quarta-feira, 31 de maio de 2017

Escrever (II)

Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva.
Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação.
Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Que pena que só sei escrever quando espontaneamente a “coisa” vem. Fico assim à mercê do tempo. E, entre um verdadeiro escrever e outro, podem-se passar anos.
Lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

Enrique Banchs

Um homem cinza. A sorte nua
fez que não o quisesse uma mulher;
essa história é a história de cores qualquer
mas de quantas há sob a lua
é a que mais dói. Terá pensado
em se tirar a vida. Não sabia
que essa espada, essa amargura, essa agonia,
eram o talismã, que lhe foi dado
para alcançar a página que vivia
além da mão que a escrevia
e do alto cristal de catedrais.
Cumprido seu labor, foi obscuramente
um homem que se perde entre a gente;
nos deixou coisas imortais.
Jorge Luis Borges

Detenção (trecho)


Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal. A cozinheira da Senhora Grubach, a dona da pensão, que lhe levava o pequeno-almoço todos os dias por volta das oito horas, não apareceu desta vez. Isto nunca tinha acontecido. K. aguardou mais um pouco; apoiado na almofada da cama, viu a velha senhora que morava em frente da sua casa a observá-lo com uma curiosidade completamente inacostumada; mas depois, sob o efeito simultâneo da surpresa e da fome, tocou a campainha. Bateram logo à porta e entrou um homem que ele nunca vira naquela casa. Era esbelto e, no entanto, de constituição sólida, trajava uma roupa preta muito justa que, à semelhança das roupas de viagem, possuía diversas pregas, algibeiras, botões e um cinto, em consequência do que, sem que se conseguisse designar-lhe o uso, parecia particularmente prático.
Quem é o senhor? – perguntou K., soerguendo-se na cama.
Mas o homem ignorou a pergunta, como se fosse obrigatório aceitar a sua aparição e respondeu simplesmente:
Chamou alguém?
Anna deve trazer-me o meu pequeno-almoço – disse K. e começou por tentar, conservando o silêncio, graças a um esforço de atenção e de reflexão, descobrir quem podia ser aquele homem.
Mas este último não se expôs muito tempo ao seu olhar; voltou-se para a porta e entreabriu-a para dizer a alguém que, visivelmente, se encontrava mesmo ali atrás:
Ele quer que Anna lhe traga o pequeno-almoço.
Um riso breve ecoou então na sala contígua; ao ouvi-lo, ficava-se com a certeza de que várias pessoas tinham participado nele. Embora o desconhecido não pudesse revelar assim nada que ele não soubesse já, insistiu em dizer a K. num tom de declaração:
É impossível.
Seria a primeira vez – disse K. saltando da cama para enfiar rapidamente as calças. – Vou ver que espécie de gente se encontra aqui ao lado, e como é que a Senhora Grubach me vai explicar este incômodo.
Para dizer a verdade, ocorreu-lhe logo ao espírito que não deveria ter dito isto em voz alta, e que reconhecia assim de certo modo um direito de olhar ao desconhecido; mas isto não lhe parecia agora muito importante. No entanto, foi assim que este se apercebeu das suas intenções, porque disse:
Não prefere permanecer aqui?
Não quero permanecer aqui nem que o senhor me dirija a palavra, enquanto não se tiver apresentado.
Foi com boa intenção – disse o desconhecido ao mesmo tempo que abria a porta.
Na sala contígua, onde K. entrou mais devagar do que desejava, tudo parecia, à primeira vista, exatamente como na véspera à noite. Era o salão da Senhora Grubach, talvez houvesse hoje naquela divisão sobrecarregada de móveis, de napperons, de porcelanas e de fotografias, um pouco mais de espaço do que habitualmente, mas não se dava por isso imediatamente, ainda menos porque a diferença principal resultava da presença de um homem sentado próximo da janela aberta, com um livro, e que erguia agora os olhos.
Deveria ter permanecido no seu quarto! Franz não lho disse?
Sim, e o que é que o senhor quer? – replicou K., cujo olhar se desviou do recém-chegado para o denominado Franz, que tinha ficado no limiar da porta, regressando, depois, novamente ao outro.
Através da janela aberta, ainda se avistava a velha senhora que, com uma curiosidade deveras senil, se havia aproximado da janela, agora mesmo em frente, para continuar a observar tudo.
Vou dizer à Senhora Grubach... – principiou K., parecendo fugir à influência dos dois homens, todavia a boa distância dele, e quis avançar.
Não – disse o homem próximo da janela, atirando o livro para cima de uma mesa e levantando-se. – O senhor não tem o direito de ir-se embora, porque está detido.
Tem todo o ar disso – retorquiu K. – Mas então porquê? – perguntou em seguida.
Não fomos encarregados de lho dizer. Vá para o seu quarto e espere. O processo judicial acaba de ser instaurado, e saberá tudo na altura oportuna. Ultrapasso a minha missão ao falar-lhe tão amistosamente. Mas espero que ninguém, exceto Franz, me ouça, e aliás também ele o trata simpaticamente, à revelia do regulamento. Se continuar a ter tanta sorte como para a designação dos seus guardas, pode ficar sossegado.
K. queria sentar-se, mas reparou agora que nada mais havia na sala, além da cadeira perto da janela.
Em breve compreenderá quanto tudo isto é verdadeiro – disse Franz avançando na sua direção ao mesmo tempo que o outro homem.
Este último, em particular, era nitidamente mais alto do que K. e não parava de bater-lhe no ombro. Ambos examinaram a camisa de noite de K. e disseram que teria agora de usar uma muito menos delicada, mas que eles guardariam aquela com todo o resto da sua roupa, e lha devolveriam se o seu caso terminasse bem.
Mais vale dar-nos as suas coisas do que deixá-las no depósito – disseram eles –, porque no depósito muitas vezes desaparecem e, além disso, vendem todas as coisas decorrido um certo tempo, sem se preocuparem que o respectivo processo esteja ou não concluído. E como estes processos se eternizam, sobretudo nestes últimos tempos! Claro que acabará por receber do depósito o produto da venda, mas por um lado esta importância é já mínima em si, porque no momento da venda não é o montante da oferta que é determinante mas o do suborno; por outro lado, a experiência mostra que o produto destas vendas diminui ao passar de mão em mão e ao longo dos anos.
K. não prestou muita atenção a este discurso; ligava pouco valor ao direito que era talvez ainda o seu de dispor das suas coisas; interessava-lhe muito mais obter esclarecimentos acerca da sua situação; mas na presença daquela gente nem sequer podia refletir, a barriga do segundo guarda – porque só podiam ser guardas – empurrava-o constantemente, quase de modo amigável; contudo, quando erguia os olhos, avistava um rosto muitíssimo mal adequado àquele corpo rechonchudo: seco, ossudo, nariz forte, torcido de um lado, e que trocava por cima dele sinais de conivência com o outro guarda. Que espécie de gente era então esta? De que falavam? A que administração pertenciam? K. vivia no entanto num estado regido pelo Direito, a paz reinava em todo o lado, todas as leis estavam em vigor, quem ousava invadir-lhe a casa? Tinha sempre tendência para levar as coisas de ânimo leve, tanto quanto possível, para só acreditar no pior quando o pior acontecia, para não tomar nenhuma precaução relativamente ao futuro, mesmo quando estava cercado de ameaças. Mas aqui, esta atitude não lhe parecia ser a adequada; claro que se podia considerar este caso como uma brincadeira, uma brincadeira grosseira que, por motivos desconhecidos, talvez porque hoje era o dia do seu trigésimo aniversário, os seus colegas do banco lhe tinham feito, era possível, claro: talvez lhe bastasse rir de certa maneira na cara dos guardas, e eles ririam com ele, talvez fossem homens de recados da esquina da rua, tinham um pouco o ar disso – contudo, quase desde o instante em que avistara o guarda Franz, decidira firmemente não desperdiçar a mínima vantagem que pudesse ter sobre esta gente. O risco de que, depois, dissessem que ele não tinha compreendido a brincadeira, era totalmente desinteressante do seu ponto de vista; em contrapartida – sem que, aliás, tivesse por hábito extrair a lição das suas experiências –, recordava-se de certos casos, em si sem importância, nos quais, ao contrário dos amigos, havia adotado cientemente uma conduta pouco prudente, sem de modo algum encarar as possíveis consequências, e nos quais fora castigado pelo resultado. Isto não devia voltar a acontecer; em todo o caso, desta vez, se era uma comédia, ora bem, desempenharia nela o seu papel.
Por enquanto ainda estava livre.
Franz Kafka, in O processo

