quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Evangelho de Judas

Chegou-me a última edição da revista Geographic Magazine, toda ela dedicada ao Evangelho de Judas, que está produzindo uma grande confusão nos círculos religiosos. E isso porque esses manuscritos trazem uma versão diferente do que aconteceu: Judas não foi traidor. Não entendo essa confusão, porque qualquer pessoa minimamente informada em teologia sabe que Judas não foi um traidor. Trair é romper um pacto. Mas Judas não rompeu pacto algum. Pelo contrário: fez cumprir o pacto que lhe havia sido destinado por Deus Pai desde toda eternidade. Porque Deus, na sua onisciência, estabeleceu um plano de salvação para os homens que, de outra forma, iriam para o Inferno. Deus poderia perdoar os seus pecados. Mas Deus não perdoa. Aquilo a que se dá o nome de perdão é, na realidade, o pagamento de uma dívida pendente. Deus não perdoa dívidas. As dívidas têm de ser quitadas. Quitadas com quê? Dizem as Escrituras que sem sangue não há remissão de pecados. Deus só aceita pagamento em sangue. Que sangue seria suficiente para pagar os pecados do mundo? Somente um sangue de valor infinito. Mas, sangue de valor infinito, só o sangue divino. Para isso veio Jesus – segundo a teologia –, para derramar o seu sangue de valor infinito que Deus aceitaria como pagamento. Deus planeja a morte do seu próprio filho para nos salvar do Inferno. Por que Deus criou o Inferno, isso eu não sei. Sei que não foi o Diabo, porque Deus, sendo onipotente, não permitiria que o Diabo tivesse tais poderes. Então, todo o plano elaborado por Deus Pai desde toda a eternidade dependia de que Jesus fosse crucificado. Imaginem que ele não fosse crucificado. Que ele se mudasse para a Grécia e terminasse os seus dias com 88 anos de idade, como professor de filosofia. A filosofia ganharia, mas a humanidade iria para o Inferno. Foi assim que Deus, desde toda eternidade, determinou que um homem chamado Judas entregasse Jesus para o sacrifício. Judas não tinha alternativa. Ele tinha de ser fiel àquilo que Deus determinara. Então não foi Judas que entregou Jesus. Parece assim, vendo-se do lado do tempo. Mas, vendo-se sub specie aeternitatis , é Deus que está fazendo tudo. Judas foi um fiel instrumento de Deus para que a salvação se realizasse. Assim, nenhum outro apóstolo contribuiu tanto para a salvação da humanidade quanto Judas. Isso já era do conhecimento da Igreja, desde sempre. Não entendo, portanto, o rebuliço. Proponho a canonização de Judas.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Firmemente

Com tanta firmeza quanto a mão segura a pedra. Ela a segura firmemente, porém, só para atirá-la mais longe. Mas o caminho também leva àquelas distâncias.
Franz Kafka, in Aforismos reunidos

A“ovelha negra”

Em toda família ilustre e velha existe um membro desajustado e causador de escândalo. É a ovelha negra, black lamb, brebis noir, Schaf Schwarze. No rebanho vive um animal insubmisso e difícil. É a ovelha negra. Num partido político um correligionário desacomodado, exigente, pessimista. É a ovelha negra.
O Sr. Brasil Gérson, escrevendo sobre o ex-futuro Barão de Vila Rica (O Jornal, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1958), lembra à pretensão do sonhado título nobiliárquico “se aproveitou a ovelha negra da nobre família Lima e Silva (do Duque de Caxias), o bon vivant Manuel Luís Lima e Silva”. Essa ovelha negra elaborou uma alta chantagem, arrancando dinheiro a quem deseja ser barão.
Diz-se que semelhantemente na Inglaterra, na Alemanha, em Portugal, na Espanha e nos países de língua francesa corre o brebis noir.
A ovelha, o cordeiro, o anho, símbolos da castidade, inocência, pureza; Cordeiro de Deus, ovelha pascal, Agnus Dei, animais votivos por excelência aos deuses; representações da mansidão, obediência, doçura, em milênios de história religiosa, tomam formas rebeldes e duras na imagem popular, significando a exceção condenada, constituindo a triste prerrogativa da exclusão na linha da bondade normal.
O prejuízo ocorre pela presença da cor negra, votada aos deuses subterrâneos, cor dos abismos, ideia da Noite, o Erebo, o Caos, as Parcas sem piedade, da Morte, a negra Morte, e da negra Miséria. É a cor denunciadora do sofrimento, da crueldade, da paixão interior, desejos materiais, acabrunhantes e esmagadores. Alma negra. Negro destino. Horas negras. Quando Gerard de Nerval fala no soleil noir de la mélancolie refere-se à origem etimológica da Melancolia, a bílis negra, mélas-kholé.
O animal negro era dedicado às forças obscuras da terra, aos deuses telúricos, à grandeza misteriosa da Tellus Mater na Grécia e Roma, Tétis e Gaea, mãe dos seres, inesgotável nutridora dos viventes.
Na Ilíada (III), quando Páris desafia Menelau para um combate singular, terminando desta forma a luta entre gregos e troianos, uma cerimônia preliminar se impõe: o sacrifício de um cordeiro branco ao Sol e de uma ovelha negra à Terra. Mandados por Heitor, dois arautos troianos trouxeram os animais e Agamênon mandou Taltíbios buscar as vítimas, guardadas no bojo dos navios argivos. O próprio Rei Príamo oficiou, degolando as ovelhas com o impiedoso bronze.
Tétis, com Hélios e as Erínias, tinha a missão suprema da vigilância, fazendo observar a santidade dos juramentos e a fiel observância da palavra dada, encarregando-se, com seus companheiros, de fazer castigar no Inferno o feio pecado da violação aos compromissos de honra.
Por isso Páris e Menelau a homenagearam antes do duelo prometendo o cumprimento exato de tudo quanto se pactuara, oferecendo-lhe pela mão do Rei Príamo a ovelha negra, como penhor do trato formal.
Era assim em 1180, antes de Jesus Cristo nascer...
Essencial que a ovelha fosse negra, porque negra seria a cor indispensável para qualquer animal destinado à expulsão dos males, emissário de pecados, cujo tipo mais ilustre é o famoso Azazel, o Bode Expiatório de Israel. O principal era a cor, aussi noir que possible, como reparou Sir James George Frazer.
No rebanho, a ovelha negra é a marcada, de antemão escolhida para o sacrifício, eleita pelo destino da pelagem à imolação fatal, indicada sem remissão para satisfazerem pactos ou pecados alheios. Pode ser ou não ser uma má ovelha mas sua morte a distanciará de todas as companheiras do redil. A ovelha negra era, funcionalmente, a exceção na normalidade da espécie. Excluía-se do comum, do habitual, do rotineiro, do usual. O seu caráter de animal sagrado não afastaria a crença de sua finalidade inapelável.
Esse índice de excepcionalidade, fechado ciclo religioso com o advento do Cristianismo, não mais tendo o sentido de aplicação litúrgica e não desaparecendo do vocabulário vulgar, fixou-se como o tabu dos animais marcados, os entes que têm, notória, uma tacha, um sinal que os diferencia do normal. “Se Deus o marcou, alguma cousa lhe achou!” – ainda diz o povo. O Velho Testamento mandava afastar do altar (Levítico, XXI,18-21) homens e animais (Deuteronômio, XV,21) portadores de anomalias dentro do culto consuetudinário. A ovelha negra era uma exceção como vítima protocolarmente escolhida. Não havendo a função e resistindo à tradição, estaria marcada para o Mal porque para o Bem não mais era possível, dissipado o cerimonial onde era elemento propiciatório.
Ficou a ovelha negra sendo, aos olhos cristãos, uma reminiscência viva da religião condenada do Paganismo, índice oblacional aos deuses terríveis da Terra, que da vida (Homero, Ilíada, III, 245). Destinada à expiação sacra entre gregos e romanos, a ovelha negra encarnou, no mundo cristão, a expressão sacrificial ao pecado, ao erro, à desobediência dos preceitos divinos.
Mesmo depois de 394, quando o Imperador Teodósio mandou fechar o Templo das Vestais em Roma, o derradeiro recanto onde os deuses recebiam oferendas, os costumes prolongaram a existência religiosa antiga entre os camponeses, aldeias e campos, e a ovelha negra , muito depois da oficialização cristã, continuou abatida aos manes defuntos do Olimpo. Talqualmente o Bode e a Cabra, que não tiveram acolhida nas lendas cristãs, a ovelha negra é uma sobrevivência pagã legitimíssima.
Esta é, para mim, não a estória, mas a história da ovelha negra.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

Dedicatória

AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS
Ao Leitor

Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havê-lo escrito para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez, Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Stern de um Lamb ou de um de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Um escritor nasce e morre

I
Nasci numa tarde de julho, na pequena cidade onde havia uma cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas umas das outras, e que se chamava Turmalinas. A cadeia era velha, descascada na parede dos fundos, Deus sabe como os presos lá dentro viviam e comiam, mas exercia sobre nós uma fascinação inelutável (era o lugar onde se fabricavam gaiolas, vassouras, flores de papel, bonecos de pau). A igreja também era velha, porém não tinha o mesmo prestígio. E a escola, nova de quatro ou cinco anos, era o lugar menos estimado de todos. Foi aí que nasci: Nasci na sala do terceiro ano, sendo professora d. Emerenciana Barbosa, que Deus tenha. Até então, era analfabeto e despretensioso. Lembro-me: nesse dia de julho, o sol que descia da serra era bravo e parado. A aula era de geografia, e a professora traçava no quadro-negro nomes de países distantes. As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente, trazendo países inteiros. Então, nasci. De repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever. Nunca pensara no que podia sair do papel e do lápis, a não ser bonecos sem pescoço, com cinco riscos representando as mãos. Nesse momento, porém, minha mão avançou para a carteira à procura de um objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu alguma coisa parecida com a narração de uma viagem de Turmalinas ao Polo Norte.
É talvez a mais curta narração no gênero. Dez linhas, inclusive o naufrágio e a visita ao vulcão. Eu escrevia com o rosto ardendo, e a mão veloz tropeçando sobre complicações ortográficas, mas passava adiante. Isso durou talvez um quarto de hora, e valeu-me a interpelação de d. Emerenciana:
Juquita, que que você está fazendo?
O rosto ficou mais quente, não respondi. Ela insistiu:
Me dá esse papel aí... Me dá aqui.
Eu relutava, mas seus óculos eram imperiosos. Sucumbindo, levantei-me, o braço duro segurando a ponta do papel, a classe toda olhando para mim, gozando já o espetáculo da humilhação. D. Emerenciana passou os óculos pelo papel e, com assombro para mim, declarou à classe:
Vocês estão rindo do Juquita. Não façam isso. Ele fez uma descrição muito chique, mostrou que está aproveitando bem as aulas.
Uma pausa, e rematou:
Continue, Juquita. Você ainda será um grande escritor.
A maioria, na sala, não avaliava o que fosse um grande escritor. Eu próprio não avaliava. Mas sabia que no Rio de Janeiro havia um homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito compridos e era inteligentíssimo. Devia ser, com certeza, um grande escritor, e em meus nove anos achei que a professora me comparava a Rui Barbosa.
viagem ao Polo foi cuidadosamente destacada do caderno onde se esboçara, e conduzida em triunfo para casa. Minha mãe, naturalmente inclinada à sobrestimação de meus talentos, julgou-me predestinado. Meu pai, homem simples, de bom senso integral, abriu uma exceção para escutar os vagidos do escritorzinho. Ganhei uma assinatura do Tico-Tico, presente régio naqueles tempos e naquelas brenhas, e passei a escrever contos, dramas, romances, poesias e uma história da Guerra do Paraguai, abandonada no primeiro capítulo para alívio do marechal López.

II
Escrevi. Escrevi. Deixei Turmalinas. No internato, fui redator da Aurora Ginasial, onde um padre introduziu criminosamente, em minha descrição da primavera, a expressão “tímidas cecéns”, que me indignou. Cá fora, revistas literárias passaram a abrigar-me com assiduidade. Em uma delas meu retrato apareceu, com adjetivos. Não me pagavam nada, nem eu podia admitir que literatura se vendesse ou se comprasse. Quantas vezes meu coração bateu quando os dedos folheavam, trêmulos, o número de sábado, ainda cheirando a tinta de impressão! Publicou... Não publicou... E sempre a descoberta do meu trabalho, ainda em plena rua, despertava a sensação incômoda do homem que foi encontrado nu e não teve tempo de cobrir as partes pudendas. Eu escondia meu crime, orgulhoso de tê-lo cometido, fazendo da literatura um segredo de masturbação. Havia semanas em que o Fon-Fon, o Para-Todos, a Careta e a Revista da Semana publicavam simultaneamente trabalhos de minha humilde lavra, todos ou quase todos poemas em prosa, em que me especializara. Nem sempre havia numerário suficiente para adquirir todas as revistas, e então o copo de leite quente, com pão e manteiga, à noite, antes de ir para a pensão, sacrificava-se com galanteria às belas-letras.
Escrevi muito, não me pejo de confessá-lo. Em Turmalinas, gozei de evidente notoriedade, a que faltou, entretanto, para duração, certo trabalho de jardinagem. É verdade que Turmalinas me compreendia pouco, e eu a compreendia menos. Meus requintes espasmódicos eram um pouco estranhos a uma terra em que a hematita calçava as ruas, dando às almas uma rigidez triste. Entretanto, meu nome em letra de forma comovia a pequena cidade, e dava-lhe esperança de que o meu talento viesse a resgatar o melancólico abandono em que, anos a fio, ela se arrastava, com o progresso a cinquenta quilômetros de distância e galinhas ciscando na rua.
Não houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei lá. De lá ninguém me escreveu, pedindo para fazer uma página sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-Vivas. Meus parentes espalharam-se ou morreram. O escritor tornou-se urbano.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos de aprendiz

Rumo ao sumo

Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.
Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.
Paulo Leminski

O custo de pensar

Google Imagens

Apesar de suas muitas diferenças, todas as espécies humanas têm em comum várias características que as definem. Mais notadamente, os humanos têm o cérebro extraordinariamente grande em comparação com o de outros animais. Mamíferos pesando 60 quilos têm um cérebro com tamanho médio de 200 centímetros cúbicos. Os primeiros homens e mulheres, há 2,5 milhões de anos, tinham cérebros de cerca de 600 centímetros cúbicos. Sapiens modernos apresentam um cérebro de 1200 a 1400 centímetros cúbicos. Os cérebros dos neandertais eram ainda maiores.
Que a evolução devesse selecionar cérebros maiores pode nos parecer óbvio. Somos tão apaixonados por nossa inteligência superior que presumimos que, em se tratando de capacidade cerebral, mais deve ser melhor. Mas, se fosse assim, a família dos felídeos também teria produzido gatos capazes de fazer cálculos, e porcos teriam a esta altura lançado seus próprios programas espaciais. Por que cérebros gigantes são tão raros no reino animal?
O fato é que um cérebro gigante é extremamente custoso para o corpo. Não é fácil de carregar, sobretudo quando envolvido por um crânio pesado. É ainda mais difícil de abastecer. No Homo sapiens, o cérebro equivale a 2 ou 3% do peso corporal, mas consome 25% da energia do corpo quando este está em repouso. Em comparação, o cérebro de outros primatas requer apenas 8% de energia em repouso. Os humanos arcaicos pagaram por seu cérebro grande de duas maneiras. Em primeiro lugar, passaram mais tempo em busca de comida. Em segundo lugar, seus músculos atrofiaram. Como um governo desviando dinheiro da defesa para a educação, os humanos desviaram energia do bíceps para os neurônios. Dificilmente pensaríamos que essa é uma boa estratégia para a sobrevivência na savana. Um chimpanzé não pode ganhar uma discussão com um Homo sapiens, mas pode parti-lo ao meio como uma boneca de pano.
Hoje, nosso cérebro grande é uma vantagem, porque podemos produzir carros e armas que permitem nos locomovermos mais rápido que os chimpanzés e atirar neles de uma distância segura em vez de enfrentá-los em um combate corpo a corpo. Mas carros e armas são um fenômeno recente. Por mais de 2 milhões de anos, as redes neurais dos humanos continuaram se expandindo, mas, com exceção de algumas facas de sílex e varetas pontiagudas, os humanos tiraram muito pouco proveito disso. Então, o que impulsionou a evolução do enorme cérebro humano durante esses 2 milhões de anos? Francamente, nós não sabemos.
Outro traço humano singular é que andamos eretos sobre duas pernas. Ao ficar eretos, é mais fácil esquadrinhar a savana à procura de animais de caça ou de inimigos, e os braços, desnecessários para a locomoção, são liberados para outros propósitos, como atirar pedras ou sinalizar. Quanto mais coisas essas mãos eram capazes de fazer, mais sucesso tinham os indivíduos, de modo que a pressão evolutiva trouxe uma concentração cada vez maior de nervos e músculos bem ajustados nas palmas e nos dedos. Em consequência, os humanos podem realizar tarefas complexas com as mãos. Em particular, podem produzir e usar ferramentas sofisticadas. Os primeiros indícios de produção de ferramentas datam de aproximadamente 2,5 milhões de anos atrás, e a manufatura e o uso de ferramentas são os critérios pelos quais os arqueólogos reconhecem humanos antigos.
Mas caminhar com a coluna ereta tem lá suas desvantagens. O esqueleto de nossos ancestrais primatas se desenvolveu durante milhões de anos para sustentar uma criatura que andava de quatro e tinha uma cabeça relativamente pequena. Adaptar-se a uma posição ereta foi um grande desafio, sobretudo quando a estrutura precisou sustentar um crânio extragrande. A humanidade pagou por sua visão elevada e suas mãos habilidosas com dores nas costas e rigidez no pescoço.
As mulheres pagaram ainda mais. Um andar ereto exigia quadris mais estreitos, constringindo o canal do parto – e isso justamente quando a cabeça dos bebês se tornava cada vez maior. A morte durante o parto se tornou uma grande preocupação para as fêmeas humanas. As mulheres que davam à luz mais cedo, quando o cérebro e a cabeça do bebê ainda eram relativamente pequenos e maleáveis, se saíam melhor e sobreviviam para ter mais filhos. Em consequência, a seleção natural favoreceu nascimentos precoces. E, de fato, em comparação com outros animais, os humanos nascem prematuramente, quando muitos de seus sistemas vitais ainda estão subdesenvolvidos. Um potro pode trotar logo após o nascimento; um gatinho deixa a mãe para buscar alimento por conta própria com poucas semanas de vida. Os bebês humanos são indefesos e durante muitos anos dependem dos mais velhos para sustento, proteção e educação.
Esse fato contribuiu enormemente para as extraordinárias habilidades sociais da humanidade e, ao mesmo tempo, para seus peculiares problemas sociais. Mães solitárias dificilmente conseguiam obter comida suficiente para sua prole e para si mesmas tendo crianças necessitadas sob seus cuidados. Criar filhos requeria ajuda constante de outros membros da família e de vizinhos. É necessária uma tribo para criar um ser humano. A evolução, assim, favoreceu aqueles capazes de formar fortes laços sociais. Além disso, como os humanos nascem subdesenvolvidos, eles podem ser educados e socializados em medida muito maior do que qualquer outro animal. A maioria dos mamíferos sai do útero como cerâmica vidrada saindo de um forno – qualquer tentativa de moldá-los novamente apenas irá rachá-los ou quebrá-los. Os humanos saem do útero como vidro derretido saindo de uma fornalha. Podem ser retorcidos, esticados e moldados com surpreendente liberdade. É por isso que hoje podemos educar nossos filhos para serem cristãos ou budistas, capitalistas ou socialistas, belicosos ou pacifistas.
Presumimos que um cérebro grande, o uso de ferramentas, uma capacidade superior de aprender e estruturas sociais complexas são vantagens enormes. Parece óbvio que esses atributos tornaram a humanidade o animal mais poderoso da Terra. Mas os humanos desfrutaram de todas essas vantagens por 2 milhões de anos, durante os quais continuaram sendo criaturas fracas e marginais. Assim, humanos que viveram há 1 milhão de anos, apesar de seus cérebros grandes e ferramentas de pedra afiadas, viviam com medo constante de predadores, raramente caçavam animais grandes e subsistiam principalmente coletando plantas, pegando insetos, capturando animais pequenos e comendo a carniça deixada por outros carnívoros mais fortes.
Um dos usos mais comuns das primeiras ferramentas de pedra foi abrir ossos para chegar até o tutano. Alguns pesquisadores acreditam que esse foi nosso nicho original. Assim como os pica-paus se especializam em extrair insetos dos troncos das árvores, os primeiros humanos se especializaram em extrair o tutano dos ossos. Por que o tutano? Bem, suponhamos que você esteja observando um bando de leões abater e devorar uma girafa. Você espera pacientemente até eles terminarem. Mas ainda não é a sua vez, porque primeiro as hienas e os chacais – e você não ousa se meter com eles – reviram as sobras. Só então você e seu bando ousam se aproximar da carcaça, olhando com cuidado à sua volta, e explorar o único tecido comestível que restou.
Isso é essencial para entender nossa história e nossa psicologia. A posição do gênero Homo na cadeia alimentar era, até muito pouco tempo atrás, solidamente intermediária. Durante milhões de anos, os humanos caçaram criaturas menores e coletaram o que podiam, ao passo que eram caçados por predadores maiores. Somente há 400 mil anos que várias espécies de homem começaram a caçar animais grandes de maneira regular, e só nos últimos 100 mil anos – com a ascensão do Homo sapiens – esse homem saltou para o topo da cadeia alimentar.
Esse salto espetacular do meio para o topo teve enormes consequências. Outros animais no topo da pirâmide, como os leões e os tubarões, evoluíram para essa posição gradualmente, ao longo de milhões de anos. Isso permitiu que o ecossistema desenvolvesse formas de compensação e equilíbrio que impediam que leões e tubarões causassem destruição em excesso. À medida que os leões se tornavam mais ferozes, a evolução fez as gazelas correrem mais rápido, as hienas cooperarem melhor, e os rinocerontes serem mais mal-humorados. Diferentemente, a humanidade ascendeu ao topo tão rapidamente que o ecossistema não teve tempo de se ajustar. Além disso, os próprios humanos não conseguiram se ajustar. A maior parte dos grandes predadores do planeta são criaturas grandiosas. Milhões de anos de supremacia os encheram de confiança em si mesmos. O sapiens, diferentemente, está mais para um ditador de uma república de bananas. Tendo sido até tão pouco tempo atrás um dos oprimidos das savanas, somos tomados por medos e ansiedades quanto à nossa posição, o que nos torna duplamente cruéis e perigosos. Muitas calamidades históricas, de guerras mortais a catástrofes ecológicas, resultaram desse salto apressado.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

Don Juan e a Morte

Quando a mulher revelou que era a Morte e que viera buscá-lo, Don Juan não pulou da cama nem tentou fugir. Apenas sorriu e disse:
Eu deveria ter desconfiado.
Por quê? — perguntou a Morte.
Porque nenhuma mulher tão linda se entregaria a mim tão facilmente, se não fosse uma armadilha.
Mas você não é um sedutor famoso? Um homem irresistível?
Sim, mas na minha experiência, quanto mais linda a mulher, mais difícil a sedução. E com você não precisei usar nenhum dos meus truques. Nem meu olhar de desatar espartilhos, nem os versos que orvalham o portal do amor antes mesmo do meu primeiro toque... Você é a mulher mais bonita que já conheci, mas bastou dizer “vem” e você veio. Eu deveria ter desconfiado.
Eu talvez tenha me precipitado, ao ceder tão facilmente. Gostaria de ouvir seus versos, que também são famosos. Se eu tivesse resistido um pouco mais...
Pois é. Agora é tarde.
O que você diria da minha beleza, se fosse obrigado a recorrer à poesia para me trazer pra cama?
Bem. Assim, de improviso... Ainda mais depois de saber da minha morte iminente...
Tente.
Eu começaria elogiando o seu porte heráldico. Compararia a brancura da sua pele às primeiras neves, quando os cristais ainda reluzem, e o rego dos seus seios ao estreito de Gibraltar, onde dois continentes portentosos se roçam. Comentaria as estrias roxas do seu cabelo e... e...
Que foi? Por que parou?
Acabo de me dar conta. Está explicado por que nos amamos em todas as posições possíveis, inclusive algumas que eu mesmo inventei, sem que eu ouvisse um “ui” da sua boca. Um mísero “ui”. Você manteve-se fria o tempo todo. Claro! Onde se viu a Morte gozar?
Desculpe, eu...
Não se desculpe. Você não vê? Isto redime a minha masculinidade. Pensei que tivesse perdido meu jeito de satisfazer as mulheres, que nunca tinha falhado antes. Mas não era eu. Era você. Você só estava aqui a serviço, não para se divertir.
Não deixou de ser agradável.
Obrigado, mas não precisa mentir. Vou morrer feliz, sabendo que não falhei. E o irônico é que passei a vida inteira seduzindo mulheres para adiar a velhice, enganar o tempo e protelar a morte, e ela, a Morte, você, me aparece assim. Na forma da mulher mais bonita que já conheci. Olhos como lagos fosforescentes, pescoço como a coluna de mármore de Amastar, onde peregrinos encostavam a testa para rejuvenescer; tornozelos como...
Não quero interromper, mas acho que deveríamos partir.
Certo, certo. E se a gente desse mais uma, rapidinha, só para eu me lembrar depois? Ouvi dizer que, no céu, o canto coral substitui o sexo e no inferno é só com um cabrito.
Não é uma boa ideia. Vamos?
(Suspiro) Vamos.
Luís Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis

Um sonhador

Aprendi a navegar no escuro antes de ler e escrever. Meu pai me ensinou a remar e a encontrar canal em época de vazante. Isso num tempo em que havia estações…
Em setembro os rios ficaram tão rasos que os peixes foram aprisionados em lagos que nunca foram lagos. Mortos. E um cheiro de cinzas no ar. Meus pais não viram esse céu de ferrugem que esconde o sol. Velhos, nem falavam mais no futuro… Agora aparecem juntos e enlaçados, assombrados que nem fantasmas. Dizem que no sul os rios morreram há muito tempo, e que há guerra e flagelos nas grandes cidades. Por aqui, de qualquer coisa se morre, e até malária enterra crianças. Violência, doenças: quem pode desmentir seu próprio sofrimento?
Do sul e da outra metade do país recebo notícias de moças que trazem palavras para o nosso povoado. Há poucos anos elas chegaram com caixas de livros e começaram a contar histórias para as crianças.
As moças foram embora com a promessa de que voltariam. Os mais jovens duvidaram, mas elas reapareceram que nem vaga-lumes: de surpresa, piscando na escuridão. Nos meses de seca e escassez, quando as margens se confundem com o leito do rio, os livros são lidos em voz alta. As palavras não curam, mas são uma trégua no desamparo, melodia na solidão. Agora as crianças sonham com as histórias que ouviram e contam sonhos com as palavras que aprenderam a ler.
Lembrei as moças vaga-lumes porque ontem, Dia da República, quis ser o primeiro a votar. Eu atravessava o Estirão do Diabo à vara e a remo, e de repente uma voz surgiu na curva do riozinho da Liberdade, onde fica a seção eleitoral. A voz fria disse: “Não adianta votar… A decepção é maior do que a esperança”.
Procurei em vão a origem da voz. Nas margens do riozinho a visão das palmeiras anunciava o amanhecer; no céu avermelhado apagou-se a última estrela e uma forma estranha riscou o horizonte. Era um voador bicudo, grande demais para ser um morcego. Alcançou um descampado, foi atraído para as trevas da floresta e se perdeu por lá. Um bicho soltou grunhidos estranhos. Ao longe, uma fila de vultos maltrapilhos crescia diante da seção eleitoral. Eu não conseguia sair do estirão: a canoa ficou cercada de peixes podres, folhas e galhos carbonizados. Pelejava para afastar esses dejetos, mas a curva do rio parecia inalcançável. Aos poucos, os grunhidos tornaram a ecoar no espaço, os sons aumentaram e pareciam urros de homens engalfinhados, como se disputassem um banquete. Lutavam na mata fechada: uma disputa das mais ferozes. Depois escutei umas gargalhadas de festim e vi a fila de votantes avançar devagar, com um andar de procissão. De repente, o silêncio: tudo ficou paralisado. Um estrondo apagou a curva do rio e outras visões.
O mesmo estrondo me acordou.
Era a primeira manhã do ano. Na memória do sonho ainda alternavam a traição sem remorso e a esperança. E logo me veio à mente uma frase que nunca esqueci: o destino do sonhador é duvidar…
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Chão de outono

Foto: Alvaro Pressanto

Ao longo das pedras irregulares do calçamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pânico, perseguidas de perto por um convite-de-enterro, sinistro, tatalando, aos pulos, cada vez mais perto, as duas asas tarjadas de negro!
Mário Quintana, in O sapato florido

Um canibal ajudando os cristãos


Na manhã seguinte, uma segunda-feira, depois de vender a cabeça embalsamada como manequim a um barbeiro, acertei minha conta e a do meu companheiro; usando, no entanto, o dinheiro dele. O estalajadeiro sorridente, assim como os outros hóspedes, parecia se divertir às baldas com a súbita amizade que havia brotado entre mim e Queequeg – ainda mais porque as lorotas de Peter Coffin tanto me haviam alarmado em relação à mesma pessoa com quem agora eu andava.
Pedimos um carrinho de mão emprestado e embarcando ali nossas coisas, ou seja, meu pobre saco de viagem e o saco de lona de Queequeg, fomos direto à Musgo, uma pequena escuna de Nantucket que servia de paquete e já estava no cais. Conforme passávamos, as pessoas ficavam olhando; não tanto por causa de Queequeg – visto que estavam acostumadas a canibais como ele nas ruas –, mas por vê-lo comigo em termos tão amistosos. Mas não lhes demos atenção, continuávamos a empurrar nosso carrinho, ora um, ora outro, e Queequeg de vez em quando parando para arrumar o arpão na bainha. Perguntei-lhe por que andava em terra firme com um trambolho daqueles e se não havia arpões em todos os navios baleeiros. A isto, essencialmente, respondeu-me que, embora minha suposição fosse bem correta, ele tinha uma afeição especial por seu próprio arpão, que era de boa qualidade, tinha sido testado em vários combates mortais e era muito íntimo dos corações de baleia. Em suma, como muitos ceifadores que vão às campinas das fazendas com as suas próprias foices – embora não tenham a obrigação de fornecê-las –, Queequeg, por seus próprios motivos, preferia levar seu arpão.
Tomando o carrinho das minhas mãos, contou-me uma história engraçada sobre a primeira vez que viu um carrinho de mão. Foi em Sag Harbor. Os armadores do navio, ao que parece, lhe emprestaram um carrinho para levar seu pesado baú para a estalagem. Para não parecer ignorante – embora desconhecesse completamente o modo de usar o carrinho – Queequeg colocou seu baú nele; amarrou-o com força; e então jogou o carrinho nas costas e caminhou pelo cais. “Ora!”, disse eu, “Queequeg, você devia saber que não era assim. Não ficaram rindo de você?”
Em cima dessa, ele me contou uma outra história. Parece que as pessoas de sua ilha de Kokovoko, durante as festas de casamento, colocam a água perfumada do coco verde em grandes cabaças de metal como uma poncheira; e essa poncheira compõe o ornamento central na esteira trançada onde acontece o banquete. Certa vez um enorme navio mercante chegou a Kokovoko, e seu comandante – segundo se dizia, um cavalheiro muito formal e escrupuloso, ao menos para um capitão do mar – foi convidado para a festa de casamento da irmã de Queequeg, uma bela princesinha que acabara de completar dez anos. Bem, quando todos os convidados estavam reunidos na cabana de bambu da noiva, o capitão entrou e, sendo-lhe indicado o lugar de honra, sentou-se em frente à poncheira, entre o Grande Sacerdote e a Sua Majestade, o Rei, pai de Queequeg. Feita a oração – porque aqueles povos também rezam como nós –, embora Queequeg tenha me dito que, ao contrário de nós, que baixamos os olhos para o prato nessa hora, eles fazem como os patos e olham para cima para o grande Doador de todos os banquetes – ora, depois da Oração, o Grande Sacerdote faz a abertura do banquete com a imemorial cerimônia da ilha; ou seja, ele mergulha seus dedos consagrados na poncheira antes que a bebida abençoada circule. Vendo-se ao lado do Sacerdote, observando a cerimônia e pensando consigo mesmo – sendo Capitão de um navio – que teria precedência sobre um simples Rei de ilha, especialmente estando na casa desse Rei –, o Capitão pôs-se a lavar tranqüilamente suas mãos na poncheira; – pensando, imagino, que fosse um enorme lavabo. “Ora!”, disse Queequeg, “vuncê qui acha? – Nosso povo num riu?”
Por fim, pagas as passagens, e bem acomodadas nossas bugigangas, estávamos a bordo da escuna. Içando as velas, descemos o rio Acushnet. De um lado, via-se New Bedford com as suas ruas em socalcos, suas árvores cobertas de gelo que brilhava com a pureza do ar frio. Enormes colinas, montanhas de tonéis e mais tonéis empilhavam-se no cais, e navios baleeiros que corriam o mundo descansavam ali, lado a lado, afinal ancorados em silêncio e segurança; enquanto de outros chegava o barulho de carpinteiros e ferreiros, que se misturava ao som das fornalhas e forjas a derreter o piche, tudo indicando que novas travessias iriam começar; mal uma longa viagem perigosa termina, já uma segunda começa; e, mal finda a segunda, começa a terceira, e assim por diante, para todo o sempre. Eis o infindável – sim, o intolerável esforço mundano.
Abrindo caminho em mar aberto, a brisa tonificante se fez fresca; a pequena Musgo lançava espuma da proa, como um potro jovem resfolegando. Como me deliciei com aquele ar Tártaro: – como eu desprezava a terra e seus pedágios! – aquela estrada comum toda marcada de saltos e cascos servis; e voltei-me para admirar o mar magnânimo, que não permite registros.
Na mesma fonte de espuma, Queequeg parecia beber e cambalear comigo. Suas narinas escuras dilataram-se, e ele mostrou seus dentes enfileirados e pontudos. Avançávamos cada vez mais; e, chegando a mar aberto, a Musgo pagou seu tributo à borrasca; erguendo e afundando sua proa como uma escrava diante do Sultão. Inclinando-se para um lado, voávamos todos na mesma direção; todo o cordame retinia como se de arame; os dois grandes mastros se curvavam como bambus num tornado em terra. Estávamos tão absorvidos por esta cena rodopiante, tão firmes junto ao gurupés que subia e descia, que não percebemos os olhares irônicos dos passageiros, um grupo de gente obtusa, que se admirava ao ver duas pessoas tão amigas; como se um homem branco fosse mais digno do que um negro pintado de branco. Mas ainda havia ali um bando de caipiras, uns broncos que, pelo ar de matutos, deviam ter acabado de sair do meio do mato. Queequeg surpreendeu um desses jovens, que lhe fazia gracejos pelas costas. Achei que a hora do xucro tinha chegado. Soltando seu arpão, o vigoroso selvagem pegou-o nos braços e com uma agilidade e força prodigiosa jogou-o para cima; o rapaz tocou de leve na popa e caiu de bruços, quase sufocado, enquanto Queequeg, de costas para ele, acendeu seu cachimbo e me ofereceu uma tragada. “Capetão! Capetão!”, gritou o xucro, correndo na direção do comandante.
Capetão, Capetão, o diabo ‘tá aqui.”
Ei, o senhor aí”, gritou o capitão, um sujeito magro, avançando na direção de Queequeg, “que que é isso? Não sabe que podia ter matado o sujeito?”
Qui fala ele?”, perguntou Queequeg, virando-se lentamente para mim.
Ele disse que você quase matô’ aquele homem ali”, eu disse, apontando para o labrego que ainda tremia.
Matô’!”, exclamou Queequeg, contorcendo o rosto, com uma expressão sobrenatural de desprezo, “Ah! ele peixe muito pequeno; Queequeg não mata peixe pequeno; Queequeg mata baleia grande!”
Escute aqui!”, gritou o Capitão, “eu é que vô’ ti matá’, seu canibal, se você fizer mais alguma brincadeira; por isso tome cuidado!”
Mas sucedeu que bem naquele momento foi o Capitão quem teve que tomar cuidado. A força prodigiosa do vento sobre a vela grande tinha rompido a escota de barlavento, e a enorme retranca voava de um lado para o outro, literalmente varrendo a parte posterior do convés. O pobre-diabo, a quem Queequeg tratara de modo tão rude, foi atirado ao mar; o pânico tomou conta de todos; e parecia loucura tentar agarrar a retranca. Voava da direita para a esquerda, e voltava, como o batimento de um relógio, e a todo instante parecia estar prestes a se estilhaçar. Nada foi feito, e nada mesmo parecia possível; quem estava no convés correu para a proa e ficou olhando para a retranca como se fosse a mandíbula de uma baleia exasperada. No meio dessa consternação, Queequeg se pôs de joelhos, rastejou por sob a retranca, conseguiu pegar uma corda, prendeu uma ponta na amurada, arremessou a outra ponta como um laço, agarrou a retranca que passava por cima de sua cabeça, deu um puxão, a verga ficou presa e tudo o mais estava salvo. A escuna foi posta contra o vento e, enquanto os homens se preparavam para arriar o escaler da popa, Queequeg, nu da cintura para cima, saltou do costado, com um pulo comprido, fazendo uma curva. Por três ou mais minutos foi visto nadando como um cachorro, jogando seus braços compridos para a frente, deixando à mostra seus ombros bronzeados no meio da espuma gelada. Eu via meu grande e glorioso amigo, mas não via ninguém a ser salvo. O labrego tinha afundado. Erguendo-se perpendicularmente sobre a água, Queequeg deu uma rápida olhadela à sua volta e, parecendo achar o que procurava, mergulhou e sumiu. Dentro em pouco ele reapareceu, nadando com um braço e com o outro arrastando uma forma inanimada. O bote os recolheu prontamente. O pobre xucro conseguiu se restabelecer. Todos os homens consideraram Queequeg um sujeito responsável; o capitão pediu-lhe perdão. A partir daquele momento me agarrei a Queequeg como uma craca; sim, até que o pobre Queequeg fez seu último mergulho profundo.
Já se viu alguma vez tamanha inconsciência? Ele não parecia pensar nem por um instante ser merecedor de uma medalha de todas as Sociedades Magnânimas e Humanitárias. Pediu apenas um pouco de água – água fresca – para tirar o sal; feito isso, vestiu roupas secas, acendeu seu cachimbo, recostou-se na amurada e ficou olhando os que o rodeavam, parecendo dizer consigo mesmo – “Este é um mundo de sócios, de um só fundo de capitais presente em todos os meridianos. Nós, canibais, temos que ajudar esses Cristãos”.
Herman Melville, in Moby Dick

Perfeito

O perfeito homem do mundo seria aquele que jamais hesitasse por indecisão e nunca agisse por precipitação.”
Schopenhauer

O jantar

Ele entrou tarde no restaurante. Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios. Poderia ter uns sessenta anos, era alto, corpulento, de cabelos brancos, sobrancelhas espessas e mãos potentes. Num dedo o anel de sua força. Sentou-se amplo e sólido.
Perdi-o de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros.
No momento em que eu levava o garfo à boca, olhei-o. Ei-lo de olhos fechados mastigando pão com vigor e mecanismo, os dois punhos cerrados sobre a mesa. Continuei comendo e olhando. O garçom dispunha os pratos sobre a toalha. Mas o velho mantinha os olhos fechados. A um gesto mais vivo do criado ele os abriu com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às grandes mãos e um garfo caiu. O garçom sussurrou palavras amáveis abaixando-se para apanhá-lo; ele não respondia. Porque agora desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com veemência, a ponta da língua aparecendo – apalpava o bife com as costas do garfo, quase o cheirava, mexendo a boca de antemão. E começava a cortá-lo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo. Em breve levava um pedaço a certa altura do rosto e, como se tivesse que apanhá-lo em voo, abocanhou-o num arrebatamento de cabeça. Olhei para o meu prato. Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glória do jantar, mastigando de boca aberta, passando a língua pelos dentes, com o olhar fixo na luz do teto. Eu já ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente.
E exatamente como se não suportasse mais – o quê? – pega rápido no guardanapo e comprime as órbitas dos olhos com as mãos cabeludas. Parei em guarda. Seu corpo respirava com dificuldade, crescia. Tira afinal o guardanapo da vista e olha entorpecido de muito longe. Respira abrindo e fechando desmesuradamente as pálpebras, limpa os olhos com cuidado e mastiga devagar o resto de comida ainda na boca.
Daqui a um segundo, porém, está refeito e duro, apanha uma garfada de salada com o corpo todo e come inclinado, o queixo ativo, o azeite umedecendo os lábios. Interrompe-se um instante, enxuga de novo os olhos, balança brevemente a cabeça – e nova garfada de alface com carne é apanhada no ar. Diz ao garçom que passa:
Não é este o vinho que mandei trazer.
A voz que esperava dele: voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele. Senão obedecê-lo.
O garçom se afastou cortês com a garrafa na mão.
Mas eis que o velho se imobiliza de novo como se tivesse o peito contraído e barrado. Sua violenta potência sacode-se presa. Ele espera. Até que a fome parece assaltá-lo e ele recomeça a mastigar com apetite, de sobrancelhas franzidas. Eu é que já comia devagar, um pouco nauseado sem saber por quê, participando também não sabia de quê. De repente ei-lo a estremecer todo, levando o guardanapo aos olhos e apertando-os numa brutalidade que me enleva... Abandono com certa decisão o garfo no prato, eu próprio com um aperto insuportável na garganta, furioso, quebrado em submissão. Mas o velho demora pouco com o guardanapo nos olhos. Desta vez, quando o tira sem pressa, as pupilas estão extremamente doces e cansadas, e antes dele enxugar-se – eu vi. Vi a lágrima.
Inclino-me sobre a carne, perdido. Quando finalmente consigo encará-lo do fundo de meu rosto pálido, vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. E exatamente ele não suportava mais. As sobrancelhas grossas estavam juntas. A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guardanapo pela testa. Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais. Porém ele – ele comia.
O garçom trouxe a garrafa dentro de uma vasilha de gelo. Eu anotava tudo, já sem discriminar: a garrafa era outra, o criado de casaca, a luz aureolava a cabeça robusta de Plutão que se movia agora com curiosidade, guloso e atento. Por um instante o garçom cobre minha visão do velho e vejo apenas as asas negras duma casaca: sobrevoando a mesa, vertia vinho vermelho na taça e aguardava de olhos quentes – porque lá estava seguramente um senhor de boas gorjetas, um desses velhos que ainda estão no centro do mundo e da força. O velho engrandecido tomou um gole com segurança, largou a taça e consultou com amargura o sabor na boca. Batia um lábio no outro, estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável. Eu esperava, o garçom esperava, ambos nos inclinávamos suspensos. Afinal, ele fez uma careta de aprovação. O criado curvou a cabeça luzente com sujeição ao agradecimento, saiu inclinado, e eu respirava com alívio.
Ele agora misturava à carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postiços mastigavam pesados enquanto eu o espreitava em vão. Nada mais acontecia. O restaurante parecia irradiar-se com dupla força sob o tilintar dos vidros e talheres; na dura coroa brilhante da sala os murmúrios cresciam e se apaziguavam em vaga doce, a mulher do chapéu grande sorria de olhos entrefechados, tão magra e bela, o garçom derramava com lentidão o vinho no copo. Mas eis que ele faz um gesto.
Com a mão pesada e cabeluda, onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade, faz um gesto de pensamento. Diz com a mímica o mais que pode, e eu, eu não compreendo. E como se não suportasse mais – larga o garfo no prato. Desta vez foste bem agarrado, velho. Fica respirando, acabado, ruidoso. Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados, em rumorosa ressurreição. Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea. Tudo me parece grande e perigoso. A mulher magra cada vez mais bela estremece séria entre as luzes.
Ele terminou. Sua cara se esvazia de expressão. Fecha os olhos, distende os maxilares. Procuro aproveitar este momento, em que ele não possui mais o próprio rosto, para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega. O que eu quero olhar diretamente, pela força extraordinária do ancião, não existe neste instante. Ele não quer.
Vem a sobremesa, um creme derretido, e eu me surpreendo pela decadência da escolha. Ele come devagar, tira uma colherada e espia o líquido pastoso escorrer. Ingere tudo, porém, faz uma careta e, crescido, alimentado, afasta o prato. Então, já sem fome, o grande cavalo apoia a cabeça na mão. O primeiro sinal mais claro aparece. O velho comedor de crianças pensa nas suas profundezas. Com palidez vejo-o levar o guardanapo à boca. Imagino ouvir um soluço. Ambos permanecemos em silêncio no centro do salão. Talvez ele tivesse comido depressa demais. Porque, apesar de tudo, não perdeste a fome, hein!, instigava-o eu com ironia, cólera e exaustão. Mas ele se desmoronava a olhos vistos. Os traços agora caídos e dementes, ele balançava a cabeça de um lado para outro, de um lado para outro sem se conter mais, com a boca apertada, os olhos cerrados, embalando-se – o patriarca estava chorando por dentro. A ira me asfixiava. Vi-o botar os óculos e ficar mais velho muitos anos. Enquanto contava o troco, batia os dentes projetando o queixo para a frente, entregando-se um instante à doçura da velhice. Eu mesmo, tão atento estivera a ele, que não o vira tirar o dinheiro para pagar, nem examinar a conta, e não notara a volta do garçom com o troco.
Afinal tirou os óculos, bateu os dentes, enxugou os olhos fazendo caretas inúteis e penosas. Passou a mão quadrada pelos cabelos brancos, alisando-os com poder. Levantou-se segurando o bordo da mesa com as mãos vigorosas. E eis que, depois de liberto de um apoio, ele parece mais fraco, embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós. Sem que eu possa fazer nada, põe o chapéu acariciando a gravata ao espelho. Atravessa o aspecto luminoso do salão, desaparece.
Mas eu sou um homem ainda.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer – eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.
Clarice Lispector, in Todos os contos