sábado, 31 de março de 2018

Travelling life

É como se fosse uma guerra
onde o mau cabrito briga
e o bom cabrito não berra
é como se fosse uma terra
estrangeira até pra ela
como se fosse uma tela
onde cada filme que passa
toda imagem congela
é como se fosse a fera
que a cada dia que roda e rola
mais e mais se revela.
Paulo Leminski

Por que amo minha mulher?

Não é nenhum grande ato que desperta o amor, não é um heroísmo, uma atitude exemplar, um feito impressionante.
O que faz um homem amar uma mulher e uma mulher amar um homem é tão pessoal que é possível passar uma vida inteira sem desvendar o motivo. Não é necessário ter consciência para ser feliz. Não é fundamental entender para amar. Mas é mais bonito.
Fico me perguntando o que inspirou minha confiança na Cínthya. Qual foi a delicadeza que ela cometeu a ponto de me viciar no convívio? O que realizou no começo do relacionamento que mexeu comigo e não quis mais abandoná-la?
O que ela aprontou de errado que deu tão certo? O que me pôs a repeti-la um dia atrás do outro sem cansar? O que me seduziu de tal forma que entrei uma vez em sua casa com uma mochila e voltei com uma mala?
Talvez tenha sido sua simplicidade. Eu me impressiono com o que é espontâneo. Não havia quadros em suas paredes, nem estantes. A única coisa que estava de pé era o violão.
Aquilo me emocionou: a música de sentinela. Ela brincou:
O violão é meu confidente, meu melhor amigo.
Inventei de dedilhar as cordas para descobrir logo seus segredos, só que desafinei e ri envergonhado. Não estava maduro para o mistério, não merecia ainda suas lembranças, dependia de mais cumplicidade.
Mas não foi isso, ou somente isso; sempre tem algo que se soma.
Acho que ela travou meu olhar na hora em que passeávamos de carro pela orla do Guaíba. Estreava na rádio a canção “Janta”, de Marcelo Camelo e Mallu Magalhães.
Eu ando em frente por sentir vontade...”
Cínthya cantava sem conhecer a letra. Aprendia a letra enquanto cantava. Longe do medo da gafe. Em voz alta, errando, tropeçando, gravando o refrão. Completava os trechos que não entendia com melodia e dirigia as rimas até o fim. Descobri que ela tinha coragem. Não iria temer um desafio. Mesmo que fosse complicado como eu.
Pensando bem, me rendi no café da manhã. Quando ela me ofereceu um saco de bolachas doces do bairro da Liberdade. Eu peguei as redondas, perfeitas, para explodi-las com exclusividade em meus dentes.
Ela não; ciscou os farelos. Optou pelas bolachas partidas. Do fundo, recolhia os pequenos retângulos, triângulos, quadrados desiguais. Compadecida do pouco, enamorada da miudeza.
Um gesto silencioso que me cativou. Cuidava de mim já na primeira manhã juntos. Comia as quebradas para me deixar as inteiras. Havia cinco ou seis bolachas intactas:
Toma, por favor...
Reprisando nossa vida, ela avisou, naquele momento, que nunca partiria meu coração.
Fabrício Carpinejar, in Ai meu Deus, ai meu Jesus

Capítulo XV - Marcela

Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao coração de Marcela, não já cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso. Que, em verdade, há dois meios de granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Danae, três inventos do Padre Zeus, que, por estarem fora da moda, aí ficam trocados no cavalo e no asno. Não direi as traças que urdi, nem as peitas, nem as alternativas de confiança e temor, nem as esperas baldadas, nem nenhuma outra dessas coisas preliminares. Afirmo-lhes que o asno foi digno do corcel, — um asno de Sancho, deveras filósofo, que me levou à casa dela, no fim do citado período; apeei-me, bati-lhe na anca e mandei-o pastar.
Primeira comoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser, na criação bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse efeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor. Pois foi a mesma coisa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito anos, deves lembrar-te que foi assim mesmo.
Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nomes não curo, teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana. Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma coisa, que me dava às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura.
Em verdade, dizia-me Marcela, quando eu lhe levava alguma seda, alguma jóia: em verdade, você quer brigar comigo... Pois isto é coisa que se faça... um presente tão caro...
E, se era jóia, dizia isto a contemplá-la entre os dedos, a procurar melhor luz, a ensaiá-la em si, e a rir, e a beijar-me com uma reincidência impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-selhe a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com vê-la assim. Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia obter; Marcela juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro, cuja chave ninguém nunca jamais soube onde ficava; escondia-a por medo dos escravos. A casa em que morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons os móveis, de jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixela, — uma linda baixela da Índia, que lhe doara um desembargador. Baixela do diabo, deste-me grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à própria dona; não lhe dissimulava o tédio que me faziam esses e outros despojos dos seus amores de antanho.
Ela ouvia-me e ria, com uma expressão cândida, — cândida e outra coisa, que eu nesse tempo não entendia bem; mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso misto, como devia ter a criatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare com um serafim de Klopstock. Não sei se me explico. E porque tinha notícia dos meus zelos tardios, parece que gostava de os açular mais. Assim foi que um dia, como eu lhe não pudesse dar certo colar, que ela vira num joalheiro, retorquiu-me que era um simples gracejo, que
o nosso amor não precisava de tão vulgar estímulo.
Não lhe perdoo, se você fizer de mim essa triste ideia, concluiu ameaçando-me com o dedo.
E logo, súbita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com elas o rosto, puxou-me a si e fez um trejeito gracioso, um momo de criança. Depois, reclinada na marquesa, continuou a falar daquilo, com simplicidade e franqueza. Jamais consentiria que lhe comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências, mas a realidade, guardava-a para poucos. Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que ela amara deveras, dois anos antes, só a custo conseguia dar-lhe alguma coisa de valor, como me acontecia a mim; ela só lhe aceitava sem relutância os mimos de escasso preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas.
Esta cruz...
Dizia isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita azul e pendurada ao colo.
Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pai que...
Marcela abanou a cabeça com um ar de lástima:
Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar? Vem cá, chiquito, não sejas assim desconfiado comigo... Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos separarmos...
Não digas isso! bradei eu.
Tudo cessa! Um dia...
Não pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos, tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido: — Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lho com os olhos úmidos. No dia seguinte levei-lhe o colar que havia recusado.
Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.
Marcela teve primeiro um silêncio indignado; depois fez um gesto magnífico: tentou atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a joia. Sorriu e ficou.
Entretanto, pagava-me à farta os sacrifícios; espreitava os meus mais recônditos pensamentos; não havia desejo a que não acudisse com alma, sem esforço, por uma espécie de lei da consciência e necessidade do coração. Nunca o desejo era razoável, mas um capricho puro, uma criancice, vê-la trajar de certo modo, com tais e tais enfeites, este vestido e não aquele, ir a passeio ou outra coisa assim, e ela cedia a tudo, risonha e palreira.
Você é das Arábias, dizia-me.
E ia a pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediência de encantar.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

sexta-feira, 30 de março de 2018

O viúvo

Se Jesuzinho era sombra, a esposa Vitória era crepúsculo dessa sombra. No terceiro aniversário da Independência, no preciso momento em que clamavam os jargões revolucionários, Vitória ficou certa para sempre. A goesa fechou nos olhos o olhar. Sob a parede do crucifixo, o funcionário a cobriu de lençol e rezas. Findava ali a única família, o único mundo de Jesuzinho da Graça.
Nos seguintes meses, o viúvo manteve o comportamento. Jesuzinho era como a formiga que nunca descarreira? _única diferença: agora se demorava entre o ali e o acolá. E com o demorar da solidão ele foi entrando na bebida. O jovem empregado doméstico lhe perguntava a medo:
O senhor não tem parenteamento com ninguém?”
Jesuzinho apontava a garrafa de aguardente. Aquele era o seu parente por via do pai. Depois, se lembrava e apontava o crucifixo na parede.
Essoutro, ali na parede, é via da mãe.
De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso. Aos poucos, o goês deu sinais de maior desarranjo: as horas se perdiam dele. Funcionário do zelo, eterno cumpridor de regulamento, deixou de espremer o mata-borrão sobre os escritos de sua lavra. Saudades de um tempo em que o mundo era dócil, autenticável em 25 linhas?
Mas mesmo em suas inatitudes ele mantinha aprumo. Terças— feiras era dia de bebedeira, sua única combinação com o tempo. Ia para o bar, transitava lentamente para dentro do copo, espumava as agonias. Chegava tarde a casa, desalinhado mas sempre cuidando do fato branco. Se postava no canapé, acendia o cigarro que diria a falecida? e puxava o cinzeiro de pé alto, passando as mãos pelo ébano torneado. Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fazia estalar a unha nas unhas e chamava:
Piquinino: ande dissepertar gravata.
O empregado acorria a lhe aliviar a garganta. Lhe despescoçava a camisa e entornava uns pós-de-talco sobre a camisola interior. Desfeito o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do moço era ficar vigiando o descanso do patrão.
Aqueles sonos eram sobressalteados. Passava uma frestinha de tempo e o caneco gritava pela falecida. Sua mão trémula apanhava o telefone, ligava para os céus. Era então que estreava a mais nobre função de Piquinino: fingir-se dela, imitar voz e suspiros da extinta.
Vucê qui está pagar chamada, Vitorinha. Aí, no céu, tudo sai mais barato.
O empregadito se esforçava em aflautinar a voz, copiando os esganiços de Vitorinha. Acabadas as conversas, o empregado copiava os modos da antiga senhora e brilhantinava os cabelos do patrão, acertando a risca em diagonal no cabelo.
Todavia e à medida do tempo, o moço se foi tomando de terrores. Ele se interrogava: imitar mortos? Brincar assim com espíritos só podia trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vantagem de um conselho. O velhote concordou: deixe o homem, fuja disso. E foi desenrolando sabedorias: quantos lados tem a terra para o camaleão? Os mortos sabe-se lá para quem estão olhando? O outro mundo é muitíssimo infinito: não há falecido que não seja da nossa família.
E o miúdo regressou decidido a nunca mais se prestar a aparições. Terça-feira chegou e o patrão, nessa noite, não saiu a rondar os bares. Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá da sala, olhando para muito nada. Chamou o empregadito e lhe pediu que se transvestisse de Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso, Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se passaram momentos. Até que o jovem serviçal percebeu que o patrão chorava. Se debruçou sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de sempre:
Vitorinha!”
O empregado ficou estático. O patrão que implorasse que ele não avançaria um pé. O caneco, afinal, estava bêbado. O hálito não deixava dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber? Tivesse ou não emborcado, o certo é que ele transbordava babas e suspiros. Estava nesse devaneio quando murmurou as mais estranhas palavras: queria encontrar a esposa já devidamente desunhado. Entregando o braço no colo do empregado, implorou:
Me corte a unha, Piquinino!”
No dia seguinte, encontraram o empregado, imóvel junto à poltrona do patrão. O que o moço falou foi para ninguém deitar crédito. O seguinte: mal começou a cortar o rente da unha, o patrão se desvaneceu, como fumo de incenso. E a unha está onde, pá? O miúdo debruçou-se sobre o soalho e levantou o que, por instante, pareceu ser uma desflorida pétala. Sorriu, lembrando o patrão. E exibiu a derradeira extremidade da sua humanidade.
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra

Sussurro

Aquiete-se para ouvir o silêncio:
a clorofila escorre pela haste,
a sombra e o sol ecoam um contraste
de quentes e frios na linha divisória.
Tente escutar a história da brisa
quando passa empurrando a bruma,
que, tola, embaça a púrpura da rosa.
Faça atenção ao momento de explosão
da metamorfose
que irrompe em grande dose
de véus e açúcares.
Sinta o cochilo dos nenúfares.
Se conseguir atingir
o ponto mais profundo da quietude,
vai poder ouvir o coração do colibri.
Ele bate minúsculo num peito passarinho.
A Terra se mobiliza para entoar
uma sonata azul em homenagem
a esse músculo coberto de plumagem,
que tão pequenininho é tão capaz de amar.
Flora Figueiredo

Gencianáceas


Dizem que não há afrodisíaco melhor do que amendoim, mas com casca. Você espana as cascas do colo dela, ela espana as cascas do seu colo, e em pouco tempo vocês não precisarão mais do pretexto das cascas. Outros afrodisíacos, no entanto, precisam ser ingeridos, e sobre estes existe uma vasta literatura — quase toda ela em francês, claro.
Mme. de Maintenon mandava fazer costeletas de vitela com anchovas, basílico doce, cravo, coentro e conhaque para animar Luís XIV. Não se sabe o resultado que elas produziam no rei, mas o prato Côtelettes de veau à la Maintenon é famoso até hoje, um exemplo de efeito colateral histórico. Já Mme. Du Barry fazia fé em suflês de gengibre para manter o interesse de seu amante real, Luís XV. Dizia que ele nunca desandava. O suflê, não o rei. Alcachofras eram consideradas afrodisíacas. E o escritor Hector Dirssot preparava-se para noites de loucura na alcova comendo enguias com trufas, enroladas em papel amanteigado, assadas na brasa e servidas sobre um ragu de siri apimentado, e que só tinham o efeito desejado se acompanhadas por um bom vinho Sauternes. Não se conhece qualquer depoimento de uma parceira do escritor sobre a eficiência da receita. Pela sua descrição, desconfia-se que muitas vezes Dirssot recorria ao prato não para assegurar o sexo, mas para substituí-lo.
As trufas brancas da região do Piemonte já foram consideradas infalíveis, e ficavam ainda mais estimulantes se preparadas com fígado de ganso e um pouco de vinho branco. Brillat-Savarin escreveu que uma determinada senhora francesa quase sucumbiu ao assédio de um jovem gourmet que lhe propunha servir aves com trufas de Perigueux em troca de amor, e sua admiração era menos pela sólida virtude da dama do que pela sua resistência, decididamente inexplicável. Brillat-Savarin insinua que o pretendente insistiu e a dama resistiu até ele oferecer trufas de Perigueux inteiras assadas na cinza, porque aí também já seria desumano.
Todas estas receitas — tiradas, por sinal, de um livro de George Lang chamado Compêndio de bobagens e “trivia” culinárias — ficavam melhores e mais poderosas se acompanhadas de um “Vin de Gentiane”, ou vinho de genciana, assim preparado: rale-se uma raiz de genciana e deixe-a de molho no conhaque por um dia. Acrescente-se vinho Bordeaux, filtre-se tudo por uma peneira fina e deixe-se num receptáculo lacrado por oito dias. Não abrir perto das crianças.

* * *
Você já ouviu falar de vinho de genciana?
Não. Por quê?
Eu estava lendo que parece que genciana é afrodisíaco.
Eu nem sei o que é isso.
Afrodisíaco?
Não. Genciana.
Nem eu. Vamos ver no dicionário?
Depois:
Senta aqui do meu lado. Assim a gente vê juntos.
Tá.
Deixa ver. Gê, gê, gê... “Genioso”, “genista”, “genital”...
Quando você era pequeno, não procurava nome feio no dicionário?
Procurava! Me lembro quando eu descobri que no dicionário tinha “bunda”. Foi uma sensação. Depois procurei todos os sinônimos de “bunda” que conhecia.
Eu fui logo procurar o, você sabe. Pênis.
E todos os seus apelidos.
Como a gente era boba, né?
— “Genitália”... “genitivo”... Espera aí, estou olhando na página errada. “Genciana”... “genciana”... Está aqui! “Genciana”. Hmm... “Planta da família das gencianáceas”…
Qual é a família?
Gencianáceas. Por quê, você conhece?
Não, não. Foi a maneira como você disse. Achei...
O quê?
Bonitinho. “Gencianáceas”...
Deixa eu guardar o dicionário que eu já volto.
Depois:
Você não quer uns amendoins?

* * *
Hoje, com a química, toda esta literatura ficou ainda mais antiga. Trufas, enguias, ostras, raiz de genciana, casca de amendoim no colo, tudo foi substituído por uma pílula. É verdade que alguns dos recursos a que o homem recorria no passado, como chifre de rinoceronte pulverizado, não fazem falta. Mas a humanidade perdeu alguma coisa quando perdeu o risco de morrer de congestão durante o ato sexual, depois de se empanturrar para garantir que ele seria bom. Diminuiu-se a nossa aventura sobre a Terra. E fico pensando naquele ragu de siri…
Luís Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo

Quando nos conhecemos, ele não vivia assim

Agora dizem que ele comprou um apartamento em Miami e viaja para lá três vezes por ano; mas quando nos conhecemos, ele não vivia assim. Aos domingos passeávamos no Jardim da Luz, eu ficava lendo e ele gostava de ver os passarinhos empoeirados, imitava os pássaros que nem uma criança, ele queria voar mais alto que as aves, mas ainda não tinha asas. Ele ainda me chamava de Linda, eu oferecia a ele uma esfirra, um pastel de carne, meu ex-namorado não tinha onde cair morto. Um biscateiro bonito, isso ele era. Aí fez um teste para ator de TV e se saiu bem. Bem? Ele se saiu maravilhosamente bem. Ele e uma amiga, que agora é atriz, ou se diz atriz. Hoje, os dois atores ganham uma fortuna enquanto eu continuo em sala de aula, lecionando matemática a jovens que não sabem calcular a raiz quadrada de dezesseis, não sabem sequer somar a idade dos pais. Muitos não têm pai nem mãe, ou nem conheceram os pais. Ninguém sabe matemática, mas todos querem ganhar dinheiro. E o que faz a fama? O que faz o dinheiro às pencas? Meu ex-namorado trocou nosso amor pela televisão e por essas viagens, e ele, que nunca foi de dar risada, agora ri por qualquer coisa, qualquer besteira, nas fotos em que aparece ele está sempre rindo, como se o mundo fosse uma gargalhada sem fim. Ele não me chama mais de Linda, e sim de Lindalvina, meu nome. Você precisa ver o apartamento que ele comprou na Casa Verde. Todo atapetado, a sala entupida de móveis laqueados, com figuras de elefantes e macacos, horríveis pro meu gosto. Cada foto do galã deve valer uma fortuna, nem assim ele me ajuda, porque agora vive em outro mundo e eu sou apenas uma lembrança distante. Ou não sou mais nada e só tenho notícias dele quando encontro amigos que me dizem: “Ele está em Palm Beach”. Ou: “Ele apareceu em tal revista, vai fazer o papel de bandido ou de garanhão em tal novela ou seriado”. Mas esse ator, o bandido ou garanhão que brilha na tela, morou comigo nos fundos de uma casa em Diadema, onde as baratas nos visitavam e eu, não ele, as matava. Você deve pensar que tudo isso é ressentimento de mulher abandonada. Pode ser. Mas só assim consigo recordar essa história, porque nem todas as lembranças são boas. Se ele ler sua crônica, vai se reconhecer. Não é preciso citar o nome dele. O meu nome, sim. Para que ele saiba que o galã de hoje foi um vendedor de sonhos na praça da República e na Sé, onde ele distribuía um panfleto horroroso sobre o futuro de cada pessoa que enganava: O teu destino é cheio de alegrias admiráveis, mas nem tudo que reluz é ouro … Para que ele saiba que no nosso quarto ele pendurava a foto da mãe dele quando fazíamos amor e que ele se julgava um artista de cinema antes de ser o péssimo ator de dramalhões vulgares. Quando eu o conheci, ele mal sabia escrever, o que não é demérito no nosso pobre país, mas eu o estimulei e ensinei a ler bons livros, porque ele só lia livros roubados que falavam de sonhos grandiosos, receitas para se dar bem, conselhos para se tornar um líder; lia também biografias de cães e gatos famosos. Eu lhe dei um livro de crônicas de Rubem Braga e ele ficou deslumbrado; depois lhe dei uma novela de Tolstói e uma antologia de contos de Machado, que ele adorou. E por um momento pensei que ele ia se salvar da banalidade deste mundo em que vivemos, mas foi engolido ou seduzido pela fama e ambição. Ele deve se lembrar de tudo isso. Por via das dúvidas, escreva na sua crônica que ele foi um péssimo amante nas nossas primeiras noites, e que eu lhe ensinei a amar. Ele nunca vai se esquecer disso, porque era o que mais o atormentava.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Correr com a sela

Para o poltrão, fugindo às obrigações, evadindo-se do cumprimento do dever moral, desertando das responsabilidades, desaparecendo no momento da angustiosa necessidade, dizemos que correu com a sela.
Originar-se-ia, provavelmente, do ciclo da pastorícia, do costume de andar a cavalo, daquele tempo em que os homens eram homens e viajavam a cavalo: “when men were men and rode on horses”, na frase de Harold Preece.
O cavalo, animal nobre, é credor de toda confiança. Quem o monta é o cavaleiro e do seu uso, nas batalhas, provém a cavalaria, fundamento aristocrático. O cavaleiro; apeando-se para qualquer necessidade natural, vendo sua montada fugir, desertando do serviço, correndo com a sela, deixando o senhor a pé, sem meios de condução no meio da estrada, só poderia considerar o ato como prova da mais baixa vilania e da mais cruel traição. Aplicaria a imagem ao homem desidioso, destituído de vergonha, indigno do convívio com decência e lealdade. Há, porém, outra explicação, histórica, comprovada e real.
Quando um fidalgo, desde o tempo das Cruzadas (séculos XI-XIII), portava-se indecorosamente nas campanhas militares, com notória pusilanimidade, tornando-se indesejável na classe nobre, era julgado pelos seus pares e condenado à expulsão ignominiosa. Raspavam-lhe a cabeça (descalvação), e daí a frase ainda corrente: ficou com a calva à mostra; quebravam-lhe as esporas, les éperons brisés, originando outra frase depreciativa: é um espora quebrada, desbriado, traiçoeiro, sem pundonor, e ao fim obrigavam-no a sair da assembleia carregando uma sela nos ombros. Saía, fugia, corria com a sela. Estava, para sempre, desmoralizado.
Collin de Plancy (Dictionnaire féodal I, Paris, 1819) informa que durante a primeira dinastia dos Reis da França (IV ao VIII séculos) havia um castigo idêntico, bem anterior. O francês culpado de algum crime de vulto era condenado a percorrer determinada distância, nu en chemise, levando um cão ou uma sela sur ses épaules.
Collin de Plancy não estabelece distinção entre nobre e plebeu. Creio que a punição reservar-se-ia preferencialmente para os fidalgos. Transportar uma sela seria a redução simbólica do cavaleiro à condição de animal de montada. Não era possível degradação mais aviltante e anulação mais dolorosa de todos os direitos senhoriais. Para um vilão, que não pertencesse à Cavalaria Viloa, a pena teria significação menos humilhante e cruel. Tanto faria carregar uma sela como a um cão.
Há outras acepções de carregar a sela, estudadas no Anubis e outros ensaios (245-250, ed. Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1951) e no Superstições e costumes (235-239, ed. Antunes, Rio de Janeiro, 1958), sem que tenham relação mais expressiva com o nosso motivo presente.
Dizemos correr com a sela invariavelmente dirigido a uma criatura humana, faltosa e cobarde.
A origem virá da penalidade medieval ou do simples ato de o cavalo abandonar o cavaleiro, fugindo com todos os arreios?
Resta-nos o direito da escolha.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

De vontade, de bondade e de liberdade

Eu nunca acreditei que a sobrevivência fosse um valor último. A vida, para ser bela, deve estar cercada de vontade, de bondade e de liberdade. Essas são coisas pelas quais vale a pena morrer”.
Gandhi

O sentido da vida

O desconcertante mundo de Huxley é baseado no pressuposto biológico de que a felicidade é igual ao prazer. Ser feliz é nada mais, nada menos que experimentar sensações corporais agradáveis. Uma vez que nossa bioquímica limita o volume e a duração dessas sensações, a única maneira de fazer as pessoas sentirem um nível elevado de felicidade por um longo período é manipular seu sistema bioquímico.
Mas essa definição de felicidade é contestada por alguns estudiosos. Em um famoso estudo, Daniel Kahneman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, pediu a algumas pessoas que relatassem um dia típico de trabalho, descrevendo cada momento e avaliando o quanto as agradou ou desagradou. Ele descobriu o que parece ser um paradoxo no modo como a maioria das pessoas veem sua vida. Considere o trabalho inerente à criação de um filho. Kahneman descobriu que ao contar momentos alegres e momentos penosos, criar um filho se revela uma atividade um tanto desagradável. Consiste, em grande parte, de trocar fraldas, lavar pratos e lidar com choradeiras, o que ninguém gosta de fazer. Mas a maioria dos pais declara que seus filhos são sua principal fonte de felicidade. Isso significa que as pessoas não sabem o que é bom para elas?
Essa é uma possibilidade. Outra é que as descobertas demonstram que a felicidade não é o saldo positivo entre momentos agradáveis e momentos desagradáveis; antes, consiste em enxergar a própria vida em sua totalidade como algo significativo e valioso. Há um importante componente ético e cognitivo na felicidade. Nossos valores fazem toda a diferença quanto nos vermos como “escravos infelizes de um bebê ditador” ou como “nutrindo amorosamente uma nova vida”. Como colocou Nietzsche, se você tem um motivo para viver, é capaz de tolerar praticamente qualquer coisa. Uma vida cheia de sentido pode ser extremamente gratificante mesmo em meio a adversidades, ao passo que uma vida sem sentido é um suplício terrível independentemente de ser repleta de conforto.
Embora as pessoas em todas as culturas e épocas tenham sentido os mesmos tipos de prazer e de dor, o sentido que elas atribuíam à sua experiência provavelmente variou muitíssimo. Se é assim, a história da felicidade pode ter sido muito mais turbulenta do que os biólogos imaginam. É uma conclusão que não necessariamente favorece a modernidade. Se avaliarmos a vida minuto a minuto, as pessoas que viveram na Idade Média certamente tiveram uma vida difícil. No entanto, se elas acreditavam na promessa de felicidade eterna após a morte, podem muito bem ter considerado sua vida muito mais valiosa e plena de sentido do que as pessoas seculares de hoje, que, no longo prazo, não conseguem esperar nada além do completo esquecimento. Diante da pergunta “Você está satisfeito com sua vida como um todo?”, as pessoas na Idade Média possivelmente teriam uma pontuação bastante alta em um questionário de bem-estar subjetivo.
Então, nossos ancestrais medievais eram felizes porque encontravam sentido na vida em ilusões coletivas sobre a vida após a morte? Sim. Contanto que ninguém destruísse suas fantasias, por que não? Até onde sabemos, de um ponto de vista puramente científico, a vida humana não tem sentido algum. Os humanos são o resultado de processos evolutivos cegos que atuam sem propósito ou objetivo. Nossas ações não são parte de um plano cósmico divino, e, se o planeta Terra explodisse amanhã, o universo provavelmente seguiria em frente como de costume. Até onde podemos afirmar no presente momento, a subjetividade humana não faria falta. Portanto, qualquer significado que as pessoas atribuem à própria vida é apenas uma ilusão. Os sentidos sobrenaturais que os medievais encontravam em sua vida eram não mais ilusórios do que os sentidos humanistas, nacionalistas e capitalistas que as pessoas de hoje encontram. O cientista que afirma que sua vida tem sentido porque ele contribui para um aumento no conhecimento humano, o soldado que declara que sua vida tem sentido porque ele luta para defender sua terra natal e o empreendedor que encontra sentido em construir uma nova empresa são não menos iludidos do que seus semelhantes medievais que encontravam sentido lendo as Escrituras, participando de uma Cruzada ou construindo uma nova catedral.
Então, talvez a felicidade seja sincronizar nossas ilusões pessoais de sentido com as ilusões coletivas predominantes. Contanto que minha narrativa pessoal esteja alinhada com as narrativas das pessoas à minha volta, posso me convencer de que minha vida tem sentido e encontrar felicidade nessa convicção. Essa é uma conclusão um tanto deprimente. A felicidade realmente depende de autoilusão?
Yuval Noah Harari, in Sapiens – Uma breve história da humanidade

Linguagem: uma guerra civil sem quartel

A constante produção de imagens e de formas verbais rítmicas é uma prova do caráter simbolizante da fala, de sua natureza poética. A linguagem tende espontaneamente a se cristalizar em metáforas. Diariamente as palavras chocam-se entre si e emitem chispas metálicas ou formam pares fosforescentes. O céu verbal se povoa se cessar de novos astros. Todos os dias afloram à superfície do idioma palavras e frases, minando ainda umidade e silêncio por entre suas frias escamas. No mesmo instante outras desaparecem. De repente, o terreno baldio de um idioma fatigado se cobre de súbitas flores verbais. Criaturas luminosas habitam as espessuras da fala, criaturas sobretudo vorazes. No seio da linguagem há uma guerra civil sem quartel. Todos contra um. Um contra todos. Enorme massa sempre em movimento, engendrando-se sem cessar, ébria de si! Nos lábios das crianças, dos loucos, dos sábios, dos idiotas, dos namorados ou dos solitários, brotam imagens, jogos de palavras, expressões surgidas do nada. Por um instante brilham ou lampejam. Depois se apagam. feitas de matéria inflamada, as palavras se incendeiam mal roçadas pela imaginação ou pela fantasia. Mas são incapazes de conservar seu fogo. a fala é a substância ou alimento do poema; não é porém, o poema. A distinção entre o poema e essas expressões poéticas – inventadas ontem ou repetidas há mais de mil anos por um povo que conserva intacto seu saber tradicional — radica-se no seguinte: o poema é uma tentativa de transcender o idioma; as expressões poéticas, ao contrário, vivem no mesmo nível da fala e são resultados do vaivém das palavras nas bocas dos homens. Não são criações, obras. A fala, a linguagem social, concentra-se no poema, articula-se e levanta-se. O poema é a linguagem erguida.”
Octavio Paz, in O arco e a lira

Começo a conhecer-me. Não existo

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
Álvaro de Campos, Heterônimo de Fernando Pessoa

Não quero novidades

Sempre fui louco por jardins. Uns acham que eu não acredito em Deus. Como não acreditar em Deus se há jardins? Um jardim é a face visível de Deus. E essa face me basta. Não tenho necessidade de ir olhar atrás das estrelas... Escrevi inúmeros textos sobre jardins. Num jardim estou no paraíso. Mas, que foi que fiz com o meu jardim? Abandonei. A caixa das abelhinhas apodreceu, caiu a tampa e eu não fiz nada. Cresceu o mato, eu não fiz nada. Da fonte tirei os peixes, coitados... De um lugar de prazer, onde se assentar em abençoada vadiação contemplativa, meu jardim virou um lugar de passagem. Abandonei o meu amigo, por causa do dever. Para o inferno com o dever! Vou mesmo é cuidar do meu jardim. Por prazer meu. E pela alegria das minhas netas. Vou reformar a fonte, vou fazer um balanço (que os paulistas insistem em chamar de balança...), vou reformar o gramado, vou refazer a casa das abelhinhas, vou fazer uma cobertura para as orquídeas. E mais, vou fazer uma “casinha de bruxa”, cheia de brinquedos, para as minhas netas, a Mariana, a Camila, a Ana Carolina, a Rafaela e a Bruna... Quero brincar com elas. Em breve elas terão crescido e não mais terei netas com quem brincar. “Mas o melhor do mundo são as crianças...”
Vou voltar a tocar piano – coisas fáceis: a “Fantasia”, de Mozart, a “Träumerai”, de Schumann, o Improviso op. 90, n. 4, de Schubert, o prelúdio da “Gota d’água”, de Chopin, alguns adágios de sonatas de Beethoven.
Quero ouvir músicas: aquelas que fazem parte da minha alma. Pois a alma, no seu lugar mais fundo, está cheia de música. E, sem precisar me desculpar pelo meu gosto, digo que amo música erudita. Música erudita é aquela que nos faz comungar com a eternidade. As outras são bonitas e gostosas – mas são coisa do tempo.
Quero reler alguns livros. Vou relê-los porque é sempre uma alegria caminhar por caminhos conhecidos e esquecidos. É como se fosse pela primeira vez.
Não quero novidades. Não vou comprar apartamentos ou terrenos. Não quero viajar por lugares que desconheço. Eliot: “E ao final de nossas longas explorações chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez...”. É isso. Voltar às minhas origens, às coisas de Minas que tanto amo... a cozinha, os jardins de trevo, a malva, as romãs e os manacás, as montanhas, os riachinhos, as caminhadas...
Há coisas que só poderei gozar em solidão. Ninguém é obrigado a gostar das músicas que amo. Entrando nesse mundo, gozarei de abençoada solidão. Lugar bom para se ouvir música assim é guiando o carro, sozinho, sem precisar conversar.
Mas quero meus amigos. Não do jeito do Roberto Carlos, que queria ter um milhão de amigos. Não é possível ter um milhão de amigos. Quero meus poucos amigos. Amigos: pessoas em cuja presença não é preciso falar...
Estou tentando, estou começando. Espero conseguir...”
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

Livre de todas as obrigações oficiais

E agora, que estou livre de todas as obrigações oficiais, sinto-me atraído pela ideia de usar meu tempo e bom humor para, num desses dias, escrever um livro – ou antes, um livrinho, uma coisinha para os amigos e aqueles que partilham dos meus pontos de vista. O assunto não terá a menor importância. Será apenas um pretexto para que eu me isole a fim de gozar a felicidade de ter tempo de lazer. O importante mesmo será o tom, que deverá estar entre o solene e o íntimo, entre o sério e o brinquedo, um tom que não seja de instrução, mas de conversa amigável sobre as várias coisas que aprendi...”
Hermann Hesse, in O jogo das contas de vidro

Cem anos de perdão

Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu.” “Não, eu já disse que os brancos são meus.” “Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa das brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente – ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.
O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.
Clarice Lispector, in Todos os contos