segunda-feira, 31 de julho de 2017

Sobre um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder

Os primeiros rebentamentos

Os fatos só são verdadeiros depois de serem inventados.
Crença de Tizangara

A primeira vez que escutei os rebentamentos acreditei que a guerra regressava em suas tropas e tropéis. Meu pensamento tinha uma só ideia: fugir. Passei pelas últimas casas de Tizangara, minha pequena vila natal. Ainda vi, se silhuetando longe, a minha casa natal, depois, já mais perto, a residência de Dona Hortênsia, a torre da igreja. A vila parecia em despedida do mundo, tristonha como tartaruga atravessando o deserto.
Escapei nos matos onde ninguém nunca se apessoara. Sim, era certo: aquela floresta nunca havia recebido nenhuma humanidade. Fiz um abrigo, de galhos e folhas. Pouca coisa, com discrição de bicho: não seria bom ser visto ali alguém em estado de pessoa. Eu tinha abrigo, não tinha morada. Fiquei nesse recôndito, conselhado pelo medo. Regressaria à vila quando me garantisse que a guerra não tinha regressado. Logo na primeira noite, porém, me amedrontaram os sons dos bichos e mais ainda as sombras do escuro. Estremeci de medo: não saltara eu da boca da quizumba para entrar na garganta do leão?
Sentei-me a esclarecer. Minha alma parecia ter-me saído e flutuava como nuvem por cima de mim. A guerra tinha terminado, fazia quase um ano. Não tínhamos entendido a guerra, não entendíamos agora a paz. Mas tudo parecia correr bem, depois que as armas se tinham calado. Para os mais velhos, porém, tudo estava decidido: os antepassados se sentaram, mortos e vivos, e tinham acordado um tempo de boa paz. Se os chefes, neste novo tempo, respeitassem a harmonia entre terra e espíritos, então cairiam as boas chuvas e os homens colheriam gerais felicidades. Precauteloso, disso eu mantinha minhas dúvidas. Os novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros. Eu falava do que assistia ali, em Tizangara. Do resto não tinha pronunciamento. Mas, na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raça.
Talvez fosse um grande cansaço que me fazia, afinal, ficar por aquela lonjura. Secretamente, eu deixara de amar aquela vila. Ou, se calhar, não era a vila, mas a vida que nela vivia. Eu já não tinha crença para converter a minha terra num lugar bem assombrado. Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento.” Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil. Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar.
Agora, na margem da floresta, eu via o tempo desfilando sem nada nunca acontecer. Esse era um gosto meu: pensar sem nunca ter nenhuma ideia. Seria, afinal, que me convertia em bicho, em lógica de unha e garra? A guerra o que havia feito de nós? O estranho era eu não ter sido morto em quinze anos de tiroteiros e sucumbir agora em meio da paz. Não falecera da doença, morria do remédio?
Foi numa dessas manhãs de retiro que senti vozes. Surgiam camufladas. Segui os sons com as mil cautelas. Aquilo era gente que se cuidava não ser vista. Espreitei entre as moitas. Entrevi os vultos. Havia pretos e brancos. Se debruçavam no chão, pareciam escavar na berma de um atalho. Às tantas, um falou alto, bem audível. O grito, em inglês de fora:
Attention!
E os outros estacaram. Depois, se retiraram, sem pressa. De quando em quando, se voltavam a debruçar em roda de outra qualquer coisa. Que procuravam? Mas eles se foram e eu voltei a ficar só. Dei um tempo para que se afastassem e me dirigi para onde haviam estado a coscuvilhar. Foi quando um braço me travou o intento.
Não vá que é perigoso!
Me virei: era minha mãe. Ou seria, antes, a visão dela. Pois ela já há muito passara a fronteira da vida, para além do nunca mais. Naquele momento, porém, ela surgia das folhagens, envolta em seus panos escuros, seus habituais. Não me saudou, simplesmente me orientou para junto do meu abrigo. Ali se sentou, aconchegando-se na capulana. Fiquei mudo e miúdo, à espera. Se temos voz é para vazar sentimento. Contudo, sentimento demasiado nos rouba a voz. Agora, que ela transitara de estado, eu acedia, completo, às vistas dela.
Como é, filho: vive no lugar dos bichos?
Devolvi pergunta com pergunta:
Há lugar, hoje, que não seja de bichos?
Ela sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é lugar de gente. Porém, ela permaneceu calada. Rodou pelos arbustos e desfez folhinhas entre os dedos. Apurava perfumes e levava-os lentamente junto ao rosto. Matava saudades dos cheiros.
A guerra já chegou outra vez, mãe?
A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.
E a mãe anda fazer o quê por essas bandas?
Eu queria saber se tinha terminado sua tarefa de morrer. Ela explicou-se, lenta e longa. Andava com uma bilha a recolher as lágrimas de todas as mães do mundo. Queria fazer um mar só delas. Não responda com esse sorriso, você não sabe o serviço do choro. O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início. Aquela gotinha é, em nós, o umbigo do mundo. A lágrima plagia o oceano. Pensava ela por outras, quase nenhumas, palavras. E suspirou:
Haja Deus!
Lembrou-me como ela despertava, antes, toda alagada. Não houve, depois que meu pai nos deixou, uma manhã em que o sol a encontrasse em panos secos. Sempre e sempre ela e os choros. Todavia, isso fora antes, quando ela padecia da doença de estar viva.
Não fique aqui que esses caminhos ainda têm o pé da guerra. A pegada está viva!
Estou tão bem aqui, mãe. Nem me apetece regressar.
Ficamos ali horas trocando nadas, simplesmente adiando o tempo. Alongando o milagre de estarmos ali, na margem da floresta. Já entardecia, ela me avisou:
Volte para a vila, há-de acontecer tantíssima coisa.
Antes de ir, mãe, me lembre a estória do flamingo.
Ah, essa estória está tão gasta...
Me conte, mãe, que é para a viagem. Me falta tanta viagem.
Então, senta, meu filho. Vou contar. Mas primeiro me prometa: nunca siga pelos carreiros onde seguiam aqueles homens que você espreitava há um bocadito.
Prometo.
Então, ela contou. Eu repetia palavra por palavra, decalcando sobre a voz cansada dela. Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
Hoje farei meu último voo!
As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.
Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
Mas vai voar para onde?
Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O pernalta, enfim, chegou e explicou — que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.
Por que essa viagem tão sem regresso?
O flamingo desvalorizava seu feito:
Ora, aquilo é longe, mas não é distante.
Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
Por favor, não vá!
Tenho que ir!
A avestruz se interpôs e lhe disse:
Veja, eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
Não posso, me cansei de viver num só corpo.
E falou. Queria ir lá onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
Não quero pousar mais. Só repousar.
E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então, o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vermelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se passando como se um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra.
Era o ponto final. No escurecer, a voz de minha mãe se desvaneceu. Olhei o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros aléns.
Aquela era minha última noite desse retiro nos matos. Manhã seguinte eu já entrava na vila, como quem regressa a seu próprio corpo depois do sono.
Mia Couto, in O último voo do flamingo

No princípio do fim

Há ruídos que não se ouvem mais:
o grito desgarrado de uma locomotiva na madrugada
os apitos dos guardas-noturnos quadriculando como um mapa a cidade adormecida
os barbeiros que faziam cantar no ar suas tesouras
a matraca do vendedor de cartuchos
a gaitinha do afiador de facas
todos esses ruídos que apenas rompiam o silêncio.
E hoje o que mais se precisa é de silêncios que interrompam o ruído.
Mas que se há de fazer?
Há muitos — a grande maioria — que já nasceram no barulho. E nem sabem, nem notam, por que suas mentes são tão atordoadas, seus pensamentos tão confusos. Tanto que, na sua bebedeira auricular, só conseguem entender as frases repetitivas da música Pop. E, se esta nossa “civilização” não arrebentar, acabamos um dia perdendo a fala — para que falar? para que pensar? — ficaremos apenas no batuque:
Tan!tan!tan!tan!tan!”
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

Quem matou Palomino Molero? (trecho)

Filhosdumagrandíssima ― balbuciou Lituma, sentindo que ia vomitar. ― O que fizeram com você, magrinho.
O rapaz estava ao mesmo tempo enforcado e enfiado na velha algarobeira, em uma posição tão absurda que mais parecia um espantalho ou um No Carnavalón escarrapachado que um cadáver. Antes ou depois de matá-lo haviam cortado seu corpo em tiras com uma crueldade sem limites: tinha o nariz e a boca cortados, coágulos de sangue ressequido, equimoses e cortes, queimaduras de cigarro, e, como se não fosse bastante, Lituma compreendeu que também haviam tentado capá-lo, porque os ovos pendiam até a entreperna. Estava descalço, despido da cintura para baixo, com uma camiseta em pedaços. Era jovem, magro, moreninho e ossudo. Na confusão de moscas que revoluteavam ao redor de sua cara reluziam seus cabelos pretos e crespos. As cabras do moleque remanchavam à volta, esgravatando os pedregulhos do descampado em busca de alimentos e Lituma pensou que a qualquer momento começariam a mordiscar os pés do cadáver.
Quem porra fez isto? ― balbuciou, contendo a náusea.
E eu sei? ― disse o moleque. ― Por que me diz palavrão, que culpa eu tenho? Agradeça por eu ter avisado.
Não é com você, moleque ― murmurou Lituma. Só estou praguejando porque parece mentira que haja no mundo gente tão perversa.
O moleque deve ter levado o susto de sua vida essa manhã, ao passar com suas cabras por este pedregal e topar com semelhante espetáculo. Tinha se portado como um cidadão exemplar, o moleque. Deixou o rebanho pastando pedras junto ao cadáver e correu a Talara para dar parte à polícia. Tinha mérito porque Talara estava no mínimo a uma hora a pé daqui. Lituma lembrou dessa carinha suada e a voz de assombro quando apareceu na porta do Posto:
Mataram um sujeito lá, no caminho de Lobitos. Se quiserem, levo vocês, mas agorinha mesmo. Deixei as cabras soltas e podem roubá-las.
Não tinha roubado nenhuma, felizmente; ao chegar, enquanto ainda não se recuperava do pavor que fora para ele ver o estado do morto, o guarda vira o moleque contando com os dedos o rebanho e o ouviu suspirar, aliviado: "Todinhas”.
Mas, pela Santíssima Virgem ― exclamou o taxista às suas costas. ― Mas, mas, que é isto?
No caminho, o moleque descrevera mais ou menos o que veriam, mas uma coisa era imaginá-lo, outra vê-lo e cheirá-la. Porque também fedia muitíssimo. Não era para menos, com esse sol que parecia perfurar pedras e crânios. Estaria se decompondo rapidamente.
Me ajuda a tirar ele daí, Dom?
Que remédio ― grunhiu o taxista, persignando-se. Cuspiu em direção à algarobeira. ― Se me tivessem dito para que o Ford ia servir, não o compraria nem de brincadeira.
Você e o Tenente abusam porque pensam que eu sou muito bonzinho.
Dom Jerônimo era o único taxista de Talara. Seu velho calhambeque, preto e grande como uma carroça funerária, podia passar quantas vezes quisesse pela cerca que separava o povoado da zona reservada, onde estavam os escritórios e as casas dos gringos da International Petroleum Company. O Tenente Silva e Lituma utilizavam o táxi toda vez que deviam fazer um trajeto longo demais para os cavalos e a bicicleta, únicos meios de transporte do Posto da Guarda Civil. O taxista resmungava e protestava toda vez que o chamavam, dizendo que o faziam perder dinheiro, apesar de que, nestes casos, o Tenente pagava a gasolina.
Espere, Dom Jerônimo, agora me lembro ― disse Lituma, quando já iam tirar o morto. ― Não podemos tocar nele até que o Juiz venha para o reconhecimento.
Meada: isso quer dizer que vou ter que fazer essa viagenzinha outra vez ― pigarreou o velho. ― Mas eu já lhe previno: o Juiz me paga a corrida ou vai procurar outro bobo.
E, quase imediatamente, se deu uma palmadinha na testa. Abrindo muito os olhos, aproximou a cara do cadáver.
Mas, claro, este eu conheço! ― exclamou.
Quem é?
Um desses aviadores que vieram para a Base Aérea na última leva ― animou-se a expressão do velho.
É ele. O piuraninho que cantava boleros.
Mario Vargas Llosa, in Quem matou Palomino Molero?

domingo, 30 de julho de 2017

Recompensa e castigo

Não posso imaginar um deus a recompensar e a castigar o objeto de sua criação. Não posso fazer ideia de um ser que sobreviva após a morte do corpo. Se semelhantes ideias germinam em um espírito, para mim é ele um fraco, medroso e estupidamente egoísta.”
Albert Einstein

Um bom poema

Um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.
Paulo Leminski

Uma dose caprichada


Eu tinha uma janela que dava para a rua e terminei de escrever meu primeiro romance em dezenove dias. Podia encher a cara à vontade e não precisava dar satisfações no serviço, agora era meu patrão. Ali eu estava, aos cinquenta anos, um escritor profissional, talvez. Lia meus poemas em diversas universidades, bêbado, batendo boca com a plateia. Meu treinamento com os caras da pesada no correio estava valendo a pena. Era quase impossível me insultar e eu contra-atacava com enorme eficiência. As Artes eram um pão-doce, uma mamata.
Coloquemos mais uns anos na conta. Progredi. As mulheres chegavam, eu pulava na cama com elas, saía da cama, brigava com elas, era terrível e incomum para mim e elas eram mais espertas do que eu, sabiam como lutar no corner, me enganavam, me encurralavam, mas eu arrumava um jeito de seguir escrevendo. Meu sucesso estava quase todo na Europa, por meio de traduções. Nos Estados Unidos, seguiam as histórias de que eu espancava minhas mulheres, odiava homossexuais e que era um cara hediondo e uma pessoa horrível. Os dândis da universidade me passavam o serviço. Um estudante apareceu certa noite e, após algumas cervejas, me disse:
Meu profe diz que você é um nazista e que venderia sua mãe por um níquel.
Isso não é verdade – eu lhe disse –, minha mãe está morta.
Deixemos tudo como está. Continuei escrevendo e a sorte não me abandonou. Agora estamos chegando perto. Meu editor, Larkin, leu uma entrevista que eu dei não sei onde em que falava de minhas influências: Céline, Turguêniev e John Bante.
Bante? – ele me telefonou – Já o ouvi mencionar o nome antes nos seus textos, mas achei que fosse invenção sua, sabe, uma piada.
Não, ele está lá.
Lá aonde?
Deve estar ainda na biblioteca. Não sei. Espero que sim. Há apenas seus primeiros livros. Parece que já não escreve mais. Talvez esteja morto.
Ele é tão bom assim?
É o melhor.
Por que ninguém nunca fala dele?
Me diga você. Se encontrar os livros dele, comece por Sporting Times? Yeah?
Algum tempo se passou. Uma mulher tentou me matar. Fracassou. Então naquela noite o telefone tocou, ela adorava teledramatizações, e eu atendi e disse:
Escute aqui, quero que você fique FORA da minha vida!
Aqui é o Larkin – ouvi.
Ah...
Escute, li Sporting Times. É realmente poderoso! Vou republicá-lo!
Ótimo. Ótimo...
O livro original vendeu 632 cópias. Bante ainda está vivo e mora em Malibu...
Malibu? Oh, oh...
Ele entrou para a indústria cinematográfica...
Caralho...
Era a Depressão, ele tinha que sobreviver. Você sabe bem como foi. É preciso perdoá-lo.
Claro. Não se pode escrever se você está morto.
E a maioria de nós não consegue escrever de outro jeito. Seja como for, vou republicar o livro e achei que talvez você quisesse escrever o prefácio.
Amanhã estará no correio.
Ótimo!
Aí estava: um dos grandes romances de nosso tempo prestes a ser retirado das trevas em que esteve imerso por mais de quarenta anos depois de eu ter, com muita sorte, puxado o volume daquela prateleira. Avancei em direção à máquina de escrever para pronunciar o milagre de uma época, sentindo-me bem com a bondade que estava por vir apesar de tudo.
O telefone voltou a tocar.
Alô – eu disse.
A voz veio num tom monótono, cada palavra medida, sem qualquer alteração de registro. Era como uma gravação: não havia paixão, apenas esta finalidade certeira a cumprir:
Tentei matar você, mas não estou certa de que não vou tentar de novo.
Mas a gente tinha chegado a um acordo, que se eu não desse queixa na polícia, você ia parar com esse tipo de coisa.
Não posso ter certeza de nada – ela disse.
Será que você não consegue entender isso?
Ela desligou.
Sporting Times? Yeah?
Afastei-me da máquina, dei a volta ao redor da cozinha e me servi uma dose caprichada…
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho

Um fanfarrão em nós

Se não tivéssemos a faculdade de exagerar os nossos males, nos seria impossível suportá-los. Atribuindo-lhes proporções inusitadas, nos consideramos condenados escolhidos, eleitos às avessas, lisonjeados e estimulados pela desgraça... Felizmente, em cada um de nós existe um fanfarrão do Incurável.
E. M. Cioran

O jogador

Foto: Leandro Sanches

Corre, ofegando, pela lateral. De um lado o esperam os céus da glória; do outro, os abismos da ruína.
O bairro tem inveja dele: o jogador profissional salvou-se da fábrica ou do escritório, tem quem pague para que ele se divirta, ganhou na loteria. Embora tenha que suar como um regador, sem direito a se cansar nem a se enganar, aparece nos jornais e na televisão, as rádios falam seu nome, as mulheres suspiram por ele e os meninos querem imitá-lo. Mas ele, que tinha começado jogando pelo prazer de jogar, nas ruas de terra dos subúrbios, agora joga nos estádios pelo dever de trabalhar e tem a obrigação de ganhar ou ganhar.
Os empresários podem comprá-lo, vendê-lo, emprestá-lo; e ele se deixa levar pela promessa de mais fama e mais dinheiro. Quanto mais sucesso faz, e mais dinheiro ganha, mais está preso. Submetido a uma disciplina militar, sofre todo dia o castigo dos treinamentos ferozes e se submete aos bombardeios de analgésicos e às infiltrações de cortisona que esquecem a dor e enganam a saúde. Na véspera das partidas importantes, fica preso num campo de concentração onde faz trabalhos forçados, come comidas sem graça, se embebeda com água e dorme sozinho.
Nas outras profissões humanas, o ocaso chega com a velhice, mas o jogador de futebol pode ser velho aos trinta anos. Os músculos se cansam cedo:
Esse cara não faz um gol nem ladeira abaixo.
Esse aí? Nem se amarrarem as mãos do goleiro.
Ou antes dos trinta, se uma bolada fizer que desmaie de mau jeito, ou o azar lhe estourar um músculo, ou um pontapé lhe quebrar um desses ossos que não têm conserto. E um belo dia o jogador descobre que jogou a vida numa só cartada e que o dinheiro evaporou-se, e a fama também. A fama, senhora fugaz, não costuma deixar nem uma cartinha de consolo.
Eduardo Galeano, in Futebol ao sol e à sombra

O servo Nikita

Foi na década de 1870, no dia seguinte à S. Nicolau de inverno. Havia festa na paróquia da aldeia, e o negociante da segunda guilda, Vassili Andrêitch Brekhunóv, não podia se ausentar: tinha de estar na igreja – da qual era curador – e, em casa, devia receber e recepcionar parentes e conhecidos. Mas eis que os últimos visitantes partiram, e Vassili Andrêitch começou imediatamente a se preparar para viajar à propriedade vizinha, em visita ao dono, a fim de ultimar a compra de um bosque, há muito já conversada. Vassili Andrêitch apressava-se para que os comerciantes da cidade não lhe arrebatassem esse vantajoso negócio. O jovem proprietário pedia dez mil rublos pelo bosque, só que Vassili Andrêitch lhe oferecia sete mil. E sete mil representavam apenas um terço do valor real do bosque. Vassili Andrêitch talvez até conseguisse arrancar-lhe ainda mais um abatimento, já que o bosque se encontrava na sua circunscrição, e entre ele e os comerciantes rurais da redondeza existia um trato antigo, segundo o qual um comerciante não aumentava o preço no distrito do outro. Mas, como Vassili Andrêitch soubera que os comerciantes de madeira da cidade se dispunham a vir negociar o bosque de Goriátchkino, resolveu partir imediatamente, a fim de fechar o acordo com o proprietário. Por isso, assim que a festa terminou, ele tirou do cofre setecentos rublos do seu próprio dinheiro, acrescentou os 2.300 do caixa da igreja que estavam com ele, formando assim três mil rublos, e, após contá-los meticulosamente e guardá-los na carteira, preparou-se para partir.
O serviçal Nikita, naquele dia o único trabalhador não embriagado de Vassili Andrêitch, correu para atrelar. Nikita, que era um beberrão, não estava intoxicado naquele dia porque, desde a vigília, quando perdeu na bebida seu casaco e suas botas de couro, fez promessa de não beber e já não o fazia há dois meses. Não bebera também agora, apesar da tentação do vinho consumido por toda parte nos primeiros dois dias do feriado.
Nikita era um mujique de cinquenta anos de idade, da aldeia vizinha, um “não-dono”, como diziam dele, que passara a maior parte da vida fora da sua própria casa, a serviço de terceiros. Era estimado por todos devido à sua operosidade, destreza e força no trabalho, mas principalmente pela índole bondosa e afável. Só que ele não parava em emprego algum, porque umas duas vezes por ano, às vezes até mais, caía na bebedeira, perdendo tudo o que tinha, até a roupa do corpo, e porque, ainda por cima, ficava turbulento e brigão. Vassili Andrêitch também já o enxotara várias vezes, mas voltava a recebê-lo, em apreço por sua honestidade, seu amor aos animais e, principalmente, por ele ser tão barato. Vassili Andrêitch pagava a Nikita não os oitenta rublos, que era o que valia um trabalhador como ele, mas apenas quarenta, que, sem fazer as contas, lhe entregava aos poucos e, mesmo assim, não em dinheiro, mas em mercadorias, aos preços altos do seu próprio armazém.
A mulher de Nikita, Marfa, que já fora uma campônia bonitona e esperta, labutava na aldeia, com o filho adolescente e duas filhinhas. Ela não chamava Nikita para voltar a morar em casa, em primeiro lugar porque vivia, já há uns vinte anos, com um toneleiro e, em segundo, porque, embora manejasse o marido como bem entendia quando ele se achava sóbrio, tinha-lhe medo quando embriagado. Certa vez, tendo se embebedado em casa, decerto para se vingar da mulher pela sua humildade quando sóbrio, Nikita arrombou a arca de Marfa, retirou as suas melhores roupas e, com um machado, reduziu a tiras, sobre um cepo, todos os vestidos e trajes festivos da mulher.
O ordenado ganho por Nikita ficava todo com ela, e Nikita não se opunha a isso. Também agora, dois dias antes da festa, Marfa procurou Vassili Andrêitch e levou do seu armazém farinha branca, chá, açúcar e meio garrafão de vinho, no valor de uns três rublos. E ainda pegou cinco rublos em dinheiro, agradecendo como se isso fosse uma concessão especial, quando de fato Vassili Andrêitch é quem lhe devia uns bons vinte rublos.
Nós não fizemos trato nenhum, fizemos? – perguntava Vassili Andrêitch a Nikita. – Se precisas de alguma coisa, leva, acertaremos depois. Eu não sou como os outros: longas esperas, e contas, e multas. Conosco é na base da honra. Tu me serves e eu não te abandono.
E, dizendo isso, Vassili Andrêitch acreditava sinceramente que beneficiava Nikita: sabia falar de um modo tão convincente que as pessoas que dependiam do seu dinheiro, a começar por Nikita, concordavam e apoiavam-no na sua convicção de que ele não as enganava, mas lhes prestava benefícios.
Mas eu compreendo, Vassili Andrêitch. Acho que eu me esforço, que te sirvo como ao próprio pai. Compreendo muito bem – respondia Nikita, percebendo perfeitamente que Vassili Andrêitch o enganava, mas sentindo ao mesmo tempo que não adiantava sequer tentar esclarecer as contas com o patrão, já que precisava viver e, enquanto não havia outro emprego, tinha de aceitar o que lhe davam.
Agora, ao receber do patrão a ordem de atrelar, Nikita, como sempre alegre e de boa vontade, saiu com o passo leve e animado dos seus pés pisando como patas de ganso e dirigiu-se ao galpão, onde tirou do prego um pesado bridão de couro com pingentes e, tilintando com as barbelas do freio, encaminhou-se para a estrebaria, onde estava o cavalo que Vassili Andrêitch mandara atrelar.
Leon Tolstoi, in Senhor e servo

Literatura: um reflexo da sociedade

Devemos reconhecer que a literatura não transforma socialmente o mundo, que o mundo é que vai transformando, e não só socialmente, a literatura. É ingênuo incluir a literatura entre os agentes de transformação social. Reconheçamos que as obras dos grandes criadores do passado não parecem ter originado, em sentido pleno, nenhuma transformação social efetiva, embora tendo uma forte influência em comportamentos individuais e de geração. A humanidade seria hoje exatamente a mesma que é se Goethe não tivesse nascido. A literatura é irresponsável, mas não se pode imputar-lhe nem o bem nem o mal da humanidade. Pelo contrário, ela atua como um reflexo mais ou menos imediato do estado das sociedades e de suas sucessivas transformações.
José Saramago, in As palavras de Saramago

O que lhe falta

O avarento chama pródigo ao liberal; o covarde temerário ao valente; o distraído hipócrita ao modesto; e cada um condena o que não tem, por não confessar o que lhe falta.”
Padre Antônio Vieira

Reboldra

Dos lados do riacho, terra sua, Iô Bom da Ponte plantava o melancial. Eram melancias de cada ano não se ver como essas, para negócio e maispreço.
Iô Bom, porfiante esforços, viera a obtê-las sós a primor, nem lembrado mais de que jeito. Na estação do tempo, porém, inquietava-se de que as furtassem. Em fato, furtadas.
De defendê-las no diário das noites, três deles sucessivos não dando conta, Iô Bom trejurou que cachorros ao angu por mão de moça solteira relaxavam o vigiar.
Porquanto, calejado viúvo, tinha filha, que pelas costas o odiava: — Cujo quem, para espreitar alguém! — a Doló ambicionava vida maior que dez alqueires.
Dureza de ouvido pejando-o, pensava o pai que ela o quisesse auxiliar com conselho. Ele para si não ousava abrir nem uma daquelas sem iguais melancias — o que seria esperdício da fartura de Deus, que em puro dinheiro se solve.
Concebeu remédio: declarado inventar que, numas ou noutras, botara veneno para ladrões. Disse-o, no arraial, afetando-se legítimo capaz de suas posses.
Doló, de banda, entanto a todos delatava a mentira daquilo, embustes de pirrônico. Iô Bom, no engano, sorridículo aprovava-a com a cabeça e cãs. Ele a queria pesada, à brutalha, ombreando-o no rijo da semana; mas prazia-lhe aos domingos ficasse faceira, vistosa. Ela ficava.
O escarmento da estricnina não surtindo feito, Iô Bom teve-se a recurso. Trouxe para a chácara o diabo paupérrimo Quequéo, fiou-lhe em mão, sem carga, a espingarda. Esse já então era um estropiado, manquejando endurecido, devido a ataque de congestão. Mas fora circunspecto jagunço, por nome trovão Estrulino, havia de os vadios repelir. Além de que nada quase custava, só por misericórdia o de comer e fumo para pitar.
Iô Bom desobrigado esperou: a vida recobrava ordem, ele no trabalho e repousos; a Doló breve se casava, moraria lá, mais netinhos; as melancias formosas se repetiam entre os milhos e os feijões. Tanto para o pobre, também, cada dissabor prefaz o medido consolo.
Pobre por avarezas? — Doló tomava-o de ponta, segura de sua semi-surdez.
Iô Bom arranjava de achar: que a mocidade está criando o carecido juízo. Ia ver as melancias, como o verde é cor de coisas: sobrepintadas de escuro, semelhando couro de cobra. Dentro, refrescas vermelhas doçuras; mas apreciava-as assim era o comprador.
Iô Bom, após chuva, curava-as do respingado barro e ciscos, pudesse escorá-las, não pesassem a toque nu com o chão, e revirá-las para pegarem redondo o sol de dezembro. Dia viria, tudo melhor se rematava, em retidão de razão.
Voltavam eram os gatunos, por agravo à regra de Deus. Para que é que aí, então, esse o Quequéo, à pança bem servida, nem prestando para bom espantante? — Doló dema... Ela socorria o indiaço.
Mas não devendo ser de pique, senão por movido coração. E fato se mostrou: agora as frutas faltadas consistindo nas de menos valor?
Iô Bom decidia passar noites, socapo, à esparrela. Isso ele calou. Inda que estranhando-o o olhassem — o Quequéo, afeiurado, inteiriço, e a Doló, cara ingrata, mocetona.
Saiu, ao se esconder da lua, não causando rumor; nada de insensato notou, na madrugada seca. Ele e o Quequéo, sofismudo do outro lado do riacho, davam-se as costas ou a frente.
Até que um assovio se desferiu. Só o estarrecimento. Era, de boné à cabeça e arma ao ombro, o moço Valvinos: noticiou-se esse que por uma paca, se tanto que sem cachorro. Mau-grado cujo, não podia ter advindo anonimamente; rico, filho de pai acreditado. Iô Bom, bulindo-se, àquela hora achou de lhe oferecer café. O Quequéo estragado tossia, para se ter raiva ou pena. Deveras a Doló acordara, mas a janela não abriu. A lua esteve incerta reaparecida.
Disso Iô Bom tirava a lembrança, só aperfeiçoando seu desgosto; tristeza avisava-o de coisas, neste mundo de por-de-trás. Rogava paz, preceitos, para todos; sozinho, consigo passava vergonha. Supriu a espingarda do Quequéo com cartuchos de chumbo mortal. Diligenciava ou dormia; nunca bocejara.
Foi uma manhã. Foi forte o que viu. Quequéo a se arrastar, em desamparo de agonias, cólicas, deitado de bruços, de chegar com a boca à água do riacho não alcançava. A logro: o que cuspia não era sangue, baba rosada, mas mascas de melancias.
Bem querido, mal fazido... — Iô Bom sumido disse, lambia-se o gume dos dentes, como que por pedaços de gelos engolidos. Ele quisesse um pouco mais ensurdecer, a Doló culpando-o de maldades.
Jurou — nem envenenara plantação nenhuma.
Tinha de gerir o enterro, puxar as remendadas calças do outro, emprestar-lhe seu terno bom de roupa — a Doló impunha. Malentendia acerca do defunto. Apanhou a espingarda, deu tiro para cima: os pássaros das árvores exatos revoaram.
Desde a morte não teve sono.
Fez fora uma coberta de palmas, deitado lá pendurado se encolhia, como cachorro em canoa.
Imaginasse aumentado o melancial, tresdobro tamanho — porém louco o alheio sem-lei o saqueando. Norma de bem-procedido sossego, pautas para sempre, a vida não dava? Nem aquele Quequéo fora nunca um jagunço cristão Estrulino, só falso.
Iô Bom sentia-se descompor. Da Doló, de algum tempo, precatava as vistas, nela não queria doer o pensamento.
A noite era invencioneira, às vezes. Despregou olho: havia era o latejo escuro, ninguém no redor ocupava lugar. Chegou a estimar que viessem os ladrões, caso comum, costumadamente. Temia o dia, que amanhecesse. Do furtivo aparecer mesmo do moço caçador sedutor Valvinos sentiu falta.
Doló, da porta, insultava-o, na manhã demais clara. Vestida de domingo, ela chamava desgraças.
Iô Bom levantou pé, coiceando o ar, ia cair da rede, se agarrou com as duas mãos. Sem querer, então, viu-lhe: a barriga, redondeada, desforme crescida, de cobra que comeu sapo. Isto entendeu — purgatórias horas.
Doló, doidivinda, arrancava agora melancias, rachava, mastigava-as, a grandes dentes, pelo queixo e sujando a boa roupa corria o caldo. O mundo se acabou. Careteava ela caretejos. Fez-lhe ouvir: — Desejos meus! — e aquilo ria, mostrava, gozosa, grossa se apalpava. — Quem havera de direito casar com filha de doito pai?! — ainda escarrou dos lados. Entrava em casa, a enrolar trouxa, ia-se embora, para vida.
Iô Bom andou, sem sustância para soluço, urinara na calça, aí panhou do chão e provou das despedaçadas frutas, não achou gosto.
Mas o mundo se acabava e ele persistia cuidando, melancia por melancia, nem lhe restasse amor outro, ouro do ouro, perfeitamente. Da Doló os gritos, pios dos passarinhos, o marulho, vez nenhuma ouvia, indesditoso surdo de todo, desperto.
Parava, pernas muito abertas, velho e só como Adão quando era completo, pisava bem o fundo pedregulhento do riacho.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra