para todos os lados. As mãos sobre o ventre, grudadas em seu ventre como uma concha protetora. Havia ligeiros zumbidos que passavam como asas por cima da sua cabeça. E o ruído das roldanas na madeira do poço. O rumor que as pessoas fazem ao acordar.
Você acredita no inferno, Justina?
Sim, Susana. E no céu também.
Eu só acredito no inferno — ela disse. E fechou os olhos.
Quando Justina saiu do quarto, Susana San Juan estava adormecida de novo e lá fora o sol lançava chispas. Encontrou Pedro Páramo no caminho.
Como é que a senhora está?
Mal — ela respondeu agachando a cabeça.
Ela se queixa?
Não, senhor, não se queixa de nada; mas dizem que os mortos não se queixam mais. A senhora está perdida para todos.
O padre Rentería não veio vê-la?
Veio ontem, e tomou-lhe a confissão. Hoje ela deveria ter comungado, mas não deve estar nas graças, porque o padre Rentería não trouxe a comunhão para ela. Disse que ia fazer isso logo cedo, e o senhor está vendo, o sol já está aqui e ele não veio. Ela não deve estar nas graças.
Nas graças de quem?
De Deus, senhor.
Não seja boba, Justina.
Como o senhor quiser, patrão.
Pedro Páramo abriu a porta e ficou ao lado dela, deixando que um raio de luz caísse sobre Susana San Juan. Viu seus olhos apertados como quando se sente uma dor; a boca umedecida, entreaberta, e os lençóis sendo percorridos por mãos inconscientes até mostrar a nudez de seu corpo que começou a se contorcer em convulsões.
Percorreu aquele pequeno espaço que o separava da cama e cobriu o corpo nu, que continuou se debatendo como uma minhoca em espasmos cada vez mais violentos. Aproximou-se de seu ouvido e falou: “Susana!” E tornou a repetir: “Susana!”
A porta foi aberta e em silêncio entrou o padre Rentería, movendo brevemente os lábios:
Vou lhe dar a comunhão, filha minha.
Esperou que Pedro Páramo a levantasse encostando-a sobre o espaldar da cama. Susana San Juan, semiadormecida, estendeu a língua e engoliu a hóstia. Depois disse: “Tivemos um tempo muito feliz, Florencio.” E tornou a se afundar entre a sepultura de seus lençóis.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

Prólogo de Zaratustra - 9

Longamente dormiu Zaratustra, e não apenas a aurora passou sobre o seu rosto, mas também a manhã. Enfim seus olhos se abriram: admirado, Zaratustra enxergou a floresta e o silêncio, e admirado olhou dentro de si. Então se ergueu depressa, como um navegante que subitamente vê terra, e exultou: pois viu uma nova verdade. E assim falou então ao seu coração:
Uma luz raiou para mim: de companheiros necessito, de vivos — não de mortos e cadáveres, que levo comigo para onde quero ir.
Mas de companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos — e para onde quero ir.
Uma luz raiou para mim: que Zaratustra não fale para o povo, mas para companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho!
Para atrair muitos para fora do rebanho — vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo: Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores.
Pastores” digo eu, mas eles se chamam os bons e justos. “Pastores” digo eu: mas eles se chamam os crentes da verdadeira fé.
Vede os bons e justos! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator: — mas esse é o que cria.
Vede os crentes de todas as fés! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator: — mas esse é o que cria. Companheiros é o que busca o criador, não cadáveres, e tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criem juntamente com ele busca o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas.
Companheiros é o que busca o criador, e aqueles que colham juntamente com ele: pois tudo nele se acha maduro para a colheita. Mas faltam-lhe as cem foices: então ele arranca as espigas e se aborrece.
Companheiros é o que busca o criador, e aqueles que saibam afiar suas foices. Destruidores serão eles chamados, e desprezadores de bem e mal. Mas são eles os que colhem e que festejam.
Aqueles que também criem busca Zaratustra, que também colham e festejem busca Zaratustra: que tem ele a fazer com rebanhos e pastores!
E tu, meu primeiro companheiro, repousa em paz! Bem te sepultei em tua árvore oca, bem te escondi dos lobos.
Mas me separo de ti, o tempo chegou. Entre duas auroras, uma nova verdade me chegou.
Não deverei ser pastor, nem coveiro. Jamais tornarei a me dirigir ao povo; pela última vez falei com um morto.
Quero juntar-me aos que criam, que colhem, que festejam: eu lhes mostrarei o arco-íris e todos os degraus até o super-homem.
Aos eremitas cantarei minha canção, e também aos eremitas a dois; e quem tiver ainda ouvidos para coisas inauditas, esse ficará de coração oprimido com a minha felicidade.
Para minha meta me ponho a caminho; saltarei sobre os hesitantes e os vagarosos. Assim, que minha marcha seja o seu declínio!
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

O céu de um pintor

Você quer me sufocar de tanto desejo?, perguntou o pintor, sorrindo.
Pôs o celular no bolso da calça e me disse: “Era ela. Será que amanhã vai me dar o cano?”.
Donoso pegou a desempenadeira de aço e passou a massa num trecho da parede. Reclamou do tempo feio e da umidade: “Hoje não dá pra pintar. Essa massa não vai secar tão cedo…”.
Anoitecia. Mas desde o meio da tarde, quando ele começou a pintar as janelas, fazia uma pausa para dar uma olhada no celular.
Não gosto de cheiro de tinta, mas gosto de ouvir histórias.

Tinha doze anos quando vim para cá com meu tio, disse Donoso. A gente morava num quarto de uma pensão na rua Capri e eu ajudava meu tio a carregar tralhas, ele trabalhava numa transportadora. Seis anos assim, no muque, até o dia em que o dono da casa fechou a pensão e despejou todo mundo. Meu tio se esquentou e decidiu voltar para Pernambuco. Eu embirrei: quis ficar em São Paulo, não queria cuidar de bode. Saudade é coisa boa pra quem tem pai e mãe, e eu não tinha nenhum dos dois. Meu tio olhou bem nos meus olhos: “Você vai ficar aqui, Donoso? E se você se perder?”. Eu respondi: “Mais perdido do que já estou?”.
Ele me deu uns cruzeiros, pouca coisa, era um homem sovina, não abria a mão nem pra dar adeus. E foi embora. Eu penei. Morava num matagal cheio de pés de mamona, onde hoje é o shopping Eldorado. De manhã eu batia perna atrás de serviço, comia pão seco, às vezes um padeiro me dava o último salgadinho da noite. O senhor não sabe o que é a fome. Eu, modestamente, sei. Saudade mesmo eu senti do meu quarto da rua Capri, porque era duro dormir no matagal e tomar banho com água gelada no inverno. Uma tarde entrei num boteco do Butantã pra pedir um quibe, o dono me deu uma vassoura e disse: “Pode varrer tudo”. Varri tudo e ainda passei um pano no chão e lavei a louça; depois bebi muita água da torneira; bebi para matar a fome, e não a sede. O português me deu dois quibes e uns trocados. Continuei a andar por aí, procurando meu destino. Mas o destino não é o acaso? Andei até a Vila Sônia, onde vi umas casinhas em construção, quase prontas. Perguntei ao mestre de obras se ele precisava de um pintor. “Tem prática?”, ele perguntou. “Tenho sim”, menti. “Então comece a passar cal naquele muro”, disse o mestre. Passei cal no muro e ouvi do mestre: “Agora pinte as paredes daquela casa”. Disfarcei, dei uma olhada no trabalho de outro pintor e voltei para as minhas paredes. O que a gente não conhece, a gente imita. Não entendia nada de mistura de tinta, quantidade de água, acabamento, mas trabalhei com capricho, usando uma brocha de piaçaba, brocha de náilon não existia naquela época. Fui contratado, tomei gosto pela pintura, dois anos depois eu já trabalhava sozinho, tinha minha freguesia. A desgraça é que não sabia ler nem escrever, e me embaralhava com os números, não conseguia fazer orçamento. Comecei de novo: aprendi a ler, a calcular, nunca mais fui enganado… O tempo passa rápido, a gente nem percebe… Casei três vezes, tenho quatro filhos, faz tempo que estou separado. Decidi ficar quieto, sozinho, já sofri muito, não vale a pena se chatear com mulher. Mas a vida tem surpresas, e eu me apaixonei por uma moça… Já passei dos sessenta anos, ela completou trinta. A gente se encontrou num ônibus, e eu logo me encantei com a voz dela… Língua de veludo, se o senhor ouvisse. Por isso ela é telefonista, mas o salário é uma mixaria, ela ganha por mês o que eu cobro pra pintar duas janelinhas e quatro paredes. Jurou que ia me telefonar, mas jurou falso. Sumiu por dois meses. Agora me ligou para pedir desculpa. Perguntei se ela queria me sufocar de tanto desejo. Riu de mim. Disse: “Amanhã te explico o que aconteceu, amor”. Que voz! E o diabo é que ontem mesmo sonhei com ela… Você passa mais de duas horas dentro de um ônibus lotado e acaba dormindo de pé, que nem cavalo. Sonhei que subia numa escada para pintar o teto de um cinema e de repente o teto sumiu e lá no alto apareceu a minha cidade natal, pequena e pobre, do jeito que conheci quando era menino. Aí pintei de azul o céu do meu vilarejo. E nesse azul pintado por mim, surgiu o rosto da moça. Fiquei admirando a beleza dela lá nas alturas… Quando acordei, estava no Campo Limpo. Agora vou atrás do meu sonho… Gostou da pintura das janelas? Segunda-feira passo tinta nas paredes.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Casa e moradia do homem sem qualidades

A rua em que acontecera o pequeno acidente era um daqueles longos e sinuosos rios de trânsito que brotam como raios do coração da cidade, varam os bairros afastados e acabam nos subúrbios. Se o elegante casal seguisse por ela mais um pouco, teria visto algo que certamente lhe agradaria. Era um jardim do século XVIII, ou até XVII, ainda parcialmente conservado; passando diante de suas grades de ferro batido, via-se entre as árvores, sobre relvados cuidadosamente aparados, algo que parecia um castelinho de alas curtas, um castelinho de caça ou de amor, de tempos passados. Para ser exato, as abóbadas de sustentação eram do século XVII, o parque e o andar superior pareciam do século XVIII, as fachadas tinham sido renovadas e um pouco prejudicadas no século XIX; portanto o todo estava um tanto confuso, como em retratos fotografados uns por cima dos outros; mas acabava-se parando ali, infalivelmente, e dizendo: “Ah!” E quando aquela coisa alva, graciosa e bela estava de janelas abertas, avistavam-se as paredes de livros, nobres e silenciosas, da casa de um homem de cultura.
A moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.
Ele estava postado atrás de uma janela, e através do filtro verde-pálido do ar do jardim contemplava a rua pardacenta; há dez minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que estivera fazendo uma tolice.
Se se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara, tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma.
Pois nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E alguém que faz?
Podem-se deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.
A atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária ilusão. Essa ideia lhe agradou.
Deve-se acrescentar, porém, que ela não lhe agradava por ele amar a vida burguesa; ao contrário, gostava apenas de contrariar suas inclinações, que outrora tinham sido diferentes. Talvez seja exatamente o pequeno-burguês quem prevê o começo de um heroísmo coletivo, de formigueiro, extraordinariamente novo. Vão chamá-lo de heroísmo racionalizado, e achar tudo muito bonito. Hoje em dia, quem pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas de indagações irrespondidas desse tipo, da maior importância. Pairavam no ar, ardiam sob os pés. O tempo corria. Pessoas que ainda não viviam então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.
A gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças!” Depois afastou-se, como uma pessoa que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que teme qualquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir anexo, passou por um punching ball ali pendurado, deu-lhe um soco rápido e forte, que não é propriamente comum em momentos de resignação ou estados de fraqueza.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Memória curta

Nada é tão admirável em política quanto uma memória curta.”
John Galbraith

Conjecturas

Capitão Ahab

Embora, consumido pelo fogo ardente de seu propósito, Ahab sempre tivesse presente, em todos os seus pensamentos e ações, a captura definitiva de Moby Dick; embora parecesse disposto a sacrificar todos os interesses mortais àquela sua única paixão; no entanto, por natureza ou por hábito longamente adquirido, talvez estivesse por demais comprometido com a carreira de baleeiro irascível para abandonar todos os outros interesses concomitantes da viagem. Ou, se não fosse por isso, não faltavam motivos que exercessem influência maior sobre ele. Talvez seja discorrer com excesso de sutileza, mesmo levando em conta sua monomania, insinuar que seu desejo de desforra contra a Baleia Branca pudesse ter se estendido, em certa medida, a todos os cachalotes, e que quanto mais monstros ele matasse tanto mais multiplicaria as possibilidades de que cada baleia encontrada subsequentemente fosse a odiada que ele perseguia. Mas, se tal hipótese fosse objetável, ainda haveria alguns motivos adicionais que, sem se aproximar tanto da selvageria de sua paixão hegemônica, poderiam tê-lo influenciado.
Para atingir seu objetivo, Ahab necessitava de ferramentas; e, de todas as ferramentas usadas à sombra da lua, os homens são os mais dados à falha. Ele sabia por exemplo que, por maior que fosse sua ascendência sobre Starbuck em alguns aspectos, essa ascendência não abrangia sua pessoa espiritual inteira, do mesmo modo que a simples superioridade material não implica o domínio intelectual; pois, para o puramente espiritual, as coisas do intelecto se apresentam apenas numa espécie de relação material. O corpo de Starbuck e a vontade coagida de Starbuck estavam em poder de Ahab apenas enquanto Ahab mantivesse sua força magnética sobre o cérebro de Starbuck; mas sabia que, a despeito disso, o primeiro imediato, no fundo da alma, abominava a busca do capitão e, se pudesse, teria se desassociado dela com prazer, ou mesmo a impedido. Era possível que se passasse muito tempo antes que a Baleia Branca fosse avistada. Durante esse longo período, era sempre possível que Starbuck tivesse recaídas de rebeldia contra a autoridade de seu capitão, a menos que influências comuns, judiciosas e constantes fossem exercidas sobre ele. Não apenas isso, mas a loucura sutil de Ahab em relação a Moby Dick de nenhum modo se manifestava mais significativamente do que em sua extraordinária compreensão e sagacidade ao prever que, naquele momento, era necessário despojar a busca daquela impiedade fantasiosa e estranha de que era naturalmente investida; que o terror absoluto da viagem deveria recolher-se à sombra de um segundo plano (pois são poucos os homens cuja coragem resiste à reflexão prolongada sem o alívio da ação); que nas longas vigílias noturnas seus oficiais e marinheiros tinham que pensar em coisas mais imediatas do que Moby Dick. Pois, a despeito da ansiedade e da impetuosidade com que a feroz tripulação havia saudado a proclamação de sua busca; no entanto, todo marinheiro, de qualquer tipo, é mais ou menos caprichoso e pouco confiável – vivem ao relento do ar livre e mutável e inalam sua inconstância –, e quando são reservados para um objetivo remoto e distante, ainda que repleto de vida e de paixão, é necessário acima de tudo que interesses e ocupações temporárias intervenham para mantê-los saudavelmente em suspenso para o ataque final.
Tampouco Ahab se descuidava de uma outra coisa. Nos momentos de emoções fortes, o homem despreza as considerações humildes; mas tais momentos são efêmeros. A condição permanente do homem tal como é fabricado, pensava Ahab, é a sordidez. Pressupondo que a Baleia Branca incite os corações dessa minha feroz tripulação, e imaginando que sua ferocidade até produza neles uma espécie de brio generoso, todavia, enquanto dão caça a Moby Dick por prazer, é necessário alimentar também seus apetites comuns e rotineiros. Pois mesmo os enlevados e cavalheirescos Cruzados de outrora não se contentavam em atravessar duas mil milhas de terra para lutar por seu Santo Sepulcro sem pilhar, roubar e obter outras pias vantagens pelo caminho. Tivessem eles se limitado a seu único objetivo último e romântico – daquele objetivo último e romântico, muitos teriam desistido por desgosto. Não tirarei desses homens, pensou Ahab, a esperança do dinheiro – sim, dinheiro. Poderiam menosprezar o pagamento agora; mas deixasse passar alguns meses, sem nenhuma promessa em perspectiva de paga, e então esse mesmo capital se amotinaria todo de uma vez dentro deles e decapitaria Ahab.
Também não faltava ainda outro motivo para cautela, mais relacionado a Ahab pessoalmente. Tendo impulsivamente, o que é provável, e talvez de certa forma prematuramente revelado o propósito principal, contudo particular, da viagem do Pequod, Ahab era agora consciente de que, ao agir assim, havia indiretamente se exposto à acusação inquestionável de usurpação; e com total impunidade, tanto moral quanto legal, sua tripulação, se assim quisesse, pois tinha competência para isso, poderia não só se recusar a obedecer-lhe, como até mesmo tirar-lhe o comando à força. Da mais tênue insinuação de uma usurpação, e das possíveis consequências de uma tal impressão suprimida ganhando terreno, Ahab devia estar logicamente ansioso por se proteger. Essa proteção só podia consistir em seu próprio cérebro, coração e mão dominantes, sustentados por uma atenção diligente e rigorosamente calculada às mínimas influências atmosféricas a que a sua tripulação estava sujeita.
Por todas essas razões, então, e outras talvez demasiadamente analíticas para serem desenvolvidas aqui verbalmente, Ahab via claramente que ainda devia se manter sempre fiel ao propósito nominal e natural da viagem do Pequod; observar as praxes costumeiras; e não apenas isso, mas também forçar-se a patentear todo o seu interesse apaixonado e notável no desempenho genérico de sua profissão.
Seja lá como for, sua voz agora era escutada amiúde saudando os marinheiros nos três topos de mastro, exortando-os a manter a vigilância ativa e não omitir nem mesmo uma marsopa. Essa vigilância não tardou a ser recompensada.
Herman Melville, in Moby Dick

Noticiário

A Vergonha bocejou de tédio;
numa modorra medonha
subiu ao alto do prédio
e se atirou.
Empapou o solo, espatifada,
com o pouco sangue que usava
para poder ficar ruborizada.
Ninguém notou.
Flora Figueiredo

A falsa eternidade

O verbo prorrogar entrou em pleno vigor, e não só se prorrogaram os mandatos como o vencimento das dívidas e dos compromissos de toda sorte. Tudo passou a existir além do tempo estabelecido. Em consequência não havia mais tempo.
Então suprimiram-se os relógios, as agendas e os calendários. Foi eliminado o ensino de história. Para que história? Se tudo era a mesma coisa, sem perspectiva de mudança.
A duração normal da vida também foi prorrogada e, porque a morte deixasse de existir, proclamou-se que tudo entrava no regime de eternidade. Aí começou a chover, e a eternidade se mostrou encharcada e lúgubre. E o seria para sempre, mas não foi. Um mecânico que se entediava em demasia com a eternidade aquática inventou um dispositivo para não se molhar. Causou a maior admiração e começou a receber inúmeras encomendas. A chuva foi neutralizada e, por falta de objetivo, cessou. Todas as outras formas de duração infinita foram cessando igualmente.
Certa manhã, tornou-se irrefutável que a vida voltara ao signo do provisório e do contingente. Eram observados outra vez prazos, limites. Tudo refloresceu. O filósofo concluiu que não se deve plagiar a eternidade.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Mentira bem expressa

Por vezes a mentira exprime melhor do que a verdade aquilo que se passa na alma.”
Máximo Gorki

Retirada imperial

É, talvez, controverso se a violência no interior dos Estados aumentou ou diminuiu desde 1945. O que ninguém pode negar é que a violência internacional atingiu o menor índice de todos os tempos. Possivelmente o exemplo mais óbvio é o colapso dos impérios europeus. Ao longo da história, os impérios esmagaram rebeliões com mão de ferro, e, quando seu dia chegara, um império em decadência usava de todo o seu poder para se salvar, normalmente afundando em um banho de sangue. Sua derrocada final levava, no mais das vezes, à anarquia e a guerras de sucessão. Desde 1945, a maioria dos impérios optou por uma retirada precoce e pacífica. Seu processo de colapso se tornou relativamente rápido, calmo e ordenado.
Em 1945, a Grã-Bretanha governava um quarto do globo. Trinta anos depois, governava apenas algumas pequenas ilhas. Nesse período, se retirou da maioria de suas colônias de maneira pacífica e ordenada. Embora em alguns lugares, como a Malásia e o Quênia, os britânicos tenham tentado permanecer pela força das armas, na maioria dos lugares eles aceitaram o fim do império com um suspiro, e não com um ataque de fúria. Concentraram seus esforços não em manter o poder, mas em transferi-lo da maneira mais tranquila possível. Pelo menos parte dos elogios geralmente feitos a Mahatma Gandhi por seu credo não violento se deve, na verdade, ao Império Britânico. Apesar de muitos anos de luta cruel e quase sempre violenta, quando o Raj chegou ao fim os indianos não precisaram enfrentar os britânicos nas ruas de Délhi e de Calcutá. O lugar do império foi tomado por uma porção de Estados independentes, a maioria dos quais desde então desfrutou de fronteiras estáveis e, durante a maior parte do tempo, viveu em paz com seus vizinhos. É verdade, dezenas de milhares de pessoas pereceram nas mãos do Império Britânico ameaçado, e em vários focos de tensão sua retirada levou à eclosão de conflitos étnicos que cobraram centenas de milhares de vidas (em particular, na Índia). Mas, quando comparada à média histórica no longo prazo, a retirada britânica foi um exemplo de paz e ordem. O Império Francês foi mais teimoso. Seu colapso envolveu ações de retaguarda sangrentas no Vietnã e na Argélia que custaram centenas de milhares de vidas. Mas os franceses também se retiraram do restante de seus domínios de forma rápida e pacífica, deixando para trás Estados ordenados, em vez de um caótico salve-se quem puder.
O colapso soviético em 1989 foi ainda mais pacífico, apesar da eclosão de conflitos étnicos nos Bálcãs, no Cáucaso e na Ásia Central. Em nenhum momento anterior um império tão poderoso desapareceu de forma tão rápida e pacífica. O Império Soviético de 1989 não havia sofrido nenhuma derrota militar exceto no Afeganistão, nenhuma invasão externa, nenhuma rebelião, nem mesmo campanhas de desobediência civil em grande escala ao estilo das promovidas por Martin Luther King. Os sovietes ainda tinham milhões de soldados, dezenas de milhares de tanques e aviões, e armas nucleares suficientes para exterminar toda a humanidade várias vezes. O Exército Vermelho e os outros exércitos do Pacto de Varsóvia permaneceram leais. Se o último governante soviético, Mikhail Gorbachev, tivesse dado a ordem, o Exército Vermelho teria aberto fogo sobre as massas subjugadas.
Mas a elite soviética e os regimes comunistas na maior parte da Europa Oriental (a Romênia e a Sérvia foram exceções) escolheram não usar nem mesmo uma fração minúscula desse poder militar. Quando seus membros perceberam que o comunismo estava falido, renunciaram ao uso da força, admitiram seu fracasso, fizeram as malas e foram para casa. Gorbachev e seus colegas desistiram, sem lutar, não só das conquistas soviéticas da Segunda Guerra Mundial como também das conquistas czaristas, muito mais antigas, no Báltico, na Ucrânia, no Cáucaso e na Ásia Central. É assustador pensar no que poderia ter acontecido se Gorbachev tivesse se comportado como a liderança sérvia – ou como os franceses na Argélia.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

terça-feira, 29 de maio de 2018

João Goanhá

Ilustração: Rodrigo Rosa 

João Goanhá, por valentão e verdadeiro, nem carecia de estadear orgulho. Pessoa muito leal e briosa. Ele me disse: ― Agora, da gente não sei o que vai ser... Para guerra grande, eu acho que só Joca Ramiro é que era capaz... Ah , mas João Goanhá também tinha suas cartas altas. Homem de grito grosso. E, mesmo ignorante analfabeto, de repente ele tirava, sei não de onde, terríveis mindinhas ideias, mortes diversas. Assim a gente experimentava, cá e cá, falseando fuga. Os campos-gerais ali também tem. Tombadores. Arre, os tremedais; já viu algum? O chão deles consiste duro enxuto, normal que engana; quem não sabe o resto, vem, pisa, vai avançando, tropa com cavalos, cavalama. Seja sem espera, quando já estão meio no meio, aquilo sucrepa: pega a se abalar, ronca, treme escapulindo, feito gema de ovo na frigideira. Ei! Porque, debaixo da crosta seca, rebole ocultado um semifundo, de brejão engulidor... Pois, em roda dali, João Goanhá dispôs que a gente se amoitasse ― três golpes de homens ― tocaiando. Ao de manhã, primeiro passaram os do sargento Leandro, esses eram os menos, e um guia pagavam, por conhecer o caminho firme. Mas fomos lá, às pressas espalhamos de lugar os ramos verdes de árvore, que eles tinham botado para a certa informação. No depois, vinham os do tenente. Tenente, tenente, tu quer! Seguidos por ali entraram, ah. Dos nossos, uns, acolá, deram tiros, por disfarçação. Iscas! Cavalaria dos praças se avexou. Ave, e pronto, de repente foi! a casca de terra sacudia, se rachou em cruzes, estalando, em muitos metros ― balofou. Os cavalos entornados ― era como despejar prateleiras cheias ― e os soldados aiando gritos, se abraçavam com os animais caintes, ou com o ar, uns a esmo desfechavam mosquetão. Mas encalcados se afundando, pra não mais. A gente, se queria, mirava, ainda acertava neles. Coisas que vi, vi, vi ― ôi... Eu não atirei. Não tive braçagem. Talvez tive pena.
Tanto por tanto, daí se encachorraram mais em nós, por beber vinganças. De campos e matas, vargens e grotas, em cada ponto para trás, dos lados e adiante da gente, ei eram só soldados, montão, se gerando. Furado-do-Meio. Serra do Deus-Me-Livre. Passagem da Limeira. Chapada do Covão. Solón Nelson morreu. Arduininho morreu. Morreram o Figueiró, Batata-Roxa, Dávila Manhoso, o Campêlo, o Clange, Deovídio, Pescoço-Preto, Toquim, o Sucivre, Elisiano, Pedro Bernardo ― acho que foram esses, todos. Chapada do Sumidouro. Córrego do Poldro. Mortos mais uns seis. Corrijo! com outros, que pegos presos ― se disse que foram acabados! Doideamos. A Bahia estava cercada nas portas. Achavam de tomar regalia de desforra na gente, até qualquer molambo de sujeito, paisano morador. Ah, às vezes, perdiam ligeiro essa graça... Gerais da Pedra. Lá, o Eleutério se apartou da gente, umas cem braças, e foi, a pé, bateu em porta duma cafua, por esclarecer. O capiau surgiu, ensinou alguma coisa, errada. Eleutério agradeceu, deu as costas, veio andando uns passos. O capiau então chamou. Eleutério virou para trás, para ouvir o que havia, e levou na cara e nos peitos o cheio duma carga de chumbo fino. Cegou, rodou, entrupicado, arreganhava os braços, todo se sarapintando das manchas vermelhas, que cresciam. O cabelo dele aumentou em pé. E a soldadesca atirava, de emboscados no mato do córrego, e na beira do cerrado, da outra banda. O capiau se encobriu detrás do fôrno de assar biscoito ― de lá fazia pontaria com a espingarda ― e balas nossas levantavam terra ao redor dali, feito um ciscado de cachorro grande. Dentro da cafua também restavam outros soldados; que deram contas a Deus. Ataliba, com o facão, pregou o capiau na taipa da cafua, ele morreu mansinho, parecia um santo. Ficou lá, espetado. Nós ― eh ― bom. Conseguimos aragem. Até em um ponto de a salvo conversarmos.
Serra Escura. Nem munição nem de-comer não sobravam. De forma que a gente carecia de se separar, cada um por seu risco, como pudesse caçar escape. Se esparramavam os goanhás. De si por si, quem vivesse viesse para cá do Rio, para reunião: na juntura da Vereda Saco dos Bois com o Ribeirão Santa Fé. Ou ir de direto para onde estivesse Medeiro Vaz. Ou, caso o inimigo rondasse perto demais, então no Burití-da-Vida, São Simão do Bá, ou mais em riba, ali onde o Ribeirão Gado Bravo é vadeável. Ao que João Goanhá mandou. A pressa era pressa. O ar todo do campo cheirava a pólvora e a soldados. Diante de mim, nunca terminava de atar as correias do gibão um Cunha Branco, sarado, cabra velho guerreiro: ele boiava língua em boca aberta. E medo, meu, medi muito maior. Se despedimos. Escorregando sem rumo, eu fui, vim, o Sesfrêdo comigo também, viemos. Com a graça de Deus, saímos fora da roda do perigo. Chegamos no Córrego Cansanção, não longe do Arassuaí. Por durante um tempo, carecíamos de ter algum serviço reconhecido, no viver tudo cabe.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Palavras

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.
Manoel de Barros, in Meu quintal é maior que o mundo

O que mais Agora?

Charles Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

Aventura no parque

No banco verde do parque, onde eu lia distraidamente o Almanaque Bertrand, aquela sentença pegou-me de surpresa: “Colhe o momento que passa”. Colhi-o, atarantado. Era um não sei que, um flapt, um inquietante animalzinho, todo asas e todo patas: ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de véspera de desabamento. Não pude mais. Arremessei-o contra as pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um meninozinho vestido à marinheira. Quem monta num tigre (dizia, à página seguinte, um provérbio chinês), quem monta num tigre não pode apear.
Mário Quintana, in Sapato florido

Ofereço minha vida, serve?

Ilustração: Fernando Vilela

Uma vez que nunca tinha pedido sequer um favor pro tempo, por não ser coisa de Antônio ficar se aproveitando de ninguém por amizade, estava claro que o tempo não ia lhe negar ajuda justo em hora tão necessitada.
Por isso, resolveu chamar a atenção do mundo com a espetacular atração do sujeito que podia ir ao futuro, e dessa maneira levar o mundo pra Nordestina assim mesmo, do jeito que o mundo estava. Quando voltasse do futuro, aí, sim, ia poder consertar o mundo que tinha dado a Karina de presente, pois, além da vontade, teria o conhecimento, a técnica e a prática.
Ia dar certinho.
O mundo ia se agradar de um sujeito que viajasse no tempo e Karina ia se agradar do presente que tinha ganhado.
O único problema era sua falta de experiência no assunto, mas pra tudo tem que ter uma primeira vez, e então Antônio resolveu que era aquilo o que ele faria, não tinha o menor motivo pra não ser, não havia como dar pra trás, era aquilo mesmo, inclusive porque outra coisa não era, estava decidido, e decisão decidida em véspera de dia 13 tem o voto dos anjos e ponto, parágrafo.
Depois de dar umas voltas pelo mundo foi diretamente pra emissora de televisão.
A fila de candidatos pra aparecer na TV rodava o quarteirão e a cabeça de Antônio pensava.
O quarteirão era do tamanho de Nordestina e a cabeça de Antônio pensava.
Anoiteceu, amanheceu, anoiteceu, amanheceu e a cabeça de Antônio pensava.
A mulher 853 da fila tinha oito ovos com casca, todos oito dentro do bucho, mesmo sem ser bicho que põe ovo. A moça 1.115 e a 1.116 se estranhavam disputando um só marido. Uma olhava de banda e coiceava tal qual bicho. A outra desafiava. Uma ameaçava ir, não ia, e a outra dava meia-volta, cismada. O rapaz 510 desengolia relógios que nunca tinha engolido, todos eles marcando hora exata, por isso achava que ia ser o escolhido. Aconteceu que quando chegou a vez de Antônio, o homem lá da televisão ficou numa dúvida danada.
Eu, Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo, mais precisamente pro futuro. Mas não só vou ao futuro por ir, fui e pronto, não. A minha ida há de ser proveitosa, pois vou a negócios.”
O cidadão que viajava no tempo prometia ser um grande espetáculo.
E quem podia garantir que Antônio ia ao futuro mesmo?
A única garantia que podia oferecer era sua palavra.
É pouco”, o homem lá da televisão falou, “vai que na hora agá, tudo pronto, todo mundo esperando pra ver, e o negócio dá errado? É melhor não arriscar”, e foi logo chamando o número do próximo.
Espere”, Antônio gritou, “se minha palavra é garantia pouca ofereço então minha vida, serve?” E o homem lá da televisão se mostrou interessado.

Eu, Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo, mais precisamente pro futuro, com a finalidade de melhorar o mundo que vou dar de presente a Karina. Partirei de hoje a oito dias, saindo do meio da praça de Nordestina, porém voltarei logo. E, se acaso o negócio der errado e eu não cumprir minha promessa, então não me interessa mais viver e aí dou minha palavra que morro. Mas não vou morrer só assim, morri e pronto, não. A minha há de ser morte importante, cheia de aparato, morte de encher a vista dos homens e fazer tapar os olhos das mulheres, deixando só um buraquinho entre os dedos. Pois a máquina da morte, construída por mim mesmo, vai abrir meu peito e esgarçar ele todinho, esgarçar mais um pouquinho, até ficar aparecendo tudo lá dentro, os sentimentos sentindo, as veias se abrindo, o sangue correndo, e vai destampar meu estômago, pra deseninhar as tripas, uma por uma, como se fosse um novelo, vai desemparelhar um pulmão do outro, separando assim, pra mostrar o que é que tem no meio, então vai arrancar meu coração e jogá-lo pra plateia, salpicando o mundo de sangue, enquanto, aí, sim, eu vou morrendo aos pouquinhos, sofrendo até morrer da morte mais linda que alguém já morreu na vida. Eu vou morrer de amor, no meio do sertão, nos braços da seca, com a quentura fervilhando as ideias, enquanto tiver ideia, a vida desistindo de viver, indo embora, a vista turvando, o juízo evaporando, até o finalzinho, aquela hora em que a pessoa pensa com ela mesma, e agora, hein? Então não pensa mais nada e acabou-se.”

Dito isso, e não tendo mais nada pra dizer, voltou pra Nordestina com a finalidade de inventar a máquina de sua própria morte e construí-la com suas próprias mãos, mesmo sabendo que não ia precisar dela.
Quando o povo ainda estava indo, ele já estava voltando.
Agora não tinha mais dúvida, existia mesmo a tal placa “Bem-vindo a Nordestina”, e pra provar que não era mentira podia atestar até que o “vindo” estava meio apagado.
No que avistou a cidade, Antônio concluiu dois pensamentos.
Um era que ninguém sabia como Nordestina era bonita daquele ângulo.
O outro era que agora todo mundo ia ficar sabendo.
Adriana Falcão, in A máquina

Como as igrejas retardaram o progresso

Os senhores podem julgar que estou indo longe demais ao dizer que isso ainda acontece. Não acho que seja o caso. Tomemos como exemplo um fato. Os senhores hão de concordar comigo quando eu citá-lo. Não é um fato agradável, mas as igrejas nos compelem a mencionar fatos que não são agradáveis. Suponhamos que neste mundo onde vivemos hoje uma moça sem experiência esteja casada com um homem sifilítico; nesse caso, a Igreja Católica diz: “Este é um sacramento indissolúvel. Vocês dois devem ficar juntos a vida toda”. E essa mulher não deve tomar nenhuma iniciativa para evitar que tenha filhos sifilíticos. É isso o que a Igreja Católica diz. Eu digo que isso é uma crueldade demoníaca, e ninguém cujas inclinações naturais não tenham sido infectadas pelo dogma, ou cuja natureza moral não esteja absolutamente morta no que diz respeito a toda a noção de sentimento, poderia defender que é certo e correto esse estado de coisas continuar.
Esse é apenas um exemplo. Existem muitíssimas maneiras por meio das quais, no momento atual, a Igreja, com sua insistência quanto ao que decide classificar como moralidade, inflige sofrimento desmerecido e desnecessário a todo tipo de gente. E é claro, como sabemos, ela continua sendo na maior parte oposta ao progresso e às melhorias relativas a todas as maneiras de fazer diminuir o sofrimento no mundo, porque escolheu classificar como moralidade um certo conjunto restrito de regras de conduta que nada têm a ver com a felicidade humana. E quando se diz que isto ou aquilo deve ser feito porque contribuiria para a felicidade humana, afirmam eles que a questão nada tem a ver, absolutamente, com o problema. “O que a felicidade humana tem a ver com a moral? O objetivo da moral não é tornar as pessoas felizes.”
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

segunda-feira, 28 de maio de 2018

A chama, a fala

Num poema leio:
conversar é divino.”
Porém, os deuses não falam:
Fazem e desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.

O espírito desce
e desata as línguas,
porém não fala palavras:
fala lume. A linguagem,
pelos deuses acesa,
é uma profecia
de chamas e uma torre
de fumo e um colapso
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.

A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem,
os nomes que dizemos,
dizem tempo: dizem-nos.
Somos nomes do tempo.

Mudos também os mortos
pronunciam as palavras
que nós, os vivos, dizemos.
A linguagem é a casa
de todos, a casa suspensa
no flanco do abismo.
Conversar é humano.
Octavio Paz