sexta-feira, 31 de março de 2017

A armadilha da complexidade (trecho)

No início de 2010, o arquiteto americano Bryan Berg terminou o que ainda é considerado o maior castelo de cartas do mundo. Com mais de quatro mil baralhos, Berg construiu uma imponente réplica do Venetian Macao-Resort-Hotel, na China, com três metros de altura e nove de largura. Ao observar aquela incrível estrutura, vi ali uma espécie de metáfora do mundo altamente complexo e interligado em que vivemos hoje. Um camundongo correndo ou o espirro inoportuno de um visitante poderiam, em um segundo, botar abaixo o castelo que o americano levou 44 dias para erguer. O mesmo vale para as fragilíssimas infraestruturas das quais dependemos em nossa vida diária.
Todo o mundo industrializado está à mercê de uma injeção contínua de tecnologia cada vez mais avançada. Além disso, os sistemas que sustentam nosso estilo de vida estão completamente entrelaçados: a internet depende da rede elétrica, que por sua vez precisa do abastecimento de energia do petróleo, carvão mineral e fissão nuclear, que também depende de tecnologias de produção que, da mesma forma, exigem eletricidade. E assim nos encontramos — um sistema apoiado sobre outro que também se equilibra sobre outro, tudo interligado. A sociedade moderna é exatamente como o “cassino de Berg”, em que cada nova carta se aloja sobre as outras. Um contexto bastante propício para que aquele ratinho em disparada esbarre numa carta de baixo e derrube a estrutura inteira.
Evidentemente, a fragilidade da construção é o que valoriza um castelo de cartas. Isso é ótimo — como passatempo. Mas quem deseja basear todo o seu estilo de vida num castelo de cartas? Imagine Nova York, Paris ou Moscou sem energia elétrica por um período indeterminado. Ou, pensando no longo prazo, o que aconteceria se não surgissem novas tecnologias durante uma década? O que seria do nosso padrão de vida?
Boa pergunta. O que acontece com nosso padrão de vida quando a sedutora música da tecnologia silencia? Uma pergunta ainda mais instigante: o que poderia interromper a música? Como todas as perguntas fundamentais, essa também admite respostas multifacetadas, mas todas se baseiam num motivo fundamental para explicar como e por que a tecnologia pode parar. Nas páginas deste livro, afirmo que a música para, na verdade, porque o agente de mudança, o evento X, puxa o cabo da tomada. E esses “eventos extremos”, surpreendentes e impactantes, que desestruturam sistemas, decorrem, eles próprios, da complexidade crescente das infraestruturas tecnológicas e de outras criações humanas, as mesmas infraestruturas que sustentam o que poderia ser chamado, num eufemismo, de vida “normal”. Parte da questão aqui é demonstrar de forma indiscutível que essa suposta normalidade foi conquistada ao elevado custo de uma grande vulnerabilidade e da possibilidade de um colapso nas mãos de uma gama cada vez mais ampla de eventos X. Como se não bastasse, todos esses possíveis agentes de mudança têm a mesma raiz: um conhecimento limitadíssimo dos assombrosos e ilógicos meandros dos sistemas complexos.
Passei a maior parte da minha vida profissional explorando a complexidade em organizações como a RAND Corporation, o Santa Fe Institute e o International Institute for Applied Systems Analysis (IIASA). No ano de 1970, época em que obtive meu Ph.D. em matemática e comecei a pesquisar sistemas complexos, o mundo era um lugar muito diferente. Os telefones possuíam discos giratórios, os computadores custavam milhões de dólares, metade do mundo estava fechada para o livre-comércio e para viagens, e qualquer um, mesmo sem um diploma em engenharia elétrica, conseguia consertar seu velho Chevrolet ou Volkswagen. Aliás, ninguém precisa estudar teoria de sistemas para ver que nossas vidas e nossas sociedades nunca foram tão dependentes de tecnologias cada vez mais obscuras. Grande parte dessa dependência se deve à crescente complexidade da própria tecnologia. A cada ano que passa, a complexidade de nossos dispositivos e infraestruturas, desde automóveis até as finanças, redes elétricas e cadeias de abastecimento alimentar, cresce de maneira exponencial. Uma parcela desse aumento tem como objetivo garantir um nível de solidez e proteção contra falhas de sistemas, que em geral funciona apenas para abalos relativamente inexpressivos e previsíveis. Mas a maior parte não se justifica. Quem de fato precisa de uma máquina de café expresso com um microprocessador? Alguém precisa escolher entre dezessete variedades de ração para cachorro em promoção no supermercado? Será que é necessário fabricar carros que dependam de grossos manuais do proprietário para explicar como funcionam os bancos elétricos, o sistema de GPS e outras parafernálias incluídas?
Esses pequenos exemplos cotidianos de aumento de complexidade costumam ser vendidos como histórias de sucesso tecnológico. Mas serão mesmo? Seria possível alegar, com muita propriedade, que o caso aqui é de fracasso tecnológico, sucesso nenhum, se contabilizarmos o tempo que gastamos analisando os ingredientes das rações de cachorro disponíveis antes de fazermos uma escolha que é mais ilusória do que real ou se levarmos em consideração a frustração que sentimos ao folhear o manual do proprietário em busca da página que explica como acertar a hora no relógio do nosso carro novo. Mas adicionais indesejados/desnecessários num carro novo ou diferenças quase imperceptíveis no supermercado são aborrecimentos pequenos, até mesmo ridículos. (In)felizmente, não precisamos ir muito longe para encontrar casos de excesso de complexidade que realmente preocupam. Basta ler a primeira página de qualquer jornal diário. Encontraremos manchetes sobre o mais recente capítulo da contínua saga do instável sistema financeiro global, o fracasso dos mecanismos de segurança em usinas nucleares e/ou a inviabilidade das negociações sobre tarifas e comércio destinadas à reestruturação do processo de globalização. Essas histórias já seriam suficientes para provocar arrepios em qualquer ser humano. Ainda mais assustador, entretanto, é o fato de que aquilo que se divulga publicamente ainda é pouco em comparação ao que de fato ocorre, como as páginas deste livro comprovarão.
A ciência da complexidade como disciplina reconhecida existe há pelo menos duas décadas. Portanto, qual a urgência de se chamar a atenção do público para a mensagem sobre complexidade e eventos extremos neste momento? A razão é muito simples: nunca antes na história da humanidade os seres humanos estiveram tão vulneráveis a um gigantesco, quase inacreditável, downsizing em seu modo de viver quanto hoje em dia. As infraestruturas necessárias para manter um estilo de vida pós-industrial — energia, água, comida, comunicação, transporte, saúde, segurança, finanças — são tão interligadas que, se um sistema espirrar, os outros pegam pneumonia na mesma hora. Este livro delineia as dimensões do(s) problema(s) que enfrentamos na atualidade, suas origens e o que podemos fazer para reduzir o risco de uma pane total do sistema, levando-se em consideração que, neste caso, a própria civilização humana é “o sistema”.
John Casti, in O colapso de tudo

Viagem

Apago a vela, enfuno as velas: planto
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto
E ardendo em festas fogo-embalsamadas
Amo em tropel, corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalos e símbolos, harmônio
Onde executo a flor que em mim se embebe,
Centro e cetro, curvando-se ante a sebe
Divina — a própria morte hoje defloro
E vida eterna engendro: gero, adoro.
Mário Faustino

Música: êxtase


Sem o imperialismo do conceito, a música teria substituído a filosofia: teria sido o paraíso da evidência inexprimível, uma epidemia de êxtases.”
E. M. Cioran

As laranjas

Primeira lição da psicanálise: se você quiser descobrir segredos, preste atenção nas coisas pequenas, aquelas coisas que ninguém nota. É nelas que se revelam os segredos. Aqui em Campinas, por exemplo, há pessoas que falam “casa de Aurélia”, “o livro de Pedro”, “o aniversário de Margarida”... Quando ouço esse de, já sei que se trata de pessoa ligada à nobreza dos grandes barões do café. E me cubro de cerimônias por me sentir na sala de visitas de um casarão colonial... É nesse insignificante de que se encontra a revelação.
Pois as origens da família do meu pai e da família de minha mãe se revelam no insignificante e banalíssimo ato de chupar laranja. Ah! Vocês pensavam que uma laranja é simplesmente uma laranja! Não é, não. Laranjas do mesmo pé podem ser nobres ou plebeias. Depende do jeito como são comidas. A família de minha mãe chupava laranja de gomo, a família do meu pai chupava laranja de tampa. Você pode imaginar uma senhora da alta sociedade chupando laranja de tampa num jantar? Jamais! Chupar laranja de tampa é coisa de plebeus: a laranja enfiada entre os beiços e os dentes, comprimida pelas mãos para lhe extrair o caldo, as sementes enchendo a boca para serem cuspidas para o lado. Pode-se dizer que chupar laranja de tampa é gostoso e descontraído. Mas elegante é que não é. Laranja de tampa pode-se chupar de pé e mesmo andando. O que não é possível fazer quando se chupa uma laranja de gomo. Não, laranja de gomo não se chupa. Chupar não é elegante. Laranja de gomo se come calmamente. Leva tempo. É preciso estar assentado à mesa. Primeiro é o cuidadoso ato de descascar. Descascada a laranja, segue-se a operação de retirar-lhe a película branca que a cobre. A seguir, abre-se a mesma em duas metades e separam-se os seus gomos. Tomam-se então os gomos, um a um, e vagarosamente se executa a operação cirúrgica de retirar a pele translúcida em que vêm revestidos. Desnudados os gomos, retiram-se-lhes com a ponta da faca os caroços que são colocados elegantemente no prato. Finalmente, come-se a sua carne enquanto se conversa. É trabalhoso comer uma laranja de gomo. Trata-se de um elaborado strip-tease.
Todos da família da minha mãe comiam as laranjas de gomo. Curioso sobre esse costume, procurei explicações com a minha mãe. Ela me respondeu: “É para aproveitar melhor.” De fato, aproveita-se melhor. Mas eu não via razão para se aproveitar tanto quando as laranjeiras estavam cheias de laranjas que se perdiam, comidas pelos passarinhos e insetos e apodrecidas no chão. Não, não fazia sentido. Essa estória de “aproveitar melhor” só faz sentido quando laranjas são poucas e raras, frutas nobres e caras, possivelmente importadas... Mas lá no interior de Minas não se importavam laranjas, não eram raras nem eram caras. Havia um descompasso entre a abundância das laranjas e a necessidade de comê-las de sorte a aproveitar todas as suas garrafinhas. Se você não sabe, as garrafinhas de uma laranja são aquelas minúsculas gotas de caldo que compõem o gomo. Isso não era costume brasileiro. Era costume que vinha das cortes reais da Europa... Lá os nobres, ricos, comiam caras laranjas importadas, de gomo, elegantemente. O povo pobre não comia laranjas, talvez nem soubesse o que eram laranjas... Assim, ao comerem as laranjas de gomo, os membros da família de minha mãe anunciavam suas origens nobres.
Na família do meu pai, ao contrário, todo mundo chupava laranjas de tampa. Meu pai chegava a chupar 15 de uma vez, pendurando suas cascas inteiras no braço esquerdo para que fossem posteriormente usadas para acender fogo, em virtude de suas potências incendiárias. A família do meu pai nada tinha de nobreza. Era gente comum, sem etiquetas, e consta mesmo que havia índios, negros e mascates sírios nas suas origens.
O fato era que a família de minha mãe orgulhosamente se julgava de “sangue azul”, e se meu avô permitiu que minha mãe se casasse com o meu pai, acho que foi porque ele era rico. O dinheiro perdoa um homem que chupa laranjas de tampa... Referiam-se desdenhosamente às pessoas da “prateleira de baixo” e, quando uma delas tinha antecedentes negros, coçavam discretamente a bochecha com o dedo indicador como que para advertir quem não soubesse: “É negro!”
Havia vários outros artifícios para estabelecer com clareza sua superioridade sobre a plebe. Um deles eram os nomes que se davam aos filhos. A plebe batizava seus filhos de Antônio, Manoel, João, José, Maria, Conceição, Tereza, nomes vulgares... Mas, para que não houvesse confusões, nossa diferença nobre já estava anunciada em nossos nomes: Aloísio, Augusto, Silvestre, Jorge, Eugênio, Noêmia, Yolanda, Cecília...
Uma outra marca de nobreza estava nas roupas que tínhamos de vestir. Os meninos da plebe muito cedo começavam a usar calças compridas. Mas a família da minha mãe achava que os filhos nobres tinham de usar calças curtas. Meu irmão me contou da sua vergonha: já tinha 14 anos, suas pernas eram peludas, e tinha de usar calças curtas. Ele andava pelas ruas se espremendo contra as paredes para que ninguém o visse. Naqueles tempos filho não tinha vontade. Minha mãe se justificava dizendo que os meninos do Rio de Janeiro usavam calças curtas. Eu mesmo fui vítima de uma castração. Eu tinha 12 anos e envergonhadamente usava calças curtas. Meu pai e minha mãe me levaram para comprar um terno. Minha mãe pediu um terno de calças curtas. O vendedor respondeu que, para um jovem da minha idade, não havia terno de calças curtas. Ri de felicidade! Finalmente iria realizar o meu desejo de ter um terno de calças compridas! Comprado o terno, minha mãe disse ao vendedor: “Por favor, mande cortar as pernas...” Ela não era culpada. Achava que, assim, me estava dando um toque de nobreza.
Na família do meu pai as portas da rua das casas tinham um buraco pelo qual se passava um barbante amarrado ao trinco. Não era preciso bater. Bastava puxar o barbante que a porta se abria e a pessoa podia entrar pela casa indo até a cozinha onde havia sempre uma cafeteira sobre a chapa do fogão de lenha. No sobradão do meu avô ninguém passava da sala de visitas que ficava na frente, ao fim da escadaria. Era lá que as visitas eram cerimoniosamente recebidas e confinadas. Quem quiser ver a diferença que assista ao filme Casamento grego. A família grega, imensa, pais, irmãos, tios, sobrinhos, todos falando ao mesmo tempo, uma farra de gritos e risadas. A família americana, pai, mãe e filho, tão educados, tão contidos, falando baixinho, tantos sorrisos, nenhuma risada... É preciso ter cuidado para não ofender... Pois era assim mesmo...
Mas, de todas as marcas de nobreza, havia uma que me humilhava mais: os meninos da plebe tinham os seus cabelos raspados à escovinha, com uma franja na testa. Como tínhamos de nos diferenciar dos meninos da “prateleira de baixo”, tínhamos de ter cabelo comprido. O que era motivo de muita vergonha porque, naqueles tempos, cabelo comprido era coisa de menina. Cabelo comprido e calças curtas: era demais... Pois o meu irmão Ismael, já moço, que estudava num internato, veio nos visitar na cidade do trem de ferro, Lambari. Ele não disse nada. Pegou-me pela mão e levou-me a passear. Ao passar por uma barbearia, assentou-me na cadeira e ordenou ao barbeiro: “Escovinha”... Me lembro como se fosse hoje. E até hoje sou grato ao meu irmão Ismael…
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

Um ex-pregador


De repente, Tom exclamou:
Ei, onde está o reverendo? Ele tava aqui agorinha mesmo. Aonde que ele foi?
Eu vi ele — disse o pai. — Mas agora não sei onde está.
E a avó falou em voz aguda:
Reverendo? Ocê trouxe um pregador? Traz ele pra cá. Ele pode dizer uma reza. — E ela apontou para o marido. — Pra ele não adianta mais, já comeu. Traz pra cá o reverendo.
Tom foi à porta.
Ei, Jim! — gritou. — Jim Casy! — E saiu pelo terreiro, clamando: — Ô Casy!
O pregador emergiu de trás da cisterna, endireitou-se e foi andando em direção à casa.
Que é que o senhor tava fazendo aí? — perguntou-lhe Tom.
Bem, não estava fazendo nada. Mas um homem não deve meter o nariz numa reunião íntima de família. Eu estava só sentado e pensando.
Vamo entrar e comer — convidou-o Tom. — A minha avó quer uma reza.
Mas eu não sou mais um pregador — protestou Casy.
Ora, deixe disso. Que é que custa rezar uma prece? Pro senhor não tem importância e pra ela faz bem. — Os dois entraram na cozinha.
Seja bem-vindo — cumprimentou-o a mãe.
E o pai disse:
O senhor é bem-vindo. Vamo comer qualquer coisa.
Primeiro vamo rezar — clamou a avó. — Primeiro a reza.
O avô focalizou com ferocidade o pastor com os olhos, até reconhecê-lo.
Oh, eu conheço esse pregador — disse. — Ele é dos bons. Sempre gostei dele... desde que o vi.— E pestanejou tão libidinosamente que sua mulher pensou que ele tivesse dito qualquer coisa e replicou:
Cala a boca, seu bode velho!
Casy passou, nervoso, os dedos pelos cabelos.
É preciso que saibam, eu não sou mais um pregador. Se é só para dizer algumas palavras de gratidão, por me encontrar aqui no meio de gente boa, generosa, está certo... mas... está bem, vou fazer do meu agradecimento uma prece. Mas, repito, não sou mais nenhum pregador.
Então diz — falou a avó. — E diz umas palavras sobre a nossa viagem pra Califórnia.
O pregador baixou a cabeça e todos os outros o imitaram. A mãe cruzou os braços sobre o ventre e baixou a cabeça. A avó baixou-a tanto que quase tocou o prato gorduroso com o nariz. Tom, encostado à parede, o prato na mão, baixou-a bruscamente, e o avô inclinou-a de lado, de maneira que pudesse observar o reverendo com os olhos maliciosos. E nas faces do pregador havia traços não de quem reza, mas de quem está cismando, pensativo; e no tom de sua voz não havia súplica, mas apenas reflexão.
Estive pensando — disse o reverendo. — Eu estava nas colinas, cismando, tal qual Jesus devia ter cismado quando se meteu deserto adentro para encontrar uma solução para as suas aflições.
Com Deus, pela vitória! — disse a avó, e o pregador olhou-a surpreso.
Jesus estava todo enredado por aflições e Ele não via em como sair delas; então Ele ficou cismando em para que diabo, afinal, valeria a pena lutar e pensar. Ficou fatigado, então, e Seu espírito consumiu-se. Foi aí que Ele chegou à conclusão de que não valia a pena se atormentar. E meteu-se no deserto.
A... mém. — A avó falou, numa espécie de balido. Tinha a mania de meter-se sempre nas pausas. Assim vinha fazendo através dos anos, compreendendo ou não o que ouvia.
Não quero dizer que eu seja como Jesus — continuou o pregador. — Mas eu também fiquei fatigado como Ele, e estava aturdido como Ele, e me meti nos ermos como Ele, sem nada para me abrigar. À noite, eu ficava deitado de costas e olhava as estrelas; pelas madrugadas, ficava sentado à espera de que o sol nascesse; pelo meio-dia, contemplava do alto de uma colina a extensão das vastas terras secas; pela tarde, acompanhava com os olhos o pôr do sol. Às vezes rezava, como fazia antigamente. Só não sabia o que rezava e por quê. Ali estavam os outeiros e ali estava eu e não havia separação entre nós. Éramos uma só coisa. E essa coisa unida era uma coisa sagrada.
Aleluia — disse a avó, e balançou a cabeça para a frente e para trás, tentando assumir uma posição de êxtase.
E eu fiquei pensando, só que não era bem pensando, era mais profundo que o simples pensar. Fiquei cismando em como é que nós éramos sagrados quando éramos uma só coisa, e o gênero humano era sagrado quando era uma só coisa. E só deixava de ser sagrado quando um mísero camarada cerrava os dentes e seguia o seu caminho, batendo os pés, aos arrancos, lutando. Camaradas assim perturbam a santidade. Mas quando eles agem em conjunto, não um para o outro, mas um camarada só para toda a comunidade — aí sim, aí está tudo certo, é sagrado. E depois eu fiquei pensando que afinal nem sei o que quero dizer com o termo sagrado. — Ele estacou, mas as cabeças continuaram baixas, porquanto elas estavam treinadas, qual cães, a erguerem-se apenas ao sinal de “amém”. — Eu não sei orar como antigamente. Estou feliz com a santidade desta refeição. Dou graças por encontrar amor neste lugar. É só. — As cabeças continuaram baixas. O pregador olhou em torno. — Fiz com que esfriasse a comida — disse; e depois lembrou-se. — Amém — concluiu, e as cabeças ergueram-se todas.
A... mém — disse a avó, e caiu sobre a comida, mordendo o pão com as gengivas desdentadas.
Tom comia depressa e o pai empanturrou-se. Ninguém falou, até acabar a comida, e todos tomarem café; somente era audível o mastigar da comida e o borbulhar do café a descer pelas gargantas. A mãe observava o pregador a comer, com olhos interrogadores e compreensivos. Ela o observava como se o reverendo se tivesse transformado de repente num espírito, não mais fosse um ser humano, mas uma voz vinda das profundezas.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

quinta-feira, 30 de março de 2017

Lição de filho

Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conhecia ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão, mas em grande dúvida. Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era excessivamente suave, com voz de criança, e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? Eu a conhecera num momento muito importante: quando ela ia escolher a “camisola do dia” para o casamento. As perguntas que me fazia eram de uma franqueza ingênua que me surpreendia. Tocaria ela piano? Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante.
E ele:
-Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção.
Entendi, aceitei, e disse-lhe:
-Não vou tomar nenhum calmante.
E vivi o que era para ser vivido.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

Nada além do necessário

A lei seca da arte é esta: Ne quid nimis (nada além do necessário). Tudo o que é supérfluo, tudo aquilo que podemos suprimir sem alterar a essência é contrário à existência da beleza.”
Ortega y Gasset

O recado do morro (trecho inicial)

Sem que bem se saiba, conseguiu-se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte, extraordinariamente comum, que se armou com o enxadeiro Pedro Orósio (também acudindo por Pedrão Chãbergo ou Pê-Boi, de alcunha), e teve aparente princípio e fim, num julho-agosto, nos fundos do município onde ele residia; em sua raia noroesteã, para dizer com rigor.
Desde ali, o ocre da estrada, como de costume, é um S, que começa grande frase. E iam, serra-acima, cinco homens, pelo espigão divisor. Dia a muito menos de meio, solene sol, as sombras deles davam para o lado esquerdo.
Debaixo de ordem. De guiador — a pé, descalço — Pedro Orósio: moço, a nuca bem-feita, graúda membradura; e marcadamente erguido: nem lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os ossos da cabeça de um marruás, com um soco em sua cabeloura, e de levantar do chão um jumento arreado, carregando-o nos braços por meio quilômetro, esquivando-se de seus côices e mordidas, e sem nem por isso afrouxar do fôlego de ar que Deus empresta a todos.
Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessôa. Um, de fora, a quem tratavam por seo Alquiste ou Olquiste — espigo, alemão-rana, com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de chocolate, de um novo feitío; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu de palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho atôa, uma môita de carrapicho, um ninhol de vêspos.
Segundo, um frade louro — frei Sinfrão — desses de sandália sem meia e túnica marrom, que têm casa de convento em Pirapora e Cordisburgo. Também trazia, sobre o hábito, um guarda-pó, creme; e punha chapéu branco, de pano mole. Relia o breviário, assim mesmo montado, e fumava charuto. Falava completo a língua da gente, porém sotaqueava.
Com eles, seo Jujuca do Açude, fazendeiro de gado, e filho de fazendeiro, de seu Juca Vieira, com apelido seu Juca do Açude, da Fazenda do Açude, para lá atrás do Saco do Sãjoão.
Derradeiro, outro camarada — a cavalo esse, e tangendo os burros cargueiros —: um Ivo, Ivo de Tal, Ivo da Tia Merência.
De seu, o guia Pedro Orósio preferisse mesmo viajar a pé, ou talvez, culpa de seu tamanho, nem acharia cavalgadura que lhe assentasse. Mas ele era um sete-pernas. Abrindo passo muito extenso e ligeiro, e, tão forçoso, de corpo nunca se cansava. Por mais, aqueles ali não estavam apurados, iam jornada vagarosa. O louraça, seo Alquiste, parecia querer remedir cada palmo de lugar, ver apalpado as grutas, os sumidouros, as plantas do caatingal e do mato. Por causa, esbarravam a toda hora, se apeavam, meio desertavam desbandando da estrada-mestra.
De feito, diversa é a região, com belezas, maravilhal. Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras, por prolongação. Sempre um apique bruto de pedreiras, enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo calcáreo. E elas se roem, não raro, em formas — que nem pontes, torres, colunas, alpendres, chaminés, guaritas, grades, campanários, parados animais, destroços de estátuas ou vultos de criaturas. Por lá, qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-íris, cor por cor, vivente longo ao solsim, feito um pavão. Umas redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem fumegando com vapor e empurram enxurradas mão de rios, se engolfam descendo por funis de furnas, antros e grotas, com tardo gorgôlo musical. Nos rochedos, os bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus se foram. Pelas abas das serras, quantidades de cavernas — do teto de umas poreja, solta do tempo, a aguinha estilando salôbra, minando sem-fim num gotê-jo, que vira pedra no ar, se endurece e dependura, por toda a vida, que nem renda de torrõezinhos de amêndoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera santa, e grossas lágrimas de espermacete; enquanto do chão sobem outras, como crescidos dentes, como que aquelas sejam goelas da terra, com boca para morder. Criptas onde o ar tem corpo de idade e a água forma pele muito fria, e a escuridão se pega como uma coisa. Ou lapinhas cheias de morcegos, que juntos chiam, guincham, porfiam. Largos ocos que servem de malhador ao gado, no refrio das noites, ou de abrigo durante as tempestades. Lapas, com salitrados desvãos, onde assiste, rodeada de silêncios e acendendo globos olhos no escuro, a coruja-branca-de-orêlhas, grande mocho, a estrige cor de pérolas — strix perlata . Cafurnas em que as andorinhas parte do ano habitam, fazendo ninho, pondo e tirando cria, depois se somem em bandos por este mundo, deixaram lá dentro só a ruiva molêja, às rumas, e sua ardida cheiração. Fim do campo, nas sarjetas entremontãs das bacias, um ribeirão de repente vem, desenrodilhado, ou o fiúme de um riachinho, e dá com o emparedamento, então cava um buraco e por ele se soverte, desaparecendo num emboque, que alguns ainda têm pelo nome gentio, de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrão, travessando para o outro sopé do morro, ora adiante, onde rebrota desengulido, a água já filtrada, num bilo-bilo fácil, logo se alisando branca e em leves laivos se azulando, que qual polpa cortada de cajú. E mesmo córregos se afundam, no plão, sem razão, a não ser para poderem cruzar intactos por debaixo de rios, e remanam do túnel, ressurtindo, longe, e depressa se afastam, seguindo por terem escolhido de afluir a um rio outro. E lagôazinhas, em pontos elevados, são ao contrário de todas: se enchem na seca, e tempo-das-águas se esvaziam, delas mal se sabe. E nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice, de bichos sem estatura de regra, assombração deles — o megatério, o tigre-dente-de-sabre, a protopantera, a monstra hiena espélea, o páleo-cão, o lobo espéleo, o urso-das-cavernas —, e homenzarros, duns que não há mais. Era só cavacar o duro chão, de laje branca e terra vermelha e sal. Montes de ossos, de bichos que outros arrastavam para devorar ali, ou que massas d’água afogaram, quebrando-os contra as rochas, quando às manadas eles queriam fugir, se escondendo do Dilúvio. Agora, pelas penedias, escalam cardos, cactos, parasitas agarrantes, gravatás se abrindo de flores em azul e vermelho, azagaias de piteiras, o páu-d’óleo com raízes de escultura, gameleiras manejando como alavancas suas sapopemas, rachando e estalando o que acham; a bromélia cabelos-do-rei, epífita; a chita — uma orquídea; e a catleia, sofredora, rosíssima e rôxa, que ali vive no rosto das pedras, perfurando-as. Papagaios rouco gritam: voam em amarelo, verdes. Vez em vez, se esparrama um grupo de anús, coracoides, que piam pingos choramingas. O caracará surge, pousando perto da gente, quando menos se espera — um gaviãoão vistoso, que gutura. Por resto, o mudo passar alto dos urubús, rodeando, recruzando —; pela guisa esses sabem o que-há-de-vir.
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem. Tomava nota, escrevia na caderneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande está estrangulando com as raízes a paineira pequena! — ele apreciava, à exclama. Colhia com duas mãos a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, joão-da-costa, unha-de-vaca-rôxa, olhos-de-porco, copo-d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambú. Outramão, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava traço e figura leal. Daquelas cumeeiras, a vista vai de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze, vinte, trinta léguas lonjura. — “Dá açôite de se ajoelhar e rezar…” — ele falou. Dava. E sorria de ver, singular, elas trepando pela reigada da vertente, as labaredas verdes dum canavial.
Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço? Mas bastantemente assentava no caderno, à sua satisfação. Quando não provia melhor coisa, especulava perguntas; frei Sinfrão, que se entendia na linguagem dele, repetia:
Quer saber donde você é, Pedrão. Se você nasceu aqui?
Não. Pê-Boi era de mais afastado, catrumano, nato num povoadim de vereda, no sertão dos campos-gerais. Homem de brejo de buritizal entre chapadas arenosas, terra de rei-trovão e gado bravo. E, mesmo agora, só se ajustara de vir com a comitiva era porque tencionavam chegar, mais norte, até ao começo de lá, e ele aproveitava, queria rever a vaqueirama irmã, os de chapéu-de-couro, tornar a escutar os sofrês cantando claro em bando nas palmas da palmeira; pelo menos pisar o chapadão chato, de vista descoberta, e cheirar outra vez o resseco ar forte daqueles campos, que a alma da gente não esquece nunca direito e o coração de geralista está sempre pedindo baixinho. Porque Pedro Orósio não era serviçal de seu Juca do Açude — ele trabucava forro, plantando à meia sua rocinha, colhia até cana e algodão.
Se você é solteiro ou casado, Pedro?
E frei Sinfrão mesmo sabia, já respondia, jocoso, linguajando. Que o Pedro era ainda teimoso solteiro, e o maior bandoleiro namorador: as moças todas mais gostavam dele do que de qualquer outro; por abuso disso, vivia tirando as namoradas, atravessava e tomava a que bem quisesse, só por divertimento de indecisão. Tal modo que muitos homens e rapazes lhe tinham ódio, queriam o fim dele, se não se atreviam a pegá-lo era por sensatez de medo, por ele ser turuna e primão em força, feito um touro ou uma montanha. Aquele mesmo Ivo, que evinha ali, e que de primeiro tão seu amigo fora, andava agora com ele estremecido, por conta de uma mocinha, Maria Melissa, do Cuba, da qual gostavam. E, a causa de outras, delas nem se lembrava, ali em Cordisburgo tinha o Dias Nemes, famanaz, virado contra ele no vil frio de uma inimizade, capaz de tudo. Com frequência, Pedro Orósio tirava do bolso um espelhinho redondo: se supria de se mirar, vaidoso da constância de seu rosto.
E quando é que você toma juízo, Pedro, e se casa?
Todos riam. Até o Ivo, que ria fazia, destornado. Seu Alquiste quis bater uma fotografia de Pedro Orósio: recomendou que ele ficasse teso, descidos os braços. — “Grande… Muito grande…” — falou. — “Bom para soldado!” De por si sem acanhamento nenhum, antes saído, e mais ainda se espiritando com aquele regozijo geral, o Pedro prosapiou graça de responder, sem quebra de respeito — que perguntassem ao outro se na terra dele as moças eram bonitas, pois gostava era de se casar com uma assim: de cara rosada, cabelo amarelo e olho azul…
Guimarães Rosa, in No Urubuquaquá, no Pinhém

Um inimigo pior

 “Temos na natureza muitas coisas contra as quais lutar, mas há um inimigo pior que todos os furacões e terremotos: o próprio ser humano. A natureza com todos os seus vulcões, terremotos, furacões e inundações não causou tantos mortos como a humanidade causou a si própria. Lutas de toda a ordem; guerras religiosas, guerras de interesses materiais, guerras absolutamente absurdas e estúpidas como as dinásticas. Não há um raio de luz — para pôr a questão assim — que dê na cabeça das pessoas e as faça perceber que não se pode viver assim!”
José Saramago, in As palavras de Saramago

terça-feira, 28 de março de 2017

Incenso fosse música

Isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
gardênias e hortênsias
não façam nada
que me lembre
que a este mundo eu pertença
deixem-me pensar
que tudo não passa
de uma terrível coincidência
À glória sucede
o que sucede à água:
por mais água que beba,
qual lhe sacia a sede?
Diverso o sucesso,
basta-lhe um verso
para essa desgraça
que se chama dar certo.
Paulo Leminski

Relendo Rilke (E com direito a Jorge Amado)

Ao som das canções de Sarah Vaughan, dei ultimamente - embora já dele tão distanciado por tantas e tão grandes causas - de reler o poeta Rainer Maria Rilke. Andei folheando as Cartas a um jovem poeta, os Sonetos a Orfeu e algumas Elegias de Duino. E o que tenho a dizer é o seguinte: poucos seres tão poéticos nasceram nunca de uma mulher. Pouquíssimos, como esse Grande Enfermo, viveram tanto em poesia e se abandonaram mais fundamente, náufrago irremediável, à avidez de suas águas onde o esperava o indizível abandono.
Nunca vida humana fechou-se mais completamente dentro de uma mística. Chega a ser impressionante. Rilke passou, como aquele “afogado pensativo”, a descer os “azuis verdes” dos céus e dos rios que a visão de Jean-Arthur Rimbaud confundiu no seu poema “Le Bateau ivre”. O poeta viveu em transe poético constante, amargurando seu espírito contra todos os temas da Vida, do Amor e da Morte, a que piedosamente amou como uma única entidade.
Sua simplicidade como poeta nasce dessa longa tortura lírica de ver a morte como um amadurecimento da vida, numa total compensação. Rilke acreditava que a morte nasce com o homem, que este a traz em si tal uma semente que brota, faz-se árvore, floresce e frutifica ao se despojar do seu alburno humano. Seus poemas menores vencem lentamente todos esses "graus do terrível", num crescimento espontâneo para a grande enflorescência, de onde penderão os melhores frutos, desejosos de renovação na terra.
Em 1910 Rilke terminava os seus famosos Cadernos de Malte Laurids Brigge, onde contou, com uma beleza raras vezes alcançada em prosa, a história elegíaca da destruição de um ser votado à fatalidade irremediável da mágoa. Porque é mágoa, mais que angústia, o que colhemos dessa narrativa: a mágoa do mal-entendido humano, o solilóquio desolador do homem desajustado à vida. A qualidade do sofrimento que lhe vem dessa torturante criação, como que lhe afina ainda mais a sensibilidade, já de si tão aguçada para todos os sussurros da poesia. O poeta pena, como penou por um momento o Cristo, da coexistência íntima da dúvida e da certeza, enquanto vagueia, morbidamente enfraquecido pela doença, pelos lugares que mais ama na Europa: Paris, a Rússia e os países escandinavos, intermitentemente.
Em fins de 1911, instado pelos príncipes de Tour e Taxis, Rilke vai passar sozinho o inverno no Castelo de Duino. Um belo dia de janeiro, passeando às bordas de um penhasco sobre o Adriático, diz ter ouvido no vento o mistério de uma voz que lhe dizia: “Quem, se eu gritasse, me ouviria em meio à hierarquia dos anjos?” Eriçado, e ao mesmo tempo atônito com o milagre dessas palavras que lhe surgiam com a própria poesia desejada, o poeta as anotou e, nesse mesmo dia, escrevia o primeiro movimento desse bloco sinfônico a que chamou Elegias de Duíno. Tão temperados se achavam nele os motivos da obra em perspectiva que, em poucos dias, escrevia a segunda da série e o começo de quase todas as outras.
Mas o impulso cessou. Por dez anos Rilke calou-se, à espera de que nele as palavras encontrassem seu lugar exato no grande puzzle poético que se desencadeara. Em Paris, na Espanha e em Munique acrescentou fragmentos a algumas das elegias, sofrendo terrivelmente da descontinuidade com que a poesia se revelava. E não seria senão depois da Primeira Grande Guerra, no seu refúgio da Suíça, em Muzot, que num sopro de criação poucas vezes igualado, só comparável talvez a certos instantes de música e de pintura em Miguelangelo e Beethoven, escreveria em três semanas as oito elegias restantes, Os 55 Sonetos a Orfeu e vários outros poemas a que chamou Fragmentarishes. Fora o último espasmo de vida nesse eterno, sereno moribundo. A Morte, sua amiga, desobjetivava-o poucos anos depois, como “um rio que leva”. Rilke recusou o médico: queria morrer a sua morte.
Mas, depois, o mal-estar em que me deixou essa combinação de Rilke e Sarah Vaughan... Foi quando tive a boa idéia de ler tua novela A morte e a morte de Quincas Berro D'água, Jorge. Que mortes tão diferentes... Que beleza, Jorge, que beleza!
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor

Novidades

Cada dia é preciso escrever sobre uma coisa nova — mas novidades, as últimas, só as há nas vitrinas de butiques, nos catálogos de acessórios domésticos, nos belíssimos e caros anúncios de medicamentos caros.
Estas é que importam, fascinam, dão água na boca — quem é que não deseja ser saudável como os ginastas das estátuas gregas ou, se mulher, ter o porte e o charme dos manequins de moda? Mas, por azar, o que mais interessa só pode ser sob prescrição médica...
O resto, quase o que só se lê, são ninharias: sequestros, estupros, assaltos e outras coisas que ficam além do alcance do vulgo. Resta a política, mas agora em mãos de especialistas, de modo que a gente fica igualmente por fora.
Parece que diante de tudo isso a única solução é fabricar fogos de artifício, girândolas, busca-pés e traques, na falta de outras coisas menos líricas.
Mas os cartolas dirão que não é tempo de lirismos. Ouçamos, pois, o que digressionam eles sobre assuntos econômicos. Isto, sim, é que toca a todos nós nestes tempos bicudos. Como?! Não entendeste nada? E alegas que é porque eles falam economês? Nada disto, meu santo. Eles acabam de expressar-se no mais puro chinês!
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

Representação

Porque em todas as circunstâncias da vida real, não é a alma dentro de nós, mas sua sombra, o homem exterior, que geme, se lamenta e desempenha todos os papéis neste teatro de palcos múltiplos, que é a terra inteira.”
Plotino

Visitante noturno

O inseto apareceu sobre a mesa como todos os insetos: sem se fazer anunciar. E sem que se atinasse por que motivo escolhera aquele pouso. Não parecia bicho da noite, desses que não podem ver lâmpada acesa, e logo se aproximam, fascinados. Era uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima, sem explicação, sem sentido para ninguém.
Ninguém? O homem, que tem o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros, sentiu-lhe a presença e pensou imediatamente em esmagar o intruso. Chegou a mover a mão. Não o mataria com os dedos, mas com outra folha de papel.
Deteve-se. Não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido, sem fazer mal nenhum. Inseto nocivo? Talvez. Mas sua ignorância em entomologia não lhe dava chance de decidir entre a segurança e a injustiça. E na dúvida, era melhor deixar viver aquilo, que nem nome tinha para ele. Com que direito aplicaria pena de morte a um desconhecido infinitamente desprovido de meios sequer para reagir, quanto mais para explicar-se?
O inseto parecia pouco ligar para ele, juiz autonomeado e algoz em perspectiva. Dormia ou modorrava sobre a mesa literária, indiferente, simplesmente. Chegara por acaso, sumiria daí a pouco; deixá-lo viver a seu modo, que era um viver anônimo, desligado de inquietações humanas, invariável dentro da natureza: curto e pobre.
Uma ternura imprevista brotou no homem pelo animálculo que momentos antes pensara em destruir. Como se alguém viesse de longe para vê-lo, fazer-lhe companhia, em sua noite de trabalho. Não conversava, não incomodava, era uma questão apenas de estar à sua frente, imóvel, em secreta comunhão. Ele fora o escolhido de um inseto, que poderia ter voado para outro apartamento, onde houvesse outra vigília de escrevedor de coisas, mas aquela fora a casa de sua preferência.
A menos que o acaso determinasse aquele encontro. Era possível. O inseto voara a esmo. O homem quis aferrar-se a esta hipótese, bem plausível. Já se envergonhava de ter envolvido o estranho numa aura de sensibilidade, e talvez voltasse ao impulso inicial de eliminação. A essa altura, espantou-se com a mobilidade de suas reações. Passava de verdugo a sentimentalão, depois a observador cético e crítico, finalmente perdia-se na confusão das várias atitudes que podemos assumir diante de um inseto instalado na mesa de um escritório, a uma hora que ainda não é madrugada mas já é noite alta e de sono profundo.
Aquietou-se, afinal, na contemplação do “bicho da terra tão pequeno”. Era alguma coisa parecida com um botão marrom rombudo, que tivesse olhos e um projeto de asas — o suficiente para deslocar-se no espaço em aventuras breves. E não era uma aventura simples: a altura do edifício exigia esforço grande para chegar da árvore até o décimo primeiro andar. Entretanto, o botão vivo o fizera, e ali estava, tranquilo ou cansado, à mercê do gigante indeciso, que procurava entender, não propriamente sua presença, mas a turbação íntima que essa presença despertava no gigante.
O homem não pensou em recorrer às enciclopédias para identificar o visitante. Ainda que chegasse a identificá-lo como espécie, não avançaria muito no conhecimento do indivíduo, que era único por ser entre todos o que o visitava. E na multidão de insetos, imagináveis e inimagináveis, só lhe interessava aquele, companheiro noturno vindo de não se sabe onde, a caminho de ignorado rumo.
Já não escrevia. Olhava. Mirava. Sentia-se também olhado e mirado, quando o inseto fez ligeiro movimento que o colocou diretamente sob o foco de luz. Seria exagero encontrar expressão naqueles dois pontinhos negros e reluzentes, mas o fato é que deles parecia vir para os olhos do homem um sinal de atenção ou curiosidade. E os dois, homem e inseto, assim ficaram longo tempo, na muda inspeção, ou conversa, que não conduzia a nada.
A nada? Muitas conversas entre homens também não levam a resultado algum, mas há sempre a esperança de um entendimento que pode vir das palavras ou de uma troca desprevenida de olhares. E o olhar pode penetrar mais fundo que as palavras. O homem sabia disto. Mas aí notou que, sabendo falar alguma coisa, não era perito em ver diretamente o real. A figura do inseto dizia-lhe pouco. Dos dois, talvez fosse ele, homem, o que menos habilitado se achava para uma forma de comunicação, aquém — ou além — dos códigos tradicionais.
Distraiu-se avaliando essas limitações e, ao voltar à observação do visitante, este havia desaparecido, decepcionado talvez com a incomunicabilidade dos gigantes. Não é todas as noites que um inseto nos visita. E, se consegue insinuar-nos alguma coisa, esta nunca jamais foi captada para os homens que merecem crédito; só os ficcionistas é que costumam registrá-la, mas quem leva a sério ficcionistas?
Carlos Drummond de Andrade, in Boca de luar