Aloprabilidade

Falava língua nenhuma, jejuava em tudo. Seu fluido, neutro, não incomodava. Frequentava ali, como se, em lugar do interior, em porta de farmácia: o aspecto e atitude desmentindo as linhas tortas de seu procedimento. Não seria louco, a não ser da básica e normal doideira humana, a metafisicamente dita. Valeria, sim, saber-se o grau virtual de sua aloprabilidade. A gente nem tem ideia de como, por debaixo dos enredos da vida, talvez se esteja é somente e sempre buscando conseguir-se no sulco pessoal do próprio destino, que é naturalmente encoberto; e, se acaso, por breve trecho e a-de-leve, se entremostra, então aturde, por parecer gratuito absurdo e sem-razão. Convém ver. Só raros casos puros, aliás, abrem-nos aqui um pouco os olhos.”
Guimarães Rosa, in Homem, intentada viagem

O bem mais perigoso

Havendo meditado profundamente sobre a afirmação do poeta Hölderlin — “a linguagem é o mais perigoso de todos os bens” —, o sr. Saturnino deliberou recolher-se à mudez total. Sua boca não pronunciou mais um monossílabo.
A família sentiu que não havia argumento ou artifício capaz de devolvê-lo ao mundo dos sons, e por sua vez foi ficando calada. No fim de seis meses ninguém falava naquela casa. Nem as moscas zumbiam.
A história da família silenciosa provocou certa curiosidade, mas outros seis meses se passaram, e não se prestou mais atenção naquilo. Saturnino e família foram esquecidos.
Não pediam, não reclamavam, não pleiteavam nada. Ultimamente nem saíam de casa. A casa não se abria. O fiscal de arrecadação, por força de lei, bateu à porta para intimar Saturnino a pagar com multa os impostos. A porta abriu-se sem ranger e lá dentro foram encontrados Saturnino e seus familiares transformados no advérbio jamais.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Poema gravado na pele

Google Images

Dizem que a tatuagem data do paleolítico, quando era usada por povos nativos da Ásia. Além da beleza das formas e cores, há algo de simbólico nesses desenhos corporais. Os índios pintam o corpo em cerimônias, festas e rituais de guerra. Os marinheiros, cujas pátrias são os portos e os oceanos, ostentam em sua pele símbolos que evocam a breve permanência em terra firme e a longa travessia marítima: âncoras, ilhas, mapas, peixes, pássaros, bússolas.
Antes de ser uma febre no Brasil, a tatuagem inspirou uma música de Chico Buarque e Ruy Guerra. Quero ficar no teu corpo feito tatuagem, diz a letra dessa belíssima canção.
Para um observador parado à beira-mar, um observador que teme o sol forte e protege a cabeça com um chapéu, a tatuagem é uma descoberta, uma viagem do olhar.
Jovens e velhos exibem tatuagens; uso o verbo exibir porque talvez haja uma ponta de exibicionismo nessa arte antiga de fazer da pele uma pintura para toda a vida. Deve haver também uma dose de coragem, quem já foi tatuado sabe como são terríveis as agulhadas na carne. A dor, sendo humana e universal, não é menos terrível para uma bailarina, um soldado ou um nadador.
Numa única manhã ensolarada vi tatuagens de vários tipos e tamanhos, li nomes próprios, adjetivos, bilhetes e até mesmo uma mensagem cifrada, cuja revelação será sempre adiada: Amanhã saberás o segredo…
Nas costas de um jovem nada modesto, li: Eu sou o máximo, uma frase escrita com uma caligrafia tosca. Em ombros morenos, brancos e pretos vi estrelas, flores e borboletas — muitas borboletas —, e também âncoras, caracóis, tigres, dragões, cavalos-marinhos, espirais, flechas, corações, um trecho de uma partitura (parecia uma sequência de notas de uma Serenata de Schubert, não tenho certeza), uma rosa amarela, serpentes, rostos de roqueiros e de dois grandes líderes políticos: Gandhi e Malcolm X. E também rostos anônimos. Anônimos para mim, não para o corpo tatuado.
Pensei: todos os desenhos do mundo cabem num corpo. Ou cabem nesses corpos que caminham, desfilam, praticam esportes, ou apenas se exibem sob o sol do verão.
Vi nas costas de um homem uma mensagem desesperada, clamando por justiça: Prisão para os políticos ladrões. Muito mais sofisticadas foram as palavras que li no corpo de uma moça alta, de corpo cheio, uma moça que chamava a atenção por sua altivez, e talvez por seu rosto anguloso, cujos traços germânicos eram suavizados pelos olhos amendoados, rasgados. Olhos indígenas. Ela me atraiu também pela tatuagem gravada nas costas. Quando passou diante de mim, usando uma camiseta regata vermelha, pude ler na parte nua das costas esses versos gravados em preto na pele branca: Não aprofundes o teu tédio. Não te entregues à mágoa vã.
Segui com os olhos os passos da moça, que se dirigia sorridente e sem pressa para a extremidade da praia, como se caminhasse para o Nirvana. Fiquei curioso para ler a continuação do poema, matutei quem o tinha escrito, minha memória tentou fisgar em vão uma leitura do passado. Eu repetia os versos, mas não encontrava o poema inteiro nem o nome do poeta.
Outros corpos passaram perto de mim, quase todos tatuados com formas e cores que variavam ou se repetiam, a maioria tinha graça, mas não poesia. E eu tentava adivinhar os versos ocultos pela camiseta daquela moça mestiça, estava a ponto de desistir quando a vi aproximar-se, a caminho da outra extremidade da praia. Passou a uns dois passos de mim, dessa vez mais apressada e só de biquíni, a camiseta regata na mão direita. Agora eu podia ler tudo, e li tudo nas costas inteiramente nuas:

Não aprofundes o teu tédio.
Não te entregues à mágoa vã.
O próprio tempo é o bom remédio:
Bebe a delícia da manhã.

Mais adiante, ela jogou a camiseta na areia, entrou no mar e nadou, afastando-se lentamente da margem. Eu entrei em casa, a cabeça quente de tanto sol, mas deliciado com a leitura de quatro versos gravados para sempre na pele de uma mulher. Foi a mais bela tatuagem daquela manhã. E que poema inesquecível!
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

O Impressionismo de Renoir

Retrato da atriz Jeanne Samary (1877), de Pierre-Auguste Renoir

Quero ela, só ela

Sidónio Rosa apenas conhece um caminho no labirinto de atalhos de Vila Cacimba: a ruela que liga a pensão ao posto de saúde e à casa dos Sozinhos. E é esta mesma rua de areia que ele, neste momento, percorre como se fosse um campo minado. Salta à vista: é um europeu caminhando nas profundezas de África. O passo é calculado, quase em bicos dos pés, o olhar cauteloso garimpeirando o chão. Ele não confia, a sua sombra não é comandada por ele. Passa pelo mercado, esquiva-se dos vendedores, dos pedintes, dos bêbados. “Raio de vida”, pensa. “Os que a mim se dirigem não me querem como pessoa. Uns chegam-se para vender, outros para roubar. Ninguém me aborda sem interesse, meu Deus, como me custa ter raça!” Retifica a ideia, depois, quando escuta:
Bons dias, Doutor!
A saudação se repete, aberta, genuína e generosa. E a alma do português se reacende num sorriso. Ele está sendo abraçado pelo Universo.
Quase esbarra com uma jovem vistosa. O médico cede à tentação de a contemplar, preso no bambolear das generosas ancas. Vêm-lhe à mente as palavras de Bartolomeu:
Fazer amor com uma menina, isso é que é um bom remédio para si e para mim.
O velho Sozinho insiste em invocar os tradicionais preceitos: fazer amor com uma virgem é o melhor procedimento para limpar os sangues. No fundo, ele não acredita muito nisso, mas a receita é bem mais apetitosa que as prescrições clínicas que atafulham a sua mesinha-de-cabeceira.
Antes eu recebia cartas; agora, escrevem-me receitas médicas. O que agora tenho, ao lado da cama, não é uma mesinha-de-cabeceira. É uma mezinha de cabeceira.
Finalmente, o médico aproxima-se do lar dos Sozinhos e as dificuldades da marcha agravam-se. Buracos, pedras, obstáculos semeados num caos que não é obra do acaso. Foi o velho Bartolomeu quem sabotou a pequena rua. Logo na primeira visita, a mulher explicou ao português, como se desculpasse os incômodos do caminho:
Foi Bartolomeu: andou arrancando pedras da calçada, esburacando o pavimento, só para ninguém vir cá a casa.
Se eu já não saio, então, também mais ninguém vem cá!” Era isso que ele dizia, enquanto abria as covas, dobrado sobre o chão, pá em riste, a mulher atrás dele para o dissuadir, invocando os ossos que, mais tarde, o iriam castigar.
A desobediência valera-lhe admoestação da esposa e pesada multa por parte da autoridade municipal.
Vandalização da coisa pública! — clamou Suacelência.
O ex-mecânico encolheu os ombros.
O primeiro milho é para os donos dos pardais — comentou. Depois, calou-se pelos cotovelos.
Os danos sobraram sem reparação, e agora, por causa deles, o médico sacode os sapatos à entrada da casa. Faz subir o vinco das calças antes de avançar pelo corredor da residência. A casa está abafada, os tapetes cheiram, os espelhos dormem cobertos com panos como se faz ao rosto dos falecidos. As janelas cerradas lembram asas decepadas. Nunca mais haverá céu para aqueles pássaros.
O português acelera o passo para vencer a última porta do recinto. A voz do velho, ao rodar da maçaneta, surge solta, soletrada sem fadiga.
Como estou? Estou vivo, salvo seja.
A cinza resta, inteira, no extremo do cigarro aceso. É como se Bartolomeu Sozinho quisesse recolher, intacto, o tempo já consumido. Cumpre o seu próprio dizer queixoso: “Passamos a vida desperdiçando vidas”. O velho já desperdiça pouco: uma réstia de cinza, migalhas de bolachas que a esposa varre, das poucas vezes que tem acesso ao quarto.
Seguindo o voo do fumo, o olhar do médico é suficientemente reprovador para dispensar a habitual reprimenda.
Não sou eu que fumo, Doutor Sidonho. O cigarro é que me está fumando a mim.
Nisso estamos de acordo. O senhor não devia tocar mais em cigarro.
O Doutor me desculpe, mas o senhor não entende o fumar.
