Que me quereis, perpétuas saudades? Com que esperança inda me enganais? Que o tempo que se vai não torna mais, E se torna, não tornam as idades. Razão é já, ó anos, que vos vades, Porque estes tão ligeiros que passais, Nem todos pera um gosto são iguais, Nem sempre são conformes as vontades. Aquilo a que já quis é tão mudado, Que quase é outra cousa, porque os dias Têm o primeiro gosto já danado. Esperanças de novas alegrias Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado, Que do contentamento são espias. Luís Vaz de Camões
sexta-feira, 30 de junho de 2017
Que me quereis, perpétuas saudades?
Propaganda de graça
Escrevendo
praticamente a vida toda, a máquina de escrever ganha uma
importância enorme. Irrito-me com esta auxiliar ou então
agradeço-lhe fazer o papel de reproduzir bem o que sinto:
humanizo-a.
Quando,
há muito tempo, comecei a ser uma profissional de imprensa, tive uma
máquina Underwood semiportátil. Essa máquina eu amei mesmo: ela
durou tanto que aguentou eu escrever sete livros. Não esquecendo que
tirei cópias e cópias do que escrevi. E que um livro meu, por
exemplo, que deu em datiloscrito
perto de 400 páginas, eu copiei 11 vezes porque, para esclarecer a
mim mesma o que quero dizer, faço cópias e cópias. Ao final de
sete livros, que valem 20 na máquina, esta começou a ter uma
espécie de reumatismo. Comprei então uma Olympia portátil. Essa
escreveu cinco livros, fora todas as muitas outras coisas que
escrevi. Depois pareceu cansada e adoecia de vez em quando,
precisando de um mecânico para auxiliá-la a continuar. Continuou
bem mas me cansei de seu tipo pequeno demais.
Tive
depois uma Remington portátil mas fazia ao bater dos dedos um
barulho de lata velha que me cansava. Troquei-a com Tati de Morais
por uma Olivetti que é uma beleza em matéria de som: abafado, leve,
discreto. Posso bater máquina à noite porque ela não acorda
ninguém. Não me ofende com um som agudo que outras máquinas têm.
Acho que de agora em diante só vou escrever nela. E se ela se
cansar, compro outra igual. Como máquina é parecida com uma pessoa
e às vezes de puro cansaço enguiça, o ideal era comprar outra
Olivetti como máquina suplente porque não posso me dar ao luxo de
parar de escrever. Máquinas, qualquer uma, são um mistério para
mim. Respeito-lhes o mistério.
E
voltei, agora, não sei por quê, à velhinha Olympia portátil. Sou
volúvel em matéria de máquinas.
Clarice
Lispector, in
Aprendendo a viver
Sou um escritor de verdade (trecho)
Não
existe nada entre Jenny e eu. Moro de um lado do corredor, ela mora
do outro, no andar superior de uma casa de dois andares. O outro
aposento aqui em cima é o banheiro. Quando cheguei aqui pensei que
podia haver algo. Ouvi o ruído de saltos altos no corredor e no
quarto ao lado, e, no banheiro, vi umas coisas azul-pálidas
penduradas para secar. Eu as toquei, pois me cativavam, e sua maciez
e fragrância trouxeram ideias agradáveis à minha imaginação. Mas
nada aconteceu.
Quando
ouvia o toc-toc dos saltos altos, eu estava sentado no meu quarto,
sempre à noite, e batia violentamente à máquina de escrever,
martelava com toda força, escrevendo qualquer coisa que me viesse à
cabeça, qualquer coisa. O Discurso de Gettysburg, ou um soneto de
Shakespeare, ou qualquer outra coisa, simplesmente batendo nas teclas
com muita força para que o som viajasse, pois existem aqueles que
vão saber que um escritor está no quarto pelo ruído de sua máquina
de escrever e vão gostar do som e virão à sua porta e perguntarão
a ele se escreve, e o que escreve — quero dizer, mulheres —, pois
isso me aconteceu muitas vezes, já que morei aqui e ali nesta grande
cidade, em casas, apartamentos e hotéis, e sei que o negócio de
martelar uma máquina de escrever é invariavelmente bem-sucedido,
invariavelmente trazendo alguém, um homem ou uma mulher, geralmente
uma mulher solitária e curiosa; e, às vezes, muitas vezes, um
homem, um homem raivoso que manda você parar com aquilo para que ele
possa conseguir algum sono.
Eu
morava nesta casa há três dias, até que vi Jenny. O ruído da
minha grande máquina nunca a atraiu, nem uma vez sequer a fez parar
à minha porta e se perguntar, talvez investigar. Isso me surpreendeu
e pensei em outros métodos. Mas, de um modo ou de outro, todas as
coisas saem da minha máquina e eu nada mais podia fazer; então,
bati as teclas ainda com mais força. Isso foi de noite, depois que a
ouvi ir para a cama. Mas o barulho nunca a perturbou. Aparentemente
ela dormia sem interrupção. Por fim, foi ela que me atraiu.
Era
o telefone. Toda noite ele tocava sem parar ao pé das escadas e era
sempre para ela. Com o tempo, fraquejei, afastei meus dedos doloridos
do teclado, fiquei parado à porta e ouvi sua conversa telefônica.
Dessa vez falava com uma pessoa chamada Jimmie.
— Olá,
Jimmie, queridão!
— Olá,
Jimmie, seu menino safado!
— Pô,
Jimmie, menino safado!
—
Jimmie!
Seu safadão!
Ouvi
aquele tipo de coisa por muito tempo, chocado com a estupidez de um
diálogo tão banal. Assim que ela desligou, corri de volta para a
máquina de escrever e comecei a martelar de novo. Mas não adiantou
nada. Seus pés subiram as escadas e atravessaram o corredor sem
nenhuma pausa, e então a porta se fechou.
Depois
conheci esse Jimmie. Era um tipo boçal, um dândi que usava casacos
xadrez e gravatas com estampas selvagens, um salafrário que não se
impressionou com a ousada simplicidade de meus pés descalços em
chinelos caseiros, embora meus pés estivessem sobre a mesa de Jenny
e eu fumasse um cachimbo maior e mais comprido do que qualquer outro
cachimbo na cidade de Los Angeles. Jimmie era um agente de
assinaturas de revistas.
— Eu
vendo para todas as figuraças — disse ele. — Anne Harding é uma
de minhas clientes.
É
claro que ele esperava que eu caísse da cadeira com isso. Fumei em
silêncio, enquanto ele e Jenny esperavam meu comentário.
— Quem?
— falei. — Não me diga que é a atriz de cinema? Muito trágico.
Muito trágico mesmo.
Depois
Jenny me contou ainda mais dessa chiquérrima da Anne Harding. —
Ela compra todas as suas revistas de Jimmie. Dúzias de revistas.
— Isso
— comentei — curiosamente não impressiona nem um pouco. Mesmo o
fato de que, sem dúvida, muitas histórias que eu escrevi foram
publicadas nestas revistas, não consegue despertar meu entusiasmo.
Aqui,
de novo, a sagaz urbanidade de minha observação foi lançada em
solo caipira. Mas não importava, porque eu não estava muito
interessado e sua amizade por Jimmie não era da minha alçada.
Vou
contar a verdade sobre minha primeira conversação com Jenny. Foi na
noite em que a senhoria nos apresentou. Convidei Jenny para tomar uma
taça de vinho em meu quarto. Na verdade, tentei chocá-la. Ela
fumava um cigarro apoiada sobre a cômoda, enquanto eu servia o
vinho. Olhei de frente para ela.
—
Incomoda-se
se eu a chamar de Jenny? — perguntei. — O nome tem um sabor
divertido e bucólico.
— De
modo algum! — sorriu, porque não sabia o significado de bucólico.
Passei a ela a taça de vinho.
—
Hummm!
— ela disse. — Obrigada!
Eu
estudava seu rosto de perto, examinando-o como um estudante da
humanidade, um escritor, o examinaria. Isso a deixou meio
constrangida. Ergueu a taça.
— A
você! — brindou. — Sei que deve ser um grande escritor.
Toquei
sua taça e ri. No momento tomei consciência de que, afinal, a
garota não era completamente sem esperança.
— A
questão repousa na História — expliquei. — Eu vivo apenas no
passado e no futuro.
Esvaziamos
nossas taças. Servi mais duas vezes.
— Jenny
— falei. — Eu sou um homem da Verdade. Permita-me fazer uma
observação sobre você.
Ela
ergueu a taça.
— Pode
atirar, sr. Charles Dickens! Me acerte com o cano duplo!
— Jenny
— continuei. — Sou como meu grande predecessor, Huneker. Nada na
face da Terra me incomoda mais do que uma demi-vierge
provocadora.
—
Demi-vierge?
— perguntou. —O que é uma demi-vierge?
— Uma
amásia — e sorri.
—
Amásia?
— disse ela. — Eu passo, professor. O que é isso?
Sacudi
a cabeça com tristeza.
— Uma
amásia — falei — é uma megera.
— E
o que é uma megera?
— Uma
megera — falei — é uma hetaira.
— Me
pegou de novo, professor. O que é uma hetaira?
— Uma
hetaira é uma meretriz.
— Uma
rameira? — franziu a testa e então sorriu. — Tem um som bonito,
mas ainda estou boiando.
— Uma
Dalila — falei. — Uma Taís. Uma Messalina. Uma Jezebel.
— Vamos
lá de novo — disse ela. — Tente mais uma vez.
— O
dicionário está bem ali. Consulte.
Ela
colocou a taça na mesa e correu para o dicionário.
—
Claro!
— falou. — Que palavra?
— É
melhor tentar meretriz — falei. Ela consultou.
E
então fechou o dicionário.
— Mas
o que isso tem a ver comigo?
Não
estou seguro de que o que respondi era verdade. Mas ninguém pode
negar que tinha o som e a força de uma análise surpreendente, uma
bomba e, verdade ou mentira, digna de uma explosão, simplesmente
pelo efeito.
— Jenny
— falei. — Toda a raça feminina é uma meretriz embrionária. A
tendência é poderosa e, a partir da puberdade, as mulheres devem
combater isso como combateriam o tifo.
Ela
depôs a taça de vinho, apagou o cigarro e saiu do quarto.
— Você
é horrível — disse. — Simplesmente medonho.
John
Fante, in A
grande fome: Contos (1932-1959)
Nada é simples
“A
verdade é que nas questões filosóficas nada é simples. Toda
solução simples é uma solução falsa. E em geral é uma solução
preguiçosa – como é o ceticismo que nos livra de todo o dever de
investigação longa e árdua, porque para ele nada há para
investigar. A realidade é terrivelmente complexa. Só por um
trabalho longo e árduo pode o homem apropriar-se de uma parte dela,
não muito, mas sempre alguma coisa.”
J.
M. Bochenski
quinta-feira, 29 de junho de 2017
O dia dos cachorros (trecho)
O
derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não
eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir. Mesmo se
fizeram aquilo por simples brincadeira, mostraram completa
desconsideração pelos direitos alheios.
Dois
ou três dias antes o povo notou que os cachorros da tapera estavam
ficando inquietos, turbulentos, aflitos como em véspera de uma
grande caçada. À noite o alarido era tal que chegava a perturbar o
sossego na cidade. A impressão geral era que os homens não estavam
dando comida suficiente aos bichos. Seria por maldade? Ou distração?
Ou falta de recursos? Talvez Geminiano pudesse dar uma explicação?
—
Cachorros? Esconjuro. Capetas. Capetas de
quatro pés. Cachorros. — Foi só o que se conseguiu de Geminiano.
—
Quantos são, Gemi? Parece que são
muitos.
—
Muitos? Dobre e ponha mais.
— Uma
dúzia? Dúzia e meia?
— Que
dúzia e meia! Dúzia e meia morre por dia.
— Morre
de quê?
—
Morre. Cai no chão, estrebucha e morre.
— Onde
arranjaram tantos?
— Eu
sei? Recebem.
— De
onde? Quem traz?
— De
longe. Do inferno. Quem traz é o capeta. Só pode ser. Cachorros!
Peste!
Não
adiantava mais falar com Geminiano. Aquele trabalho sem fim estava
bulindo com o juízo dele. Ele agora preferia falar sozinho a
conversar, e qualquer dia sairia por aí gritando e xingando a esmo,
como o velho Inácio Medrado. Parece que toda a cidade precisa ter um
louco na rua pra chamar o povo à razão; agora que Inácio não
existia mais, Geminiano estava exercitando para preencher o lugar.
Era certo que os homens tinham muito cachorro na tapera, a latomia
que faziam não deixava dúvida; mas não podiam estar recebendo
cachorros todos os dias sem parar, faltava o cabimento.
Os
cachorros baixaram de repente, apanhando todo mundo de surpresa. A
cidade estava engrenando na rotina do tomar café, do regar horta, do
varrer casa, do arrear cavalo, quando os latidos rolaram estrada
abaixo. As pessoas correram para as janelas, as cercas, os barrancos
e viram aquela enxurrada avançando rumo à ponte, cobrindo buracos,
subindo rampas, contornando pedras, aos destrambelhos, latindo
sempre.
—
Nossa! É cachorro! É cachorro! E vem
pra cá!
— Ih,
é cachorro! Escapuliram!
— Os
cachorros!
— Feche
a porta! Os cachorros!
— Os
meninos! Chame os meninos!
—
Corre, gente!
— Fecha
tudo!
—
Prepare porretes!
Portas
batiam em toda parte, gente gritava, criança chorava, galinhas em
pânico, mães ralhavam, batiam, sacudiam, rezavam, homens iam e
vinham correndo, procurando espingarda, garrucha, porrete, outros
apenas acendiam um cigarro e iam para a janela espiar.
Apesar
da curiosidade, ninguém se aventurou a sair de casa. No largo e nas
ruas desertas apenas alguns animais pastavam apáticos, alheios à
ameaça ou talvez confiantes na eficiência dos cascos. Até os
pássaros, percebendo alguma coisa no ar, retiraram-se prudentes para
os galhos mais altos das árvores. Borboletas inocentes enfeitavam as
margens do rego, e ali morreriam em poucos minutos pisadas, mordidas,
desmanchadas como flores depois de ventania. O palco estava armado
para os cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados.
A
vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira
e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando,
regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando
portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se
descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção — e era
repelida pelos moradores a varadas, lambadas, pauladas, até a tapas
e chineladas.
Escorraçados
da frente, os cachorros surgiam nos quintais quebrando plantas,
revolvendo hortas, derrubando cercas, pulando muros, perseguindo
galinhas, matando pintos, parando de vez em quando para retirar
chumaços de penas da boca com as patas ou pelo processo de esfregar
o focinho no chão. Os homens tentavam espantá-los a pedradas,
apanhavam uma pedra e ficavam tontos com ela na mão, não sabendo
para que lado jogar, os cachorros eram muitos e vinham de todos os
lados, nem tomavam conhecimento da gente, pareciam estar à procura
de alguma coisa mais importante. Às vezes se ouvia um tiro e um
ganido, que o alarido geral abafava.
Era
impossível saber quantos seriam, quem tentou calcular por alto
desistiu alarmado, eles estavam sempre passando e pareciam nunca
acabar de passar. Pelo meio da manhã o cheiro de pelo suado, de
urina concentrada, de estrume pisado era tão forte que invadia as
casas e obrigava as pessoas a queimarem ervas para espantar a
morrinha.
Fechadas
em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as
pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender
aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente
encolhida no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir. Às vezes
um cachorro aparecia dentro de uma casa, vindo não se sabe por onde,
pondo as pessoas em pânico. O cachorro olhava para um, para outro,
escolhia uma pessoa, chegava-se para ela, abanando o rabo. A pessoa
se encolhia, guardava as mãos, as pernas, e não achava voz para
espantá-lo. O cachorro insistia, farejava, esperando: nenhum agrado
vinha, ele desistia e se retirava desapontado, a cabeça baixa, o
rabo quase colado nas pernas. Outros entravam por um lado, varavam a
casa e procuravam saída pelo outro lado, riscando a porta com as
patas, ajudando com o focinho, ganindo o tempo todo, até que alguém
criava coragem, abria a porta e ele saía disparado atrás de uma
caça invisível. Houve casos também de cachorros entrando numa
casa, indo direto aos quartos e saindo com chinelas, sapatos, roupas,
tudo o que pudessem agarrar com a boca, lençóis eram arrastados
pelos quintais, estraçalhados em espinhos de roseiras ou mandacaru,
lambuzados na lama dos regos e afinal abandonados em qualquer parte,
quando já não serviam para nada.
Outros
parece que entravam numa casa apenas para descarregar a bexiga;
chegavam, farejavam, escolhiam o lugar, às vezes até um par de
botinas encostado num canto, e calmamente se aliviavam; ou rodavam,
rodavam no meio da sala, o corpo encurvado no meio, as pernas
traseiras abertas, espremiam, largavam uns charutinhos ou uma broa;
satisfeitos com o resultado, raspavam as patas duas, três vezes e
saíam sem olhar para ninguém, os donos da casa que providenciassem
a limpeza. Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas,
consolando-se em pensar que não há mal que sempre dure.
Mas
vendo que os cachorros não tinham pressa de ir embora, o povo
começou a mudar de atitude. Os porretes, as correias, as espingardas
iam sendo escondidos e substituídos por tentativas de afagos,
palavras mansas, agrados de comida. Gente se amontoava nas janelas
assoviando para eles, estalando os dedos, esticando a mão para
alisá-los com medo, é verdade, mas desejando receber um abano de
rabo. Muitos iam à cozinha buscar qualquer coisa de comer para jogar
aos pés deles. De repente ficou parecendo que todo mundo adorava
cachorro, quanto mais melhor, e só tinha na vida a preocupação de
fazê-los felizes. Se uma criança desavisada apanhava o chicote
preparado pelo pai e ameaçava um cachorro mais atrevido, era
imediatamente obstada e castigada com o mesmo chicote. A ordem era
respeitar os cachorros. Foi um tempo difícil aquele para os puros,
os ingênuos, os de boa memória.
Quando
foi ficando claro que os cachorros não estavam interessados em
morder ninguém (o máximo que faziam era rosnar e mostrar os dentes
para quem os incomodasse inadvertidamente), mas apenas em dar vazão
à energia represada na disciplina da tapera, as pessoas foram
criando coragem e saindo de casa desarmadas, e até já achavam graça
nos desatinos e bodejos dos bichos. Vê-los perseguindo galinhas nos
quintais ficou sendo um espetáculo considerado divertido. Quando uma
galinha conseguia escapar para cima de um muro, de um cafezeiro, para
o meio de uma moita qualquer, e lá ficava ofegante se refazendo do
susto, sempre aparecia alguém com uma vara para espantá-la, e a
perseguição recomeçava. Frequentemente uma galinha já manca, de
asa despencada e muitas falhas de penas pelo corpo era apanhada e
entregue na boca de um cachorro; e geralmente o cachorro distinguido
com a prenda apenas a cheirava e virava as costas.
Nas
ruas, se um cachorro se aproximava de um chafariz, não faltava quem
corresse com as mãos em cumbuca para poupá-lo do incômodo de beber
da bica. Os cachorros de Manarairema, antigos donos daquelas ruas,
também sofreram grandes humilhações. Quando atacados por um dos
estranhos eles não podiam reagir nem se defender, bastava rosnarem e
já os donos vinham correndo castigá-los pelo atrevimento. Eles
tinham de correr ou se deixar morder passivamente, se não quisessem
levar pauladas.
Cachorros
estranhos dormindo nas passagens eram respeitados mais do que
crianças ou velhos, as pessoas passavam nas pontas dos pés para não
acordá-los, muita gente entrava e saía de casa pelas janelas ou
dando volta pelos fundos para não passar por cima deles. Muita
almôndega macia, fritada em boa gordura, lhes foi servida em prato
de louça, como se faz com hóspedes de categoria. Toda a cidade
estava praticamente a serviço dos cachorros, tudo o mais parou,
ficou adiado, relegado, esquecido. Qualquer cachorro pelado, sujo,
sarnento, contanto que fosse estranho, encontrava quem o elogiasse
por qualidades que ninguém via mas que todos confirmavam. Era uma
grande vantagem ser cachorro estranho em Manarairema naqueles dias.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
Encorajados pelo racionalismo de Alain
Sartre
viera me ver no Limousin; hospedara-se no hotel Boule d’Or, em
Saint-Germain-les-Belles; para evitar falatórios, encontrávamo-nos
a boa distância da cidade, no campo. Com que alegria, pela manhã,
eu descia correndo os gramados do parque, pulava outeiros,
atravessava os prados ainda úmidos onde tantas vezes, e não raro
amargamente, eu ruminara a minha solidão! Sentávamo-nos na relva e
conversávamos. Não imaginara, no primeiro dia, que, longe de Paris
e de nossos colegas, essa ocupação pudesse bastar-me. “Levaremos
livros e leremos”, sugerira eu. Sartre ficara indignado; rejeitara
também todos os meus projetos de passeio; era alérgico a clorofila,
o verde das pastagens irritava-o, só o tolerava com a condição de
esquecê-lo. Pois que fosse assim. Por pouco que me encorajasse, o
discurso não me assustava; retomamos a conversa iniciada em Paris e
logo me dei conta de que, ainda que continuasse até o fim do mundo,
o tempo me pareceria curto demais. Mal a manhã acabava de nascer e
já o sino do almoço tocava. Ia comer em casa; Sartre comia pão de
centeio e mel, ou queijo que minha prima Madeleine depositava com
mistério num pombal abandonado ao lado da “casa de baixo”; ela
gostava do romanesco. Mal desabrochava e já fenecia a tarde, caía a
noite. Sartre voltava ao hotel; jantava ao lado dos
caixeiros-viajantes. Eu dissera a meus pais que estávamos
trabalhando em um livro que seria uma crítica ao marxismo. Esperava
amansá-los, lisonjeando-lhes o ódio ao comunismo, mas não os
convenci em absoluto. Quatro dias depois da chegada de Sartre, vi-os
surgindo nos limites do prado em que estávamos instalados;
aproximaram-se. Meu pai tinha um ar resoluto mas um tanto embaraçado
com seu palheta amarelado. Sartre, que nesse dia usava uma camisa de
um rosa agressivo, pôs-se em pé, com o olhar provocante. Meu pai
pediu-lhe cortesmente que deixasse a região; o povo falava,
comentava, e minha aparente má conduta prejudicava a reputação de
minha prima, que procuravam casar. Sartre retorquiu com vivacidade
mas sem muita violência, pois estava decidido a não adiantar em uma
só hora sua partida. Limitamo-nos a ter encontros um pouco mais
clandestinos num longínquo bosque de castanheiros. Meu pai não
voltou a insistir e Sartre ficou ainda uma semana no Boule d’Or.
Depois disso, escrevemo-nos diariamente.
Quando
tornei a encontrá-lo, em outubro, tinha liquidado meu passado; 3
empenhei-me por inteira em nosso caso. Sartre devia partir em breve
para o serviço militar; entrementes estava de férias. Residia na
rua Saint-Jacques, com seus avós Schweitzer, e encontrávamo-nos
pela manhã no jardim Luxemburgo cinzento e dourado, sob o olhar
branco das rainhas de pedra; só nos largávamos tarde da noite.
Andávamos por Paris e continuávamos a conversar, considerando o pé
em que estávamos em relação a nós mesmos, nossa ligação, nossa
vida e nossos futuros livros. Hoje, o que me parece mais importante
nessas conversas são menos as coisas que dizíamos do que as que
encarávamos como resolvidas; não estavam, enganávamo-nos em
relação a quase tudo. Para nos definir, cumpre examinar esses
erros, pois exprimiam uma realidade: a de nossa situação.
Já
o disse: Sartre vivia para escrever; tinha por missão testemunhar
todas as coisas e retomá-las por sua conta e à luz da necessidade;
a mim, era prescrito emprestar minha consciência ao múltiplo
esplendor da vida, e eu devia escrever para arrancá-la do tempo e do
nada. Essas missões impunham-se a nós com uma evidência que nos
garantia sua realização; sem nos formular, aderíamos ao otimismo
kantiano: deves, logo podes. E efetivamente, como a vontade duvidaria
de si mesma no momento em que se decide e se afirma? É uma só coisa
então querer e acreditar. Por isso mesmo confiávamos no mundo e em
nós mesmos. Éramos contra a sociedade em sua forma atual; mas esse
antagonismo nada tinha de melancólico: implicava um robusto
otimismo. O homem devia ser recriado e essa invenção seria em parte
obra nossa. Não pensávamos em contribuir para isso senão com
livros; os negócios públicos nos entediavam muitíssimo, mas
esperávamos que os acontecimentos se desenrolassem segundo nossos
desejos, sem que tivéssemos que nos meter neles. A esse respeito, no
outono de 1929, partilhávamos a euforia da esquerda francesa. A paz
parecia definitivamente assegurada. A expansão do Partido Nazista na
Alemanha representava apenas um epifenômeno sem gravidade. O
colonialismo seria liquidado em pouco tempo: a campanha iniciada por
Gandhi na Índia e a agitação comunista na Indochina nos garantiam
isso. A crise de virulência excepcional que sacudia o mundo
capitalista pressagiava que essa sociedade não aguentaria muito
tempo. Já nos afigurava vivermos na idade de ouro que constituía a
nossos olhos a verdade recôndita da História, e que ela se
limitaria a desvendar.
Ignorávamos
em todos os domínios o peso da realidade. Vangloriávamo-nos de uma
liberdade radical. Acreditamos durante tanto tempo e com tanta
tenacidade nessa palavra que foi preciso ver de perto o que nela
púnhamos.
Cobria
uma experiência real. Em toda atividade descobre-se uma liberdade,
particularmente na atividade intelectual, porque dá pouca margem a
repetição. Tínhamos trabalhado muito; sem cessar, fora preciso
compreender e inventar novamente. Tínhamos uma intuição prática
da liberdade, irrecusável; nosso erro foi não a encerrar dentro de
seus justos limites; ficamos presos à imagem da pomba de Kant: o ar
que lhe resiste, longe de travar, suporta seu voo. O dado
apareceu-nos como a matéria de nossos esforços, não como seu
condicionamento; pensávamos não depender de nada. Assim como nossa
cegueira política, esse orgulho espiritualista explica-se antes de
tudo pela violência de nossos projetos. Escrever, criar: não
ousaríamos, na verdade, arriscar-nos a essa aventura se não
tivéssemos absoluta certeza de nós mesmos, de nossos fins e de
nossos meios. Nossa audácia era inseparável das ilusões que a
sustentavam, e as circunstâncias as haviam favorecido juntas. Nenhum
obstáculo exterior jamais nos forçara a ir de encontro a nós
mesmos; queríamos conhecer e exprimir-nos; estávamos empenhados até
o pescoço nessa tarefa. Nossa existência satisfazia tão bem nossos
desejos que nos parecia que a tínhamos escolhido; daí acharmos que
sempre se submeteria a nossos desígnios. A sorte que nos servira
mascarava a adversidade do mundo. Por outro lado, interiormente, não
sentíamos empecilhos. Eu mantinha boas relações com meus pais, mas
eles tinham perdido todo domínio sobre mim; Sartre nunca conhecera o
pai; nem sua mãe nem seus avós tinham encarnado a lei a seus olhos.
Em certo sentido, éramos ambos sem família e tínhamos erigido essa
situação em princípio. Havíamos sido encorajados pelo
racionalismo cartesiano que Alain nos transmitira e que tínhamos
abraçado justamente porque nos convinha. Nenhum escrúpulo, nenhum
respeito e nenhuma aderência afetiva nos impediam de tomarmos nossas
resoluções à luz da razão e de nossos desejos; não percebíamos
em nós nada de opaco ou turvo; pensávamos ser pura consciência e
pura vontade. Essa convicção era fortalecida pelo arrebatamento com
o qual apostávamos no futuro; não estávamos alienados a nenhum
interesse definido, porquanto o presente e o passado deviam ser
sempre ultrapassados. Não hesitávamos em contestar todas as coisas
e nós mesmos sempre que a ocasião o solicitava; criticávamo-nos e
condenávamo-nos com desenvoltura, uma vez que toda mudança nos
afigurava um progresso. Como nossa ignorância dissimulava a maior
parte dos problemas que nos deveriam ter inquietado, contentávamo-nos
com essas revisões e imaginávamo-nos intrépidos.
Simone
de Beauvoir, in A força da idade
Distância
Um
cavaleiro e um cachorro
viajam
para a paisagem.
Conseguiram
que esse morro
não
lhes barrasse a passagem.
Conseguiram
um riacho
com
seus goles, com sua margem.
Conseguiram
boa sede.
Constataram:
cai
a tarde.
Sobre
a tarde, cai a noite,
sobre
a noite a madrugada.
Imagino
o cavaleiro
esta
orvalhada e estrelada.
O
pensar do cavaleiro
talvez
o amar, ou nem nada.
Imagino
o cachorrinho
imaginário
na estrada.
Caía
a tarde.
Para
a tarde o cavaleiro
ia,
conforme avistado.
Após,
também o cachorro.
Todos
— iam, de bom grado,
à
tarde do cavaleiro
do
cachorro, do outro lado
— que
na tarde se perderam,
no
morro, no ar, no contado.
Caiu
a tarde.
Guimarães
Rosa
Nossa amiga
Não
é bastante alta para chegar ao botão da campainha.
O
peixeiro presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.
— Foi
a garota que pediu para chamar...
Quando
não é algum transeunte austero, senador ou ministro do Supremo, que
atende à sua requisição.
Com
pouco, a solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu
alcance, a abertura forrada de metal e coberta por uma tampa móvel,
de matéria idêntica: por ali entram as cartas. Os dedos sacodem a
tampa, desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir,
perguntam de dentro:
— Quem
está aí? É de paz ou de guerra?
De
fora respondem:
— É
Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.
Ante
a intimação peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma
coisinha morena, despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo
pão com cocada, mas sempre séria, ar extremamente maduro das
meninas de três anos.
À
força de entrar, sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a
sair, lanchar, dormir na primeira poltrona, praticar pequenos atos
domésticos, dissolveu a noção de residência, se é que não a
retificou para os dicionários do futuro.
— Qual
é a sua casa?
— Esta.
— E
a outra de onde você veio?
—
Também.
—
Quantas casas você tem?
— Esta
e aquela.
— De
qual você gosta mais?
— Que
é que você vai me dar?
— Nada.
— Gosto
da outra.
— Tem
aqui esta pessegada, esta bananinha...
— Gosto
desta casa! Gosto de você!
Não
é gulodice nem interesse mesquinho. Será antes prazer de sentir-se
cortejada, mimada. Esquece a merenda para ficar na sala, de mão na
boca, olhando os pés estendidos, enquanto alguém lhe acarinha os
cabelos.
Nem
tudo são flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina
e Pepino.
Catarina
foi inventada à pressa, para frustrar certa depredação iminente.
Os bichos de cristal na mesinha da sala de estar tentavam a mão
viageira. Pressentia-se o momento em que as formas alongadas e
frágeis se desfariam. Na parede, esquecida, preta, pousara uma
bruxa.
— Não
mexa nos bichinhos.
Mexia.
— Não
mexa, já disse... Em vão.
— Você
está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.
— Que
Catarina?
— Uma
menina de sua idade, igualzinha a você, talvez até mais bonita.
Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar com o
cachorrinho de vidro, a mãe não queria que ela brincasse. Catarina
teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina
virou aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.
A
mão imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede como nos olhos
fixos, grandes, pensativos. Entre os mitos do mundo (entre os seres
reais?), existe mais um, alado, crepuscular, rebelde e decaído.
Pepino
tem existência mais positiva. Circula na rua — a rua é o espaço
entre as duas quadras, repleto de surpresas — geralmente à tarde.
Vem bêbedo, curvado, expondo em frases incoerentes seus problemas
íntimos. Pegador de crianças.
— Vou
embora para minha casa. Você vai me levar.
— Mas
você mora tão pertinho...
— E
Pepino?
—
Pepino não pega ninguém. Ele é
camarada.
— Pega,
sim. Eu sei.
— Pois
eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino.
Você vai ver se ele pega.
— Eu
não vou na festa.
— Você
é quem perde. Vem Elsinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria Helena,
Lourdes, Bárbara, Édison, Careca, João e Adão. Pepino vai dançar
para as crianças. Você, como é uma boba, não toma parte.
— Até
logo!
Sai
voando, a porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o
pequeno vulto desgrenhado.
—
Espere aí, você não tem medo do
Pepino?
— Não.
Estou zangada com você.
Com
a zanga, desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta de ser
acompanhada, para dizer à mãe, quando chega em casa:
— Espia
quem me trouxe.
Volta
meia hora depois, penteada, calçada, vestido limpo.
— Espia
minha roupa nova. Meu sapato branco.
— Mas
que beleza! Onde você vai?
— Vou
na festa.
Para
tomar banho e trocar de vestido, é necessário que se anuncie sempre
uma festa, jamais localizada ou realizada, mas que opera
interiormente sua fascinação. Não há pressa em ir para ela. A
merenda, a conversa grave com pessoas grandes, estranhamente
preferidas a quaisquer outras, o brinquedo personalíssimo com o
primeiro encontro do dia — um carretel, a galinha que salta do
carrinho de feira — fazem esquecer a festa, se não a constituem. E
resta saber se o enganado não será o adulto, que sugere terrores ou
recompensas fantasiosas. Nas campinas da imaginação, esse galope de
formas — será a verdade?
Senta-se
no corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha,
qualquer elemento poetizável, representa para si só a imemorial
história das mães.
—
Comadre, seu filhinho como vai?
— Tá
bom, comadre, e o seu?
— Tá
com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.
— Então
vou dar no meu também.
Perguntas
e respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da mesma boca
inexperiente. O objeto que serve de filho é embalado com seriedade.
A doença existe, existem os sustos maternais. Mas tudo se desfaz, se
acaso um intruso vem surpreender a criação, tirada em partes iguais
da vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe antiga
tornar invisível seu filho, ante os soldados de Herodes.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos de aprendiz