O tirso



A Franz Liszt
Que é um tirso? No sentido moral e poético, é um símbolo com que os sacerdotes e sacerdotisas celebram a divindade da qual são os intérpretes e os servidores. Mas, fisicamente, é apenas um pau, um simples pau, uma estaca de lúpulo, ou um esteio de vinha, seco, duro e direito. Em volta desse pau, em meandros caprichosos, divertem-se e brincam hastes e flores, umas sinuosas e fugidias, outras pendendo como sinos ou taças derrubadas. Uma glória fantástica jorra dessa complexidade de linhas e de cores, pálidas ou brilhantes. Dir-se-ia que a linha curva e a espiral fazem a corte à linha reta e dançam ao redor de uma silenciosa adoração. Dir-se-ia que todas essas corolas delicadas, todos esses cálices, explosões de aromas e de cores, executam um místico fandango em torno do bastão hierático. Todavia, que imprudente mortal ousará decidir se as flores e os pâmpanos foram feitos para o bastão, ou se o bastão é apenas o pretexto para mostrar a beleza dos pântanos e das flores? O tirso é a representação da vossa maravilhosa dualidade, senhor poderoso e venerado, caro Bacante da Beleza misteriosa e apaixonada. Ninfa alguma, exasperada pelo invencível Baco, sacudiu o tirso sobre as cabeças das companheiras, enlouquecidas com a energia e o capricho com que agitais o vosso gênio sobre os corações dos vossos irmãos. O bastão é a vossa vontade, reta, firme e inabalável. As flores, o passeio de vossa fantasia em torno de vossa vontade. É o elemento feminino executando em volta do macho as suas prestigiosas piruetas. Linha reta e linha arabesca, intenção e expressão, tensão da vontade, sinuosidade do verbo, unidade do fim, variedade dos meios, amálgama todo-poderoso e indivisível do gênio: que analista terá a detestável coragem de vos dividir e separar? Caro Liszt, através das brumas, para além dos rios, acima das cidades onde os pianos cantam a vossa glória, onde a imprensa traduz a vossa sabedoria, em qualquer parte que vos encontreis, nos esplendores da cidade eterna ou nas brumas dos países sonhadores que Cambrinus consola, improvisando canções alegres ou de inefável dor, ou confiando ao papel vossas meditações abstrusas, cantor da Volúpia e da Angústia eternas, filósofo, poeta e artista, eu vos saúdo na imortalidade!
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

O casal da mesa 9

Eles não têm dia certo pra aparecer, não têm hora pra chegar, não têm hora pra sair.
Não têm amigos nem inimigos. (Até onde se sabe.)
Não têm a menor importância.
Transitam pelo salão o mínimo possível (estritamente para ir ao banheiro) e demonstram certa cerimônia com o ambiente.
Até parece que não é com eles a alegria das moças, a boa vontade dos maridos, o movimento dos garçons, os espelhos nas paredes, a aflição dos abandonados, a euforia dos bêbados, a solidão dos velhinhos, a opinião dos outros, a sabedoria alheia, as discussões políticas, o carpete velho e verde, o barulho da coqueteleira, os celulares que tocam, os brincos, os anéis, as pulseiras, um ou outro olho que brilha, alguns casais que trocam beijos, as piadas dos grupos, as risadas, as garrafas de champanhe que estouram, a mesma música de sempre.
Na verdade, eles não têm nada a ver com aquele bar.
Ficam sempre na mesa 9, no canto deles, e logo já estão envoltos pela fumaça que produzem, embalados num assunto qualquer, levemente embriagados no começo.
Ele fala, ela responde, ou vice-versa.
Riem muito.
Às vezes.
Às vezes ficam graves. Pensativos. Circunspectos.
Algumas noites bebem mais, noutras noites bebem menos.
De vez em quando pedem um prato. Ou dois. Mas não pedem sobremesa. Um cafezinho, um licor, a conta, só isso. Sempre deixam alguma gorjeta.
Que mais se pode dizer deles?
Não muito.
Atravessam a porta de vidro que separa o bar do resto do mundo e deixam a vida lá fora.
Aí o maître avisa ao garçom: “O casal da mesa 9!”, e o garçom se prepara, traz uma água, uma marguerita, um uísque com pouco gelo.
Tem semana que eles vêm no sábado.
Tem semana que vêm na terça.
Tem semana que eles nem aparecem.
O que será que estão fazendo?
Será que ela tem uma filha? Será que ele tem talento? Será que são namorados? Amantes? Será que faz diferença? Quem sabe têm uma família? Talvez tenham desavenças.
Pode ser que ele seja médico, engenheiro, importante, louco, artista, poeta, alegre, triste, ciclotímico, centroavante, lunático, remador, excelente pianista, fanático por bolas de gude, descendente de italianos, comunista, paulista, flamengo doente.
E se ela for fluminense? E se for chata? Estressada. Mal-humorada. Tensa. E se for bem-sucedida? Devota de Santa Terezinha? Será que ela gosta de gatos? Será que tem sinusite? E se for especialmente romântica? E se odiar poesia? E se for um amor de pessoa? E se ele for embora um dia?
Quem sabe?
Sabe-se deles apenas que chegam sozinhos e sentam na mesa 9 sempre.
Aí começam: sonho, riso, abraço, lembrança, novidade, beijo, devem ser muito felizes.
Isso é o que se imagina. Mas ninguém pode ter certeza.
Olhando assim parece que eles não têm procedência nem destino.
Não têm nada além daquele instante.
São um durante uma imagem, um enquanto, ali dentro.
Se não estão na mesa 9, é como se não existissem.
Será que a vida deles continua da porta de vidro pra fora, nos outros dias da semana?
Será que eles existem mesmo?
Ou será que são só delirium tremens?
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

terça-feira, 30 de maio de 2017

Naturalidade

Eu e o peixe no aquário temos nenhuma naturalidade.”
Guimarães Rosa, in Aquário

A guerra

 
A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Pai

Rupi Kaur, in Outros jeitos de usar a boca

Filósofos: estranhos, engraçados e loucos

Deveria cortar minhas unhas dos pés. Meus pés estão me machucando há umas duas semanas. Sei que são as unhas dos pés, mas não consigo achar tempo para cortá-las. Estou sempre atrasado, não tenho tempo para nada. Claro, se eu pudesse ficar longe do hipódromo teria tempo de sobra. Mas toda a minha vida tem sido uma questão de lutar por uma simples hora para fazer o que eu quero fazer. Tem sempre alguma coisa atrapalhando a minha chegada a mim mesmo.
Devo fazer um esforço gigante para cortar minhas unhas dos pés hoje à noite. Sim, eu sei que tem pessoas morrendo de câncer, que tem pessoas dormindo nas ruas, em caixas de papelão, e fico falando em cortar minhas unhas. Ainda assim, provavelmente estou mais perto da realidade do que um panaca que assiste a 162 jogos de baseball por ano. Estive em meu inferno, estou no meu inferno, não me acho superior. O fato de estar vivo e com 71 anos e falando sem parar sobre minhas unhas dos pés é milagre suficiente pra mim.
Tenho lido os filósofos. São uns caras realmente estranhos, engraçados e loucos. Jogadores. Descartes veio e disse: é pura bobagem o que esses caras estão falando. Disse que a matemática era o modelo da verdade absoluta e óbvia. Mecanismo. Então, Hume veio com seu ataque à validade do conhecimento científico causal. E depois veio Kierkegaard: “Enfio meu dedo na existência – não tem cheiro de nada. Onde estou?”. E depois veio Sartre, que sustentava que a existência é absurda. Adoro esses caras. Embalam o mundo. Será que tinham dor de cabeça por pensar dessa forma? Será que uma torrente de escuridão rugia entre seus dentes? Quando você pega homens como esses e os compara aos homens que vejo caminhando nas ruas ou comendo em cafés ou aparecendo na tela da tv, a diferença é tão grande que alguma coisa se contorce dentro de mim, me chutando as tripas.
Provavelmente, não vou fazer as unhas dos pés esta noite. Não estou louco, mas também não estou são. Não, talvez eu esteja louco. De qualquer forma, hoje, quando a luz do dia aparecer e quando forem duas da tarde, acontecerá o primeiro páreo do último dia de corridas em Del Mar. Joguei todos os dias, em todos os páreos. Vou dormir agora, minhas unhas como lâminas rasgando os lençóis novos. Boa noite.
Charles Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

Bom tempo, sem tempo

Não chovia, meses a fio. Ou chovia demais. As plantas secavam, os animais morriam, os moradores emigravam. As plantas submergiam, os animais morriam, as pessoas não tinham tempo de emigrar. Assim era a vida naquele lugar privilegiado, onde medrava tudo para todos, havendo bom tempo. Mas não havia bom tempo. Havia o exagero dos elementos.
O mágico chegou para reorganizar a vida, e mandou que as chuvas cessassem. Cessaram. Ordenou que a seca findasse. Findou. Sobreveio um tempo temperado, ameno, bom para tudo, e os moradores estranharam. Assim também não é possível, diziam. Podemos fazer tantas coisas boas ao mesmo tempo que não há tempo para fazê-las. Antes, quando estiava ou chovia um pouco — isto é, no intervalo das grandes enchentes ou das grandes secas —, a gente aproveitava para fazer alguma coisa. Se o sol abrasava, podíamos fugir. Se a água vinha em catadupa, os que escapavam tinham o que contar. Quem voltasse do êxodo vinha de alma nova. Quem sobrevivesse à enchente era proclamado herói. Mas agora, tudo normal, como aproveitar tantas condições estupendas, se não temos capacidade para isto?
Queriam linchar o mágico, mas ele fugiu a toda.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos Plausíveis

segunda-feira, 29 de maio de 2017

A terra pode nos comer quando quiser

Um pontinho vem crescendo, pouco a pouco, da lonjura. Nesta estepe gelada, sem pasto nem marcas, d e onde até os corvos fogem, a luz queima os olhos. A puna é tão alta que se pode tocar o céu com as mãos: a luz cai de muito perto, e arranca da pedra lisa brilhos de cor púrpura ou de cor de enxofre.
O pontinho vai se convertendo, lentamente, em uma mulher que corre. Usa um chapéu preto como os de Potosi e um chale vermelho, tão amplo como sua vasta saia. Ela corre deslizando no meio dessas desolações que não começam nem terminam nunca, banhada pela luminosidade que sai do chão como se estivesse atrasada para chegar a algum encontro.
Pelo que me contaram aqui, o yatiri virou yatiri sem querer ou decidir. Foi escolhido. E nem as ovelhas viram isso – não havia homens ou animais: não havia ninguém. Uma voz o chamou do alto da noite quando ele ainda não era yatiri e ele subiu atrás da voz caminhando pela montanha até chegar lá em cima, muito além das nuvens. Sentou ao pé da pedra e esperou.
Então caiu o primeiro raio e ele foi partido em pedaços. Depois caiu o segundo raio e os pedaços se reuniram, mas ele não podia ficar em pé. Aí caiu o terceiro raio que o soldou.
Assim foi quebrado e construído o yatiri, morto e renascido, e assim foi sempre, pelo que me contaram aqui, desde que Viracocha criou o mundo e o raio que cai, as pedras que despencam, os rios que arrasam plantações e currais, a inundação e a seca, as epidemias e os terremotos. (E desde que criou a nós, os homens, ou nos sonhou, porque aí ele já estava dormindo.)
Uma cortina de água apaga o vão alto e negro que separa os picos altos no horizonte. Um relâmpago atravessa esse vão. Está chovendo para os lados de Chayanta.
Debaixo da terra, metidos nas grotas e nas fendas, os homens perseguem os filões. Que aparecem, escorrem, se oferecem, se negam: é uma víbora cor de café e em sua carne brilha, trêmula, a cassiterita. Uma caçada que se faz em três turnos, bem no meio da montanha. E onde participam milhares de homens armados de cartuchos de dinamite ou de anfo: essa manteiga que também se usa para brigar em cima da terra e que os capatazes desconfiam, quando veem os pacotes que os mineiros costumam levar debaixo de seus casacões de trabalho, que são amarelos – de um amarelo raivoso.
Um rato agarrado num buraco fundo: uma opressão entre o peito e as costas, uma dor que caminha pelo corpo: a vingança do pó de silício: antes da tosse e do sangue e da aniquilação temporã, os perseguidores do filão perdem o gosto da bebida e da comida e perdem o cheiro das coisas.
Llallagua: deusa da fecundidade e da abundância. Llallagua: um grande depósito de lixo cercado de potes de chicha. Alguém cruza a ponte sobre o rio Seco, arrastando um carrinho de mão cheio de cachorros mortos, com as bocas abertas.