Não entendo, como? — Não é o tabaco que a gente consome. A gente fuma é a tristeza.
Hoje, o senhor parece melhor, refila com mais poesia, menos azedume. Um dia destes está, de novo, escrevendo versos, como fazia no Infante D. Henrique.
Sete décadas estão avaliando a verdade das palavras do médico. Das outras vezes, o velho respondia, invariavelmente: o Doutor que fosse tratar do mundo. Porque a ele, Bartolomeu Sozinho, lhe doía uma pedra, lhe doía uma árvore, lhe afligia a terra inteira. O universo todo adoecia nele. O médico que fosse curar o mundo e, assim, ele melhoraria por benéfico arrasto.
Desta vez, porém, o quarto está iluminado por uma fresta na janela e o próprio doente parece menos olheirento. O visitante estranha aquela mudança de humores.
É devido a essa cabra da Munda, Doutor Sidonho, eu me demoro neste mundo só para a contrariar…
Gosto de o ouvir. É uma boa piada.
Diga a verdade, Doutor: a minha Munda, ali sentadinha na cozinha, não tem chorado por mim?
Chorado?
Pode dizer, Doutor, pode falar, ela não tem confessado o quanto ela me ama tantissimamente?
O médico não articula som. O mais que consegue fazer é acenar indefinidamente com a cabeça.
Munda não entende, mas eu, se a magoei, foi sem nenhum querer.
Por que não fala com ela?
O que eu lhe quero dizer, só vou conseguir falar depois de morto.
Bartolomeu chama o visitante para mais perto, coloca a mão em frente da boca, em preceito respeitoso, e solicita:
Não será que pode convencer Munda a se mascarar de remédio?
Mascarar de remédio?
Não está a entender? Diga-lhe para ela se fantasiar de miúda, fingir-se de jovenzita que me vem visitar, está a perceber, Doutor?
Não sei, não posso…
Não me quer tratar? Não quer tirar-me o sofrimento?
Eu prefiro fazer aquilo que sempre me pediu. Vou à rua e lhe trago uma catorzinha, duas catorzinhas…
É que eu não quero outra… quero ela, só ela.
O médico está absolutamente certo: o absurdo plano será rejeitado por Dona Munda. Ainda lhe ocorre: irá procurar uma prostituta que aceite fazer-se passar pela esposa. O velho está quase cego, não dará pela troca, acertadas que estejam as vozes e os perfumes. E decide avançar nesse logro:
Eu aceito, Bartolomeu.
Aceita?
Sim, vou convencer Dona Munda.
Um abraço desajeitado a celebrar a inesperada cedência. O doutor evita o corpo cambaleante: há nesse abraço um trânsito de alma que é bem mais contagioso que o mais virulento micróbio. As despedidas são sumárias, à moda de médico.
O velho mecânico vai à janela, abre o cortinado como se estivesse reparando uma enferrujada engrenagem. Espreita, a medo, o médico afastando-se na outra esquina. A rua deserta lhe parece familiar, próxima da solidão do seu quarto.
Com passo viúvo, Bartolomeu regressa à cômoda e procura pelo maço de cigarros que o médico sempre lhe deixa. O envenenado remédio, assim lhe chama Sidónio. É então que dá conta: a pasta de Sidónio ficara esquecida sobre a cômoda. O velho ainda ensaia uns passos, clamando ao longo do corredor:
Doutor! Doutor, o senhor esqueceu a pasta!
Assoma à porta da rua, a derradeira fronteira que o separa do mundo. Hesita um instante, e só depois lança um grito náufrago:
Doutor Sidonho!
Mas era tarde, o português já se escoara entre gentes e ruas. Bartolomeu Sozinho, à soleira da porta, está paralisado. Do lado de lá está o Universo, ou quem sabe o mar, esse escuro abismo onde seus passos para sempre se afundarão.
Doutor! — grita, aos baixos berros.
Pasta aconchegada no peito, regressa ao aconchego do lar, retoma a segurança do quarto. E assim se deixa ficar, soçobrando o esquecido objeto como se partilhasse com ele a sua condição abandonada.
Na próxima hora, já na penumbra do quarto, a curiosidade consome o velho mecânico. Aqueles papéis, espreitando pelo fecho entreaberto, que segredos revelariam sobre o seu estado? Estaria ali, preto no branco, o prognóstico do seu definitivo final? Vencido pelos diabos interiores, Bartolomeu Sozinho abre a pasta e remexe as suas entranhas. Espreita papel por papel e a surpresa se vai avolumando em seu rosto. De súbito, se desata o vulcão em sua alma:
Grande filho da puta!
Há malícia no seu distorcido sorriso, quando decide esconder a pasta numa gaveta do armário.
Vou lixar esse filho da puta! Eu é que lhe arranjo um remédio, sim, um desses remédios que limpam de vez as gargantas dos aldrabões.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

Acerca da inveja

O homem que não tiver virtude própria sempre invejará a virtude dos outros. A razão disso é que a alma humana nutre-se do bem próprio ou do mal alheio, e aquela que carece de um, aspira a obter o outro, e aquele que está longe de esperar obter méritos de outrem, procurará nivelar-se com ele, destruindo-lhe a fortuna.
As pessoas que são curiosas e indiscretas são geralmente invejosas; porque conhecer muito a respeito da vida alheia não pode resultar do que concerne os próprios negócios. Isso deve provir, portanto, de tomar uma espécie de prazer teatral a admirar a fortuna dos outros. Aliás, quem não se ocupa senão dos próprios negócios não encontra matéria para invejas. Porque a inveja é uma paixão calaceira, isto é, passeia pelas ruas e não fica em casa.”
Francis Bacon, in Ensaios - Da Inveja

O ator

Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,

embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:

nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza

que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos

em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,

sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.
Eucanaã Ferraz

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A partida

Hoje revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir. Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem...
Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável que ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.
Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.
Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.
Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se: — Acordado?
Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.
Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto. Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
Acordei pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.
Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.
Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários, enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples ideia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários).
Osman Lins, in Os gestos

O intransponível


Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto de bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de táxi. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher ? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnado na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela.
Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava ? Um grande soluço sacudiu-a desafiando. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ele fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-os com os olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
Clarisse Lispector, in A descoberta do mundo

O tiro e o cemitério

Em frente ao cemitério, Estaminet, Letreiro esquisito, — diz consigo o nosso passeador, — mas próprio para despertar a sede! Certamente, o dono desse cabaré sabe apreciar Horácio e os poetas discípulos de Epicuro. Talvez mesmo conheça o refinamento profundo dos antigos egípcios, que não admitiam banquete sem esqueleto, ou outro símbolo qualquer da brevidade da vida.
Entrou, bebeu uma garrafa de cerveja diante dos túmulos e fumou vagarosamente um charuto. Depois, teve a extravagância de ir até ao cemitério, onde o mato era alto e convidativo, e onde reinava um riquíssimo sol.
A luz e o calor eram causticantes. Dir-se-ia que o sol embriagado espojava-se todo sobre um tapete de flores magníficas fertilizadas pela destruição. Um imenso burburinho de vida, — a vida dos infinitamente pequenos, — enchia o espaço cortado a intervalos regulares pela crepitação dos disparos de um tiro vizinho, que ressoavam como o espocar das garrafas de champagne no gorjeio de uma sinfonia em surdina.
Então, sob o sol que lhe esquentava o cérebro e na atmosfera dos ardentes perfumes da Morte, ouviu uma voz cochichar debaixo do túmulo em que se sentara. Essa voz dizia: — Malditos sejam vossos alvos e vossas carabinas, oh vivos turbulentos, que tão pouco vos importais com os defuntos e o seu divino repouso! Malditas sejam as vossas ambições, malditos os vossos planos, oh mortais impacientes, que vindes aprender a arte de matar junto ao santuário da Morte! Se soubésseis como é fácil ganhar o prêmio, como é fácil alcançar o fim, e como tudo é nada, exceto a Morte, não vos fatigaríeis tanto, oh laboriosos viventes, e perturbaríeis menos o sono dos que há tanto tempo puseram no Fim o único fim verdadeiro da detestável vida!
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Capítulo VII - O delírio

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos.
Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
Onde estamos?
Já passamos o Éden.
Bem; paremos na tenda de Abraão.
Mas se nós caminhamos para trás! redarguiu motejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois — cogitações do enfermo — dado que chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os séculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez, a espaços, me parecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?
Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?
Sim; o teu olhar fascina-me.
Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque
o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e idiota.
Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez monótona — mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas