quinta-feira, 31 de maio de 2018
O auto-retrato
No
retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…
e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!
Mário
Quintana
Os mortos não se queixam mais
No
começo do amanhecer, o dia vai dando voltas, com pausas; quase dá
para ouvir as dobradiças da terra, que giram emboloradas; a vibração
desta terra velha que derrama sua escuridão.
— É
verdade que a noite está cheia de pecados, Justina?
— É,
Susana.
— De
verdade?
— Deve
ser, Susana.
— E
o que você acha que a vida é, Justina, a não ser um pecado? Está
ouvindo? Está ouvindo como a terra range?
— Não,
Susana, eu não consigo ouvir nada. Minha sorte não é tão grande
como a sua.
— Você
iria se espantar. Eu digo que você iria se espantar se ouvisse o que
eu ouço.
Justina
continuou arrumando o quarto. Repassou uma vez e outra a estopa
grossa sobre as tabuonas úmidas do assoalho. Limpou a água do
floreiro quebrado. Recolheu as flores. Pôs os cacos de vidro no
balde cheio d’água.
—
Quantos pássaros você matou na vida,
Justina?
—
Muitos, Susana.
— E
não sentiu tristeza?
—
Senti, Susana.
—
Então, está esperando o quê para
morrer?
— A
morte, Susana.
— Se
é só isso, já, já ela chega. Não se preocupe.
Susana
San Juan estava erguida sobre seus travesseiros. Os olhos inquietos,
olhando para todos os lados. As mãos sobre o ventre, grudadas em seu
ventre como uma concha protetora. Havia ligeiros zumbidos que
passavam como asas por cima da sua cabeça. E o ruído das roldanas
na madeira do poço. O rumor que as pessoas fazem ao acordar.
— Você
acredita no inferno, Justina?
— Sim,
Susana. E no céu também.
— Eu
só acredito no inferno — ela disse. E fechou os olhos.
Quando
Justina saiu do quarto, Susana San Juan estava adormecida de novo e
lá fora o sol lançava chispas. Encontrou Pedro Páramo no caminho.
— Como
é que a senhora está?
— Mal
— ela respondeu agachando a cabeça.
— Ela
se queixa?
— Não,
senhor, não se queixa de nada; mas dizem que os mortos não se
queixam mais. A senhora está perdida para todos.
— O
padre Rentería não veio vê-la?
— Veio
ontem, e tomou-lhe a confissão. Hoje ela deveria ter comungado, mas
não deve estar nas graças, porque o padre Rentería não trouxe a
comunhão para ela. Disse que ia fazer isso logo cedo, e o senhor
está vendo, o sol já está aqui e ele não veio. Ela não deve
estar nas graças.
— Nas
graças de quem?
— De
Deus, senhor.
— Não
seja boba, Justina.
— Como
o senhor quiser, patrão.
Pedro
Páramo abriu a porta e ficou ao lado dela, deixando que um raio de
luz caísse sobre Susana San Juan. Viu seus olhos apertados como
quando se sente uma dor; a boca umedecida, entreaberta, e os lençóis
sendo percorridos por mãos inconscientes até mostrar a nudez de seu
corpo que começou a se contorcer em convulsões.
Percorreu
aquele pequeno espaço que o separava da cama e cobriu o corpo nu,
que continuou se debatendo como uma minhoca em espasmos cada vez mais
violentos. Aproximou-se de seu ouvido e falou: “Susana!” E tornou
a repetir: “Susana!”
A
porta foi aberta e em silêncio entrou o padre Rentería, movendo
brevemente os lábios:
— Vou
lhe dar a comunhão, filha minha.
Esperou
que Pedro Páramo a levantasse encostando-a sobre o espaldar da cama.
Susana San Juan, semiadormecida, estendeu a língua e engoliu a
hóstia. Depois disse: “Tivemos um tempo muito feliz, Florencio.”
E tornou a se afundar entre a sepultura de seus lençóis.
Juan
Rulfo, in Pedro Páramo
Prólogo de Zaratustra - 9
Longamente
dormiu Zaratustra, e não apenas a aurora passou sobre o seu rosto,
mas também a manhã. Enfim seus olhos se abriram: admirado,
Zaratustra enxergou a floresta e o silêncio, e admirado olhou dentro
de si. Então se ergueu depressa, como um navegante que subitamente
vê terra, e exultou: pois viu uma nova verdade. E assim falou então
ao seu coração:
Uma
luz raiou para mim: de companheiros necessito, de vivos — não de
mortos e cadáveres, que levo comigo para onde quero ir.
Mas
de companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a
si mesmos — e para onde quero ir.
Uma
luz raiou para mim: que Zaratustra não fale para o povo, mas para
companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um
rebanho!
Para
atrair muitos para fora do rebanho — vim para isso. Povo e rebanho
se enfurecerão comigo: Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos
pastores.
“Pastores”
digo eu, mas eles se chamam os bons e justos. “Pastores” digo eu:
mas eles se chamam os crentes da verdadeira fé.
Vede
os bons e justos! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas tábuas
de valores, ao quebrador, infrator: — mas esse é o que cria.
Vede
os crentes de todas as fés! A quem odeiam mais? Àquele que quebra
suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator: — mas esse é o
que cria. Companheiros é o que busca o criador, não cadáveres, e
tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criem juntamente com ele
busca o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas.
Companheiros
é o que busca o criador, e aqueles que colham juntamente com ele:
pois tudo nele se acha maduro para a colheita. Mas faltam-lhe as cem
foices: então ele arranca as espigas e se aborrece.
Companheiros
é o que busca o criador, e aqueles que saibam afiar suas foices.
Destruidores serão eles chamados, e desprezadores de bem e mal. Mas
são eles os que colhem e que festejam.
Aqueles
que também criem busca Zaratustra, que também colham e festejem
busca Zaratustra: que tem ele a fazer com rebanhos e pastores!
E
tu, meu primeiro companheiro, repousa em paz! Bem te sepultei em tua
árvore oca, bem te escondi dos lobos.
Mas
me separo de ti, o tempo chegou. Entre duas auroras, uma nova verdade
me chegou.
Não
deverei ser pastor, nem coveiro. Jamais tornarei a me dirigir ao
povo; pela última vez falei com um morto.
Quero
juntar-me aos que criam, que colhem, que festejam: eu lhes mostrarei
o arco-íris e todos os degraus até o super-homem.
Aos
eremitas cantarei minha canção, e também aos eremitas a dois; e
quem tiver ainda ouvidos para coisas inauditas, esse ficará de
coração oprimido com a minha felicidade.
Para
minha meta me ponho a caminho; saltarei sobre os hesitantes e os
vagarosos. Assim, que minha marcha seja o seu declínio!
Friedrich
Nietzsche, in Assim falou Zaratustra
O céu de um pintor
“Você
quer me sufocar de tanto desejo?, perguntou o pintor, sorrindo.
Pôs
o celular no bolso da calça e me disse: “Era ela. Será que amanhã
vai me dar o cano?”.
Donoso
pegou a desempenadeira de aço e passou a massa num trecho da parede.
Reclamou do tempo feio e da umidade: “Hoje não dá pra pintar.
Essa massa não vai secar tão cedo…”.
Anoitecia.
Mas desde o meio da tarde, quando ele começou a pintar as janelas,
fazia uma pausa para dar uma olhada no celular.
Não
gosto de cheiro de tinta, mas gosto de ouvir histórias.
Tinha
doze anos quando vim para cá com meu tio, disse Donoso. A gente
morava num quarto de uma pensão na rua Capri e eu ajudava meu tio a
carregar tralhas, ele trabalhava numa transportadora. Seis anos
assim, no muque, até o dia em que o dono da casa fechou a pensão e
despejou todo mundo. Meu tio se esquentou e decidiu voltar para
Pernambuco. Eu embirrei: quis ficar em São Paulo, não queria cuidar
de bode. Saudade é coisa boa pra quem tem pai e mãe, e eu não
tinha nenhum dos dois. Meu tio olhou bem nos meus olhos: “Você vai
ficar aqui, Donoso? E se você se perder?”. Eu respondi: “Mais
perdido do que já estou?”.
Ele
me deu uns cruzeiros, pouca coisa, era um homem sovina, não abria a
mão nem pra dar adeus. E foi embora. Eu penei. Morava num matagal
cheio de pés de mamona, onde hoje é o shopping Eldorado. De manhã
eu batia perna atrás de serviço, comia pão seco, às vezes um
padeiro me dava o último salgadinho da noite. O senhor não sabe o
que é a fome. Eu, modestamente, sei. Saudade mesmo eu senti do meu
quarto da rua Capri, porque era duro dormir no matagal e tomar banho
com água gelada no inverno. Uma tarde entrei num boteco do Butantã
pra pedir um quibe, o dono me deu uma vassoura e disse: “Pode
varrer tudo”. Varri tudo e ainda passei um pano no chão e lavei a
louça; depois bebi muita água da torneira; bebi para matar a fome,
e não a sede. O português me deu dois quibes e uns trocados.
Continuei a andar por aí, procurando meu destino. Mas o destino não
é o acaso? Andei até a Vila Sônia, onde vi umas casinhas em
construção, quase prontas. Perguntei ao mestre de obras se ele
precisava de um pintor. “Tem prática?”, ele perguntou. “Tenho
sim”, menti. “Então comece a passar cal naquele muro”, disse o
mestre. Passei cal no muro e ouvi do mestre: “Agora pinte as
paredes daquela casa”. Disfarcei, dei uma olhada no trabalho de
outro pintor e voltei para as minhas paredes. O que a gente não
conhece, a gente imita. Não entendia nada de mistura de tinta,
quantidade de água, acabamento, mas trabalhei com capricho, usando
uma brocha de piaçaba, brocha de náilon não existia naquela época.
Fui contratado, tomei gosto pela pintura, dois anos depois eu já
trabalhava sozinho, tinha minha freguesia. A desgraça é que não
sabia ler nem escrever, e me embaralhava com os números, não
conseguia fazer orçamento. Comecei de novo: aprendi a ler, a
calcular, nunca mais fui enganado… O tempo passa rápido, a gente
nem percebe… Casei três vezes, tenho quatro filhos, faz tempo que
estou separado. Decidi ficar quieto, sozinho, já sofri muito, não
vale a pena se chatear com mulher. Mas a vida tem surpresas, e eu me
apaixonei por uma moça… Já passei dos sessenta anos, ela
completou trinta. A gente se encontrou num ônibus, e eu logo me
encantei com a voz dela… Língua de veludo, se o senhor ouvisse.
Por isso ela é telefonista, mas o salário é uma mixaria, ela ganha
por mês o que eu cobro pra pintar duas janelinhas e quatro paredes.
Jurou que ia me telefonar, mas jurou falso. Sumiu por dois meses.
Agora me ligou para pedir desculpa. Perguntei se ela queria me
sufocar de tanto desejo. Riu de mim. Disse: “Amanhã te explico o
que aconteceu, amor”. Que voz! E o diabo é que ontem mesmo sonhei
com ela… Você passa mais de duas horas dentro de um ônibus lotado
e acaba dormindo de pé, que nem cavalo. Sonhei que subia numa escada
para pintar o teto de um cinema e de repente o teto sumiu e lá no
alto apareceu a minha cidade natal, pequena e pobre, do jeito que
conheci quando era menino. Aí pintei de azul o céu do meu vilarejo.
E nesse azul pintado por mim, surgiu o rosto da moça. Fiquei
admirando a beleza dela lá nas alturas… Quando acordei, estava no
Campo Limpo. Agora vou atrás do meu sonho… Gostou da pintura das
janelas? Segunda-feira passo tinta nas paredes.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
Casa e moradia do homem sem qualidades
A
rua em que acontecera o pequeno acidente era um daqueles longos e
sinuosos rios de trânsito que brotam como raios do coração da
cidade, varam os bairros afastados e acabam nos subúrbios. Se o
elegante casal seguisse por ela mais um pouco, teria visto algo que
certamente lhe agradaria. Era um jardim do século XVIII, ou até
XVII, ainda parcialmente conservado; passando diante de suas grades
de ferro batido, via-se entre as árvores, sobre relvados
cuidadosamente aparados, algo que parecia um castelinho de alas
curtas, um castelinho de caça ou de amor, de tempos passados. Para
ser exato, as abóbadas de sustentação eram do século XVII, o
parque e o andar superior pareciam do século XVIII, as fachadas
tinham sido renovadas e um pouco prejudicadas no século XIX;
portanto o todo estava um tanto confuso, como em retratos
fotografados uns por cima dos outros; mas acabava-se parando ali,
infalivelmente, e dizendo: “Ah!” E quando aquela coisa alva,
graciosa e bela estava de janelas abertas, avistavam-se as paredes de
livros, nobres e silenciosas, da casa de um homem de cultura.
A
moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.
Ele
estava postado atrás de uma janela, e através do filtro
verde-pálido do ar do jardim contemplava a rua pardacenta; há dez
minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e
os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a
retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os
ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o
olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante
um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a
resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e
jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um
momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que
estivera fazendo uma tolice.
Se
se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos
dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que
um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de
uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara,
tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma
grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para
sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que
gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa
alguma.
Pois
nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E alguém
que faz?
“Podem-se
deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.
A
atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um
dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez
ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é
provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma
social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia
no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo
como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária
ilusão. Essa ideia lhe agradou.
Deve-se
acrescentar, porém, que ela não lhe agradava por ele amar a vida
burguesa; ao contrário, gostava apenas de contrariar suas
inclinações, que outrora tinham sido diferentes. Talvez seja
exatamente o pequeno-burguês quem prevê o começo de um heroísmo
coletivo, de formigueiro, extraordinariamente novo. Vão chamá-lo de
heroísmo racionalizado, e achar tudo muito bonito. Hoje em dia, quem
pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas de indagações
irrespondidas desse tipo, da maior importância. Pairavam no ar,
ardiam sob os pés. O tempo corria. Pessoas que ainda não viviam
então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia
com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas
não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que
estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.
“A
gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para
si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância
nesse emaranhado de forças!” Depois afastou-se, como uma pessoa
que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que teme
qualquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir
anexo, passou por um punching ball ali pendurado, deu-lhe um
soco rápido e forte, que não é propriamente comum em momentos de
resignação ou estados de fraqueza.
Robert
Musil, in O homem sem qualidades
quarta-feira, 30 de maio de 2018
Conjecturas
Capitão Ahab
Embora,
consumido pelo fogo ardente de seu propósito, Ahab sempre tivesse
presente, em todos os seus pensamentos e ações, a captura
definitiva de Moby Dick; embora parecesse disposto a sacrificar todos
os interesses mortais àquela sua única paixão; no entanto, por
natureza ou por hábito longamente adquirido, talvez estivesse por
demais comprometido com a carreira de baleeiro irascível para
abandonar todos os outros interesses concomitantes da viagem. Ou, se
não fosse por isso, não faltavam motivos que exercessem influência
maior sobre ele. Talvez seja discorrer com excesso de sutileza, mesmo
levando em conta sua monomania, insinuar que seu desejo de desforra
contra a Baleia Branca pudesse ter se estendido, em certa medida, a
todos os cachalotes, e que quanto mais monstros ele matasse tanto
mais multiplicaria as possibilidades de que cada baleia encontrada
subsequentemente fosse a odiada que ele perseguia. Mas, se tal
hipótese fosse objetável, ainda haveria alguns motivos adicionais
que, sem se aproximar tanto da selvageria de sua paixão hegemônica,
poderiam tê-lo influenciado.
Para
atingir seu objetivo, Ahab necessitava de ferramentas; e, de todas as
ferramentas usadas à sombra da lua, os homens são os mais dados à
falha. Ele sabia por exemplo que, por maior que fosse sua ascendência
sobre Starbuck em alguns aspectos, essa ascendência não abrangia
sua pessoa espiritual inteira, do mesmo modo que a simples
superioridade material não implica o domínio intelectual; pois,
para o puramente espiritual, as coisas do intelecto se apresentam
apenas numa espécie de relação material. O corpo de Starbuck e a
vontade coagida de Starbuck estavam em poder de Ahab apenas enquanto
Ahab mantivesse sua força magnética sobre o cérebro de Starbuck;
mas sabia que, a despeito disso, o primeiro imediato, no fundo da
alma, abominava a busca do capitão e, se pudesse, teria se
desassociado dela com prazer, ou mesmo a impedido. Era possível que
se passasse muito tempo antes que a Baleia Branca fosse avistada.
Durante esse longo período, era sempre possível que Starbuck
tivesse recaídas de rebeldia contra a autoridade de seu capitão, a
menos que influências comuns, judiciosas e constantes fossem
exercidas sobre ele. Não apenas isso, mas a loucura sutil de Ahab em
relação a Moby Dick de nenhum modo se manifestava mais
significativamente do que em sua extraordinária compreensão e
sagacidade ao prever que, naquele momento, era necessário despojar a
busca daquela impiedade fantasiosa e estranha de que era naturalmente
investida; que o terror absoluto da viagem deveria recolher-se à
sombra de um segundo plano (pois são poucos os homens cuja coragem
resiste à reflexão prolongada sem o alívio da ação); que nas
longas vigílias noturnas seus oficiais e marinheiros tinham que
pensar em coisas mais imediatas do que Moby Dick. Pois, a despeito da
ansiedade e da impetuosidade com que a feroz tripulação havia
saudado a proclamação de sua busca; no entanto, todo marinheiro, de
qualquer tipo, é mais ou menos caprichoso e pouco confiável –
vivem ao relento do ar livre e mutável e inalam sua inconstância –,
e quando são reservados para um objetivo remoto e distante, ainda
que repleto de vida e de paixão, é necessário acima de tudo que
interesses e ocupações temporárias intervenham para mantê-los
saudavelmente em suspenso para o ataque final.
Tampouco
Ahab se descuidava de uma outra coisa. Nos momentos de emoções
fortes, o homem despreza as considerações humildes; mas tais
momentos são efêmeros. A condição permanente do homem tal como é
fabricado, pensava Ahab, é a sordidez. Pressupondo que a Baleia
Branca incite os corações dessa minha feroz tripulação, e
imaginando que sua ferocidade até produza neles uma espécie de brio
generoso, todavia, enquanto dão caça a Moby Dick por prazer, é
necessário alimentar também seus apetites comuns e rotineiros. Pois
mesmo os enlevados e cavalheirescos Cruzados de outrora não se
contentavam em atravessar duas mil milhas de terra para lutar por seu
Santo Sepulcro sem pilhar, roubar e obter outras pias vantagens pelo
caminho. Tivessem eles se limitado a seu único objetivo último e
romântico – daquele objetivo último e romântico, muitos teriam
desistido por desgosto. Não tirarei desses homens, pensou Ahab, a
esperança do dinheiro – sim, dinheiro. Poderiam menosprezar o
pagamento agora; mas deixasse passar alguns meses, sem nenhuma
promessa em perspectiva de paga, e então esse mesmo capital se
amotinaria todo de uma vez dentro deles e decapitaria Ahab.
Também
não faltava ainda outro motivo para cautela, mais relacionado a Ahab
pessoalmente. Tendo impulsivamente, o que é provável, e talvez de
certa forma prematuramente revelado o propósito principal, contudo
particular, da viagem do Pequod, Ahab era agora consciente de
que, ao agir assim, havia indiretamente se exposto à acusação
inquestionável de usurpação; e com total impunidade, tanto moral
quanto legal, sua tripulação, se assim quisesse, pois tinha
competência para isso, poderia não só se recusar a obedecer-lhe,
como até mesmo tirar-lhe o comando à força. Da mais tênue
insinuação de uma usurpação, e das possíveis consequências de
uma tal impressão suprimida ganhando terreno, Ahab devia estar
logicamente ansioso por se proteger. Essa proteção só podia
consistir em seu próprio cérebro, coração e mão dominantes,
sustentados por uma atenção diligente e rigorosamente calculada às
mínimas influências atmosféricas a que a sua tripulação estava
sujeita.
Por
todas essas razões, então, e outras talvez demasiadamente
analíticas para serem desenvolvidas aqui verbalmente, Ahab via
claramente que ainda devia se manter sempre fiel ao propósito
nominal e natural da viagem do Pequod; observar as praxes
costumeiras; e não apenas isso, mas também forçar-se a patentear
todo o seu interesse apaixonado e notável no desempenho genérico de
sua profissão.
Seja
lá como for, sua voz agora era escutada amiúde saudando os
marinheiros nos três topos de mastro, exortando-os a manter a
vigilância ativa e não omitir nem mesmo uma marsopa. Essa
vigilância não tardou a ser recompensada.
Herman
Melville, in Moby Dick
Noticiário
A
Vergonha bocejou de tédio;
numa
modorra medonha
subiu
ao alto do prédio
e
se atirou.
Empapou
o solo, espatifada,
com
o pouco sangue que usava
para
poder ficar ruborizada.
Ninguém
notou.
Flora
Figueiredo
A falsa eternidade
O
verbo prorrogar entrou em pleno vigor, e não só se prorrogaram os
mandatos como o vencimento das dívidas e dos compromissos de toda
sorte. Tudo passou a existir além do tempo estabelecido. Em
consequência não havia mais tempo.
Então
suprimiram-se os relógios, as agendas e os calendários. Foi
eliminado o ensino de história. Para que história? Se tudo era a
mesma coisa, sem perspectiva de mudança.
A
duração normal da vida também foi prorrogada e, porque a morte
deixasse de existir, proclamou-se que tudo entrava no regime de
eternidade. Aí começou a chover, e a eternidade se mostrou
encharcada e lúgubre. E o seria para sempre, mas não foi. Um
mecânico que se entediava em demasia com a eternidade aquática
inventou um dispositivo para não se molhar. Causou a maior admiração
e começou a receber inúmeras encomendas. A chuva foi neutralizada
e, por falta de objetivo, cessou. Todas as outras formas de duração
infinita foram cessando igualmente.
Certa
manhã, tornou-se irrefutável que a vida voltara ao signo do
provisório e do contingente. Eram observados outra vez prazos,
limites. Tudo refloresceu. O filósofo concluiu que não se deve
plagiar a eternidade.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
Mentira bem expressa
“Por
vezes a mentira exprime melhor do que a verdade aquilo que se passa
na alma.”
Máximo
Gorki
Retirada imperial
É,
talvez, controverso se a violência no interior dos Estados aumentou
ou diminuiu desde 1945. O que ninguém pode negar é que a violência
internacional atingiu o menor índice de todos os tempos.
Possivelmente o exemplo mais óbvio é o colapso dos impérios
europeus. Ao longo da história, os impérios esmagaram rebeliões
com mão de ferro, e, quando seu dia chegara, um império em
decadência usava de todo o seu poder para se salvar, normalmente
afundando em um banho de sangue. Sua derrocada final levava, no mais
das vezes, à anarquia e a guerras de sucessão. Desde 1945, a
maioria dos impérios optou por uma retirada precoce e pacífica. Seu
processo de colapso se tornou relativamente rápido, calmo e
ordenado.
Em
1945, a Grã-Bretanha governava um quarto do globo. Trinta anos
depois, governava apenas algumas pequenas ilhas. Nesse período, se
retirou da maioria de suas colônias de maneira pacífica e ordenada.
Embora em alguns lugares, como a Malásia e o Quênia, os britânicos
tenham tentado permanecer pela força das armas, na maioria dos
lugares eles aceitaram o fim do império com um suspiro, e não com
um ataque de fúria. Concentraram seus esforços não em manter o
poder, mas em transferi-lo da maneira mais tranquila possível. Pelo
menos parte dos elogios geralmente feitos a Mahatma Gandhi por seu
credo não violento se deve, na verdade, ao Império Britânico.
Apesar de muitos anos de luta cruel e quase sempre violenta, quando o
Raj chegou ao fim os indianos não precisaram enfrentar os britânicos
nas ruas de Délhi e de Calcutá. O lugar do império foi tomado por
uma porção de Estados independentes, a maioria dos quais desde
então desfrutou de fronteiras estáveis e, durante a maior parte do
tempo, viveu em paz com seus vizinhos. É verdade, dezenas de
milhares de pessoas pereceram nas mãos do Império Britânico
ameaçado, e em vários focos de tensão sua retirada levou à
eclosão de conflitos étnicos que cobraram centenas de milhares de
vidas (em particular, na Índia). Mas, quando comparada à média
histórica no longo prazo, a retirada britânica foi um exemplo de
paz e ordem. O Império Francês foi mais teimoso. Seu colapso
envolveu ações de retaguarda sangrentas no Vietnã e na Argélia
que custaram centenas de milhares de vidas. Mas os franceses também
se retiraram do restante de seus domínios de forma rápida e
pacífica, deixando para trás Estados ordenados, em vez de um
caótico salve-se quem puder.
O
colapso soviético em 1989 foi ainda mais pacífico, apesar da
eclosão de conflitos étnicos nos Bálcãs, no Cáucaso e na Ásia
Central. Em nenhum momento anterior um império tão poderoso
desapareceu de forma tão rápida e pacífica. O Império Soviético
de 1989 não havia sofrido nenhuma derrota militar exceto no
Afeganistão, nenhuma invasão externa, nenhuma rebelião, nem mesmo
campanhas de desobediência civil em grande escala ao estilo das
promovidas por Martin Luther King. Os sovietes ainda tinham milhões
de soldados, dezenas de milhares de tanques e aviões, e armas
nucleares suficientes para exterminar toda a humanidade várias
vezes. O Exército Vermelho e os outros exércitos do Pacto de
Varsóvia permaneceram leais. Se o último governante soviético,
Mikhail Gorbachev, tivesse dado a ordem, o Exército Vermelho teria
aberto fogo sobre as massas subjugadas.
Mas
a elite soviética e os regimes comunistas na maior parte da Europa
Oriental (a Romênia e a Sérvia foram exceções) escolheram não
usar nem mesmo uma fração minúscula desse poder militar. Quando
seus membros perceberam que o comunismo estava falido, renunciaram ao
uso da força, admitiram seu fracasso, fizeram as malas e foram para
casa. Gorbachev e seus colegas desistiram, sem lutar, não só das
conquistas soviéticas da Segunda Guerra Mundial como também das
conquistas czaristas, muito mais antigas, no Báltico, na Ucrânia,
no Cáucaso e na Ásia Central. É assustador pensar no que poderia
ter acontecido se Gorbachev tivesse se comportado como a liderança
sérvia – ou como os franceses na Argélia.
Yuval
Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade
terça-feira, 29 de maio de 2018
João Goanhá
Ilustração: Rodrigo Rosa
João
Goanhá, por valentão e verdadeiro, nem carecia de estadear orgulho.
Pessoa muito leal e briosa. Ele me disse: ― Agora, da gente não
sei o que vai ser... Para guerra grande, eu acho que só Joca Ramiro
é que era capaz... Ah , mas João Goanhá também tinha suas cartas
altas. Homem de grito grosso. E, mesmo ignorante analfabeto, de
repente ele tirava, sei não de onde, terríveis mindinhas ideias,
mortes diversas. Assim a gente experimentava, cá e cá, falseando
fuga. Os campos-gerais ali também tem. Tombadores. Arre, os
tremedais; já viu algum? O chão deles consiste duro enxuto,
normal que engana; quem não sabe o resto, vem, pisa, vai avançando,
tropa com cavalos, cavalama. Seja sem espera, quando já estão meio
no meio, aquilo sucrepa: pega a se abalar, ronca, treme escapulindo,
feito gema de ovo na frigideira. Ei! Porque, debaixo da crosta seca,
rebole ocultado um semifundo, de brejão engulidor... Pois, em roda
dali, João Goanhá dispôs que a gente se amoitasse ― três golpes
de homens ― tocaiando. Ao de manhã, primeiro passaram os do
sargento Leandro, esses eram os menos, e um guia pagavam, por
conhecer o caminho firme. Mas fomos lá, às pressas espalhamos de
lugar os ramos verdes de árvore, que eles tinham botado para a certa
informação. No depois, vinham os do tenente. Tenente, tenente, tu
quer! Seguidos por ali entraram, ah. Dos nossos, uns, acolá, deram
tiros, por disfarçação. Iscas! Cavalaria dos praças se avexou.
Ave, e pronto, de repente foi! a casca de terra sacudia, se rachou em
cruzes, estalando, em muitos metros ― balofou. Os cavalos
entornados ― era como despejar prateleiras cheias ― e os soldados
aiando gritos, se abraçavam com os animais caintes, ou com o ar, uns
a esmo desfechavam mosquetão. Mas encalcados se afundando, pra não
mais. A gente, se queria, mirava, ainda acertava neles. Coisas que
vi, vi, vi ― ôi... Eu não atirei. Não tive braçagem. Talvez
tive pena.
Tanto
por tanto, daí se encachorraram mais em nós, por beber vinganças.
De campos e matas, vargens e grotas, em cada ponto para trás, dos
lados e adiante da gente, ei eram só soldados, montão, se gerando.
Furado-do-Meio. Serra do Deus-Me-Livre. Passagem da Limeira.
Chapada do Covão. Solón Nelson morreu. Arduininho morreu.
Morreram o Figueiró, Batata-Roxa, Dávila Manhoso, o Campêlo, o
Clange, Deovídio, Pescoço-Preto, Toquim, o Sucivre, Elisiano, Pedro
Bernardo ― acho que foram esses, todos. Chapada do Sumidouro.
Córrego do Poldro. Mortos mais uns seis. Corrijo! com outros,
que pegos presos ― se disse que foram acabados! Doideamos. A Bahia
estava cercada nas portas. Achavam de tomar regalia de desforra na
gente, até qualquer molambo de sujeito, paisano morador. Ah, às
vezes, perdiam ligeiro essa graça... Gerais da Pedra. Lá, o
Eleutério se apartou da gente, umas cem braças, e foi, a pé, bateu
em porta duma cafua, por esclarecer. O capiau surgiu, ensinou alguma
coisa, errada. Eleutério agradeceu, deu as costas, veio andando uns
passos. O capiau então chamou. Eleutério virou para trás, para
ouvir o que havia, e levou na cara e nos peitos o cheio duma carga de
chumbo fino. Cegou, rodou, entrupicado, arreganhava os braços, todo
se sarapintando das manchas vermelhas, que cresciam. O cabelo dele
aumentou em pé. E a soldadesca atirava, de emboscados no mato do
córrego, e na beira do cerrado, da outra banda. O capiau se encobriu
detrás do fôrno de assar biscoito ― de lá fazia pontaria com a
espingarda ― e balas nossas levantavam terra ao redor dali, feito
um ciscado de cachorro grande. Dentro da cafua também restavam
outros soldados; que deram contas a Deus. Ataliba, com o facão,
pregou o capiau na taipa da cafua, ele morreu mansinho, parecia um
santo. Ficou lá, espetado. Nós ― eh ― bom. Conseguimos aragem.
Até em um ponto de a salvo conversarmos.
Serra
Escura. Nem munição nem de-comer não sobravam. De forma que a
gente carecia de se separar, cada um por seu risco, como pudesse
caçar escape. Se esparramavam os goanhás. De si por si, quem
vivesse viesse para cá do Rio, para reunião: na juntura da Vereda
Saco dos Bois com o Ribeirão Santa Fé. Ou ir de direto para onde
estivesse Medeiro Vaz. Ou, caso o inimigo rondasse perto demais,
então no Burití-da-Vida, São Simão do Bá, ou mais em riba, ali
onde o Ribeirão Gado Bravo é vadeável. Ao que João Goanhá
mandou. A pressa era pressa. O ar todo do campo cheirava a pólvora e
a soldados. Diante de mim, nunca terminava de atar as correias do
gibão um Cunha Branco, sarado, cabra velho guerreiro: ele boiava
língua em boca aberta. E medo, meu, medi muito maior. Se despedimos.
Escorregando sem rumo, eu fui, vim, o Sesfrêdo comigo também,
viemos. Com a graça de Deus, saímos fora da roda do perigo.
Chegamos no Córrego Cansanção, não longe do Arassuaí. Por
durante um tempo, carecíamos de ter algum serviço reconhecido, no
viver tudo cabe.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
Palavras
Veio
me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a
linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e
tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava
sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele
lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de
debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a
sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do
lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da
flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou
foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não
era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que
desestruturaram a linguagem. E não eu.
Manoel
de Barros, in Meu quintal é maior que o mundo
Aventura no parque
No
banco verde do parque, onde eu lia distraidamente o Almanaque
Bertrand, aquela sentença pegou-me de surpresa: “Colhe o momento
que passa”. Colhi-o, atarantado. Era um não sei que, um flapt, um
inquietante animalzinho, todo asas e todo patas: ardia como uma
brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de
véspera de desabamento. Não pude mais. Arremessei-o contra as
pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um
meninozinho vestido à marinheira. Quem monta num tigre (dizia, à
página seguinte, um provérbio chinês), quem monta num tigre não
pode apear.
Mário
Quintana, in Sapato florido
Ofereço minha vida, serve?
Ilustração: Fernando Vilela
Uma
vez que nunca tinha pedido sequer um favor pro tempo, por não ser
coisa de Antônio ficar se aproveitando de ninguém por amizade,
estava claro que o tempo não ia lhe negar ajuda justo em hora tão
necessitada.
Por
isso, resolveu chamar a atenção do mundo com a espetacular atração
do sujeito que podia ir ao futuro, e dessa maneira levar o mundo pra
Nordestina assim mesmo, do jeito que o mundo estava. Quando voltasse
do futuro, aí, sim, ia poder consertar o mundo que tinha dado a
Karina de presente, pois, além da vontade, teria o conhecimento, a
técnica e a prática.
Ia
dar certinho.
O
mundo ia se agradar de um sujeito que viajasse no tempo e Karina ia
se agradar do presente que tinha ganhado.
O
único problema era sua falta de experiência no assunto, mas pra
tudo tem que ter uma primeira vez, e então Antônio resolveu que era
aquilo o que ele faria, não tinha o menor motivo pra não ser, não
havia como dar pra trás, era aquilo mesmo, inclusive porque outra
coisa não era, estava decidido, e decisão decidida em véspera de
dia 13 tem o voto dos anjos e ponto, parágrafo.
Depois
de dar umas voltas pelo mundo foi diretamente pra emissora de
televisão.
A
fila de candidatos pra aparecer na TV rodava o quarteirão e a cabeça
de Antônio pensava.
O
quarteirão era do tamanho de Nordestina e a cabeça de Antônio
pensava.
Anoiteceu,
amanheceu, anoiteceu, amanheceu e a cabeça de Antônio pensava.
A
mulher 853 da fila tinha oito ovos com casca, todos oito dentro do
bucho, mesmo sem ser bicho que põe ovo. A moça 1.115 e a 1.116 se
estranhavam disputando um só marido. Uma olhava de banda e coiceava
tal qual bicho. A outra desafiava. Uma ameaçava ir, não ia, e a
outra dava meia-volta, cismada. O rapaz 510 desengolia relógios que
nunca tinha engolido, todos eles marcando hora exata, por isso achava
que ia ser o escolhido. Aconteceu que quando chegou a vez de Antônio,
o homem lá da televisão ficou numa dúvida danada.
“Eu,
Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo,
mais precisamente pro futuro. Mas não só vou ao futuro por ir, fui
e pronto, não. A minha ida há de ser proveitosa, pois vou a
negócios.”
O
cidadão que viajava no tempo prometia ser um grande espetáculo.
E
quem podia garantir que Antônio ia ao futuro mesmo?
A
única garantia que podia oferecer era sua palavra.
“É
pouco”, o homem lá da televisão falou, “vai que na hora agá,
tudo pronto, todo mundo esperando pra ver, e o negócio dá errado? É
melhor não arriscar”, e foi logo chamando o número do próximo.
“Espere”,
Antônio gritou, “se minha palavra é garantia pouca ofereço então
minha vida, serve?” E o homem lá da televisão se mostrou
interessado.
“Eu,
Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo,
mais precisamente pro futuro, com a finalidade de melhorar o mundo
que vou dar de presente a Karina. Partirei de hoje a oito dias,
saindo do meio da praça de Nordestina, porém voltarei logo. E, se
acaso o negócio der errado e eu não cumprir minha promessa, então
não me interessa mais viver e aí dou minha palavra que morro. Mas
não vou morrer só assim, morri e pronto, não. A minha há de ser
morte importante, cheia de aparato, morte de encher a vista dos
homens e fazer tapar os olhos das mulheres, deixando só um
buraquinho entre os dedos. Pois a máquina da morte, construída por
mim mesmo, vai abrir meu peito e esgarçar ele todinho, esgarçar
mais um pouquinho, até ficar aparecendo tudo lá dentro, os
sentimentos sentindo, as veias se abrindo, o sangue correndo, e vai
destampar meu estômago, pra deseninhar as tripas, uma por uma, como
se fosse um novelo, vai desemparelhar um pulmão do outro, separando
assim, pra mostrar o que é que tem no meio, então vai arrancar meu
coração e jogá-lo pra plateia, salpicando o mundo de sangue,
enquanto, aí, sim, eu vou morrendo aos pouquinhos, sofrendo até
morrer da morte mais linda que alguém já morreu na vida. Eu vou
morrer de amor, no meio do sertão, nos braços da seca, com a
quentura fervilhando as ideias, enquanto tiver ideia, a vida
desistindo de viver, indo embora, a vista turvando, o juízo
evaporando, até o finalzinho, aquela hora em que a pessoa pensa com
ela mesma, e agora, hein? Então não pensa mais nada e acabou-se.”
Dito
isso, e não tendo mais nada pra dizer, voltou pra Nordestina com a
finalidade de inventar a máquina de sua própria morte e construí-la
com suas próprias mãos, mesmo sabendo que não ia precisar dela.
Quando
o povo ainda estava indo, ele já estava voltando.
Agora
não tinha mais dúvida, existia mesmo a tal placa “Bem-vindo a
Nordestina”, e pra provar que não era mentira podia atestar até
que o “vindo” estava meio apagado.
No
que avistou a cidade, Antônio concluiu dois pensamentos.
Um
era que ninguém sabia como Nordestina era bonita daquele ângulo.
O
outro era que agora todo mundo ia ficar sabendo.
Adriana
Falcão, in A máquina
Como as igrejas retardaram o progresso
Os
senhores podem julgar que estou indo longe demais ao dizer que isso
ainda acontece. Não acho que seja o caso. Tomemos como exemplo um
fato. Os senhores hão de concordar comigo quando eu citá-lo. Não é
um fato agradável, mas as igrejas nos compelem a mencionar fatos que
não são agradáveis. Suponhamos que neste mundo onde vivemos hoje
uma moça sem experiência esteja casada com um homem sifilítico;
nesse caso, a Igreja Católica diz: “Este é um sacramento
indissolúvel. Vocês dois devem ficar juntos a vida toda”. E essa
mulher não deve tomar nenhuma iniciativa para evitar que tenha
filhos sifilíticos. É isso o que a Igreja Católica diz. Eu digo
que isso é uma crueldade demoníaca, e ninguém cujas inclinações
naturais não tenham sido infectadas pelo dogma, ou cuja natureza
moral não esteja absolutamente morta no que diz respeito a toda a
noção de sentimento, poderia defender que é certo e correto esse
estado de coisas continuar.
Esse
é apenas um exemplo. Existem muitíssimas maneiras por meio das
quais, no momento atual, a Igreja, com sua insistência quanto ao que
decide classificar como moralidade, inflige sofrimento desmerecido e
desnecessário a todo tipo de gente. E é claro, como sabemos, ela
continua sendo na maior parte oposta ao progresso e às melhorias
relativas a todas as maneiras de fazer diminuir o sofrimento no
mundo, porque escolheu classificar como moralidade um certo conjunto
restrito de regras de conduta que nada têm a ver com a felicidade
humana. E quando se diz que isto ou aquilo deve ser feito porque
contribuiria para a felicidade humana, afirmam eles que a questão
nada tem a ver, absolutamente, com o problema. “O que a felicidade
humana tem a ver com a moral? O objetivo da moral não é tornar as
pessoas felizes.”
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
segunda-feira, 28 de maio de 2018
A chama, a fala
Num
poema leio:
“conversar
é divino.”
Porém,
os deuses não falam:
Fazem
e desfazem mundos
enquanto
os homens falam.
Os
deuses, sem palavras,
jogam
jogos terríveis.
O
espírito desce
e
desata as línguas,
porém
não fala palavras:
fala
lume. A linguagem,
pelos
deuses acesa,
é
uma profecia
de
chamas e uma torre
de
fumo e um colapso
de
sílabas queimadas:
cinza
sem sentido.
A
palavra do homem
é
filha da morte.
Falamos
porque somos
mortais:
as palavras
não
são signos, são anos.
Ao
dizer o que dizem,
os
nomes que dizemos,
dizem
tempo: dizem-nos.
Somos
nomes do tempo.
Mudos
também os mortos
pronunciam
as palavras
que
nós, os vivos, dizemos.
A
linguagem é a casa
de
todos, a casa suspensa
no
flanco do abismo.
Conversar
é humano.
Octavio
Paz