Tenho, tenho, diz
e não tem nada
nem um tostão no bolso
para os cigarros...

O rio é um leito cinza e escasso que corre entre as pedras. Todas as águas de Llallague acabam parecidas com a areia espessa que brota da boca da mina e todas as ruelas de Llallagua, escorregadias de barro, levam para o lixo.
Aqui, o sol incendeia, o vento arrebenta, a sombra gela, o frio fere, a chuva cai como pedradas. Durante o dia, o inverno e o verão cortam os corpos em dois – ao mesmo tempo.
À luz de velas, uma mulher dança huayno no chão de terra. As várias saias da mulher flutuam e a longa trança negra voa para trás e para a frente, e ela acaricia a trança com os dedos.
Alguém segreda: “A Hortênsia tem amor. Mas só por um tempinho: só para um tempinho. Vai oferecer maravilhas para ele. Mas depois...”
Todos bebem:
Aqui! Aqui! Seco, fundo seco, mostrem os copos! Sirva-se, sirva-se, não seja galinha, vamos ver!
A gente tem de fuzilá-los, porra, todos, todinhos, porra!
Um trago por isso! Um brinde pelos que dançam! Mas que seja forte!
Na nuca, porra, por tanta encheção de saco! E a tiros, que é melhor! É, além disso, mais pedagógico, porra!
Um brinde por Camacho! Brindemos por merda nenhuma! Eu estou na rua, nesta merda de rua!
El Lobo tem duas mulheres, mas todos sabem que uma, a corcundinha, só serve como amuleto, e que a outra quer tirar a roupa toda vez que fica bêbada.

Cantarei, e só,
Dançarei, e só
não sobrou nem
água para mim.

Quem trabalha nas manhãs de segunda-feira? Os distraídos e os suicidas. Nem os padres. Meteram duas lhamas brancas, vivas, no fundo do grotão. O yatiri afundou no pescoço delas seu punhal de prata e bebeu o sangue quente na concha de sua mão, e depois ofereceu sangue à terra, porque a terra pode nos comer quando quiser. Com um chifre de caça, chamou os inimigos dos mineiros e levou-os para longe.
Irmãos, companheiros. Estamos oferecendo boa presa para que apareçam bons filões nas minas, e a sorte boa contra os desmoronamentos e contra os caminhos perdidos. Agora estamos brindando pelos tios e tias e neste instante eles estão fazendo o mesmo por nós. Eles estão enchendo a cara no inferno, pela nossa saúde.
Os mineiros, sentados em roda, olhavam – sem fixar os olhos – para o tio, em seu trono iluminado pela luz das velas, suas sombras espantosas nas paredes das grutas. Nas vasilhas, aos pés do tio, a aguardente ia baixando de nível e desaparecendo, as vísceras das lhamas sofriam dentadas invisíveis e as folhas de coca se convertiam em polpa babada. O charuto virava cinza na boca do diabo de barro.
As duas lhamas que sacrificamos estão sendo devoradas pelos diabos, e todas as virgens, junto com eles, também estão comendo a carne sagrada. E amanhã, ao amanhecer, vamos recolher os restos que sobrarem, e então vamos comer nós. E durante sete dias ninguém entrará aqui e ninguém trabalhará.
Ainda que ele acreditasse, como todos, que tempos idos não voltam mais, houve alguém que desejou que aparecesse o Tio em pessoa, trabalhando ao meio-dia, batendo com um martelo as paredes de uma lavra abandonada, uma lavra falsa, e batendo na pele de don Simón Patiño, que tivera a sorte e o dinheiro e o poder. Mas o que eles viam, quando fechavam os olhos, eram os homens mortos a bala, bêbados ainda e luminosos pelas fogueiras de São João.
Me perguntavam como era o mar. Eu contava que na boca dos pescadores o mar é sempre mulher e se chama la mar. Que é salgado e muda de cor. Contava para eles como as grandes ondas vêm rodando com suas cristas brancas e se levantam e se estraçalham contra as rochas e caem revolvendo-se na areia. Contava para eles da bravura do mar, que não obedece a ninguém a não ser a lua, e contava que no fundo ele guarda barcos mortos e tesouros de piratas.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

Brincar com palavras

Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com palavras tipo assim:
Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
e nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver assim:
eu via a manhã pousada sobre as margens do rio
do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação:
Eu hoje vi um sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo
para sair daquele lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das águas e dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos
enriquecem a poesia.
Manoel de Barros

Memórias da infância

Pena que a vida seja tão curta. Há tantas coisas bonitas para serem vistas! Acho que a noite estava chegando quando Robert Frost escreveu... Ah! Mas antes de ler... Já disse que os poetas deveriam aprender dos compositores. Os compositores indicam, no início da partitura, o andamento e o sentimento daquela música. Poesia é música. Portanto, os poetas deveriam fazer o que fazem os compositores. Frost não fez. Eu farei. Assim, coloco no início do seu poema: lentamente, nostalgicamente... Agora podemos ler.

Os bosques são belos, sombrios, fundos.
Mas há muitas milhas a andar e muitas promessas a guardar
antes de se poder dormir,
sim, antes de se poder dormir.

Uma aluna minha chorou ao ouvir esses versos pela primeira vez. A dor se encontra nesta palavrinha mas. Sim, os bosques são belos, cheios de mistérios... Convidam. O poeta ouve a sua voz. Mas não aceita o convite. E explica: “Não posso. É crepúsculo. A noite se aproxima. Há urgências que me chamam: milhas a andar, promessas a guardar, antes de se poder dormir”. Antes de se poder dormir? Aquela cena será uma metáfora da vida que chega ao fim, como o dia? E o dormir – será a morte? É preciso caminhar rápido. O tempo é breve. Não há tempo para atender a todos os convites da beleza à beira do caminho. A vida é breve. Que pena... Ravel se lamentava: “Há tantas músicas a serem escritas...” Eu acrescento: Há tantos poemas a serem lidos!
Os desencontros da vida fizeram com que eu só descobrisse a poesia ao entardecer. Quantos poemas eu não li! Mas agora o tempo não dá. Sinto inveja de Murilo Mendes. Ao lê-lo, tenho vislumbres dos poemas que ele leu e eu nunca lerei, dos quadros que ele viu e eu nunca verei. Sinto a mesma coisa lendo Bachelard. Homens afortunados, encontraram-se com a poesia quando eram ainda crianças! Que lamentável falha em nosso sistema educativo, em que o prazer da poesia não se encontre entre as exigências para se ingressar na universidade! E, no entanto, Norbert Wiener afirmou que existe mais comunicação num poema de Keats que num relatório científico!
Releio o capítulo “Os devaneios voltados para a infância” do maravilhoso livro A poética do devaneio, de Bachelard. Ah! Como os terapeutas e os educadores ficariam mais sábios se lessem esse texto maravilhoso. Compreenderiam melhor as crianças se se entregassem aos seus próprios devaneios de criança! São tantos os poetas que Bachelard cita e que desconheço! Bem que gostaria de ter tempo para conhecê-los. Mas não posso. Já anoitece. Eu nunca havia ouvido este nome Henri Bosco. Mas agora, depois de ler dois pequenos fragmentos, eu já o amo. Porque ele põe palavras nos meus sentimentos. Falando sobre sua infância, ele diz: “Eu retinha com uma memória imaginária toda uma infância que ainda não conhecia e que, no entanto, reconhecia!” Para se conhecer a alma de uma criança, é preciso abandonar a memória biográfica e entrar na imaginação, aquilo que nunca foi. Como é isso, não conhecer e, no entanto, re-conhecer? Os poetas sabem que é assim. Na mais bela declaração de amor jamais escrita, Fernando Pessoa diz:

Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.

Sim, meu amor por ti já estava em mim, antes que te conhecesse. Então, eu te conhecia sem o saber! Agora, que te encontrei, re-conheci o rosto que eu já amava sem saber. Tu, minha amada, já existias em mim desde antes do começo dos mundos!”
A amada morava no amante numa memória anterior à história, aquela mesma memória na qual santo Agostinho encontrou o seu Deus. Assim são as memórias da infância. Elas são anteriores à infância real. São fantasias felizes.
Assim Bosco podia escrever: “No meio de vastas extensões despojadas pelo esquecimento, luzia continuamente essa infância maravilhosa que me parecia ter inventado outrora...” É preciso esquecer os fatos para que as essências apareçam.
Ao reler o que escrevi, tive medo de que não estivesse claro. Mas talvez até fosse bom que não estivesse claro. A clareza nos mantém ligados ao texto, o que inibe a fantasia. O pensamento, como os olhos, se esforça mais em meio às neblinas... Mas ainda sou vítima dos antigos hábitos de professor. Desejo retirar as neblinas... Assim, vou tentar explicar.
Já falei em outros lugares sobre Angelus Silesius, o místico que escrevia em forma poética. Um dos seus poemas diz assim: “Temos dois olhos. Com um nós vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro nós vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem”. Dois olhos, cada um deles tem uma memória diferente. Na memória do primeiro olho estão guardadas, numa infinidade de arquivos, as informações sobre o mundo de fora, coisas que realmente aconteceram. Basta que eu diga o nome da informação desejada para que o arquivo se abra e eu me lembre. É assim que funcionam os computadores. Nós, em muitos aspectos, nos parecemos com eles. Mas as memórias do segundo olho são diferentes. E isso porque elas moram na alma. E a alma é uma artista. Artistas não aceitam a realidade. Como disse o filósofo Ernst Bloch: “O que é não pode ser verdade.” Ou, no dizer do poeta Manoel de Barros: “Deus dá a forma: o artista desforma...” Imagine um ceramista. Trabalha com a argila. Argila é coisa sem sentido, sem beleza. Aí ele, artista, toma a argila e com suas mãos lhe dá a forma de beleza que sua fantasia pede. Pois é isso que faz a alma: ela toma as memórias do primeiro olho como se fossem argila e lhes dá a forma que o coração pede. Por oposição às memórias do primeiro olho, que são exteriores a nós, as memórias do segundo olho são partes de nós mesmos. Quando as recordamos, o corpo se altera: ele ri, chora, brinca, sente saudades, medo, quer voltar – às vezes para pegar no colo aquela criança amedrontada. E nem sabemos se foi daquele jeito mesmo ou se o recordado é uma fantasia, criada pela alma. Mas, para a alma, isso não importa.
Meu amigo Jether Ramalho me contou uma dessas memórias. Ele, menino, há mais de setenta anos. Com seus pais e irmãos. Estão no convés de um navio. No cais, os amigos e irmãos da igreja acenam adeus e cantam: “Deus vos guarde pelo seu poder...” Estão deixando o Brasil para se mudar para Portugal. O navio apita seu apito rouco e triste. Ouve-se mais forte o barulho das máquinas. O navio despega-se do cais. Abre-se o espaço entre o cais e o navio, o espaço da ausência. “Todo cais é uma saudade de pedra!” O navio vai se distanciando. As pessoas com seus lenços brancos vão ficando pequenas. E as vozes, aos poucos, vão se tornando inaudíveis...
Essa cena está fora do tempo, paralisada. Não tem antecedentes. Não tem consequentes. Ela aparece pura e eterna na memória, como se fosse um belo quadro. Ou um sonho que se repete. E basta que ela seja lembrada para que a alma deseje voltar. Não é parte de um passado. É sempre presente.
Essas reflexões me vieram no meu esforço de recuperar o meu tempo perdido. Quero revisitar o meu passado para contar... Mas percebi que a minha memória, nesse esforço, não me contava uma história, uma série ordenada de eventos acontecidos que poderiam até se transformar numa biografia. Pois não é isso que é uma biografia? Um relato de coisas acontecidas? Ah! Como o Riobaldo era sábio. “Contar é muito dificultoso”, ele dizia.

Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice.

Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, princípio, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez seja esse o jeito de se escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente